Alexis de Tocqueville (1805-1859) não foi
apenas o autor do clássico livro A democracia na América. Foi um
observador atento de tudo quanto se passava no mundo da sua época, na França e
alhures. Queria compreender a maior novidade da sua época: o nascimento de nações
democráticas. Mas pretendia entender, também, o complexo panorama político do século
XIX.
Do ângulo das preocupações internacionais de
Tocqueville, desenvolverei neste trabalho três partes: em primeiro lugar, de
que forma entendia a Índia, submetida ao colonialismo britânico; em segundo
lugar, como situava o pensador francês o seu país no contexto das relações
exteriores; em terceiro lugar, de que forma entendia o papel dos Estados Unidos
e da América Latina no plano internacional.
1 – A Índia submetida ao colonialismo britânico,
segundo Tocqueville.
Tocqueville dedicou parte importante da sua
reflexão sobre a colonização à avaliação crítica da experiência inglesa na
Índia. Considerava que os ingleses tiveram muito melhor senso de realidade do
que os franceses na empreitada colonial, embora não os eximisse de defeitos. Os
principais destes eram, no sentir do pensador francês, a empáfia e a hipocrisia
dos colonizadores ingleses, que se sentiam superiores aos seus colonizados e
que os exploravam achando que realizavam uma grande obra de civilização, com
uma atitude de ranço aristocrático que o nosso autor achava démodée, típica do Ancien Régime.
A propósito deste ponto, escrevia
Tocqueville: "Os Ingleses fizeram na Índia o que todas as nações européias
fariam no seu lugar (...). Isso não é o que me admira. Mas o que não consigo
entender é essa sua dedicação diuturna para pretender provar que eles agiam no
interesse de um princípio, ou pelo bem dos indígenas, ou ainda pela vantagem
dos soberanos que eles subjugam; é a sua indignação honesta contra os que lhes opõem
resistência; são os procedimentos com os que eles mascaram quase sempre a
violência. Não somente eles usam essa linguagem em face dos indígenas ou da
grande sociedade européia, mas entre eles mesmos. Nas comunicações do
governador geral com a corte de diretores e ainda com os seus subordinados na
Índia, encontra-se em todas partes o mesmo estilo. Se se trata de persuadir o Peschwa a receber tropas inglesas ao seu
serviço e, de fato, a abdicar em favor dos Ingleses, Wellesley se indigna com
as resistências que encontra. Ele se revolta com a ambição, a má vontade, a
imperícia do Peschwa; contra a
obstinação culpável e desinteressada dos chefes maharatas que acham ruim essa solução, que ele chama de uma aliança defensiva. E os seus agentes
compartilham dos mesmos sentimentos e lhe escrevem no mesmo tom. Isso provém,
creio, do hábito típico dos Ingleses, de publicar, depois de um certo tempo,
todas as despesas desta espécie. Somente no teatro observamos que os homens
introduzem o público na confidência das paixões interessadas que os levam a
agir" [Tocqueville, 1962: 505].
Anotemos que desse hipócrita formalismo
colonial foram herdeiros os americanos, no que tange ao tratamento dispensado
por eles aos índios e aos negros, conforme foi registrado pelo nosso autor na primeira
Démocratie
en Amérique [cf. Tocqueville, 1992: 394-421]. Formalismo que, diga-se
de passagem, os americanos souberam utilizar de modo muito eficiente, (muito
mais pragmático que a conquista a ferro e fogo dos ibéricos), conforme o
próprio Tocqueville destaca: "Os Espanhóis soltam seus cães sobre os
índios, como se estes fossem animais ferozes. Pilham o Novo Mundo como uma
cidade assaltada, sem discernimento nem piedade. Mas não se pode destruir tudo;
a fúria tem limites. O resto das populações indígenas salvas do massacre
terminam por se misturar aos conquistadores, adotando sua religião e costumes.
A conduta dos Estados Unidos com relação aos indígenas, pelo contrário, é
inspirada no mais puro amor às formas e à legalidade. Desde que os índios se
mantenham no estado selvagem, os Americanos não interferem na vida deles,
tratando-os como um povo independente. Não se permitem ocupar suas terras sem
antes adquiri-las devidamente, por meio de um contrato. Se uma nação indígena
não pode mais viver no seu território, a conduzem fraternalmente da mão para
morrer fora da terra dos seus ancestrais. Por meio de monstruosidades sem
exemplo, cobrindo-se de vergonha indelével, os Espanhóis não conseguiram
exterminar a raça indígena, nem a impediram de partilhar dos seus direitos. Os
Americanos atingiram este duplo resultado com uma facilidade maravilhosa,
tranqüilamente, legalmente, filantropicamente, sem derramar sangue nem violar
um só dos grandes princípios morais, aos olhos do mundo. Não se poderia
destruir os homens respeitando melhor as leis da humanidade" [Tocqueville,
1992: 392-393].
Outro aspecto negativo encontrado por
Tocqueville na colônia britânica, diz relação à cobrança de impostos. Estes
poderiam ser auferidos de forma mais racional. Os ingleses, através da
Companhia das Índias, tentaram criar uma espécie de nobreza burocrática
integrada por nativos, os denominados
zemindares (que constituía uma casta privilegiada cobradora de tributos).
Mas o projeto não deu certo. A razão fundamental era o fato de que as taxas a
serem repassadas pelos zemindares à
Companhia foram calculadas de forma muito rígida e alta, chegando a atingir
três quintas partes dos ingressos e produzindo a rápida falência desses
cobradores, que viram arrematadas as suas terras [cf. Tocqueville, 1962: 488].
Contudo, tratava-se de um mal relativo,
pressuposta a realidade colonial. Embora não poucos afirmassem que os ingleses
tinham empobrecido a Índia, Tocqueville duvidava disso. Muito mais prejudicada
tinha sido essa nação sob os dominadores orientais, que aplicavam uma política
abertamente despótica em matéria tributária. Era claro, para Tocqueville, que
se houvesse na Índia liberdade de comércio e indústria, a realidade teria sido
outra. Mas já não se poderia falar em dominação colonial. Tocqueville, que
tinha estudado a realidade das ex-colônias britânicas na América, sabia muito
bem que o caminho para o progresso material estava diretamente atrelado ao self government, de um lado (coisa que
ele encontrava nas comunidades indianas), mas, de outro, na democrática difusão
das luzes e na luta em prol da liberdade individual, realidades que ele
considerava ausentes na vasta península oriental. O Bramanismo não era uma
religião de homens livres, nem se poderia pretender que sobre as suas bases de
desigualdade radical pudesse fundar-se uma democracia.
