Este cronista na sua biblioteca. Juiz de Fora, novembro de 2010 (Foto: Álbum de Família).
Na Revista eletrônica Liberdade e Cidadania (Ano IV - n. 18 - outubro / dezembro, 2012) do Instituto Tancredo Neves, foi publicado este artigo, de minha autoria, sob o título de: "A tradição do Liberalismo doutrinário". Divulgo-o neste post, com a finalidade de lembrar os pontos fundamentais dessa variante do Pensamento Liberal. Foram os Doutrinários os que intermediaram, para América Latina, os conceitos básicos do Liberalismo Político, formulados por Locke no contexto das práticas do Direito Consuetudinário inglês. Contexto bastante estranho às nossas tradições emergentes do Direito Germânico e da herança do Direito Romano.
Nós, ibero-americanos, entramos ao mundo
das idéias liberais por uma dupla via: em primeiro lugar, pelo caminho que
denomino de liberalismo telúrico ibérico proveniente do
feudalismo, que deu ensejo à concepção contratualista do poder externada nos
“fueros aragoneses” vigentes em plena Idade Média. Essa concepção protoliberal
deu ensejo, no início da Modernidade, às teorias da soberania popular dos filósofos
ibéricos (Suárez, Vitória, Molina, etc.) e, na contemporaneidade, eclodiu no
liberalismo de corte libertário dos pensadores da escola austríaca (Hayek, Von
Mises, etc.). Em segundo lugar, e já nos campos mais específicos do
constitucionalismo e da fundação da moderna historiografia, o liberalismo se
sedimentou, na cultura ibérica, pela mão dos pensadores franceses na corrente
denominada de liberalismo doutrinário, ainda nos tempos das
revoltas que varreram o continente na última parcela do século XVIII, mas
especialmente nas primeiras décadas do século XIX.
A primeira via, do liberalismo telúrico, foi
aprofundada por mim no livro intitulado: Estado, cultura y sociedad
en la América Latina [Vélez, 2000]. A segunda, identificada
com a influência do liberalismo doutrinário, foi estudada na obra: O
liberalismo francês: a tradição doutrinária e a sua influência no Brasil [Vélez,
2012]. Tratarei, aqui, acerca desta vertente.
Uma vez consolidada a independência dos países ibero-americanos,
as instituições amadureceram no reformismo de inspiração liberal pela mão
dos doutrinários franceses e dos precursores deles, como
Benjamin Constant (1767-1830). Mas, por outro lado, os novos países
inspiraram-se, também, no republicanismo revolucionário de feição
rousseauniana, que deu ensejo ao bonapartismo e à sua antítese, o
tradicionalismo de Joseph de Maistre (1753-1821) e Luís de Bonald (1754-1840).
Síntese paradoxal da dupla inspiração em Rousseau (1712-1778) e Napoleão
(1769-1821) foi, por exemplo, Simón Bolívar (1783-1830), embora ele pretendesse
ser mais discípulo do filósofo de Genebra do que encarnação do bonapartismo. As
mudanças sociais foram pensadas, outrossim, à luz dos socialistas
utópicos seguidores de Comte (1798-1857) e de Saint-Simon (1760-1825),
bem como dos escritores que, no final do século XIX, vulgarizaram os ideais
socialistas, como Zola (1840-1902).
Esta tese da inspiração estrangeira nos autores franceses, aliás,
não é nova. É do próprio François Guizot (1787-1874), que na sua Histoire
de la civilisation en Europe (capítulo 14), ao fazer o balanço do
que a França significou no contexto da civilização ocidental, afirma que a
marca registrada dessa influência consistiu em ter realizado, de maneira
superlativa, todas as grandes mudanças que foram concretizadas de forma
moderada pela Inglaterra. A França, efetivamente, viu derrubar-se o mundo
feudal muito cedo sob o tacão de ferro de Filipe o Belo (1268-1314), deu ensejo
ao mais radical dos absolutismos monárquicos que possibilitou a Luís XIV
(1638-1715) afirmar: "L'État c'est moi", efetivou de maneira
cruenta a revolução burguesa descabeçando literalmente oAncien Régime,
consolidou um modelo jacobino de República alicerçado no democratismo, que
passou a ser o arquétipo pelo qual se pautaram, em geral, as novas Repúblicas
surgidas na América Espanhola e Portuguesa, ao longo do século XIX, etc.
