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domingo, 27 de abril de 2014

O BRASIL E A MORAL SOCIAL - ATUALIDADE DO DEBATE EM TORNO DA ÉTICA NO MUNDO GLOBALIZADO

Capa da obra de Antônio Paim, intitulada: Tratado de Ética (Londrina: Edições Humanidades, 2003).

Quando um grupo de pessoas se reúne para constituir uma organização, precisa ter algo em comum. Nas comunidades de animais, o elemento aglutinador é o instinto, que lhes possibilita dar uma resposta às necessidades básicas. Nas comunidades humanas, as tendências instintivas são canalizadas pela razão (da qual emana o direito). Sobre a base de ordenação jurídica estrutura-se o grupo humano. Sem essa ordenação, a comunidade humana se dissolve. É o que os filósofos denominam de situação de anomia ou carência de organização legal. Mas o direito, para ser fator de aglutinação humana, precisa de um embasamento cultural. Imaginemos que a sociedade brasileira passasse a ser, por um dia, governada à luz do Alcorão, que constitui o referencial culturológico dos povos de tradição muçulmana. Simplesmente o conjunto de práticas legais apresentadas nesse código, não pegaria, como se diz popularmente. Para que uma lei pegue, é necessário que exista uma base cultural, que hoje identificamos com certa ordem de valores.
A finalidade deste texto consiste em identificar os elementos ético-culturais necessários à ordenação das sociedades humanas, destacando o conjunto de valores morais que deve inspirar ao cidadão na construção da sociedade brasileira. Veremos de que forma o âmbito da legalidade pressupõe uma ordem de valores que constitui um ethos (explicitado na moral).
Serão desenvolvidos os seguintes itens: 1) A crise de governabilidade ensejada pela Constituição de 1988 e a valorização da discussão ética. 2) Conceitos básicos acerca de ética e moral. 3) Conceitos básicos acerca dos valores e da pessoa. 4) Modelos de moral social na cultura brasileira. 5) O empresário, os valores morais e a cidadania no Brasil contemporâneo. 6) O fenômeno da globalização: pressupostos éticos. Conclusão: Bases éticas e humanísticas da globalização.
1) A crise de governabilidade ensejada pela Constituição de 1988 e a valorização da discussão ética.
A reflexão sobre a moral e a ética ganhou muita popularidade no Brasil, ao longo dos últimos vinte e cinco anos. Tradicionalmente as questões relativas à moral eram tratadas com certo menosprezo, como se fosse algo careta. Moral era confundida com moralismo, que consiste numa atitude puramente formal, que se apega a usos e costumes adotados por tradição e muitas vezes ultrapassados, sem enxergar a conveniência de engajamento consciente e responsável, a fim de renovar os critérios de comportamento quando isso se torne necessário. A opinião pública brasileira esperava que a democracia se consolidasse sem problemas, após a promulgação da "Constituição Cidadã" de 1988. Acontece que a nossa Carta Magna trouxe mais perplexidades do que soluções. O primeiro problema consistiu em que ela negava, na segunda parte, o que apregoava na primeira. Ou seja: os direitos do cidadão, que apareciam claramente defendidos na primeira parte, tornar-se-iam inviáveis na segunda, que consagrou velhas estruturas corporativistas e que passou, de forma idealista, a fixar no texto constitucional coisas inviáveis, como juros tabelados. As incoerências da Carta Magna produziram o fenômeno da ingovernabilidade. Para poder administrar o país nestas últimas décadas, poder executivo, legisladores e magistrados tiveram de deixar muita coisa sem regulamentar. A principal conseqüência que disso tiraram os brasileiros é a de que a construção da democracia não acontece por arte de magia, mas que se trata de um trabalho diuturno e penoso, que pressupõe a explicitação dos fundamentos morais da lei, e que se consolida num longo processo de ensaios de acerto e erro, que implica em muita discussão, disciplina parlamentar, bom senso, paciência infinita e consciência cívica.
Duas citações servirão para ilustrar o descompasso entre a Carta de 1988 e a realidade do país. Em relação a esse fato, escreveu Paulo Mercadante: "A emoção e o açodamento, unidos numa interseção de nacionalismo e populismo, produziram uma Constituição que prima pela idealidade. Um diploma ilusório por razões fortuitas, nascido sem o selo do necessário. O descompasso entre os dois requisitos para um saldo positivo (o acaso e a necessidade) gerou, paradoxalmente, o fenômeno do pretensioso parto dos montes, segundo o verso de Horácio (...). Tomados pela euforia, decidiram os constituintes redigir um texto minucioso e bombástico, sujeito, por inadequação, à morte prematura. Esqueciam-se os progressistas que uma Carta não pode contrapor-se ao projeto histórico de uma nação" [Mercadante, 1988: 505].
Miguel Reale, por sua vez, escreveu o seguinte: "Uma nova Constituição pode não redundar, de per si, em possibilidades de cultura e riqueza, que só o trabalho perseverante e metódico proporciona, mas pode embaçar e até mesmo travar o progresso de uma nação. Infelizmente, a Carta que vai reger o nosso destino pertence a esta segunda categoria, por termos sido, mais uma vez, vítimas das oscilações pendulares que têm marcado nossa vida política ao longo do tempo (...). Como sinal de nossa imaturidade, carecemos do devido senso histórico (...). Assim é que, em 1946, reagimos à ditadura do Estado Novo reduzindo em demasia as atribuições do Poder Executivo; forçando uma política de barganha ou de confronto com o Legislativo, foi este que foi duramente atingido com o advento dos Atos Institucionais e as Cartas de 1967 e 1969. Agora, legislando novamente sob o signo do revide, voltamos a fortalecer o Congresso Nacional além do necessário. Eram requeridas, sem dúvida, medidas de contenção contra os excessos de nosso presidencialismo caudilhesco, mas não até o ponto de subordiná-lo às deliberações precárias de um Poder Legislativo apoiado em clientelas personalistas e não em partidos distintos, não digo por seus programas, que seria exigir muito em nossas circunstâncias, mas pelo menos por seus planos de governo" [Reale, 1988: 498].
Esperávamos deitados, como frisa Meira Penna, "em berço esplêndido" [cf. Penna, 1974], que chegássemos ao primeiro mundo de trem bala, com tudo resolvido no terreno econômico pelo Plano Real e, no terreno político, pela ação dos nossos constituintes, que elaborariam uma Carta democrática que garantiria o nosso convívio civilizado. Não contávamos com a desagradável constatação de que a Nova República já nasceu com o pecado original de velhas práticas estatizantes e cartoriais, por nós assimiladas ao longo de séculos de cultura patrimonialista. Justamente no momento em que a sociedade brasileira percebeu o beco sem saída das contradições da democracia, começou a ter validade a discussão das questões relacionadas à ética e à moral. Tinha entrado em crise o velho arquétipo pombalino-getuliano, segundo o qual o Estado Empresário garante a riqueza da Nação e equaciona os problemas da ordem social e política e da moral dos cidadãos [cf. Paim, 1982]. Ficamos entregues a nós mesmos, com a incômoda incumbência de pensarmos de novo tudo de baixo para cima, sem esperarmos fórmulas pré-fabricadas em Brasília, a partir unicamente das nossas convicções. Tinha acabado definitivamente a expectativa positivista de a moralidade ser gerada a partir da lei positiva. Era necessário elaborar critérios para avaliar os pressupostos morais da legislação.