Em que pese os defeitos apontados pelo nosso
autor, ele não deixa de reconhecer que a colonização inglesa teve aspectos
positivos que deveriam ser levados em consideração pela França. Tocqueville
chamava a atenção para a grande perplexidade que significou, em face da Europa
do século XIX, a colonização da Índia pelos ingleses. Tratava-se, a seu ver, de
fato até então desconhecido nos anais das conquistas efetivadas pelas nações
européias. Quais os principais aspectos dessa novidade? A colonização da Índia
quebrava todas as normas dos processos históricos de conquista, ocupação e
dominação de um povo por outro. No fundo da perplexidade diante da colonização
inglesa no oriente aparece, de forma curiosa, a questão da livre iniciativa
vinculada a um governo que não a abafa. Da soma entre a imprevisibilidade
daquela e da previsibilidade deste, surge um fato novo: uma espécie de
racionalidade em andamento, que vai consolidando, pela via do acerto e do erro,
uma ação de ocupação e de governo. Modalidade de empirismo prático, muito
afinado, aliás, com a tradição do direito consuetudinário anglo-saxão e com a
filosofia escocesa do senso comum. Modelo realmente novo em face dos exemplos
conhecidos na Europa continental, ainda sob o impacto da aventura napoleônica e
dos despotismos da Prússia e da Rússia.
Eis a forma em que Tocqueville destaca esse
fato novo: "O imenso império dos Ingleses na Índia estabeleceu-se de uma
maneira tão súbita, ele é de data tão recente que a Europa, sacudida pela
admiração em face de uma revolução tão singular, não teve ainda tempo de
procurar as suas causas e de estudar os seus efeitos. Ela não viu, nem vê
ainda, nessa grande revolução, mais do que um evento inexplicável e quase maravilhoso. A verdade é que se
pretendermos observar o fato
unicamente na sua dimensão exterior, jamais houve algo de mais extraordinário.
Um país quase tão extenso quanto a Europa foi conquistado, no espaço de sessenta
anos, por alguns milhares de Europeus desembarcados como comerciantes nas suas
costas. Trinta mil estrangeiros governam cem milhões de homens que, pelas leis,
a religião, a língua, os costumes, não possuem nenhum ponto de contato com eles
e que, no entanto, não tomam parte nenhuma na direção dos seus próprios
negócios. Não satisfeitos em conquistar essa multidão, os vencedores tentaram
duas temeridades singulares: eles tinham o projeto de abolir ali, de uma vez
só, todas as formas da justiça e de administrá-la, eles próprios, aos vencidos,
fato que, acredito, não tem paralelo na história. (...) Fizeram ainda mais:
subitamente mudaram a posse da terra, misturando, assim, os distúrbios de uma
grande revolução social à agitação de uma grande revolução política. Todas
essas coisas foram feitas, não de acordo com um plano hábil e uniformemente
conduzido e posto em prática por algum grande gênio, mas aos poucos, seguindo o
acaso das circunstâncias e dos homens, e após muitas dúvidas e tentativas. Essa
estranha revolução foi conduzida por homens comuns. Ela não teve necessidade do
gênio de alguns homens. O bom senso e a firmeza de todos têm sido suficientes.
Enfim, para levar ao cúmulo a singularidade do evento, as duas terceiras partes
de um império tão vasto quanto o de Alexandre foram submetidas contrariando as
ordens formais dos que hoje são os seus senhores. O governo inglês e a
Companhia foram arrastados sem sabê-lo ou apesar deles a realizar essas
conquistas. Muitas vezes eles têm desautorizado os generais que as realizaram
e, o que parece bem contrário à marcha comum das paixões humanas, os seus
desejos mostraram-se menores do que a sua sorte" [Tocqueville, 1962: 444].
Ainda que seja certo que a conquista da Índia
pelos ingleses era paradoxal na sua época, o nosso pensador não ficou
atemorizado diante do fato de que ninguém tinha ousado elaborar até então uma
explicação global do fenômeno. Utilizando o instrumental conceitual que o guiou
nas outras pesquisas em que se enfronhou, de forma paciente e sistemática
decidiu elucidar esse caso. A propósito da sua determinação e da certeza que
tinha de encontrar uma explicação plausível, escreve Tocqueville: "Chegou
o tempo de fazer desaparecer a nuvem que parece ainda ocultar a fundação do
império inglês na Índia e de vincular esse evento às causas gerais que regem as
coisas humanas. Documentos de todas as espécies são bastante numerosos como
para, a partir deles, fazer esse trabalho. Examinado dessa forma, o evento será
sempre muito grande, mas deixará de ser maravilhoso" [Tocqueville, 1962:
445].
O nosso autor passou a examinar
detalhadamente toda a informação disponível sobre a Índia. Estudou, em primeiro
lugar, anotando-as, as Leis de Manou (na tradução do
sânscrito ao francês realizada pelo orientalista Loiseleur-Deslongchamps, em 12
volumes, Paris, 1832), pois queria ver de que forma o bramanismo tinha ensejado
uma moral social, se consolidando em instituições sociais e políticas, de uma
maneira análoga a como se interessou pelo estudo do Alcorão, a fim de melhor
compreender o comportamento dos habitantes originários da Argélia. Pesquisou,
de outro lado, nos anais do Parlamento britânico, as discussões relativas à
política colonial inglesa na Índia, notadamente os relatórios ali apresentados
por M. Dundas, Lorde North, Fox e Pitt. Consultou o conjunto de leis
consolidadas que regiam as relações de Londres com as colônias, na coleção
intitulada The Statutes of the United Kingdom of Great Britain and Ireland.
Leu, outrossim, os relatórios dos funcionários britânicos na Índia. O nosso
autor cita fartamente esse tipo de fonte, especialmente os informes de Lorde
Cornwallis, de Lorde Teighmouth, do marquês de Wellesley, de Sir Philip
Francis, de Lorde Clive e do marquês de Hastings (relativos estes últimos à
administração da Companhia das Índias e ao conflito com os Gurkas, entre 1814 e
1816).
Dentre
as obras consultadas ressaltam: de James Mill, The History of British India,
6 volumes, Londres, 1840; do reverendo Reginald Heber, Narrative of a journey through the upper
provinces of India from Calcutta to Bombay, 1824-1825, Londres, 1829;
de sir John Malcolm, A memoir of central India, Londres,
1832; de Montsuart Elphinstone, An Account of the kigdom of Caboul and its
dependencies in Persia, Tartary and India comprising a view of the Afghan
nation and a history of the Dooranee monarchy, Londres, 1815; do
general e conde sueco Magnus Björnstjerna, The British Empire in the East,
Londres, 1840; de James Peggs, Slavery in India. The present State of East
India Slavery, Londres, 1828; de William Adam, The Law and Custom of slavery in
British India, Londres, 1840; de Mark Wilks, Historical Sketches of the South
of India, Londres, 1810-1817; de Barchou de Penhoën, Histoire
de la Conquête et de la fondation de l'Empire anglais dans l'Inde, 6
volumes, Paris, 1840-1841; do Abbé Jean-Antoine Dubois, Moeurs, institutions et
cérémonies des peuples de l'Inde, 2 volumes, Paris, 1825 e de Robert
Montgomery Martin, History of the British possessions in the East Indies, 2
volumes, Londres, 1836.