A respeito desse caráter superlativo das realidades e das idéias
políticas na França - e no continente europeu, em contraposição à Inglaterra -
escreveu Guizot: "Ao contrário, nos Estados do continente, cada sistema,
cada princípio, tendo desfrutado do seu momento e dominado da maneira mais
completa, mais exclusiva, o seu desenvolvimento produziu-se em muita maior
escala, com mais grandeza e brilho. A realeza e a aristocracia feudal, por
exemplo, comportaram-se na cena continental com mais audácia, amplitude e
liberdade. Todos os experimentos políticos (...) foram exteriores e mais
acabados. Daí resultou que as idéias (...) elevaram-se a maior altura e
desenvolveram-se com mais vigor racional (...)" [Guizot, 1864: 383-384].
No que tange ao liberalismo, a experiência dos doutrinários está
bem mais próxima de nós, ibero-americanos, do que as lições que nos poderiam
dar os ingleses ou os norte-americanos. Isso porque a França do século XIX
reproduzia com grande fidelidade as contradições que vivemos, nos nossos
países, nessa centúria e ao longo do século XX, como também neste paradoxal
início de milênio. A evolução política contemporânea, na Espanha, em Portugal,
na América espanhola ou no Brasil, processou-se de forma muito mais parecida à
França do século XIX, do que aos Estados Unidos ou à Inglaterra.
As idas e vindas da nossa política têm oscilado entre os extremos
do mais feroz caudilhismo (e da sua variante contemporânea de desavergonhado
populismo) e do anárquico democratismo. As lutas dos liberais ibero-americanos,
em defesa da liberdade e do governo representativo, aproximaram-se muito mais
dos esforços feitos por Guizot e pelos demais doutrinários para
dotar a França de instituições que garantissem a frágil planta da democracia,
do que das reformas eleitorais inglesas efetivadas por William Gladstone
(1809-1898). A idéia é de José Ortega y Gasset (1883-1955), que concluía em
1937: "este grupo de doutrinários, de quem todo mundo riu e
fez troça, é, no meu entender, o mais valioso que houve na política do
Continente ao longo do século XIX" [apud Díez, 1984: 19].
A repercussão das idéias dos doutrinários no
mundo ibérico e ibero-americano começou já no século XIX. Os liberais
espanhóis, liderados por Cánovas del Castillo (1828-1897), que integraram a
denominada Geração dos Doutrinários de 1845, inspiraram-se
diretamente nos seus homólogos franceses, notadamente em Guizot [cf. Díez,
1984: 25]. A influência deste fez-se sentir, em Portugal, já no pensamento de
Alexandre Herculano (1810-1877). Algo semelhante ocorreu no Brasil entre os
denominados por Oliveira Vianna (1883-1951) de Homens de Mil, que
constituíram a geração de estadistas formados por dom Pedro II (1825-1891) e
que foram os responsáveis pela estabilidade política do Segundo Reinado. Um
desses Homens de Mil foi o visconde de Uruguai, Paulino Soares
de Sousa (1807-1866), que fundamentou o seu Tratado de Direito
Administrativo nas idéias e nas propostas reformistas de Guizot
[cf. Sousa, 1960]. Outros estadistas como o conselheiro José Tomás Nabuco de
Araújo (1813-1878) e seu filho, Joaquim Nabuco (1849-1910), confessavam-se
seguidores de outro doutrinário, o mestre de Guizot e seu padrinho
político, Pierre-Paul Royer-Collard (1763-1845) [cf. Chacon, 2002: 229]. Vale a
pena lembrar, aqui, que as idéias dos precursores do liberalismo doutrinário,
Benjamin Constant (1767-1830) e Madame de Staël (1766-1817), já estavam
presentes no pensamento da geração anterior, quando da vinda da corte
portuguesa para o Brasil. Dois ministros de dom João VI acusaram essa influência:
Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846) e dom Pedro de Sousa Holstein
(1781-1850), marquês e duque de Palmela.
