Este artigo foi publicado no Porto pela revista Pontes de Vista, dirigida por Nuno Júdice, Celeste Natário, Maria Luísa Malato e Renato Epifánio
Há quarenta e dois anos comecei o meu mergulho na
cultura brasileira. O motivo foi simples: o acaso. Tinha casado, em 1971, com
uma jovem carioca que depois seria, em 1974, a mãe da minha filha Vitória. Morávamos
em Bogotá, na Colômbia. Em 1972, o DOPS do Rio de Janeiro começou a procurar
pela minha esposa, que era professora da rede estadual de ensino do antigo
Estado da Guanabara. Ela tinha participado, em 1970, em Riobamba, no Equador,
de um congresso de professores latino-americanos e foi arrolada entre as
pessoas que deveriam prestar indagatória acerca dos movimentos guerrilheiros
que tinham enviado representantes para esse evento. Conheci-a nesse encontro. Em
face da intimação da polícia, ela não teve dúvidas: para que o peso da
repressão não caísse sobre a sua família, decidiu imediatamente regressar ao
Brasil.
Eu, professor de esquerda, vinculado a organizações
consideradas como terroristas pelo regime militar, precisava urgentemente de um
álibi para viajar ao Brasil. Dirigi-me ao ICETEX, o instituto do governo
colombiano que concedia bolsas para estudos no exterior. Buscava algum curso de
pós-graduação. A secretária mostrou-me as bolsas disponíveis. Encontrei uma,
oferecida pela OEA na Universidade Católica do Rio de Janeiro, na área de
“Pensamento Brasileiro”. Candidatei-me e, em poucos meses, obtive a bolsa
desejada.
Viajei imediatamente ao Rio de Janeiro, no mês de Fevereiro
de 1973. Era carnaval. Do hotel em que provisoriamente me hospedava, o Itajubá,
saí, na terça-gorda, dar um passeio pelas ruas do centro do Rio. Tentando chegar, por entre os
foliões, à avenida Rio Branco, terminei entrando, sem perceber, no bloco “Bafo
da Onça”. Naquela barroca multidão de arlequins, clóvis, colombinas, monstros
antediluvianos e sambistas seminuas, eu, militante trotskista, cheguei à
seguinte conclusão: “Jamais haverá uma revolução no Brasil”. Revolução para
valer, não de cima para baixo (como as que se fazem por aqui), mas de baixo
para cima, como as acontecidas no mundo hispano-americano. O carnaval tudo
dissolve nesse tsunami de alegria primitiva, chope, sexo e deixa prá-la, que é
a atitude prevalecente ao longo da festa do Rei Momo.
Como o curso para o qual tinha recebido bolsa da
OEA tinha marcado as matrículas para quarta-feira de cinzas, sai bem cedo para
o campus da PUC, na Gávea. Contra as minhas expectativas de me tornar aluno do
mestrado em “Pensamento Brasileiro” nessa conceituada Universidade, tive de
esperar até a segunda-feira seguinte. Somente nesse dia, contando com a
pachorrenta diligência pós-carnavalesca dos burocratas, consegui fazer a minha
matrícula.
Percebi que a medida do tempo é diferente no
Brasil. Oito horas da manhã pode significar várias coisas: oito e quinze, oito
e meia, oito e quarenta. Ninguém se incomoda com essa elasticidade das horas.
Lembrava-me dos meus tempos de estudante universitário na Colômbia. Era praxe o
bedel da Faculdade fechar as portas quinze minutos após o início da aula. Essa
era a prática nas Universidades. Para mim, foi uma descoberta e tanto ver que
os meus colegas de mestrado na PUC chegavam ou em cima da hora, ou com
longuíssimos trinta minutos de atraso. Descobri que, para os cariocas,
“paciência” era a palavra pronunciada em face de situações estressantes. Boa
atitude, aliás, para preservar a saúde mental. Atitude ruim, no entanto, para
chegar a tempo aos compromissos.
Encontrava, ao chegar à Faculdade, o meu mestre Antônio
Paim, tranquilamente sentado, esperando pelos alunos. Algumas vezes cheguei
mais cedo, com trinta minutos de antecedência. Lá estava invariavelmente o
professor, que seria o meu orientador da dissertação de mestrado e,
posteriormente, da tese de doutorado em Pensamento Luso-Brasileiro, cursado na
Universidade Gama Filho. Fiquei com a pulga atrás da orelha. Será que o ilustre
docente, ex-membro do PC e que estudou na Universidade Lomonósov de Moscou,
passava a noite na cadeira da sala de aula? Antônio Paim era – e ainda é – um
autêntico kantiano. O imperativo categórico do cumprimento rigoroso de horários
forma parte das suas convicções éticas.