Não estranha que de posse de tão ampla
documentação, o nosso autor tenha feito uma acertada aproximação da realidade
indiana, embora não tenha conseguido viajar ao oriente, como era o seu desejo.
Sintetizemos a apreciação que Tocqueville faz da colonização inglesa na Índia.
Para o nosso pensador, não há dúvida de que os ingleses conseguiram compreender
o espírito da sociedade indiana. Daí o fato de eles terem podido desenvolver
instituições coloniais que possibilitaram a sua presença dominadora no continente
asiático. Isso não significa que tudo tenha sido favorável aos indianos. Mas,
no essencial, os colonizadores não alteraram a vida privada das pessoas e
garantiram uma ordem jurídica e política, que deu a sensação de estabilidade.
Os ingleses, em primeiro lugar, encontraram
uma sociedade atomizada em pequenas comunas. Não havia na Índia consciência
nacional. Os dominadores anteriores (muçulmanos, afegãos, persas, mongóis)
beneficiaram-se também dessa situação.
Mas não conseguiram estabelecer instituições permanentes, talvez em decorrência
de um fato fundamental: o despotismo oriental impedia-lhes compreender essa
importância da vida local na cultura indiana. Queriam centralizar tudo. Os
ingleses, ao contrário, souberam adaptar o regime administrativo colonial a
essa realidade. Isso porque o próprio governo inglês já convivia há séculos com
uma rica vida comunal, na Inglaterra. De outro lado, jamais os ingleses
permitiram que o exército se colocasse por cima do poder civil. As guerras que
fizeram na Índia, tiveram como finalidade defender os interesses dos acionistas
da Companhia das Índias (que nomeavam o governador e os altos funcionários da
colônia), bem como a estabilidade dos negócios. Como os que mandavam eram
governadores civis indicados pela Companhia, jamais a empresa guerreira teve
como finalidade a conquista ou a glória militar. A administração política
sobrepôs-se, na Índia, ao poder militar. Os generais prestavam um serviço de
proteção aos nativos ou de restabelecimento da ordem, quando eles e os seus
exércitos eram chamados pelo poder civil; mas nem este comandava diretamente as
tropas, nem os chefes militares tinham iniciativa política.
De outro lado, os ingleses souberam conviver
e administrar uma sociedade essencialmente desigual, como a indiana, segmentada
hierarquicamente pelas castas. Isso porque, mais uma vez, o poder na Inglaterra
sabia conviver com as diferenças hierárquicas no seio da sociedade. A religião
indiana, o bramanismo, de outro lado, não ensejou a intolerância e a guerra
contra o infiel, pela natureza mesma dessa religião. O bramanismo, do ângulo
social, consolida uma sociedade de desiguais e justifica a desigualdade. As pessoas nascem ou dos pés de Brahma ou da
sua cabeça, sendo ou membros das castas inferiores ou das superiores. A
religião está intimamente atrelada a essa ordem de castas. Não pretende
subvertê-la. Mas, de outro lado, a religião é tradição da própria casta. Não
constitui uma crença universal, que deva ser levada a outros povos. O próprio
bramanismo hindu tende a que os fiéis aceitem outros credos, porque não há a
preocupação de converter ninguém. Esse aspecto introspectivo do bramanismo, no
sentir de Tocqueville, favoreceu a dominação britânica e a estabilidade
administrativa da colônia. Os colonizadores não se defrontaram com uma jihad ou guerra santa, como as que
pululavam no meio muçulmano. Os anteriores dominadores da Índia, aliás, não
eram brâmanes, mas muçulmanos. De forma que a sociedade indiana já convivia
pacificamente com senhores portadores de um credo diferente.
Tocqueville ressalta a originalidade do
esquema de governo britânico na Índia. Houve dois modelos, um que vingou até
1786, e que poderia ser denominado de privatista.
Outro, que se consolidou após as reformas efetivadas por Pitt em 1784 e 1786,
que poderia ser caracterizado como privatista
e estratégico. A primeira ocupação da Índia pelos ingleses, no início do
século XVIII, deu-se sob a modalidade de atividade comercial privada, realizada
pela Companhia das Índias. Os acionistas da Companhia, em Londres, nomeavam o
governador e os altos funcionários coloniais. O governo britânico acudia para
apoiar e defender os seus interesses, deslocando a força armada, que agia
pontualmente e não como exército de ocupação. Após o sucesso crescente dos negócios
da Companhia, entre 1784 e 1786, Pitt elabora a reforma que dará ensejo ao
segundo modelo, privatista e estratégico.
Tratava-se de criar uma interferência do governo inglês, de forma a conservar a
unidade da colônia, sem impedir o funcionamento da livre iniciativa dos
negócios da Companhia das Índias.
Tocqueville sintetizou da seguinte forma os
aspectos essenciais das reformas de Pitt: "Os bills propostos por Pitt em 1784 e 1786: 1) estabeleceram a criação
de um conselho governamental denominado Board
of Control, que dava ao governo o controle supremo sobre os negócios
políticos da Companhia. Esses dispositivos davam também ao rei o poder de
chamar o governador geral nomeado pela Companhia. 2) Davam ao governador geral
muita mais independência (...). Subordinavam de uma forma mais precisa o poder
militar ao poder civil (...). Este bill distinguia
de novo muito formalmente o general-em-chefe do governador geral e colocava o
primeiro imediatamente abaixo do segundo. Aumentando em muito o poder do governador
geral, o bill de 1786 dispôs que as
atribuições deste poderiam se estender até os casos judiciais, sem poder
contudo mudar ou modificar as instituições ou regulamentos estabelecidos pelo
governo civil" [Tocqueville, 1962: 484].
O modelo de administração britânica na Índia
encarnava o princípio defendido por Tocqueville para a Argélia: centralização
política e descentralização administrativa. A primeira acontecia em decorrência
do poder supremo do Board of Control.
A segunda estava garantida graças à independência de que gozava o governador
geral. O nosso autor não deixava de admirar um outro fator: a estreita
colaboração que o modelo colonial inglês possibilitava entre o governo e a
iniciativa privada.