Entre os argentinos, para citar apenas um nome, encontramos importante
tributário da dinâmica histórica idealizada por Guizot em Domingo Faustino
Sarmiento (1811-1888), que foi presidente do seu país e que escreveu a obra que
narra as origens do patrimonialismo platino intitulada:Facundo,
civilización o barbarie, publicada em 1846.
Efetivamente, Sarmiento, como já o fizera Guizot em relação à Europa,
considerava a formação argentina como fruto dialético da contraposição de dois
princípios: a liberdade bárbara do gaúcho (encarnado em
Facundo Quiroga e em Rosas), e o princípio centralizador da ordem, que faz uso
do direito, construindo o Estado sobre as leis (papel civilizador que pretendia
desempenhar o próprio Sarmiento e a elite de educadores-políticos por ele
inspirada) [cf. Sarmiento, 1996].
Os traços marcantes dos doutrinários são os
seguintes, segundo François Guizot: 1) Elesforam eminentemente
homens de ação moderados, que pretenderam defender as conquistas da Revolução
de 1789, notadamente os ideais de liberdade e de democracia, bem como o ideal
de progresso da sociedade humana. Prevaleceu neles, no entanto, mais o primeiro
aspecto do que o segundo. Mas, ao analisarmos a sua obra, vemos que ela se
encaminhava no sentido de alargar o voto paulatinamente, embora se
contrapusessem à retórica democrática, polarizada muitas vezes ao redor dos
republicanos. Achemos muito conservador ou não o primeiro ministro do rei Luís
Filipe (1773-1850), Guizot foi, afinal de contas, quem destacou, em alto e bom
som, que no mundo moderno iniciou-se uma caminhada irreversível rumo à
democracia. 2) Os doutrinários eram, ao mesmo
tempo, homens de estudo, que tinham uma dupla finalidade: de um lado,
identificar as raízes históricas da civilização ocidental e, no contexto dela,
da cultura francesa, a fim de pensar as novas instituições em consonância com
as próprias tradições; de outro lado, substituir a filosofia sensualista dos
ideólogos por um ecletismo espiritualista compatível com a prática religiosa.
Alguns doutrinários, como Royer Collard, eram católicos de origem
jansenista, outros protestantes, como François Guizot. Mas todos eles se caracterizavam
pela moderação em matéria religiosa, e por defenderem a separação das igrejas
em face do Estado. 3) Do ângulo filosófico, osdoutrinários professavam
um espiritualismo contrário ao sensualismo de Étienne B. de Condillac
(1715-1780) e ao excessivo materialismo dos ideólogos. Dois autores deitaram as
bases, na França, para os fundamentos filosóficos dos doutrinários,
no seio da corrente denominada de ecletismo espiritualista: Royer-Collard,
que se inspirou fundamentalmente na filosofia escocesa do senso comum
de Thomas Reid (1710-1796) e Victor Cousin (1792-1867) que alargou os
fundamentos doutrinários do ecletismo incorporando a filosofia alemã,
notadamente o hegelianismo e que, junto com Maine de Biran (1766-1824),
tributário de Kant (1724-1804), deu carta de cidadania filosófica ao espiritualismo [cf.
Paim, 1997: 371-386; Díez, 1984: 34-42]. Na reação espiritualista apontada
deitam raízes, aliás, os pressupostos humanísticos de Tocqueville (1805-1859) e
Raymond Aron (1905-1983).4) Ao juntarem a dimensão prática à
teórica, os doutrinários encarnaram um tipo especial de ética
pública, a dointelectual-homem de ação, que se contrapõe paradoxalmente
à proposta dicotômica de Max Weber (1864-1920), que distinguia de forma radical
entre ética dos intelectuais e ética dos políticos.