2) Conceitos básicos acerca de ética e moral
Antes de iniciarmos uma reflexão acerca da ética nas organizações, devemos deixar claras algumas noções fundamentais. Esclareceremos primeiro os seguintes conceitos básicos relacionados ao tema em apreço: moral, ética, moral individual, moral social, moral social vertical, moral social horizontal ou consensual, moral de convicção (ou ética dos intelectuais), moral de responsabilidade (ou ética dos políticos).
A moral pode ser definida assim: conjunto de normas de conduta adotado como universalmente válido por uma comunidade humana, num lugar e num tempo determinados [temo-nos baseado, para estas noções, em: Paim, 1992]. Três aspectos ressaltam nesta definição: em primeiro lugar, o conjunto de normas de conduta adotado como universalmente válido; ou seja, a moral sempre se apresenta como algo de imperativo, em relação à ação humana e em face das noções de bem e de mal. Difere de outras pautas comportamentais como os regulamentos ou a moda, pela feição de norma absoluta de conduta que não admite, portanto, negociação, porquanto intimamente vinculada às noções de bem e de mal. Destaca-se, em segundo lugar, o aspecto da comunidade humana que adota o código moral. Efetivamente, esta sempre esteve relacionada a um específico contexto humano, a certa comunidade, como já fica claro da forma em que Aristóteles entendia a moral grega na Ética a Nicômacos [cf. Aristóteles, 1992], ou como aparece na história da consolidação da moral no povo judeu, segundo a tradição bíblica. Em terceiro lugar, salta à vista o aspecto da condição espaço-temporal da lei moral, essencialmente vinculada à história humana e passível, sob este ângulo, de ajustes no seu evoluir.
A ética consiste no estudo racional e sistemático da moral. Enquanto esta constitui a variável concreta, a ética representa o aspecto abstrato e teórico da mesma. Em relação a um determinado código moral, como o fixado na Grécia, por exemplo, pela pedagogia dos sofistas ou paidéia, podemos encontrar várias abordagens teóricas: as representadas pela ética socrática (presente nos Diálogos que Platão dedicou a cultuar a memória de seu mestre), pela ética da pólis (que Platão concebeu como ideal da cidade grega, na sua obra A República) ou pela ética da bem-aventurança ou da felicidade (sistematizada por Aristóteles nas suas obras Ética a Nicômacos, Ética a Eudemo e Grande Ética, levando em consideração a abertura da Grécia ao mundo, no império de Alexandre).
De forma semelhante, em relação ao código moral emergente da tradição judaico-cristã, encontramos várias éticas que tentam explicitar teoricamente os seus aspectos fundamentais, como a ética do dever tematizada por Kant no século XVIII, a ética de menosprezo do mundo típica da espiritualidade dos monges na Idade Média, a ética do trabalho presente na obra de Calvino (no século XVI), a ética de convicção e de responsabilidade (tematizadas por Max Weber no século XX, para ilustrar, respectivamente, a ética dos intelectuais e a dos políticos), etc. As éticas profissionais constituem uma variante teórica do código moral judaico-cristão e se alimentam da rica tradição filosófica do Ocidente, que foi adaptando a reflexão ética aos problemas emergentes na modernidade, em decorrência da necessidade de ajustar a preservação dos direitos humanos básicos (expressão hodierna da moral ocidental) às exigências da prática profissional, nas suas várias especializações.
O código moral pode ser abordado de dois ângulos: individual e social. O código moral individual consiste naquilo que o Kant denominava, no final do século XVIII, de imperativo categórico da consciência, que nos exige agir de acordo com ela custe o que custar, sem enxergar as conseqüências. Max Weber aprofundou teoricamente sobre esse tipo de moral, à luz do conceito de ética de convicção, que constitui o modelo presente na moral evangélica e que deveria inspirar a tarefa dos intelectuais, preocupados unicamente com a busca diuturna da verdade, sem calcular vantagens ou desvantagens. O código moral individual configurou-se tradicionalmente no Ocidente a partir da religião cristã. Mas Immanuel Kant elaborou uma fundamentação eminentemente racional para a moral individual, na sua Fundamentação da metafísica dos costumes, como ficará explicado no próximo item.
Já o código moral social consiste no mínimo comportamental a ser exigido dos membros de uma comunidade para que ela não se desintegre. A filosofia inglesa, ao longo dos séculos XVII e XVIII desenvolveu ampla reflexão sobre a moral social, em decorrência do fato de ter se consolidado na Inglaterra a tolerância em matéria religiosa.
O código de moral social pode ser formulado de duas formas: vertical ou horizontal. Ocorre a moral social vertical quando o mínimo comportamental exigido dos membros de uma sociedade é imposto por um grupo, uma pessoa ou um estamento que detém o poder. É isso o que ocorreu, por exemplo, nos países comunistas ao longo do século XX, onde o Estado foi o exclusivo formulador das normas de comportamento moral da sociedade. Outro exemplo de moral social vertical foi o acontecido na Colômbia, no período compreendido entre 1886 e 1991, em que a religião católica foi considerada como a religião oficial do Estado, passando este à Igreja Católica a incumbência de formular a moral social. Outro exemplo seria o do Irã, no período que se estende de 1979 até os nossos dias, em que os Aiatolás chamaram para si a função de formular e implantar a moral social xiita.
Ocorre a moral social horizontal (ou consensual), quando o mínimo comportamental exigido dos membros de uma sociedade é fixado consensualmente por eles. Esse modelo deu-se historicamente na Inglaterra a partir do final do século XVIII, com a adoção da tolerância religiosa. Se todas as crenças eram válidas, não existiria nenhuma Igreja que fosse privilegiada para pautar a moral social. Decorreu daí que a moral social somente poderia ser fixada por consenso. Essa moral social consensual seria a única base possível para o exercício da autoridade racional, na forma em que Weber tematizou esse tipo ideal de dominação no seu ensaio intitulado A política como vocação [cf. Weber, 1993]. A prática verdadeira da democracia implica a consolidação, na sociedade, de uma moral social consensual.
