O professor Antônio Paim. |
Ayaan
Hirsi Ali nasceu em 1969 na Somália, cresceu na Arábia Saudita e sua família
acabou radicando-se no Quênia, tendo sido educada como muçulmana. Não obstante
essa formação, rebelou-se contra a mutilação genital feminina e, em geral, contra
o menosprezo às mulheres, em razão do que incompatibilizou-se com o ambiente
local e obteve asilo na Holanda. Estávamos em
1992 e tinha então 23 anos.
Na
Holanda, deu prosseguimento à sua militância. Entre outras coisas criou uma
organização para a defesa dos direitos das mulheres. Escreveu o roteiro para um
filme nessa linha, exibido com o título de Submissão.
A circunstância valeu-lhe ameaças de morte que se concretizaram em relação ao
diretor (Theo Van Gogh). Tendo sido eleita para o Parlamento em 2003
tornar-se-ia alvo preferencial dos emigrantes muçulmanos radicados no país,
verificando-se campanha em prol da cassação de sua cidadania. Estabeleceu-se
celeuma de tal ordem que desencadeou uma crise governamental, levando-a a
renunciar ao mandato parlamentar.
Alcançaria
ampla notoriedade mundial com a publicação de livro de memórias (Infiel). Traduzido ao inglês
tornar-se-ia best-seller e a projetou no mundo acadêmico, passando a integrar o
corpo docente da Escola de Governo da
Universidade norte-americana de Harvard. Apesar dessa fama, continua com a
sobrevivência ameaçada, a ponto de que, tendo se radicado nos Estados Unidos,
mantém em segredo onde precisamente fixou residência.
Vem de
publicar (New York, Harper Collins Publishers, 2015) um novo livro que está
provocando vivos debates e cujo conteúdo ora nos propomos a apresentar.
Intitula-se Herege. Porque o Islã necessita de reforma agora. Independente
de sua viabilidade bem como do fato de que ao Ocidente só cabe a posição de
observador interessado, os termos nos quais coloca a religião islâmica fornece,
aos governos europeus e aos Estados Unidos, valiosas indicações para a
formulação de uma política em relação aos imigrantes muçulmanos, comprovado que
está o fracasso do chamado multiculturalismo e da inadmissibilidade
da simples proibição reivindicada pelos setores mais radicais da população.
Herege estabelece como premissa da reforma de que se trata, concebida por expressivas personalidades, a diferenciação
entre três grupos de muçulmanos. Grupamento que difere da conhecida divisão
entre sunitas e shiitas.
O
primeiro grupo seria constituído pelos fundamentalistas. Ambicionam regime
baseado na lei islâmica (sharia, que
regula minuciosamente o comportamento social a ser imposto) com o que revelam
considerar intocável o legado do sétimo século, isto é, da época em que viveu e
atuou Maomé. Além do mais, sua fé deve ser imposta a todos. Denomina-os
“muçulmanos milenaristas”, designação que justifica deste modo: “seu fanatismo corresponde
a reminiscência das várias seitas fundamentalistas que floresciam na Idade Média
anterior à Reforma, combinados com o fanatismo e a violência decorrente da
antecipação do fim do mundo.” Acreditam que a morte de um infiel é um
imperativo de sua recusa em converter-se voluntariamente ao Islã. Aspiram à
criação de Califato aqui na terra. Judeus e cristão são tidos como “porcos e
macacos”. Não admitem nenhuma dúvida sobre tais fundamentos.
Este
primeiro grupo forma a minoria. Estima-se que seriam 3% dos muçulmanos no mundo
(1,6 bilhão no total, de que resultaria algo em torno de 48 milhões).
O segundo
grupo representa a maioria. São muçulmanos fieis ao núcleo do credo e
adoradores devotos mas sem inclinação para a prática da violência. Chama-os
muçulmanos de Meca. Escreve: “Como devotos cristãos ou judeus acham-se atentos ao
serviço religioso todos os dias e abençoam o que comem e vestem.” São a maioria
de Casablanca a Jacarta.