Nessa minha primeira incursão na cultura
brasileira, no curso de mestrado, tive de fazer um duplo esforço: de aperfeiçoamento
da língua portuguesa, por um lado, dado que falava um sofrível “portunhol” e,
por outro, de estudo da história do Brasil, tão diferente da dos restantes
países latino-americanos, herdeiros da tradicional instabilidade hispânica. Nem
o México, que teve a experiência imperial, conseguiu estruturar instituições
estáveis ao longo do século XIX. Somente o Brasil se levanta por cima da
poeirenta tradição de golpes e contragolpes nesse cenário de instabilidade. A
instituição da Monarquia, com Dom Pedro II, ensejou amplo período de
estabilidade institucional, notadamente na segunda metade do século XIX.
Do curso de mestrado colhi frutos valiosos. O
primeiro deles, a descoberta da literatura política liberal dos séculos XVII,
XVIII e XIX, ao ensejo das leituras indicadas pelo meu orientador. Li, sob a
rigorosa cobrança dele, a obra de Locke, Investigação sobre o entendimento humano
e Segundo
tratado sobre o governo civil, bem como os seus ensaios sobre educação
e sobre a tolerância. Li de Kant A paz perpétua, de Tocqueville, A
democracia na América e O antigo regime e a Revolução, dos
publicistas americanos O Federalista, o Senso
comum de Thomas Paine, O que é o Terceiro Estado? De
Sieyès, Princípios de política de Benjamin Constant, além dos escritos
de John Stuart Mill sobre a liberdade e o governo representativo.
Li, evidentemente, os pensadores liberais do
período imperial: Silvestre Pinheiro Ferreira, Domingos Gonçalves de Magalhães,
Paulino Soares de Sousa, visconde de Uruguai e a obra dos críticos liberais do
Império, notadamente Rui Barbosa e Tobias Barreto. Todas essas leituras foram
efetivadas ao longo do primeiro ano do mestrado, a fim de me preparar para a
escrita da dissertação que teve o seguinte título: A filosofia política de
inspiração positivista. Tratava, nela, acerca do modelo de república
autocrática elaborado por Júlio de Castilhos e que funcionou no Rio Grande do
Sul entre 1889 e 1930, sendo o modelo de organização autoritária republicana
que Getúlio Vargas implantou em nível nacional na Revolução de 1930.
O segundo fruto valioso que colhi no mestrado foi
ter me distanciado criticamente do pensamento marxista, pelo qual tinha
enveredado ao longo da década de 60. “O véu da ignorância” foi rasgado ao
ensejo das leituras às que me vi compulsoriamente obrigado pelo meu orientador,
a quem agradeço, sempre, a sua ação educadora. É possível, sim, deixar as
sombras da ideologia para enveredar pelo caminho estreito do pensamento crítico,
a fim de abandonar o “caminho da servidão”, como diria Hayek. Sem a orientação
e a cobrança rigorosa de Antônio Paim não teria conseguido superar tão
rapidamente os meus preconceitos hauridos ao ensejo das leituras da “vulgata
marxista”, tão comum no meio latino-americano!
Tratarei, a seguir,
de dois pontos que são introdutórios às pesquisas que ao longo destes anos
desenvolvi no Brasil. Em primeiro lugar, de que forma entendo a diferença entre
Filosofia e Ciência. Em segundo lugar, como aparece a dinâmica
do Lógos na meditação brasileira, a partir das crenças fundamentais que dão
ensejo à reflexão filosófica.
I - Filosofia e Ciência: as diferenças no seio da
cultura luso-brasileira.
Na tradição luso-brasileira, herdeira das Reformas Pombalinas (ocorridas
em Portugal, na segunda metade do século XVIII), a distinção entre Filosofia e
Ciência ficou confusa. Ou melhor: a Filosofia passou a ser reduzida
simplesmente à Ciência Aplicada, como muito bem destacou
Antônio Paim. Configurou-se, assim, a corrente do “Empirismo
Mitigado”. Destarte, nas Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras, no sistema
de ensino reformado por Pombal, Filosofia seria algo semelhante à Ciência
Prática. Na obra de Luiz António Verney, que passou a ser a expressão mais fiel
da Filosofia no Ciclo Pombalino, ficou clara essa idéia: “Eu suponho – frisava
este autor - que a Filosofia é conhecer as coisas pelas suas causas; ou
conhecer a verdadeira causa das coisas. Esta definição recebem os mesmos
peripatéticos, ainda que eles a explicam com palavras mais obscuras. Mas,
chamem-lhe como quiserem, vem a significar o mesmo, v. gr.: saber qual é a
verdadeira causa que faz subir a água na seringa é Filosofia; conhecer a
verdadeira causa por que a pólvora, acessa em uma mina, despedaça um grande
penhasco é Filosofia; outras coisas a esta semelhantes, em que pode entrar a
verdadeira notícia das causas das coisas, são Filosofia”.