A moral de responsabilidade consiste em agir calculando o resultado que advirá, para a comunidade, da ação executada. É o ideal que deve pautar, no sentir de Max Weber, a ação dos políticos, que devem sempre calcular, nas suas ações, as conseqüências que das mesmas decorrerão para as comunidades onde eles exercem o poder. Dos políticos nós queremos cobrar duas coisas, no que tange ao seu comportamento: que preservem a dignidade do cargo e que cumpram o que prometeram aos seus eleitores. Imediatamente não será cobrado deles o que atinja o seu foro íntimo, salvo se isso tiver conseqüências na prática governamental ou representativa.
Um exemplo dessa expectativa, presente na sociedade, é a valoração altamente positiva que os historiadores franceses têm em relação a Napoleão Bonaparte, que conseguiu tirar a França do redemoinho revolucionário, em que pese a sua ambição e as suas ambigüidades morais no terreno particular. Um contraexemplo dessa expectativa seria o do juiz carioca que, em meados dos anos oitenta, aprovou, em plena inflação galopante, liminar que castigava os usuários com aumento intolerável no preço das passagens, tendo dado ensejo a graves distúrbios populares, no centro do Rio, nos quais foram incendiados mais de 20 veículos. O juiz, ao que consta, era um bom sujeito, pai exemplar, mas péssimo homem público, pois quando entrevistado pela TV afirmou mais ou menos o seguinte: "nunca imaginei que uma liminar fosse causar tanto tumulto", tendo se revelado absoluto desconhecedor das conseqüências sociais adversas que se seguiriam à sua infeliz decisão.
3) Conceitos básicos acerca dos valores e da pessoa
Quando agimos seguindo a voz da nossa consciência, não nos pautamos por normas exteriores a nós (que constituem o Direito), mas por uma regra de conduta interna, à qual nos sentimos obrigados. Se a desobedecermos, poderemos ocultar isso dos demais, mas não de nós mesmos. Sentimos um desconforto íntimo que chamamos de "remorso". Vamos centrar a atenção na forma em que se dá essa voz da nossa consciência.
Immanuel Kant, como já foi dito, dedicou a sua obra intitulada Fundamentação da Metafísica dos Costumes [cf. Kant, 1973], ao estudo da forma em que opera em nós a voz da consciência moral. Tradicionalmente a consciência moral alicerçava-se na religião. Mas, no século XVIII, Kant considerava que era necessário fundamenta-la racionalmente, em decorrência do fato de começarem a aparecer incrédulos. Ora, perguntava o filósofo alemão, se a moral continuasse a se fundamentar na religião, não existindo esta para algumas pessoas, tudo seria permitido para elas.
Kant considerava, de outro lado, que a razão não é suficientemente capaz de guiar com segurança a vontade no que concerne ao seu objeto (a ação). Supunha que um instinto natural a guiaria de forma mais segura. Se a razão não é uma faculdade que possa exercer influência sobre a vontade, a sua verdadeira função consiste, no que tange à ação, em encontrar uma vontade boa em si mesma (ou seja, sem o propósito de usá-la como meio para atingir qualquer outro fim). Para Kant, uma ação cumprida por dever tira seu valor moral não do fim que por ela possa ser alcançado, mas da máxima que a determina. Distingue máxima de lei, entendendo pela primeira o princípio subjetivo (a representação da lei), enquanto a segunda serviria também de princípio prático se a razão tivesse plenos poderes sobre a ação. O valor moral da ação, segundo Kant, não reside no efeito que dela se espera, mas da obediência a um princípio geral que se formula deste modo: "que eu possa também querer que minha máxima se torne lei universal".
Kant considera que é possível encontrar o princípio supremo da moralidade sem apelo à experiência. Sendo o homem um ser racional, ele é o único que se acha em condições de agir segundo a representação da lei ou segundo princípios. A representação de um princípio objetivo é denominada por Kant de mandamento e a sua fórmula chama-se imperativo. O imperativo moral é único e recebe o nome de imperativo categórico, sendo a sua fórmula a seguinte: "Procede unicamente segundo aquela máxima, em virtude da qual possas querer que ela se torne uma lei universal". Dessa fórmula, Kant deduz o seguinte imperativo prático: "Procede de maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na de todos os outros, sempre e ao mesmo tempo como fim, e nunca como puro meio". Pode-se sintetizar esse imperativo prático da seguinte forma: "o ser humano é um fim em si mesmo e não pode ser usado como meio" [cit. por Paim, Prota, Vélez, 1997: 146-147].
Se bem é certo que Kant firmou, de forma clara, os fundamentos racionais da moral, os filósofos posteriores passaram a completar a sua concepção, destacando o enraizamento do imperativo moral no contexto da história, bem como da dinâmica espiritual da pessoa. Os passos iniciais para essa complementação foram dados, no início do século XIX, por Hegel [1981], que destacou o caráter histórico da consciência e, por conseguinte, da formulação do código moral (sendo seguido por Victor Cousin e François Guizot na França, no período compreendido entre 1830 e 1850).
A moral ocidental, considerada do ângulo da sua estruturação histórica, ancora em duas tradições (que constituem, também, os pilares da civilização européia, na qual nos inserimos). Essas duas tradições são a judaico-cristã, da qual surgiu o conceito de pessoa, tematizado filosoficamente no século XIII especialmente por S. Tomás de Aquino e que constitui o fundamento hodierno para os direitos humanos. A segunda tradição é a helenística, consolidada em Alexandria no período compreendido entre os séculos III a. C. e III d. C., à luz da qual se consolidou o conceito de lógos ou de razão que liberta o homem das cadeias da ignorância. Immanuel Kant fez, de maneira genial, a simbiose entre essas duas tradições, ao ter traduzido o mandamento fundamental do cristianismo em imperativo categórico passível de formulação racional [cf. Paim, Prota, Vélez, 1997: 13-26].
O ecletismo espiritualista na França, com Maine de Biran, na primeira parcela do século XIX e o espiritualismo do final do século, com Émile Boutroux e Henri Bergson, passaram a aprofundar no entrelaçamento entre a moral racional e a estrutura espiritual da pessoa. No século XX, correspondeu a Edmund Husserl [1986] e a Max Scheler [cf. Hessen, 1980] completar essa reflexão, respectivamente com a fenomenologia e a axiologia. A primeira corrente, sistematizada por Husserl, tentou estabelecer um nexo entre a razão e o mundo da vida, ao passo que a segunda desenvolveu a reflexão em torno aos valores.