Os doutrinários não tinham dificuldade em admitir que o
intelectual deve iluminar o político e que o político deveria fazer pousar na
terra o intelectual. 5) Quanto ao modelo político defendido,
os doutrinários eram partidários da monarquia constitucional
com parlamento bicameral, sendo tributários, neste aspecto, dos autores
ingleses.
Existe, pois, uma tradição doutrinária, que foi
preparada pela ação e o pensamento de três importantes precursores: Jacques
Necker (1732-1804), a sua filha Germaine Necker de Staël-Holstein (a já
mencionada Madame de Staël) e Benjamin Constant de Rebecque. A hipótese
dos precursores do liberalismo doutrinário não é
nova: foi levantada no século XIX por Charles A. Sainte-Beuve (1804-1869) e
adotada presentemente por Lucien Jaume, sendo que este último autor considera
que há em Madame de Staël e em Constant mais um perfil libertário, enquanto que
em Necker e Guizot prevalece um ponto de vista centrado nas instituições
governamentais, que confere ao seu liberalismo um caráter mais conservador.
Tocqueville, no sentir de Jaume, teria resgatado a ênfase libertária de Madame
de Staël e Benjamin Constant [cf. Jaume, 1997: 14-21]. Observa-se, na ação
precursora de Madame de Staël, a sua inspiração na filosofia kantiana, no
esforço empreendido por ela para dotar ao liberalismo de uma base filosófica
sólida (de inspiração transcendental), contraposta ao utilitarismo.
A tradição doutrinária, encarnada pela
geração de Guizot, prolonga-se na obra e no pensamento de dois importantes
autores: Alexis de Tocqueville e Raymond Aron. O primeiro, apesar de crítico
das reformas conservadoras de Guizot, manteve-se fiel aos seus ensinamentos no
que tange aos pressupostos espiritualistas na concepção do homem, bem como no
que diz respeito aos rumos da historiografia e à defesa das instituições
liberais do governo representativo e da monarquia. Isto é válido embora, como
também fez o próprio Guizot, Tocqueville tivesse admitido para a França - de forma
passageira, é verdade - uma República liberal. Aron, filho do século XX,
ampliou o estudo sobre os fundamentos filosóficos da historiografia no contexto
do neokantismo e se engajou corajosamente, ao mesmo tempo, na defesa da
liberdade e da democracia representativa, num contexto republicano. Ambos,
Tocqueville e Aron, conservaram o traço marcante dos doutrinários,
ao terem sido pensadores e homens de ação. Tocqueville, como parlamentar,
ensaísta, ministro de Estado, jornalista e estudioso dos assuntos da administração
pública e do governo; Aron, fundamentalmente como jornalista combativo e
estudioso sistemático das grandes questões suscitadas pela democracia
contemporânea. Ambos, Tocqueville e Aron, contrapõem-se aos doutrinários na
questão da democracia. Não que estes a negassem frontalmente: as reformas por
eles realizadas a prepararam. Mas Tocqueville e Aron defendem de maneira
explícita o ideal democrático, coisa que os tradicionais doutrinários não
chegaram a fazer. Ambos, Tocqueville e Aron, finalmente, pensaram de maneira
sistemática a problemática internacional do seu tempo. Ora, neste ponto eles
superam os seus mestresdoutrinários, que não chegaram a formular uma
teoria das relações internacionais.
Destaquemos, a seguir, alguns conceitos básicos da tradição
doutrinária em Madame de Staël, Benjamin Constant, Guizot, Tocqueville e Aron.