A situação
singular em que se encontra essa maioria seria a seguinte: “Os muçulmanos de
Meca têm um problema: suas crenças religiosas existem numa inquietante tensão
com a modernidade -- as complexas inovações econômicas, culturais e políticas
não repercutem apenas no mundo ocidental e, dramaticamente, transformam o mundo
desenvolvido, como o Ocidente as exporta. Os valores da sociedade racional e
individualista são corrosivos dos fundamentos das sociedades tradicionais,
especialmente aquelas baseadas na hierarquia de gênero, idade e status daí
decorrentes.”
Nos países
de maioria muçulmana é limitado o poder da modernidade de promover mudança econômica,
social e (recentemente) nas relações de poder. Nessas sociedades, os muçulmanos
podem usar celular sem necessariamente enxergarem conflito entre a sua fé
religiosa e as facilidades tecnológicas criadas pela sociedade racionalista e
secular. No Ocidente, entretanto, onde a religião muçulmana é minoritária, os
muçulmanos devotos vivem o que se convencionou denominar de dissonância cognitiva.
Engajados numa
luta diária para manter suas crenças no islamismo no contexto de uma sociedade
secular e pluralística, muitos deles só resolvem essa tensão criando enclaves,
tentando educar os filhos em sua crença, em suma, isolando-se.
Entende a
autora que só lhes restam duas alternativas: abandonar o islamismo, a exemplo
do que se viu instada a fazer, ou então rejeitar de sua crença o que provém da
ação político-social desenvolvida pelo Profeta no período de sua vida que se
seguiu ao abandono de Meca, isto é, ao que denomina de (fase ou ciclo) de Medina. Esta parcela do islamismo teria
caráter político ao invés de religioso.
Prosseguindo
em sua análise afirma textualmente: “Por certo reconheço não ser plausível que
esses muçulmanos aceitem chamamento à reforma doutrinal provinda de alguém que
consideram apostata e infiel. Mas podem reconsiderar esse posicionamento se
conseguir persuadi-los a ver-me não como apostata mas como herética: alguém
como crescente número de pessoas nascidas no Islã levadas a pensar criticamente
sua fé. É com esse terceiro grupo --no seio do qual apenas uma reduzida parte
abandonou o Islã-- com o qual desejo agora identificar-me.”
E, logo
adiante: “A maioria dos dissidentes são crentes reformistas --entre eles
clérigos que não vêm como realizar seus deveres religiosos se seus seguidores
acham-se condenados a interminável ciclo de violências política”.
Destaca a
importância do trabalho desenvolvido por esses dissidentes acreditando que os
ocidentais precisam dar-se conta da forma como se originam os atentados praticados por muçulmanos no Ocidente bem
como de onde provém a política de recrutamento de jovens ocidentais para atuarem
em seu favo nos conflitos que proliferam em várias partes do mundo muçulmano.
Ayaan
Hirsi Ali propõe cinco correções ao islamismo, sendo a primeira a de considerar
que parte dos textos provindos do Profeta atendem a circunstâncias históricas e
não têm porque ser consideradas inalteráveis. Em entrevista ao jornal carioca O Globo (edição de 13/06/2015)
apresenta-a como se tratando de uma mudança
de atitude diante dos ensinamentos de Maomé. A segunda diz respeito à
primazia da vida eterna em detrimento da vida antes da morte. A terceira seria
o abandono da sharia, isto é, da
regulamentação da vida político-social segundo regras de índole religiosa. A
quarta, a de obrigar as pessoas a considerar o certo e o errado do ângulo
estrito da religião; e, por último, a admissão da jihad (guerra santa).
Reconhece
que não cabe à intelectualidade ocidental liderar a reforma do islamismo. Mas
compete-lhes rejeitar a opinião de que apenas os islamitas podem tecer
considerações a seu respeito. Leva em conta, talvez, ao assassinato frio dos
redatores da revista francesa Charlie Hebdo, ocorrido em janeiro do corrente
ano de 2015.
Os aspectos
antes enumerados são detalhados em capítulos autônomos evidenciando que se
trata de questões analisadas teoricamente com a imprescindível profundidade.
Nesta breve resenha não seria o caso de nos determos em sua caracterização.
A escritora somali Ayaan Hirsi Ali. |
As
dimensões do movimento
Reformista.