De todos esses avanços, surgiu a ética material dos valores de Max Scheler, em que a dinâmica moral da pessoa passou a ser interpretada no contexto dos valores. A formulação do imperativo categórico passou a ser interpretada no seio do ato de valorar, que constituiria, assim, o ato primordial da pessoa. A voz da nossa consciência se estrutura ao redor de valores, que incorporamos ao longo da vida. Em que consistem os valores? São eles entidades ideais, de tipo relacional e hierárquico, que se tornam presentes no seio de uma vivência emocional que é o ato de valorar. A pessoa valora diante de algo que suscita o seu interesse. Os seres humanos crescem, na medida em que vão criando, ao seu redor, uma teia de ideais que lhes interessam. Esse conjunto de ideais que interessam às pessoas constitui o universo dos valores. Poderíamos parafrasear Descartes (que falou: penso, logo existo), e afirmarmos: valoro, logo existo. Sempre estamos valorando, desde quando acordamos até quando dormimos. Quando o filósofo espanhol Ortega y Gasset dizia "eu sou eu e as minhas circunstâncias", referia-se justamente a esse conjunto de ideais da pessoa, que constitui o seu universo axiológico.
Miguel Reale ilustrou claramente, na sua obra intitulada Pluralismo e Liberdade [Reale, 1963: 60], o estreito entrelaçamento entre valores e desenvolvimento da pessoa, num processo dinâmico em que não está ausente a contradição. A propósito, frisa o filósofo brasileiro: "Nada mais contraditório do que o homem, dada a ambivalência essencial de seu ser pessoal, ora voltado para si mesmo, ora voltado para a sociedade; ora desejoso de estabilidade, ora seduzido pelo movimento; ora preso às amarras do passado, ora projetado liricamente para o futuro; ora impulsionado pelas forças dionisíacas da afetividade, ora sublimado pelas forças apolíneas da razão; sempre vacilante entre a certeza empírica de nexos causais imanentes e os planos encobertos da transcendência. Polaridade do existir, polaridade do valor, num perene equilíbrio instável através do qual se renovam os ângulos e as perspectivas da história, que constitui, sob esse prisma, a experiência filosófica concreta".
Mas no emaranhado de valores que constitui existência do homem, encontramos uma ordem. Há valores positivos e valores negativos ou anti-valores. Há justiça e injustiça, beleza e feiúra, por exemplo. Encontramos, de outro lado, valores superiores e valores inferiores. Temos uma regra de ouro para auferir a posição de um determinado valor na hierarquia dos valores: aquele valor que, compartilhado por muitos, não se esgota, é superior. Inversamente, aquele valor que, compartilhado por muitos, se esgota, é inferior.
Os valores morais constituem o centro do universo axiológico, porque são aqueles que conferem autenticidade à pessoa. O que define uma pessoa como boa é a sua autenticidade. E esta consiste em agir de acordo com a própria consciência, custe o que custar. Todos os outros valores ficam bem estruturados e justificados, quando se alicerçam sobre os valores morais. Quando estes faltam, o universo da pessoa perde sentido.
O processo de assimilação de valores corresponde à educação. Os valores não são assimilados pelas pessoas de forma teórica, mas vivencial. Os valores que fundamentam a nacionalidade, por exemplo, somente poderão ser incutidos nas crianças que conhecerem e experimentarem a emoção diante dos próprios heróis. Se num determinado país desaparecerem os exemplos de patriotismo apresentados vivos na figura dos seus grandes homens e mulheres, achincalha-se o sentimento cívico e podemos falar numa crise de valores nessa determinada sociedade.
Miguel Reale chama a atenção para a importância da assimilação, no processo educacional, dos valores que constituem a tradição, a fim de habilitar as novas gerações para a criatividade, a partir do legado dos antepassados. A respeito, afirma o filósofo brasileiro: "Preparar para a aventura da vida, não pode, porém, significar (que) se deva esquecer o valor do que se converteu em constantes axiológicas, ou invariantes de estimativas que representam as colunas da tradição, compreendida como memória da história e, tanto como esta, aberta a novas conquistas de bens a serem memorizados e conservados. Se se pensasse que a cultura é, concomitantemente, amor de aquisição de novos bens, ligado ao amor dos bens já conquistados, a Pedagogia atual volveria a dar mais atenção aos valores da memória, cada vez mais eclipsados pelos propósitos de só educar para a transformação do mundo e a aventura existencial" [Reale, 1977: 105].
Decorre desta reflexão a importância que no mundo de hoje tem a educação para a cidadania, que consiste na assimilação, por parte das novas gerações, dos valores que fundam a nacionalidade e do sentimento de patriotismo. Torna-se imprescindível, a esta altura, analisar qual é o conjunto de valores que, no seio de uma determinada sociedade, estão sendo assimilados pelas novas gerações. Isso corresponde a discutir os modelos de moral social que imperam numa determinada comunidade. Poderíamos nos perguntar, a esta altura, quais são os modelos de moral social que foram se sedimentando na história da cultura brasileira.
4) Modelos de moral social na cultura brasileira
Toda sociedade que aspire ao amadurecimento democrático precisa discutir a questão da moral social. Esta discussão, no seio da cultura brasileira, tradicionalmente foi atribuída a instâncias verticais, encampadoras do poder de decisão sobre os cidadãos. Tais instâncias, na nossa história cultural, polarizaram-se ao redor de quatro grandes núcleos: família patriarcal, Estado, mídia e Igreja. Em torno a essas forças centrípetas consolidaram-se os modelos de moral social. Vamos identificar neste item tais modelos e discutir a sua validade, em face dos requerimentos hodiernos do ideal democrático que é, sem dúvida, o grande desideratum da sociedade brasileira.
Nove modelos de moral social podem ser identificados na nossa história cultural: de saber de salvação, pombalino, castilhista-getuliano, messiânico-populista, salvador militar, patrimonialista, estetizante, totalitário e consensual. Analisaremos cada um deles, destacando a relação que possuem com os núcleos de poder social ao redor dos quais se consolidaram (família patriarcal, Estado, mídia, Igreja). É importante salientar, entretanto, que tais modelos não constituem categorias estanques nem reificações concretas, se tratando, melhor, de tipos ideais encontradiços, muitas vezes, entrelaçados na complexa realidade social. Assim, por exemplo, os modelos messiânico-populista, salvador militar e patrimonialista acham-se tradicionalmente geminados nos vários tipos de caudilhismo em que a nossa história é particularmente rica.
Especial atenção dedicaremos à análise do modelo consensual, pelo fato de ser ele, hodiernamente, o único que garante a completa institucionalização da democracia no Brasil, superando os vícios do patrimonialismo e do democratismo.
O modelo do “saber de salvação”.- No período colonial estruturou-se a concepção de moral social chamada por Luis Washington Vita [1968: 17-18] de “saber de salvação”. Consistia ela na convicção de que o homem está na terra como “passando uma noite ruim numa pousada ruim”, segundo as palavras da mística espanhola Santa Teresa de Ávila. Se o que interessa é a salvação da alma, se não somos mais do que “um vil bicho da terra e um pouco de lodo”, segundo a expressão de Nuno Marques Pereira [cf. Moog Rodrigues, 1979] pouco interessava, logicamente, este mundo e a organização racional do convívio político. A "res publica” ficava nas mãos de Deus, destino que nos séculos XVII e XVIII concretizou-se no absolutismo alicerçado em razões religiosas. Sem dúvida que o ideal monástico da fuga do mundo, apregoado no Brasil por Nuno Marques Pereira no seu Compêndio narrativo do peregrino da América [in: Moog Rodrigues, 1979] levava a reforçar o poder absoluto do monarca.