Consequência: a cultura luso-brasileira mergulhou em rasteiro
praticismo, que esperava da Filosofia efeitos úteis, jamais a meditação sobre o
sentido do Ser. Coube a Silvestre Pinheiro Ferreira, com as suas Preleções
Filosóficas (1813) fazer a crítica, no Brasil, a essa corrente e
abrir as portas, assim, para uma adequada compreensão da Filosofia, que a
liberasse dessa estreita visão.
Estas breves palavras têm como finalidade mostrar a importância de
compreender a Filosofia na sua distinção em face do pensamento científico. Pois
se bem Silvestre Pinheiro Ferreira fez a crítica ao Empirismo Mitigado de
Pombal, o espírito desta abordagem ficou presente até os dias de hoje na nossa
cultura, ao abrigo da tendência Cientificista, que passou a ser adotada por
muita gente, incluindo, nestas últimas décadas, os marxistas de todas as
vertentes. O Positivismo de Comte, diga-se de passagem, vingou tão
profundamente em terras brasileiras, em decorrência do fato de, no nosso DNA
cultural, ter-se abrigado desde cedo o vírus cientificista, ao ensejo do
Pombalismo. É imperativo, por isso, distinguir Filosofia de Ciência. Nos
seguintes pontos podemos estabelecer essa distinção:
1 – Do ponto de vista do Método, Ciência e Filosofia procedem de formas
diferentes. Ao passo que o método científico assinala um caminho que, partindo
do menos seguro (a hipótese), encaminha-se para afirmações mais firmes,
porquanto testadas na observação e na experimentação, (esse seria o momento da
formulação das leis científicas), o método filosófico percorre um caminho
contrário: de uma vivência profunda que revela o sentido insubstituível da
existência, partem os filósofos para uma explicitação conceitual dessa
vivência. Ou seja: o ponto de partida é mais claro do que o ponto de chegada,
pois quando tentamos explicitar a vivência de “situações-limite”, as palavras
ficam curtas. “Não tenho palavras com que expressar o que senti”, essa seria a
confissão de quem pretende explicitar, na linguagem, a vivência desse tipo de
situações. Filósofos e poetas irmanam-se num ponto: os seus escritos traem a
inspiração original, porquanto nem um nem outro ficam satisfeitos com a
explicitação da vivência original na linguagem (poética, no caso dos segundos,
conceitual, no dos filósofos).
2 – A linguagem científica parte para a matematização, ao passo que a
filosófica dela se afasta. Todas as ciências, mesmo as humanas, aspiram a
traduzir de forma exata os seus achados; isso explica o farto uso das
matemáticas na linguagem científica, seja da matemática pura, no caso das
ciências exatas, seja da estatística, no caso das demais ciências. A Filosofia,
ao contrário, afasta-se da matemática, em decorrência de que os seus conceitos
não exprimem quantidades que possam ser traduzidas de forma exata. Seria
inadequado falar, por exemplo: “essa pessoa é 60 por cento corrupta”. Como
seria despropositado o fato de o namorado falar para a namorada: “te amo num 80
por cento”. Posto que a Filosofia parte de vivências profundas, e pelo fato de
estas não serem matematizáveis, não procede, portanto, a linguagem filosófica
como a científica e se afasta da expressão matemática dos seus achados.
É claro que, ao longo da História da Filosofia, apareceram autores que
tentaram estabelecer uma ponte (ou uma simbiose, no caso dos neopositivistas do
Círculo de Viena) entre matemáticas e pensamento filosófico. Pitágoras
pretendia que a perfeição das esferas celestes fosse traduzida pela matemática.