Outro aspecto importante da administração colonial
britânica na Índia, dizia respeito à preparação dos quadros administrativos. Os
ingleses cuidaram de forma muito eficiente disso. Tocqueville sintetizou assim
esse aspecto da política colonial britânica: "Os jovens que se destinam a
ocupar as funções civis na Índia, são obrigados a residir por dois anos num
colégio especial fundado na Inglaterra (e que é chamado de Hailesbury College). Lá
eles se dedicam a todos os estudos particulares que se relacionam à sua
carreira e, ao mesmo tempo, adquirem noções gerais em administração pública e
em economia política. As personalidades mais destacadas lecionam ali. Malthus
ofereceu um curso de economia política em Hailesbury
e sir James Mackintosh tem lecionado direito. São ali ensinadas oito línguas da
Ásia. Para entrar e para sair do mencionado centro de estudos são necessários
exames. Isso não é tudo. Chegados na Índia, esses jovens são obrigados a
aprender a escrever e a falar corretamente dois idiomas do país. Quinze meses
depois da sua chegada, um novo exame constata se eles possuem esses
conhecimentos e, se forem reprovados num exame, são mandados de volta à Europa.
Mas uma vez que, após tantas provas, eles se firmam na administração do país, a
sua posição lhes é garantida, bem como os seus direitos; o seu progresso na
carreira não é totalmente arbitrário. Eles ascendem de grau em grau, e seguindo
regras conhecidas de antemão, até as mais altas posições" [Tocqueville,
1962: 332].
O nosso autor chamava a atenção para o fato
de que a administração francesa na África poderia se inspirar nesse exemplo, a
fim de passar a preparar os seus quadros administrativos de maneira racional.
Somente assim, considerava Tocqueville, poderia se garantir, para a Argélia,
uma colonização civilizadora, digna da tradição das luzes e do
liberalismo.
Uma última observação acerca da abordagem da
Índia por Tocqueville. O nosso pensador enxergava longe: qual seria o começo da
derrubada do grande império colonial britânico na Ásia? Duas hipóteses eram
levantadas por ele: ou a invasão de uma potência européia, ou uma revolta
interna. Tocqueville descartava a primeira hipótese, pelas dificuldades
estratégicas que sofreria o invasor, devido ao grande poderio da Armada
britânica. Restavam as alternativas por terra. Seria muito difícil invadir a
península da Índia, pois para isso, tropas ocidentais deveriam entrar pelo
Afeganistão, país inóspito, cheio de perigosos desfiladeiros e vales profundos,
perfeitamente controlados por tribos guerreiras que conhecem palmo a palmo o
terreno, e onde as constantes rixas
tribais dificultam qualquer empreendimento. É muito interessante, aliás, a
descrição que das várias regiões afegãs oferece Tocqueville no breve ensaio
intitulado Afghans, que insere no seu trabalho sobre a Índia, de 1842 [cf.
Tocqueville, 1962: 498-500]. O nosso autor lembra as dificuldades que tiveram
de enfrentar nessa região os vários invasores ao longo dos séculos, desde
Alexandre da Macedônia.
A derrubada do império britânico na Índia
ocorreria por causas internas, no sentir do nosso autor. Seguindo os estudos de
Heber, Tocqueville considerava que a resistência civil do povo indiano poderia
ser o calcanhar de Aquiles do poderio inglês. No esboço do livro que pretendia
escrever sobre a Índia, o nosso autor inseria uma terceira parte intitulada: Comment
l'Empire des Anglais dans l'Inde pourrait être détruit. A propósito, escrevia: "É muito
remota a chance de uma rebelião. Os Ingleses terminarão por colocar os Hindus
em estado de lhes resistir. Mas esse tempo está muito longe de nós. Ver a forma
de mencionar esse traço que se encontra em Heber, de toda essa população da
província de Bénarès, que ameaça se deixar morrer de fome se não for retirado
um novo imposto. Exemplo significativo que prova ao mesmo tempo a singular
doçura desse povo, mas ao mesmo tempo o poder que ele tem de se associar e a
energia que ele pode dar às suas associações políticas" [Tocqueville,
1962: 481]. A figura do Mahatma Gandhi e da gesta libertadora não violenta por
ele deslanchada no século XX, oferece-se espontaneamente à imaginação ao lermos
estas linhas, escritas cem anos atrás.
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O castelo de Alexis de Tocqueville, na Normandia, perto da cidadezinha de Tocqueville. (Janeiro de 1996 - Fotografia do jornalista José Carlos de Lery Guimarães) |
2 - A França
no contexto das relações exteriores, segundo Tocqueville.
Analisarei nesta parte o modo como
Tocqueville situava a França da sua época no contexto internacional dos países
já consolidados na vida independente. Para o nosso pensador não havia dúvida de
que a democracia era a tendência a que as nações deveriam obedecer ao longo do
século XIX. Herdeiro do hegelianismo mitigado de Guizot, Tocqueville
considerava que as forças subterrâneas da história dirigiam-se nesse sentido. A
propósito, escrevia na Introdução à primeira Démocratie en Amérique:
"O desenvolvimento gradual da igualdade de condições é (...) um fato
providencial e as suas caraterísticas são as seguintes: ele é universal, é
durável, escapa sempre ao poder humano; todos os acontecimentos, como todos os
homens, servem ao seu desenvolvimento" [Tocqueville, 1992: 7; cf. La
Fournière, 1981: 147].
As grandes potências do século XX seriam
aquelas que obedecessem de forma mais total a essa tendência democrática.
Tocqueville enxergava dois países que ocupariam esse lugar: a Rússia e os
Estados Unidos. A primeira cresceria pelo caminho do despotismo. Os segundos,
pelo do desenvolvimento da liberdade. Tornou-se clássica a conclusão com que o
nosso autor encerra, de forma profética, a sua primeira Démocratie en Amérique:
"Há hoje, na terra, dois grandes povos que, partindo de pontos diferentes,
parecem avançar em direção ao mesmo objetivo: os russos e os anglo-americanos.
Ambos cresceram na obscuridade; e, enquanto os olhares do mundo estavam
voltados para outros pontos, colocaram-se repentinamente no primeiro plano das
nações e o mundo conheceu quase ao mesmo tempo o nascimento e a grandeza de
ambos. Todos os outros povos parecem ter mais ou menos atingido os limites que
lhes traçou a natureza e só precisam conservá-los; mas estes estão em
crescimento: todos os outros pararam, ou só avançam com muito esforço; estes
caminham com passo rápido e fácil, em carreira cujo ponto culminante não se
pode divisar a olho nu. O americano luta contra os obstáculos postos pela
natureza; o russo enfrenta os homens. Um combate o deserto e a barbárie, o
outro, a civilização, sob todas as suas formas: as conquistas do americano se
fazem com o cabo da enxada, as do russo, com a espada. Para atingir o objetivo,
o primeiro conta com o interesse pessoal, e deixa agir, sem dirigi-las, a força
e a razão dos indivíduos. O segundo concentra em um homem, de certa forma, todo
o poder da sociedade. Um tem como principal meio de ação a liberdade; o outro,
a servidão. O ponto de partida é diferente, as vias divergem; entretanto, cada
um deles parece chamado, por vocação secreta da Providência, a concentrar nas
mãos o destino da metade do mundo" [Tocqueville, 1992: 480].