Em que pese o fato dessa proposta ter sido formulada no período colonial, não podemos deixar de reconhecer a sua presença nas propostas teocrático-moralizantes de tradicionalistas inspirados no passado medieval, como Plínio Correia de Oliveira. A inspiração ética do tradicionalismo insere-se, quando aplicada à política, no contexto do pensamento anti-utópico descrito por Mannheim [1966]: a proposta dos tradicionalistas é a negação das utopias perseguidas pelos progressistas [cf. Cordi, 1984; Macedo, 1977]. Como uma das idéias-chave destes sempre foi a valorização da razão e da liberdade individual, os tradicionalistas defendem a tutela da tradição sobre o indivíduo [cf. Vélez-Rodríguez, 1978: 85-112]. No caso de Plínio Correia de Oliveira, fundador e primeiro ideólogo do movimento Tradição, Família e Propriedade, essa tutela estabelecer-se-ia mediante uma volta ao passado medieval, quando a Igreja controlava a consciência das pessoas. A moralidade da "res publica" estaria garantida quando voltássemos a adotar uma estrutura de "cristandade", com a Igreja exercendo o controle sobre os costumes, com a ajuda de "ordens militares" como os Templários.
O modelo pombalino.- A essência das reformas efetivadas em Portugal por Sebastião José de Carvalho e Melo, Marquês de Pombal, consistia na "aritmética política", que segundo Antônio Paim [1978: cap. I; cf. 1982] baseava-se em dois princípios: o Estado, convertido em empresário e possuidor da ciência aplicada, garante a riqueza da nação; em segundo lugar, compete ao Estado, presidido pelo déspota ilustrado, regular a moral dos cidadãos e a ordem social e política.
A questão da moralidade (tanto a privada quanto a pública) era, portanto, função do Estado que, numa concepção hegeliana avant la lettre ganhava a caraterística de ente moral. A problemática moral escapa, conseqüentemente, do foro individual ou da iniciativa de grupos sociais, para se situar no terreno do Leviatã que, segundo se supõe, conseguirá garantir a moralidade pública e a ordem social. As reformas efetivadas pelo Marquês tiraram da Igreja as funções educativas e de controle direto sobre os costumes, para colocá-las sob o império do Estado, num contexto de galicanismo eclesial, ou de cooptação do poder espiritual pelo temporal.
Convém lembrar que a geração que fez a Independência formou-se na Universidade pombalina [cf. Barretto, 1973] e, graças a isso, a idéia estatizante que inspirava a moralidade pública, entrou a formar parte essencial do patrimônio cultual brasileiro. Não foi somente a tendência ao empreguismo orçamentívoro que o Brasil herdou do ciclo pombalino, mas também a idéia, fortemente enraizada na cultura política, de que a questão moral não é incumbência do indivíduo, mas que é função exclusiva do Estado.
Essa passagem da questão moral do âmbito individual e social para o estatal, produziu, no Brasil, um fortalecimento muito grande do autoritarismo. Quando a tendência centrípeta e estatizante do cientificismo pombalino encontrou-se com a filosofia comteana, na segunda metade do século XIX, deu ensejo à forma autoritária e moralizadora do positivismo que empolgou os próceres da República, com Benjamim Constant Botelho de Magalhães à testa. Plantada no terreno fértil das Faculdades de Direito, essa tendência formou várias gerações de advogados republicanos, inspirados (como Júlio de Castilhos, por exemplo), no mais ardente jacobinismo moralizador [cf. Vélez-Rodríguez, 1980; 1994a; 1994b; 1994c].
À sombra do estatismo pombalino encontrou refúgio um sub-modelo de moral social, que tinha se desenvolvido na cultura ibérica ao longo dos séculos XV e XVI e que foi identificado por Américo Castro [1950; cf. Jaramillo Uribe, 1974] e por Oliveira Viana [1958]. Trata-se do sub-modelo que identifico como "ética do atalho" ou do "não trabalho" e que consiste no preconceito em face do trabalho produtivo, considerado como castigo pelo pecado original, e que conduz ao ideal da apropriação "heróica" da riqueza na guerra santa contra o infiel e à identificação do trabalho como atividade de párias e não de senhores. Tanto a cultura espanhola quanto a portuguesa, no período dos descobrimentos e da colônia, estiveram profundamente enraizadas nesse complexo cultural, que encontrou formulação prática na idéia do Estado-empresário, guindado por Pombal à dignidade de demiurgo produtor de riquezas. A mediação estatal libertava o homem ibérico do castigo do trabalho produtivo e garantia a posse das riquezas produzidas pelo Pai-Estado. Em trabalhos anteriores [cf. Vélez-Rodríguez, 1985; 1994d] tenho identificado esse sub-modelo de "ética do atalho" como fonte culturológica do fenômeno da corrupção, estreitamente vinculado ao "complexo de clã" ou "espírito de patota".
O modelo castilhista-getuliano.- Como continuadora do modelo estatizante pombalino, a ditadura castilhista (iniciada no Rio Grande do Sul por Júlio de Castilhos, consolidada ali por Borges de Medeiros e continuada, em nível nacional, por Getúlio Vargas), constituiu eficaz reificação do espírito hobbessiano no Brasil. O modelo da ditadura castilhista alicerçava-se em dois princípios: de um lado, na busca da regeneração moral da sociedade a partir de uma intervenção autoritária do Estado; de outro,  na legitimação dessa presença estatal mediante o apelo à ciência, no contexto do princípio comteano de que "o poder vem do saber" [cf. Vélez-Rodríguez, 1980 e 1994c]
Castilhos revelou-se mais autoritário que o próprio Comte. Se bem é certo que a "física social" do filósofo de Montpellier ensejava uma visão determinista do homem como destaca com propriedade Stuart Mill [1972], o regenerador francês não caia, no entanto, no estatismo. Chegar-se-ia à ordem social e política, no seu entender, mediante um processo pedagógico e moralizador, efetivado pacificamente por uma elite de cientistas e apóstolos da humanidade, que tentaria mudar as mentes e os corações a partir de uma pregação desinteressada. Já o gaúcho Júlio de Castilhos acreditava diretamente no poder do Estado que, consolidado bismarkianamente com mão de ferro, imporia a ordem social e política de forma compulsória.