Wittgenstein tentou estabelecer as bases de uma meta-matemática que daria
alicerces ao saber científico e anularia qualquer discurso sobre hipóteses não
solúveis, colocando para baixo do tapete da história a metafísica. No caso
pitagórico, poderíamos argumentar que os números têm uma significação simbólica
(a perfeição seria traduzida em regularidades matemáticas), sem que isso
significasse que qualquer conceito filosófico tivesse de transitar pelos
caminhos da matemática. No caso de Wittgenstein, ele próprio encarregou-se, na
última fase da sua obra, de deitar por terra a pretensão de que só a matemática
basta no terreno do conhecimento, ao colocar este em face do misticismo, um
tipo de conhecimento não matematizável.
3 – Os conceitos, em Ciência, têm uma significação unívoca (do mesmo
sentido), no seio de determinada disciplina (o químico sabe exatamente o que
significa H²O ou H²SO4). Na Filosofia, os conceitos têm uma significação análoga,
ou seja, são semelhantes na diversidade. O termo dialética, por
exemplo, possui uma significação análoga, não unívoca, em Sócrates,
Aristóteles, Hegel e Marx. Há uma semelhança na diferença. Para Sócrates, dialética é
a arte do diálogo, ao passo que para Aristóteles é a característica marcante
dos raciocínios referidos aos homens, para Hegel a forma contrária em que se
manifesta o Espírito Absoluto nas suas criações culturais e em Marx é a forma
de oposição em que se relacionam as forças produtivas.
4 – Toda ciência, mesmo que seja muito abstrata, possui uma parte
aplicada que ajuda a transformar o mundo, ao ensejo da tecnologia (que resolve
problemas). Uma ciência que não tenha nenhuma utilidade é simplesmente
abandonada, como foi o caso da astrologia e da alquimia, formas “científicas”
de conhecimento muito valorizadas na Antiguidade, mas que foram perdendo a sua
credibilidade como ciências, na modernidade, ao não produzirem os efeitos
almejados: a pedra filosofal, no caso da alquimia; a solução para o enigma da
vida humana, no caso da astrologia. Podemos afirmar, em consequência, que a
ciência, do ângulo da sua aplicabilidade, tem valor pela sua utilidade. Já a
Filosofia não aspira a resolver problemas, mas encara o grande problema não
solucionado pela ciência: a dimensão de sentido da existência. Ela tem um
valor de per se, como algo que faz bem à nossa existência (de forma
semelhante a como valorizamos uma obra de arte, pela vivência da emoção
estética que nos enleva). A Filosofia, concluímos, possui utilidade pelo seu
valor.
5 – É característico da Ciência a sua especialização, na medida em que
se vão refinando os instrumentos de análise. Justamente essa tendência deixa
ver, na contemporaneidade, a importância de uma abordagem interdisciplinar dos
problemas, justamente para tentar reconstituir a totalidade dos objetos
estudados. A Ciência se especializa do ponto de vista do seu objeto formal (o
aspecto específico sob o qual ela estuda o seu objeto material). Já a Filosofia
não parte para encarar o homem de forma parcial (do ângulo do seu objeto formal),
mas o abarca como totalidade existente. A Filosofia constitui
a mais radical forma de abordar uma realidade, do ângulo da sua presença no
Ser. Não faria sentido, por exemplo, indagar pelo “sentido da existência da
minha mão esquerda”, quando o existente sou eu na minha
integralidade. A Filosofia, sob este viés, é holística, o seu
método visa a reconstituir totalidades, as suas indagações pelo
sentido da existência abarcam todo o homem e se estendem a todos os
homens.
II – A dinâmica do Lógos na meditação brasileira:
as crenças fundamentais e a reflexão filosófica.
Quando
falamos à luz do Lógos, damos vazão às nossas crenças fundamentais. Ora, quais
seriam, no caso da meditação filosófica brasileira, as crenças que deram ensejo
às nossas idéias mestras? Considero que, no caso, entraram na torrente da nossa
reflexão duas séries de convicções alicerçadas sobre crenças profundas:
primeiro, retomando a herança portuguesa da “filosofia da saudade”, uma linha de
pensamento com raízes neoplatônicas e barrocas, que terminou desaguando na
denominada “Escola de São Paulo”.