Diríamos que a preocupação tocquevilliana
fundamental consistia em pensar a forma de a França se preparar para esse fato
novo, o ideal da igualdade, que o acaso tornou presente na própria história
francesa. Ora, esse ideal era pensado por Tocqueville, à luz da experiência
americana, como a conquista de um estado social em que vingaria a igualdade de
condições [cf. Matsumoto, 1999: 38]. Na introdução à primeira Démocratie
en Amérique, o nosso autor mostrava que entre os franceses a democracia
tinha vingado como uma espécie de menino de rua, com toda a dinâmica dos
primeiros anos, mas sem os anteparos da boa educação: "Não há povo na
Europa em que a grande revolução social a que fiz alusão tenha feito progressos
mais rápidos do que entre nós; mas a revolução, neste país, desenvolveu-se
sempre ao acaso. Nunca os chefes de Estado pensaram em preparar, previamente, o
que quer que fosse em seu favor; fez-se apesar deles ou sem que dela tivessem
conhecimento. As classes mais poderosas, mais inteligentes e mais honestas não
buscaram apoderar-se dessa revolução para dirigi-la. A democracia foi,
portanto, abandonada aos seus instintos selvagens; cresceu como essas crianças
privadas dos cuidados paternos, que se criam sós nas ruas das cidades, que só
conhecem da sociedade os vícios e as misérias. Parecia-se ignorar, ainda, a
existência da revolução, quando apoderou-se, inopinadamente, do poder. Então,
cada qual se submeteu servilmente a seus mínimos desejos. Adoraram-na como
imagem da força; mas quando, depois, enfraqueceu por culpa de seus próprios
excessos, os legisladores conceberam o projeto de destruí-la, ao invés de
buscar instruí-la e corrigi-la; sem pensar em ensiná-la a governar, só quiseram
expulsá-la do governo. O resultado foi que a revolução democrática operou-se no
plano material da sociedade, sem que houvesse, nas leis, nas idéias, nos
hábitos e costumes, a mudança que teria sido necessária para torná-la útil.
Assim, temos a democracia, menos o que deve atenuar os seus vícios e
realçar-lhe as vantagens naturais; já conhecendo os males que provoca,
ignoramos os bens que pode proporcionar (...)" [Tocqueville, 1992: 8-9].
O pano de fundo da democracia será o marco de
referência conceitual das reflexões de Tocqueville no que tange às relações
internacionais. Esse marco, aliás, como já tive oportunidade de mostrar atrás,
enquadra a meditação do nosso pensador em relação à problemática colonial. A
Argélia e a Índia foram estudadas por ele como propostas de colonização
julgadas à luz do ideal democrático. Algo semelhante se pode dizer da
problemática da abolição da escravatura, totalmente equacionada com referência
ao contexto da vida democrática.
Quais eram as perspectivas estratégicas que
Tocqueville assinalava à França no contexto europeu da sua época? O nosso autor esteve à frente dos
negócios estrangeiros da França, como ministro das Relações Exteriores, durante
cinco meses no gabinete presidido por Odilon Barrot, entre 2 de junho e 31 de
outubro de 1849. Pouco tempo para desenvolver uma política exterior ampla e
coerente. O nosso pensador teve, necessariamente, de se acomodar aos
compromissos assumidos por ministros anteriores e respeitar as linhas mestras
do regime republicano moderado presidido por Luís Napoleão Bonaparte, eleito
presidente em 10 de dezembro de 1848. O escasso tempo de que Tocqueville dispôs
para dirigir a política exterior, não significou, contudo, que não a conhecesse
em profundidade, nem que os seus ideais democráticos tivessem ficado à margem
da atividade política. O nosso autor já tinha integrado, como deputado, várias
comissões para estudar problemas relacionados com esse ponto. E nas questões
essenciais que teve de solucionar no ministério, agiu guiado pelas idéias que
defendeu na sua obra.
Tocqueville almejava ser
nomeado ministro da Instrução Pública. Revelava, assim, a tendência que já
tinha se manifestado na vida política de Guizot, de contribuir para a reforma
das instituições na França a partir do ponto que era considerado pelo
doutrinários como nevrálgico: a educação popular. Não tendo conseguido a
indicação para a Instrução, foi nomeado ministro das Relações Exteriores. A
respeito das atividades que teve de desempenhar no ministério, escreve André
Jardin: "Na falta da Instrução Pública, Tocqueville recebeu os Assuntos
Estrangeiros, que aceitou com certo temor. Não era, contudo, tão bisonho como
às vezes se tem afirmado; a partir do seu ingresso na vida pública tinha
estudado os problemas internacionais com dedicação; no ano anterior, tinha sido
designado como mediador francês no conflito austro-sardo e, com vistas à
hipotética conferência de Bruxelas, tinha revisado cuidadosamente os
expedientes italianos no ministério; regressava da Alemanha, aonde tinha ido
para observar pessoalmente os movimentos revolucionários" [Jardin, 1984:
406].
Tocqueville teve, no
ministério das Relações Exteriores, uma atitude de colaboração leal para com o
presidente Luís Napoleão. Em que pese as tendências autoritárias do
príncipe-presidente, o nosso autor soube colocar anteparos na sua pasta, quando
achou que o primeiro mandatário extrapolava os limites traçados pela
conveniência dos interesses franceses. A propósito dessa colaboração, frisa
Jardin: "Tocqueville expunha-lhe regularmente os assuntos da Europa,
explicitava-lhe os motivos de suas decisões. Quando acreditou dever resistir às
suas decisões ou aos seus caprichos, justificou as causas da sua resistência.
Dessas relações surgiu uma simpatia um pouco desconfiada da parte de
Tocqueville, uma simpatia mais profunda da parte do Presidente, da qual mais
tarde daria alguns testemunhos (...)" [Jardin, 1984: 408].
Tocqueville encontrou problemas
no que tangia à preparação do pessoal na sua pasta. Após os inúmeros movimentos
revolucionários enfrentados pelo país e em face das idéias republicanas em
ascensão, muitos diplomatas surgiam das fileiras dos ativistas políticos,
tornando difícil a circulação de informações confidenciais e a elaboração e
execução de uma política exterior amadurecida. Tocqueville, como ministro, teve
de criar, em não poucos casos, uma rede de informantes paralela aos quadros da
diplomacia. O seu chefe de gabinete, o jovem Gobineau, foi para nosso autor de
uma grande utilidade, na medida em que se revelou um colaborador fiel e eficaz.
Após ter se desempenhado como auxiliar do nosso autor, quando Tocqueville
deixou o ministério, Gobineau direcionou-se para a carreira diplomática, tendo
representado os interesses da França no Médio e no Extremo Oriente, como também
no Brasil.