A questão da moralidade pública, tão apregoada pelos castilhistas e tão vivida por eles no seu ideal de "reino da virtude" [1] seria incumbência do Estado. O ditador, supremo legislador, era o grande centro de moralização da sociedade. Os castilhistas tornaram realidade a idéia do Estado artífice da revolução moralizadora que, numa visão antecipada do leninismo, os socialistas portugueses (Oliveira Martins e Antero de Quental) tinham concebido, em fins do século XIX.
O modelo getuliano alargou, modernizou e viabilizou tecnocraticamente o modelo castilhista. Dois princípios guiaram a estruturação do Estado autoritário e modernizador de Vargas: de um lado, o do equacionamento técnico dos problemas; de outro, o da alergia antidemocrática, concretizada no slogan de inspiração castilhista: "o regime parlamentar é um regime para lamentar". A questão da moralidade pública foi reduzida por Getúlio a simples problema técnico, que deveria ser equacionado pelo Estado autoritário, com o auxílio dos conselhos técnicos integrados à administração [cf. Vélez-Rodríguez, 1982].
O modelo messiânico-populista.- Este modelo da moral social brasileira está profundamente enraizado na cultura, pois foi herdado da tradição sebastianista portuguesa. O sebastianismo, na sua essência, corresponde ao que Talmon [1969: 21-140] identifica como um modelo de "Messianismo Político". Originada na gesta de Alcácer-Quibir, quando em batalha contra os sarracenos o rei português dom Sebastião foi morto, a tradição sebastianista desenvolveu-se junto com a crença de que o rei não teria morto, teria se ocultado e voltaria para libertar o seu povo. Essa tradição passou a inspirar boa parte da literatura popular brasileira, especialmente nos remotos e miseráveis sertões do nordeste. Prova dessa rica influência foi elaborada por Euclydes da Cunha [1979], quando relatou as lutas de Antônio Conselheiro conta o governo republicano, no final do século passado. O escritor peruano e prêmio Nobel de literatura, Mário Vargas Llosa deu vida ao relato do sociólogo brasileiro, no seu romance A guerra do fim do mundo [1981].
A corrupção, a exploração, o desespero das massas oprimidas, todos os males que o povo humilde sofre, encontrarão remédio definitivo na gesta histórica de um novo salvador que a Providência enviará. Tal é a essência da crença sebastianista que hoje, como ontem, sobrevive na alma popular brasileira. Prova de que essa crença é, hoje, oxigênio que dá vida à esperança popular, foi a entrevista que José Henrique Nazareth [cf. Fernandez, 1990], um humilde contínuo do palácio presidencial brasileiro, concedeu à revista Istoé em 1990. À pergunta: "O que você espera do presidente Collor?" Nazareth respondeu: "O presidente Collor é como uma missa, que tem o ofertório, a consagração e a comunhão. O ofertório era a campanha, até aí era apenas um pão e vinho comum, sem nada de especial. Mas agora não. Agora a gente fica contrito, de cabeça baixa, e começa a louvar o Deus vivo, já não é mais aquele pão simples, aquele vinhozinho que inicialmente foi oferecido...". Pergunta: - "Agora Collor o que é?" - Nazareth: "Ele é o corpo e o sangue de Cristo, é esse o sangue que vai transformar, que vem a nós como um novo Belém, a terra prometida. Ele é o Messias que vai levar o povo à terra onde vamos comer mel".
Não é necessário destacar o enorme cabedal de paternalismo autoritário que se encerra nessa mentalidade. A duríssima e longa ditadura getuliana, durante as décadas de 30 e 40, bem como o posterior ciclo salvador militar, deram provas suficientes dos extremos de paternalismo e de manipulação popular de que é capaz o messianismo republicano brasileiro. Estamos vivendo, no atual ciclo de sebastianismo protagonizado pelo ciclo lulopetista (que já dura mais de uma década), mais uma versão desse modelo.
O modelo salvador militar.- Juarez Távora, um dos oficiais do Exército que protagonizaram as famosas revoluções tenentistas, ao longo dos anos vinte, revelou, em certa oportunidade, a índole salvadora que assumiram as intervenções militares ao longo do período republicano. Estreito colaborador de Vargas no governo provisório (1930-1934), que se organizou depois da revolução de 1930, procurou um dos assessores jurídicos do governo, o sociólogo Oliveira Vianna, e lhe pediu que elaborasse um modelo de Constituição. Como no modelo apresentado pelo assessor não aparecesse definido o papel dos militares, assim o explicou: "A nossa atitude em política é a de quem observa um banquete. Quando o banquete se converte em rega-bofe, então entraremos com a espada moralizadora" [apud Almeyda, 1956: 184].
As Forças Armadas entenderam dessa forma salvadora o seu papel na política brasileira, ao longo do período republicano: assim foi durante a República Velha (1891-1930), com as chamadas "salvações"; assim foi durante o longo governo getuliano (1930-1945), que se apoiou na jovem oficialidade do Clube 3 de Outubro; assim foi quando Getúlio deixou o poder em mãos do marechal Eurico Gaspar Dutra, depois da Segunda Guerra Mundial em 1945; assim foi em 54,  com a intervenção dos chefes militares que levou o presidente constitucional Getúlio Vargas ao suicídio; assim foi em 64, com a chamada "revolução salvadora".
Não há dúvida, como sugere Alfred Stepan [1975] de que essa concepção salvadora encaixou na praxe do "poder moderador", à qual se acostumaram os brasileiros ao longo de mais de quarenta anos de Império. Desaparecida a figura do Imperador a partir da instauração da República em 1889, continuou presente, contudo, a idéia de que um poder superior ao Parlamento e ao jogo político-partidário deveria exercer uma espécie de tutela sobre a sociedade, a fim de evitar que os interesses privados dos políticos terminassem prevalecendo sobre o interesse público. As Forças Armadas, no sentir de Stepan, passaram a exercer essa função moderadora.
Paulo Mercadante [1978] destaca o fato de que, no cumprimento de sua missão salvífica e moderadora, os militares brasileiros inspiraram-se no modelo weberiano da ética de convicção (baseada na preservação do valor absoluto da honra), e rejeitaram (porque o consideravam oportunista) o modelo de ética de responsabilidade, identificado por Weber [1993] como próprio do homem público, que calcula, nas suas ações, o resultado que delas provirá.  Essa visão salvadora, baseada no código de honra, encontrou primorosa manifestação no final do Império, quando, por causa da chamada "questão militar", o marechal Deodoro da Fonseca desembainhou no Parlamento a espada e exclamou: "a honra do Exército está acima da lei!"
Antônio Paim [1978] lembra que esse sentido da moral de convicção que não admite negociações, fez com que a intervenção militar de 1964 se revestisse de feição autoritária. Esse espírito revelar-se-ia, entre outras coisas, na forma tuteladora como foram entendidos os "objetivos nacionais permanentes" os quais, formulados pela elite militar, passaram a ser interpretados como paradigmas inquestionáveis pelos líderes da ESG.