A corajosa escritora arvorou-se como defensora da liberdade em
face do regime napoleônico. A reflexão de Madame de Staël deitou, assim, as
bases para o trabalho ulterior de fundamentação do liberalismo doutrinário
francês. A noção tocquevilliana de interesse bem compreendido não
se poderia entender sem referência à obra de Madame de Staël. Ressalta a sua fé
incondicional na liberdade. A propósito, escreve Madame de Staël em Dix
années d'exil: "Não é para me escusar pelo meu entusiasmo em
relação à liberdade, que explicito as circunstâncias pessoais que contribuíram
para tornar mais caro para mim esse ideal. Creio que devo me orgulhar desse
entusiasmo em lugar de me escusar, pois quis dizer desde o início que o grande
reproche do imperador Napoleão contra mim, é o amor e o respeito que sempre
tive pela verdadeira liberdade. Esses sentimentos foram-me transmitidos como
uma herança, a partir do momento em que pude refletir acerca dos altos ideais
dos quais derivam e das belas ações que eles inspiram. As cenas cruéis que
desonraram a Revolução Francesa, não sendo mais do que tirania sob modalidade
popular, não fizeram esmaecer em mim, creio, o culto à liberdade. Poderíamos
nos desencorajar em relação à França. Mas, se este país tivesse a desgraça de
não possuir o mais nobre dos bens, não era necessário por isso proscrevê-lo da
terra. Quando o sol desaparece do horizonte dos países do Norte, os habitantes
dessas regiões não amaldiçoam os seus raios, que luzem ainda em outros lugares
mais felizardos do céu." [Staël, 1996: 46]
A soberania popular limitada,
segundo Benjamin Constant
Ele considerava que só havia dois poderes: a força (ilegítimo) e a
vontade geral (legítimo). Era fundamental conceber de forma correta a natureza
desta última, a fim de determinar com clareza a abrangência da mesma. Se
isso não fosse feito, a tentativa de defesa da liberdade poderia simplesmente
suprimi-la.
A propósito, escrevia Constant: "O reconhecimento abstrato da
soberania do povo não aumenta em nada a soma de liberdade dos indivíduos, e se
lhe for atribuída uma abrangência indevida, pode-se perder a liberdade apesar e
contra esse mesmo princípio" [Constant, 1970: 8].
A delimitação da soberania, pensava
Constant, não podia ficar nas mãos dos que exercem o poder, pois a tendência de
todo governo constituído é a sua auto-preservação. A soberania, portanto, deve
ser limitada desde fora do poder pela própria sociedade. Ora, a soberania
jamais pode ser entendida como ilimitada. Esse era, para o nosso pensador, o
grande defeito dos que a criticavam no Ancien Régime,
identificando-a com o absolutismo monárquico. Foram atacados os reis, mas não a
fonte do despotismo, que radicava na concepção inadequada de soberania, como
algo sem limites. Assim, o absolutismo de um ou de poucos foi substituído pelo
de muitos, sem que mudasse a forma de se entender a soberania.
O nosso
autor deixou clara a forma limitada em que entendia a soberania, com as
seguintes palavras: "Numa sociedade fundada na soberania do povo, é
evidente que nenhum indivíduo, classe nenhuma, tem o direito a submeter o resto
à sua vontade particular; mas é falso que a sociedade, no seu conjunto, possua
sobre os membros uma soberania sem limites" [Constant, 1970: 9]. A
soberania deve ser limitada em si mesma. Ela abarca parcialmente o ser dos
cidadãos, ficando do lado de fora da mesma o que diga relação à independência e
à existência do indivíduo. Ultrapassar esse limite torna a soberania ilegítima.
Nem interessa se esse abuso é cometido por uma pessoa, um grupo, ou a maioria
dos homens na sociedade. Será sempre algo ilegítimo.
A respeito, frisava Constant: "O assentimento da maioria não
basta em todos os casos para legitimar os seus atos; há atos que é impossível
sancionar. Quando uma autoridade pratica atos semelhantes, não importa a fonte
da que pretenda provir, não importa que se chame indivíduo ou nação.
Faltar-lhe-ia legitimidade, mesmo se tratando de toda a nação e havendo um
único cidadão oprimido" [Constant, 1970: 10]. O grosseiro erro de Rousseau
consistiu, frisava Constant, em ter imaginado uma Vontade Geral como
poder ilimitado, que terminava sacrificando, em nome da democracia, a liberdade
que pretendera defender. O filósofo de Genebra, considerava o nosso pensador,
ignorou esta simples verdade: "o assentimento da maioria não basta (...)
para legitimar os seus atos". Esta oportuna e certeira crítica de Constant
ao democratismo rousseauniano, serviu de base para as que foram levantadas no
seio do liberalismo francês, no decorrer do século XIX, (com Guizot,
Tocqueville e outros) e, ainda, no século XX, (com Aron, Peyreffitte, Revel,
etc.).