No que tange à problemática
das relações exteriores da França com os restantes países europeus, Tocqueville
desenvolveu uma política de continuidade com os seus antecessores no
ministério: manter a Europa em paz. Essa política já tinha sido praticada antes
de 1848 pelo conservador Guizot. Era compreensível essa atitude, diante dos
enormes custos sociais e políticos do ciclo revolucionário de 1789, do Terror
Jacobino e das aventuras napoleônicas. A França estava cansada de guerras e a
sua diplomacia buscava deitar as bases de um convívio pacífico no cenário
europeu. A propósito, frisa Jardin: "Na turbulenta Europa de 1849, o
interesse essencial é a manutenção da paz. Desde 25 de junho, Tocqueville
afirma esse grande princípio a propósito da interpelação de Maugin. Maugin
subia cada ano à tribuna para denunciar a conjuração dos soberanos da Europa
contra a França e, dessa feita, profetizou a chegada dos russos. Boa ocasião
para Tocqueville proclamar que a paz é necessária e que não é imediatamente
ameaçada. Nas circunstâncias do momento, a guerra seria não só um desastre para
a República francesa: dela poderia
resultar um terrível naufrágio não somente para nós, como para todo o mundo
civilizado, numa conjuntura em que as
sociedades tremem nos seus alicerces. Parece impossível uma coalizão contra
a França: Inglaterra quer manter a paz, as potências alemãs jamais estiveram
tão divididas (...)" [Jardin, 1984: 412-413].
O mais espinhoso problema
que Tocqueville teve de enfrentar na pasta das Relações Exteriores foi o dos
Estados Pontifícios. Após a revolução de 1848 o Papa Pio IX, com a finalidade
de conservar o seu poder em Roma, tinha acenado, a partir do seu refúgio em
Gaeta, com a concessão de algumas reformas liberalizantes, organizando um
regime constitucional. Após o assassinato do primeiro-ministro papal, Rossi, em
15 de novembro desse ano, o Pontífice voltou atrás. Acontece que as tropas
francesas, chefiadas pelo general Oudinot, tinham entrado em Roma para
restabelecer a ordem, por determinação de Tocqueville. Se impusessem a
manutenção do status quo absolutista
(como era o desejo dos cardeais mais influentes), as tropas ficariam
desmoralizadas perante a opinião pública de seu país. Se abandonassem Roma à
pilhagem, a situação não seria melhor. O nosso autor insistia na realização de
reformas nos Estados Pontifícios, que possibilitassem o equilíbrio entre
liberdade moderna e Igreja.
A respeito dessa política, frisa
Jardin: "No entanto, a política francesa podia encontrar uma justificação:
a de impor aos estados romanos um regime constitucional. Essa idéia era uma
aplicação do princípio expressado em La Démocratie de que era necessário
fazer coexistir a liberdade moderna e a Igreja, para garantir o equilíbrio
moral da futura sociedade democrática. A negociação do conflito romano era uma
das idéias fundamentais de Tocqueville" [Jardin, 1984: 416]. Tocqueville,
católico por tradição familiar, era sensível ao desprestígio que a Igreja
teria, caso o Papa mantivesse a pretensão absolutista nos seus Estados. Em
carta endereçada a Corcelle em 1º de julho de 1849, assim escrevia o nosso
autor: "Se o soberano pontífice, uma vez colocado novamente no poder,
trabalhar para restabelecer os abusos que a própria Europa absolutista não
deseja, se se entregar aos rigores que a história não perdoa nem sequer aos
príncipes seculares, a Igreja católica não só se debilitaria, mas também se
desonraria diante de todo o universo" [apud Jardin, 1984: 416].
Uma vez garantido o Papa à
frente do governo de Roma pelas tropas francesas, o Pontífice emitiu um decreto
(motu proprio) que praticamente
restabelecia o poder absoluto e deixava sem efeito as promessas liberalizantes,
tendo inclusive restabelecido a Inquisição. Tocqueville sentiu-se traído. A
partir de então, passou a alimentar sentimentos anti-clericais, que o
acompanhariam até o final da sua vida. Jardin frisa a respeito:
"Tocqueville ficou pessoalmente marcado por essa experiência diplomática.
A hipocrisia da corte romana tinha-o exasperado. Católico por tradição e por
costume, contemplava com desânimo a veneração dos fiéis da sua época por Pio
IX. Que pena que você seja protestante!
escreve-lhe um dia Corcelle e essa afirmação marca entre eles uma verdadeira
diferença de sensibilidade. Para Tocqueville, as virtudes privadas do Santo
Padre não têm grande peso diante da falta de lucidez que o encadeia à torta
política do seu Secretário de Estado. A partir de então, através de sua correspondência,
pode-se destacar uma dura atitude anticlerical, até então ausente nele.
Subsistirá durante o Segundo Império" [Jardin, 1984: 421].
Em síntese, a atuação de
Tocqueville na pasta das Relações Exteriores deu continuidade a uma linha
política previamente formulada, de manter a paz na Europa. O seu principal
mérito consistiu em ter conseguido salvar a paz na Itália, mediante uma boa
harmonia com a Áustria. Em geral, as suas apreciações sobre a política européia
foram acertadas, como por exemplo a que previa a unificação alemã. E na sua
atuação observa-se o perfil dos seus mestres doutrinários: agir preservando a
fidelidade aos princípios morais básicos de respeito às pessoas e às nações,
preservando as instituições da democracia representativa e o regime de
liberdades. Em face da dúbia atitude do Papa e dos seus cardeais, o nosso
autor, como frisa Françoise Mélonio no seu ensaio intitulado Tocqueville
et la restauration du pouvoir temporel du pape (juin-octobre 1849) "parece
ter pensado uma política de pressão moral mais vigorosa" [Revue
Historique, CCLXXI/1: pg. 118].
Uma última observação: a
lucidez com que o nosso autor analisou as relações internacionais na sua época,
inspirou, ao longo do século XX, a retomada dessa perspectiva liberal e
responsável (diríamos tipicamente doutrinária)
na França, por parte de Raymond Aron, à cuja sombra, no Centre de Recherches Politiques que leva o seu nome, formou-se um
núcleo de importantes estudiosos da problemática internacional e da questão
social, entre os que se destacam as figuras de François Furet, Marcel Gauchet,
Pierre Rosanvallon, Patrice Gueniffrey, Françoise Mélonio, Ran Halévi, Claude
Lefort, Pierre Manent, Mona Ozouf, Philippe Raynaud, Elisabeth Dutartre, etc.
[cf. Mélonio, 1998: 925-927]. Fecundidade semelhante observa-se hodiernamente, nos Estados Unidos,
ao redor das idéias mestras de Tocqueville, que têm alimentado a meditação
sobre os problemas atuais da democracia americana, como por exemplo no
relacionado ao convívio das raças, dos sexos, enfim, da denominada
"igualdade de condições", numa sociedade civil caracterizada pela
liberdade de associação [cf. Drescher, 2001: 63-76; Vélez, 2001: 275-304].