Pelas
indicações contidas no livro, parece que organizações em atividade relacionadas
à crítica ao islamismo radical limitar-se-iam ao Ocidente. Para exemplificar
refiro a seguinte indicação. Nos Estados Unidos, o físico norte-americano Zahid
Nasser fundou o Fórum Americano para a
Democracia, sediado em Fênix, Arizona, que mantém o “Jefferson Projeto para
o Islã”. Advoga a separação das mesquitas do Estado em que funcionem, a exemplo
do que ocorre com os templos em geral no Ocidente. Entidades análogas,
naturalmente com programas diferenciados, existem na Inglaterra, França,
Holanda, Dinamarca, Alemanha e Canadá.
Em
alguns países islâmicos existiriam
personalidades expressivas que advogam a
livre discussão das questões de índole religiosa. Menciona o professor Abd Al-Hamid Al-Ansari, ex-diretor da Faculdade
de Direito da Universidade do Catar, que desaprova o menosprezo de outras
religiões que não sejam o Islã. Questionado publicamente por considerar que não
se deve pregar o ódio aos que não sejam islamitas, argumenta com expressões
desse tipo: “Deve-se esperar que ensine à minha filha o ódio aos cientistas
judeus que inventaram a insulina, que uso para tratar minha mãe?” Trata-se
justamente do desconforto suscitado pelos avanços tecnológicos ocidentais que
acabam por penetrar em países islâmicos. Em Apêndice constante do livro
relaciona cidadãos que advogam a reforma no Egito, Turquia, Iraque e Paquistão.
Relaciona inclusive clérigos dissidentes, em relação aos quais diz entretanto
não esperar que consigam resultados significativos.
Onde
residiria a contribuição
da
obra considerada.
A intenção de Ayaan Hirsi Ali é alcançar o apoio dos
governos ocidentais para a causa dos dissidentes do islamismo. Para tanto busca
comprovar que os textos considerados sagrados inserem uma componente política
que faz com que o Islã não seja uma religião de paz, como supõem muitos dos
ocidentais, inclusive entre os que se proclamam liberais. Embora sua
argumentação seja consistente e suas teses achem-se rigorosamente
fundamentadas, a laicidade inerente à cultura política ocidental é evidentemente
impeditiva de que se imiscua o Estado numa questão que para nós é
inquestionavelmente de foro íntimo.
Entretanto,
o livro contém uma informação que deve calar fundo nos formuladores da política
de imigração dos Estados Unidos, que é o país referido, mas que diz respeito
também à Comunidade Européia, às voltas com problemas dos mais agudos com essa
questão imigratória.
Dados
mobilizados pela autora indicam que a
expectativa é a de que a população muçulmana vivendo na América do Norte deve
aumentar dos atuais 2,6 milhões para 6,2 milhões em 2030. Embora em termos
absolutos seja inexpressiva, na prática tornar-se-á a maior população muçulmana
em países ocidentais, com a única exceção da França.
Resumo a sua
argumentação.
Aproximadamente quarenta por cento dos novos imigrantes serão originários
de três países: Paquistão, Bangaladesh e Iraque. A mesma fonte consultada antes
indica que os pontos de vista vigentes nesses países seriam considerados
radicais no Ocidente. Três de cada quatro paquistaneses e contingentes maiores
nos dois outros países revelam concordar com a aplicação da sharia nos seus países. Proporções
similares consideram imorais as formas de entretenimento usuais no Ocidente.
Somente frações diminutas sentir-se-iam confortáveis se seus filhos contraíssem
matrimônio com católicos e desconfortáveis diante do assassinato de mulheres
por questões de honra. Um em cada oito paquistaneses e um quarto dos que vivem
em Bangaladesh acham justificado atentados suicidas para punir aqueles que
consideram infiéis.
As
questões mencionadas são inquestionavelmente políticas. Assim, podem
perfeitamente figurar numa pauta que justifique recusa de visto ou expulsão dos
que radicados em países ocidentais advogam comportamentos francamente
contrários aos mais caros direitos dos nossos cidadãos. A adoção desse tipo de
regra poderia suprir a lacuna deixada na legislação ocidental com o fracasso da
prática do multiculturalismo. A par disto, muito provavelmente poria termo às
divergências em matéria de política imigratória, mais visíveis na Europa mas
também presentes nos Estados Unidos.
Gracias, Ricardo, por plantear las cuestiones en diálogo con un maestro.
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