O ideal doutrinário
segundo Guizot: finalizar a Revolução Francesa
O projeto político de Guizot
correspondia ao ideal de “finalizar a Revolução, construir um governo
representativo estável, estabelecer um regime que, fundado na Razão, garantisse
as liberdades. Era uma tarefa intelectual e política. Efetivamente, a essência
da proposta de Guizot consistiu em pensar as novas instituições que
garantissem, no plano político, o exercício da liberdade. Esse pensar as novas
instituições não era ato de uma elite intelectual desligada da sociedade. Era
função de uma elite, sim, pensar os novos conceitos. Mas eles deviam se
espraiar pelo resto da sociedade. Guizot apostava num uso social da
razão.
A propósito, perguntava: "O que é necessário para que os
homens possam fundar uma sociedade um pouco durável, um pouco regular?" -
E respondia: "É preciso, evidentemente, que tenham um certo número de
idéias suficientemente desenvolvidas, para que convenham a essa sociedade, que
respondam às suas necessidades, às suas relações. É preciso, além do mais, que
essas idéias sejam comuns à maior parte dos membros da sociedade; enfim, que
elas exerçam um certo domínio sobre as suas vontades e as suas ações"
[Guizot, 1864: 81].
Essa tarefa político-pedagógica era pensada num pano de fundo
histórico, inserindo as instituições políticas no contexto mais amplo do
espírito do tempo.
A função pedagógica-política do intelectual consistia em fazer
descobrir aos franceses a sua própria história. Guizot pretendia cumprir esse
papel, em relação ao seu país, doutrinando as classes médias, as únicas que
conseguiriam manter a unidade nacional, numa perspectiva de não privatização do
poder por castas ou estamentos. Ele estabelecia um estreito elo de ligação
entre a conquista das liberdades individuais e a construção do Estado. Em
relação a esse ponto, escreve Rosanvallon [1985: 199]: "A construção do
Estado e o nascimento do indivíduo vão de mãos dadas: os dois se fundam sobre a
destruição das ordens fechadas".
As obras de caráter histórico de Guizot tinham como finalidade
ensinar às classes médias essa sua importante missão de construir, na França, o
Estado e a civilização. O líder dos doutrinários e primeiro representante da
chamada escola histórica, "quer dar uma memória às classes
médias, lhes restituindo a história" [Rosanvallon, 1985:195].
A inserção da preocupação histórica como parte essencial da tarefa
dos intelectuais, formou parte do clima que se seguiu na França, e na Europa em
geral, à Revolução Francesa. Talvez aí radicassem as reservas com que Guizot
enxergava a obra de Comte, dogmática demais segundo o seu ponto de vista, em
boa medida por não levar em consideração, suficientemente, os fatos históricos.
Ao passo que os philosophes do século XVIII davam as costas
ostensivamente à realidade, transformando o seu discurso numa abstração,
(Tocqueville aderiria posteriormente, em L'Ancien Régime et la
Révolution, a essa crítica), os doutrinários faziam
questão de se definirem como homens do seu tempo, que buscavam as raízes da
própria sociedade na sua história. Tarefa de evidente inspiração hegeliana, na
qual Guizot, com insuperável maestria de sociólogo e filósofo, elaborou as
categorias dialéticas à luz das quais passou a ser entendida a problemática
social no seio do Liberalismo francês.
Guizot entendia a sociedade européia numa dupla perspectiva:
sócio-política e cultural. Em ambos os contextos identificava a essência da
realidade como fundamentalmente dialética. O hegelianismo de Guizot não
provinha de uma leitura direta de parte do nosso autor das obras do filósofo
alemão, mas da influência de Victor Cousin.