3 – O papel dos Estados Unidos e da
América Latina no plano internacional.
A - Perspectivas estratégicas da América do Norte.- Não há dúvida de que a
América, para Tocqueville, era uma potência forte. Dois aspectos salientava o
nosso autor em relação a esse fato: ela é tal porque a natureza a colocou
isolada dos grandes inimigos. Mas ela possui também a força das nações cujas
instituições estão solidamente ancoradas na vontade popular.
Em relação ao primeiro aspecto, o nosso autor
considerava que os Estados Unidos da América gozavam de uma situação
privilegiada, de que outros povos não tinham se beneficiado. Era uma nação
colocada pela Providência longe dos seus inimigos e, portanto, a salvo das
guerras. A propósito, escrevia no final da primeira parte da Démocratie
en Amérique de 1835: "De onde provém, pois, o fato de que, embora
protegida pela perfeição relativa das suas leis, não se dissolva a União
americana no meio de uma grande guerra? É que não tem absolutamente grandes
guerras a temer. Situada no centro de um continente imenso, onde a indústria
humana pode estender-se sem limites, a União é quase tão isolada do mundo como
se estivesse encerrada pelo oceano, por todos os lados. O Canadá conta apenas
com um milhão de habitantes; a sua população acha-se dividida em duas nações
inimigas. Os rigores do clima limitam a extensão do território e fecham os seus
portos durante seis meses. Do Canadá ao Golfo do México, encontram-se ainda
algumas tribos selvagens, semidestruídas, que vão sendo expulsas por seis mil
soldados. Ao sul, a União toca num ponto o império do México. É de lá,
provavelmente, que virão um dia as grandes guerras. Mas, por longo tempo ainda,
a situação pouco adiantada da civilização, a corrupção dos costumes e a miséria
impedirão o México de tomar uma posição elevada entre as nações. Quanto às
potências da Europa, o seu afastamento as torna pouco temíveis (...). Admirável
posição do Novo Mundo, que faz com que o homem, nele, não encontre ainda
inimigos, a não ser ele próprio! Para ser feliz e livre, basta desejá-lo"
[Tocqueville, 1992: 191-192].
O fato de estar longe dos seus inimigos
acrescia-se a esta outra realidade: o continente americano era imenso e rico em
terras cultiváveis. Para ser uma grande potência, Estados Unidos não
encontrariam, no século XIX, grandes dificuldades. A sua população cresceria em
paz e ocuparia de maneira produtiva a imensa hinterlândia que a Providência
tinha-lhe dado, entre os dois oceanos, graças a um espírito de trabalho aguçado
pela religião e estimulado pelo desejo de riqueza e conforto, bem como por
instituições de governo a serviço da liberdade cidadã. Uma vez ocupada toda
essa imensidão, ainda poderia se desenvolver a economia mediante um agressivo
comércio internacional, que o nosso autor já registrava na sua primeira Démocratie
en Amérique [cf. Tocqueville,
1992: 19-59].
A União americana era forte também, no sentir
de Tocqueville, por causa das suas instituições. A fórmula radicava na
fundamentação daquelas na vontade popular. O espírito público da República
americana alicerçava-se nos espíritos, nas convicções e sentimentos dos
cidadãos. Aí radicava a sua tremenda força, num mundo cada vez mais agitado
pelas guerras e os choques dos interesses individuais.
A propósito deste ponto, escrevia Tocqueville
ao tratar das vantagens do sistema federativo, na primeira Démocratie en
Amérique: "É incontestável,
na realidade, que, nos Estados Unidos, o gosto e o costume do governo
republicano nasceram nas comunas e no seio das assembléias provinciais. Numa
pequena nação, como Connecticut, por exemplo, onde a grande questão política é
a abertura de um canal ou o traçado de uma estrada, onde o Estado não tem
nenhum exército, nem guerra a manter, e não poderia dar àqueles que o dirigem
nem muita riqueza nem muita glória, nada de mais natural se pode imaginar, nem
de mais apropriado à natureza das coisas, que a república. Ora, é esse mesmo
espírito republicano, são esses costumes e hábitos de um povo livre que, depois
de haver nascido e se ter desenvolvido nos diversos Estados, aplicam-se em
seguida, sem dificuldade, ao conjunto do país. O espírito público da União não
deixa de ser, ele próprio, de certa forma, uma síntese do patriotismo
provinciano. Cada cidadão dos Estados Unidos transporta, por assim dizer, o
interesse que lhe inspira sua pequena república ao amor da pátria comum. Defendendo
a União, ele defende a prosperidade crescente do seu cantão, o direito de
dirigir os seus negócios, a esperança de fazer prevalecer ali planos de
melhoramentos que devem fazer com que ele próprio enriqueça: coisas, todas
essas, que, de ordinário, tocam mais os homens que os interesses gerais do país
e a glória da nação" [Tocqueville, 1992: 182-183].
A sensação de segurança e a certeza de que as
instituições estavam a serviço da liberdade, da democracia e do bem-estar dos
cidadãos, produziam, no sentir de Tocqueville, na sociedade americana, um
sentimento de orgulho nacional e de superioridade em face de outros povos.
"Em geral, as instituições democráticas - frisava o pensador francês
- dão aos homens uma ampla idéia de sua
pátria e de si próprios. O americano sai de seu país com o coração trasbordante
de orgulho. (...) Um americano fala todos os dias acerca da admirável igualdade
que reina nos Estados Unidos; e ele orgulha-se, alto e bom som, de seu país
(...)" [Tocqueville, 1992: 686-687].
Os riscos de desestabilização da sociedade
americana eram situados por Tocqueville num futuro longínquo. Se crises de
unidade a sociedade americana tivesse de sofrer, elas deveriam provir, pensava
o nosso autor, de fatores internos não resolvidos, como a questão dos negros,
que poderiam dar ensejo a sangrentos conflitos civis. O nosso autor
antecipava-se, destarte, à guerra civil americana que eclodiria quarenta anos
mais tarde [cf. Tocqueville, 1992: 359-393]. Mas, com certeza, os Estados
Unidos da América não enfrentariam perigos vindos de fora durante muito tempo.
Como tampouco sofreriam as agruras das revoluções, muito raras, aliás, no
universo democrático tocquevilliano, segundo a acertada apreciação de Seymour
Drescher [1992: 429-454].
B - Perspectivas estratégicas
da América Latina.- Tocqueville teve sempre uma visão crítica do autoritarismo ibérico e
da maneira como foi transplantado para a América Latina. Não podem progredir
nações nas quais a liberdade foi sufocada pelo absolutismo, e nas que o
sentimento do bem público é muito frágil. O clima social na América Latina,
para o nosso autor, aproximava-se mais da barbárie do que da civilização.