O modelo patrimonialista.- Nas suas oras fundamentais Oliveira Vianna [1982] destacou um fato fundamental da formação social brasileira: a tendência a confundir público com privado. Não existe claramente definida, na mentalidade do povo, nem na das elites, a linha de demarcação entre interesses familiares e aqueles pertencentes à esfera pública. Parece como se ambas as ordens de interesses coexistissem, de modo indiferenciado, no mesmo universo. Esse fato levou a sabedoria popular a cunhar slogans como "aos amigos marmelada, aos inimigos bordoada"; "aos amigos os cargos, aos inimigos, a lei"; "governar é nomear, demitir e prender"; "é dando que se recebe", etc.
A idéia subjacente a todas essas expressões é a de que a coisa pública é patrimônio familiar para ser distribuído entre consangüíneos, amigos e paniaguados. Nada mais ilustrativo dessa mentalidade do que os "trens da alegria" ou os “mensalões”, com que ocupantes de cargos públicos recompensam generosamente familiares, amigos e “companheiros”. Outro exemplo eloqüente desse espírito privatizante e orçamentívoro é constituído pelas gordas remunerações que, na nossa história republicana, membros dos corpos legislativos aprovam em benefício próprio, fato que levou Simon Schwartzman [1982] a escrever que enquanto a política é, para outros povos, um meio de beneficiar os negócios, para os brasileiros é o grande negócio.
A origem desse espírito privatizante é situada por Oliveira Viana no "complexo de clã", proveniente do latifúndio. A primeira experiência que tivemos como povo, logo depois do descobrimento, foi a da casa grande, presidida pela figura todo-poderosa do "senhor de engenho", autoridade patriarcal amada e temida ao mesmo tempo, que com a "guarda de corp" ao seu serviço, garantia a sobrevivência de clientes, familiares, amigos e paniaguados, perseguindo os seus inimigos até a morte. Em que pese o fato de o Brasil ter-se convertido, a partir dos anos 70, num país predominantemente urbano, a tendência privatizante herdada do complexo de clã é ainda o pano de fundo que inspira a participação política. Seria uma fantasia ignorar hodiernamente essa tendência. Ainda há muito clientelismo e espírito familístico nas nossas estruturas governamentais. À luz dessa mentalidade têm sido “privatizadas”, em benefício de siglas partidárias, conhecidas empresas estatais como a Petrobrás ou a Eletrobrás. O PT, no poder, conseguiu generalizar esse clima de apropriação do bem público pelos espertos militantes, sob a complacência do Executivo e de boa parcela do Legislativo e do Judiciário.
A discussão da moralidade pública passa, necessariamente, pelo caminho da crítica ao "complexo de clã", que afeta a cultura política. Não se pode falar em gestão ética da coisa pública, enquanto a noção de República coincidir mais com a de coisa nossa ou "res privata". José Murilo de Carvalho [1989: 13] escreveu a respeito: "(...) a República fracassou até agora. A proposta republicana, seja no modelo liberal, seja no autoritário, significa sempre participação, reforma social, desenvolvimento da cidadania, da vida pública. De um sistema político que incorpore a população, um sistema que não procure excluir, mas que, ao contrário, procure construir uma nação. A nossa República não tem, nesse ponto, um saldo muito positivo para apresentar". É longa a bibliografia que analisa e critica o fenômeno do patrimonialismo brasileiro. Cf. entre outros, Faoro [1958], Schwartzman [1982], Paim [1978], Vélez-Rodríguez [1984], Meira Penna [1988]).
O modelo estetizante.- Segundo Mário Vieira de Mello [1980] o brasileiro adotou, no terreno moral, um comportamento estetizante. A bondade ou malícia dos atos humanos não se deduz do seu ajustamento, ou não, a um imperativo categórico proveniente da consciência moral, mas da exteriorização, como num palco, dos próprios sentimentos.
A propósito, afirma Viera de Mello [1980: 187]: "(...) De um modo geral (o brasileiro) parece ser, nos nossos dias, um homem que se contempla a si mesmo e que contempla os outros como se o mundo fosse um grande palco e como se a vida devesse estar destituída de sentido, no caso de que não pudesse se constituir como um espetáculo ao qual assistiriam certo número de pessoas assíduas e atentas. Esse traço que se encontra certamente em outros países que, como o nosso, tenham sido submetidos à influência do estetismo, apresenta-se naturalmente na nossa psicologia em graus muito variados indo desde o simples desejo de não deixar passar inadvertido um mérito, uma ação, uma qualidade ou uma intenção louvável, até as manifestações excessivas de um exibicionismo sem pudor ou de um cabotinismo indiferente às exigências mais rudimentares da modéstia. O brasileiro de nossos dias é pouco sensível às qualidades da alma que são menos óbvias, as qualidades que são, por assim dizer, invisíveis. Escapa-lhe completamente o sentido valioso de um gesto de renúncia, de uma palavra não proferida, o valor moral associado à repressão silenciosa de um movimento de egoísmo, de vaidade ou de orgulho. A exteriorização dos sentimentos parece constituir para ele a única garantia de que tais sentimentos existem. Essa psicologia de extrovertidos poderia naturalmente, através de explicações de tipo supostamente científico, ser justificada à luz das condições raciais e somáticas do povo ou climáticas do país. Mas, em verdade, é a compreensão do mundo como um palco a que conduz o brasileiro a uma exteriorização excessiva dos seus sentimentos que, muitas vezes, não é possível levar a cabo sem uma certa falta de sinceridade (...)".
Manifestação concreta desse modelo ético deu-se, a meu ver, no fenômeno do chamado "bacharelismo", ou comportamento estetizante do advogado brasileiro de início de século XX. Rui Barbosa, máxima expressão da advocacia, assumiu, na sua vida pública, a condição de ator, profundamente admirado ou odiado. "Durante muito tempo a imagem de Rui Barbosa - escreve Nelson Saldanha [1979: 164] - representou um símbolo de enorme relevância, tanto para as elites intelectuais quanto para o público comum. Um símbolo que ocasionalmente funcionou ao contrário, com oscilações entre a idolatria e o repúdio. Símbolo do bacharel e do advogado, bem como do orador liberal, do jornalista palavroso, da cultura que chegou a ser chamada de ornamental, Rui Barbosa não foi apenas uma vocação: a sua figura foi promovida pela circunstância, cujos valores e tendências em matéria cultural ele exemplarmente encarnou. O 'ruismo', como adesão de várias gerações ao seu estilo verbal e aos conteúdos que defendeu, foi fenômeno explicável nos quadros da classe média brasileira, fascinada pelo saber e pelas hipérboles. O Rui Barbosa polifacético e versátil correspondeu à dispersão que foi regra entre os intelectuais da época: jornalismo, advocacia, teoria política e, ao mesmo tempo, a vida entre os livros e no gabinete (...)".