A herança
dos doutrinários em Tocqueville e Aron: a formulação de uma ética pública
liberal
Tocqueville
formula os elementos básicos do que poderíamos chamar de princípio da
beneficência na ética pública, quando apresenta as suas soluções, na
terceira etapa da discussão da problemática da pobreza.
O nosso pensador parte da definição moral do princípio da
beneficência.
Esse princípio alicerça-se numa espécie de imperativo categórico:
deve poder se aplicar universalmente e as suas conseqüências devem estar de
acordo com a moral.
Eis as suas palavras a respeito: "Obviamente não quero pôr
em julgamento a beneficência, que é uma das virtudes mais naturais, belas e
sagradas. Mas penso que não existe nenhum princípio, por melhor que seja, cujas
conseqüências possam ser todas consideradas boas. Ela deveria ser uma virtude
humana e sensata, não uma inclinação fraca e irresponsável. É necessário fazer
o que for mais útil a quem recebe, e não o que mais agrada ao doador; fazer o
que melhor atende as necessidades da maioria, e não o que é a salvação de
poucos. Apenas desta forma posso conceber a benevolência. Qualquer outra forma
seria a representação de um instinto ainda sublime, mas não mais me parece
digna de receber o nome de virtude" [Tocqueville, 1991: I, 1177-1178].
O nosso pensador enxerga uma solução completa para a problemática
da pobreza, diferente da caridade ou do simples assistencialismo. Trata-se da
formulação, por parte do Estado, de uma política social que abarque três
grandes aspectos: educação dos pobres, estímulo à propriedade fundiária dos
camponeses e estímulo à poupança dos operários das indústrias. A finalidade
dessa política social consistiria em estabelecer um equilíbrio entre a produção
de bens e o seu consumo, a fim de evitar as distorções causadas no mundo
moderno pelo sistema produtivo.
Há duas dimensões
da ética no pensamento de Alexis de Tocqueville, a intelectual e a política.
Embora tematizadas em contextos diferentes da sua obra, elas estão, contudo,
profundamente relacionadas e são fruto da influência dos doutrinários na sua
formação. Diríamos que o ideal da ética política, materializado no princípio da
beneficência, torna-se possível unicamente mediante o cumprimento do imperativo
da defesa incondicional da liberdade para todos. O nosso pensador,
efetivamente, caracteriza o princípio da beneficência da seguinte forma:fazer
o bem mais verdadeiramente útil àquele que o recebe, de forma que sirva ao
bem-estar do maior número.
A ética de Raymond Aron segue as pegadas da meditação
tocquevilliana. A influência de Max Weber é reformulada, em Aron, à luz de
Tocqueville. Mas é clara, também, a influência do pensamento kantiano e de um
hegelianismo mitigado.
Rejeitado de plano o historicismo, fica claro para o nosso autor
que não pode haver uma cisão entre ética intelectual e ética política.
O imperativo categórico que regula a ação individual no terreno
do conhecimento científico da sociedade, acontece num ser histórico inserido
numa época determinada, e deve ter relação com os imperativos morais da ação.
Para Aron, a ética intelectual deve iluminar a política, a fim de
torná-la reta. De outro lado, a prudência do político deve estar presente,
também, no homem que pensa. Tanto o conhecimento do homem de ciência, quanto o
do homem político são probabilísticos. Não há certezas absolutas, nem na
ciência da sociedade, nem na ação que pretende transformar esta última. Aron
adere ao princípio popperiano da refutabilidade, para fundamentar a certeza em
ciência social. E considera que, no homem concreto, não se pode cindir, do
ângulo existencial, o pensar a sociedade e o agir sobre ela. A separação
weberiana entre o político e o científico decorre, no sentir de Aron, da índole
abstrata e puramente formal em que o sociólogo alemão pensa os seus tipos
ideais. Mas faltou-lhe considerá-los inseridos na concreção do mundo da vida. É
o que o sociólogo francês tenta fazer ao pensar a ciência social e a política,
do ângulo dos seus atores, o cientista e o político, encarnados na mesma pessoa
[cf. Aron, 1985: 696 seg.].
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