Parece como se os países desta parte do mundo voltassem à situação precária do estado de natureza. A causa responsável por
essa desgraça era clara: o despotismo. A
secular falta de civismo ibero-americano às vezes era tanta, que o nosso autor
chegava a admitir, por um momento, uma saída autoritária para a América Latina.
Mas imediatamente descartava essa hipótese como falsa solução. Tocqueville
acreditava no seguinte princípio: não pode haver redenção sob o jugo do
absolutismo.
A propósito, escrevia o
nosso autor, ao tratar da dinâmica que se desenvolve nas nações democráticas e
da falta dela no mundo ibero-americano: "Estranha perceber as novas nações
sul-americanas agitarem-se, há um quarto de século, em meio a revoluções que
começam a cada instante, e, a cada dia, espera-se vê-las voltar ao que se chama
o estado natural. Mas quem pode
afirmar que essas revoluções não sejam atualmente o estado mais natural dos
espanhóis da América do Sul? Nesses países, a sociedade debate-se no fundo de
um abismo, do qual seus próprios esforços não são capazes de fazê-la sair. O
povo que habita essa boa metade de um hemisfério parece obstinadamente apegado
ao hábito de se dilacerar as entranhas; nada pode removê-lo. O esgotamento fá-lo
cair um instante em repouso, e este lhe devolve rapidamente as forças. Quando
considero este estado alterado de miséria e crimes, sou levado a crer que o despotismo
lhe seria benfazejo. Mas estas duas palavras jamais poderiam unir-se no meu
pensamento" [Tocqueville, 1992: 258-259].
Em que pese as críticas
levantadas contra o absolutismo ibérico e a sua presença na América Latina,
Tocqueville era otimista em relação ao futuro do nosso continente. Achava que o
estado de atraso destes países seria transitório e que, assim como a Inglaterra
tinha conseguido influenciar positivamente nos países da Europa Continental na
superação das mazelas da pobreza e do autoritarismo, de forma semelhante os
Estados Unidos conseguiriam, mais cedo ou mais tarde, influenciar beneficamente
nos seus vizinhos do sul, fazendo surgir, neles, a valorização do trabalho, do
desenvolvimento e da democracia, dinamizando os elementos de civilização cristã
presentes nas tradições ibéricas. Antecipava o grande pensador francês a
proposta da Aliança do Livre Comércio das Américas, que hoje os Estados Unidos
tentam implementar na América Latina. Tocqueville talvez se possa aproximar da
idéia de Nisbet [cf. 1969], no sentido de que as mudanças sociais não obedecem
apenas a fatores endógenos, mas que são implementadas fundamentalmente por
influências exógenas.
Vale a pena citar as
palavras de Tocqueville a respeito: "Os espanhóis e os portugueses fundaram,
na América do Sul, grandes colônias que posteriormente se transformaram em
impérios. A guerra civil e o despotismo desolam, hoje em dia, aqueles vastos
territórios. O movimento da população se detém e o reduzido número de homens
que os habita, preocupado com o cuidado de se defender, apenas experimenta a
necessidade de melhorar sua sorte. Mas não será possível ocorrer sempre assim.
A Europa, entregue a si mesma, chegou pelos seus próprios esforços a vencer as
trevas da Idade Média; a América do Sul é cristã como nós; tem as nossas leis,
os nossos costumes; encerra todos os germes das civilizações que se
desenvolveram no seio das nações européias e de seus rebentos; a América do Sul
tem, mais do que nós, o nosso exemplo: por que há de permanecer bárbara para
sempre?".
"Trata-se,
evidentemente, neste caso, de uma questão de tempo: uma época mais ou menos
distante chegará, em que os sul-americanos formarão nações florescentes e
esclarecidas. (...) Não poderíamos duvidar que os americanos do norte da América
venham a ser chamados a prover um dia às necessidades dos sul-americanos. A
natureza os colocou perto deles. Forneceu-lhes, assim, grandes facilidades para
conhecer e julgar as suas necessidades, a fim de estabelecer com aqueles povos
relações permanentes e para se apoderar gradualmente do seu mercado. O
comerciante dos Estados Unidos só poderia perder essas vantagens naturais se
fosse muito inferior ao comerciante da Europa. Acontece que é, pelo contrário,
superior a este em muitos pontos. Os americanos dos Estados Unidos já exercem
grande influência moral sobre todos os povos do Novo Mundo. É deles que partem
as luzes. Todas as nações que habitam o mesmo continente já se habituaram a
considerá-los como os filhos mais esclarecidos, mais poderosos e mais ricos da
grande família americana. Constantemente voltam os seus olhares para a União e,
na medida do possível, assemelham-se aos povos que a compõem. Todos os dias vão
buscar nos Estados Unidos doutrinas políticas e tomar-lhes leis
emprestadas".
"Os americanos dos
Estados Unidos estão, perante os povos da América do Sul, precisamente na mesma
situação que seus pais ingleses perante os italianos, os espanhóis, os
portugueses e todos aqueles povos da Europa que, sendo menos adiantados em
civilização e indústria, recebem das suas mãos a maior parte dos objetos de
consumo (...)" [Tocqueville, 1992: 471-473].
Poderia frisar, à luz dos
ensinamentos de Tocqueville, que a nossa história, em Ibero-América,
desenvolveu-se sempre entre dois extremos antidemocráticos: de um lado, o velho
absolutismo ibérico e o seu herdeiro, o caudilhismo; de outro, o anarquismo
revolucionário. A liberdade foi, nesse contexto de barbárie, a grande vítima.
Alexis de Tocqueville mostrou que o caminho para iluminar a luta pela conquista
da autêntica democracia nos nossos países deveria ser o da defesa da liberdade
para todos os cidadãos. Após a queda do Muro de Berlim e, com ela, do modelo de
democracia sem liberdade proposto por Marx, o modelo tocquevilliano de
democracia liberal está em alta e é capaz de inspirar, ainda, os processos de
renovação política e de reforma do Estado, em andamento no Brasil e no resto da
América Latina [cf. Vélez, 1998].
A luta tocquevilliana em
prol da defesa da liberdade, embora pareça aventura quixotesca no contexto de
autoritarismo que ainda vigora nos costumes políticos latino-americanos, é
ainda motivo inspirador de renovação nesta parte do Novo Mundo. Como frisa
Paulo Kramer, "(...) Para quem vive
num país que ainda não conseguiu vencer as pragas da hipertrofia burocrática do
Estado, do corporativismo clientelístico camuflado sob slogans de isonomia e equiparação e de uma
democracia sempre ameaçada pelo patrimonialismo e pelo autoritarismo de todos
os matizes na quase total ausência de lideranças lúcidas, legítimas e dignas de
crédito, este me parece um combate digno de ser travado" [Kramer, 1998:
79].
|
Este cronista ao lado do busto de Tocqueville, na cidadezinha que leva o seu nome (Janeiro de 1996. Fotografia do saudoso jornalista José Carlos de Lery Guimarães) |
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