Constitui o
núcleo doutrinário dessa tendência, a crença radical de que há um arquétipo
preexistente ao qual tudo deve ser referido para ter validade e, paralelamente,
de que houve uma “queda” da atual feição da realidade, que constituiria, assim,
cópia imperfeita da plenitude ôntica de um passado primordial que cumpre
reviver, mediante um processo catártico de índole pitagórico-platônica. Constitui
esta variante uma retomada do neoplatonismo. Essa linha de pensamento se formou
hodiernamente, no caso brasileiro, ao redor do pensamento de Vicente Ferreira
da Silva, que elaborou uma filosofia com tintes órficos e numinosos de intuição
do mistério do Ser, dando continuidade, na nossa meditação, à rica tradição
ensejada pela “metafísica da saudade”, tão densa na reflexão portuguesa moderna
e contemporânea. Esta linha de pensamento aflora hoje na tendência denominada
da “filosofia portuguesa”, fartamente estudada por Antônio Braz Teixeira e,
mais recentemente, por uma geração de jovens pensadores aglutinados ao redor da revista fundada no Porto em 2008, por Celeste
Natário, Paulo Borges e Renato Epifânio.
A segunda
linha de pensamento passou a girar ao redor de outra herança portuguesa: a do
Iluminismo consolidado na obra pombalina e na sua reforma educacional, que
afetou profundamente as nossas instituições de ensino e a meditação filosófica,
tendo-as condicionado ao que se denominou de paradigma do “empirismo mitigado”
e da postura “cientificista”. Consolidou-se tal tendência à luz da crença de
que haveria uma ciência primordial de índole prática, à qual deveria ser
referido todo o arcabouço do saber, a ser administrado por um líder, no
contexto da concepção do despotismo ilustrado. Velha reencarnação do iluminismo
absolutista ensejado na França por Luís XIV que, em Portugal, encontrou o seu
ponto alto no reinado de Dom José I e do seu primeiro-ministro o marquês de
Pombal, Sebastião José de Carvalho e Mello, na segunda metade do século XVIII.
A
manifestação contemporânea de tal tendência na meditação brasileira se dá na
corrente do cientificismo marxista que, misturada a formas agressivas de
leninismo, como o pensamento gramsciano, encontrou canais de realização
política na era lulopetista, que chegou ao poder, com Lula, nas eleições
presidenciais de 2002. Na seara doutrinária, tal corrente encontrou adequado
canal de manifestação na “teologia da libertação”, um de cujos arautos, no
terreno filosófico, foi o padre Henrique Cláudio de Lima Vaz. A manifestação
mais abrangente dessa tendência do cientificismo no século XX foi, na realidade
brasileira, a vertente conhecida como “segunda geração castilhista,” que
encontrou em Getúlio Vargas o seu mais importante demiurgo. Getúlio se
alicerçou no positivismo gaúcho e no saint-simonismo, bem como na doutrina do
“autoritarismo instrumental” formulada por Oliveira Vianna, da qual se louvou,
outrossim, o regime militar (1964-1985) para a sua ação reformista.
Uma terceira
linha de pensamento consolidou-se a partir da nossa experiência como Nação, que
tentava construir o Estado como instrumento de integração dos clãs esparsos na
vastidão continental das fronteiras, que foram estrategicamente alargadas sobre
o Império espanhol, à luz do Tratado de Tordesilhas, mantendo a unidade
nacional e a identidade linguística. Essa experiência foi forjada pelos
estadistas do Império e pela elite denominada por Oliveira Vianna de “Homens de
Mil”. A partir de tal instância cultural foi formulado o ecletismo
espiritualista do século XIX por Domingos Gonçalves de Magalhães, visconde de
Araguaia, que deitou os alicerces doutrinários para a obra civilizacional e a
construção das Instituições do governo representativo, consolidadas no Segundo
Reinado.
A crença
fundamental que alimenta o arcabouço doutrinário desta tendência foi a de que
somente na defesa intransigente da liberdade e da consciência individual seria
possível construir, de forma duradoura, as instituições que garantissem a
dignidade humana. Afinou-se assim, esta tendência com as modernas versões do
liberalismo clássico de Locke, Kant, Jefferson, Tocqueville, etc., constituindo
versão política alternativa ao democratismo rousseauniano.
A partir da
crítica de Tobias Barreto e Sílvio Romero (os mais destacados representantes da
denominada Escola do Recife) ao cientificismo de inspiração pombalina e
positivista, estruturou-se a Corrente Culturalista que enriqueceu a convicção
do ecletismo espiritualista em prol da liberdade e da consciência individual
com o desenvolvimento doutrinário de Kant e do neokantismo. Esta escola de
idéias, cujos máximos representantes na atualidade são Miguel Reale e Antônio
Paim é, sem dúvida, a que maior envergadura tem mostrado no que tange à sua
vitalidade e à função crítica, tanto dos dogmatismos quanto do autoritarismo
que, no ciclo republicano, forjou-se nos vários momentos em que se tentou
reeditar a “ditadura científica”.
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