O modelo totalitário.- Este modelo consolidou-se ao ensejo da experiência de poder total dos grandes sistemas totalitários comunista, fascista e nacional-socialista. Convém lembrar, inicialmente, que: "O totalitarismo é um fenômeno ocorrido no século XX e, por mais que possa apresentar essa ou aquela semelhança com o absolutismo monárquico ou com os governos tirânicos do passado, tem na verdade características próprias que o singularizam. Assim, até onde podemos conhecer as estruturas estatais antigas e modernas, nenhuma delas conseguiu o poder total e absoluto alcançado pelos Estados totalitários contemporâneos. Estes lograram a proeza de quebrar todos os laços de solidariedade entre seus súditos, transformando-os em massa amorfa. A oposição torna-se episódica, sem despertar qualquer interesse popular" [Paim, Prota, Vélez, 1997: 207]. Em que pese o fato de parecerem indestrutíveis, os sistemas totalitários do século XX vieram por terra, ou como resultado de ações armadas contra eles (queda da Alemanha nazista e dos países do Eixo na Segunda Guerra Mundial), ou simplesmente como conseqüência da própria corrupção e ineficiência (o acontecido com a União Soviética, quando da derrubada do Muro em 1989). Semelhante sorte devem esperar os populismos totalitários sul-americanos constituídos nas duas últimas décadas pelos seguidores do Foro de São Paulo, entre os que se destaca o modelo venezuelano da “revolução bolivariana” posto em marcha pelo finado presidente Chávez, da Venezuela. O PT brasileiro pretende, extemporaneamente, se somar a essa tresloucada aventura, mediante a posta em marcha de uma “reforma política” radical que consolide a hegemonia definitiva do Partido dos Trabalhadores.
Qual é o cerne da ética totalitária? O seguinte: a convicção de que os fins justificam os meios. "Posto que pretendo erigir uma sociedade nova, onde haja desaparecido a exploração do homem pelo homem, posso valer-me de não importa que meio para alcançar tais objetivos" [Paim, Prota, Vélez, 1997: 208]. O melhor exemplo da presença desse tipo de modelo na cultura brasileira contemporânea são as ações do MST. Como alegam pretender a realização plena da justiça social, os militantes desse movimento sentem-se justificados para fazer qualquer coisa: invadir terras produtivas, ocupar prédios públicos, seqüestrar funcionários do governo, assassinar opositores se for o caso, etc. Atitude semelhante é a que inspira o chamado "clientelismo armado" das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia, que em nome de um vago socialismo matam populações inteiras, seqüestram, desconhecem os acordos feitos com as autoridades, etc., tudo acobertado pela atitude políticamente correta dos que temem as suas ações ou dos que, acobertados por ONGs de duvidosa moralidade, pretendem "pescar em águas turvas".
É difícil enfrentar diretamente quem está inspirado pela ética totalitária. "O que se pode fazer é reiterar que a moralidade encontra-se nos meios a que recorremos para vê-la realizada e não nos fins que nos movem" [Paim, Prota, Vélez, 1997: 209]. A questão dos meios a serem utilizados para realizar os ideais é essencial, pois sem levar em consideração essa variável, podemos instaurar um critério de ação que termine ferindo a dignidade das pessoas. Não podem ser aceitos meios imorais, que passem por cima da dignidade dos seres humanos. Aceitar isso é deitar por terra toda a moralidade.
O modelo de moral social de tipo consensual.- Antônio Paim foi quem primeiro propôs, no Brasil, este modelo na sua obra intitulada Modelos éticos escrita em 1983 e publicada posteriormente [1992]. Ali, o autor analisa a forma em que foi tematizada, pela primeira vez, a moral social na Inglaterra no século XVII, e segue os passos que ela percorreu ao longo dos séculos XVIII, XIX e XX.  Assim como Kant firmou as bases da moral do dever (chamada por Weber de "ética de convicção"), os moralistas ingleses formularam a moral social de tipo consensual. Na sua essência, ela consistiria no seguinte: nas sociedades modernas, multitudinárias e pluralistas, vários padrões de moral individual (fixados pela família, a igreja, a escola e o convívio social) muitas vezes se contrapõem. Sem que isso signifique relativização da moral individual, cuja essência consiste no imperativo categórico ou consciência do dever moral, tornou-se necessária a formulação negociada de uma moral social, que indique o mínimo que passará a ser exigido de qualquer cidadão. Não é desejável que esse mínimo seja fixado por uma determinada confissão religiosa; poder-se-ia dizer que ela seria privilegiada em face das outras. Também não é desejável que esse mínimo seja fixado de forma imperativa pelo Estado: além de não ser ele ente moral (pois é fruto, como frisa Thomas Paine, de nossas fraquezas e não das nossas virtudes), ficaria seriamente comprometida a evolução democrática da sociedade.
A questão da moral social de tipo consensual remete-nos a outra, igualmente essencial: a necessidade de promover a educação básica, a fim de que a sociedade possa deliberar acerca de seus problemas morais. É claro que numa sociedade de pobres e analfabetos, impor-se-á autoritariamente a minoria ilustrada e poderosa. Isso não significa que a questão da moral social deva ser relegada às calendas gregas, mas que deve haver uma equilibrada evolução da sociedade nos planos econômico, político e cultural, a fim de que tal moralidade, de tipo consensual, seja formulada a contento.
Falar em moral social de tipo consensual no Brasil de hoje - como em qualquer país latino-americano ou do terceiro mundo -, implica em encarar os problemas do estatismo, dos graves desequilíbrios na distribuição da riqueza, do analfabetismo, etc. O primeiro passo, certamente, consiste em chegar à convicção de que não haverá democracia enquanto os nossos povos não tenham a capacidade de fixar, por si próprios, de maneira consensual, a moral social que deve presidir ao convívio político. Sem essa base moral, os decretos e as leis são letra morta. Somente a consciência moral é base para a democracia e para a mudança. Como frisa Michel Crozier [1979], "não se muda a sociedade por decreto".
Na sociedade brasileira, tradicionalmente (ao longo da nossa história quadrissecular) a moral social foi formulada de maneira vertical, quer pela Igreja  - quando ainda prevalecia a cultura agrária -, quer pelo senhor de engenho  -nos remotos tempos da casa grande -, quer pelo Estado autoritário  - até o final do ciclo militar e, de novo, no ciclo lulopetista contemporâneo-, quer pela mídia  - nos tempos recentes da abertura e da atual experiência democrática -. Um fato novo, no entanto, começou a se generalizar no país, notadamente após a Constituição de 1988 a qual, embora carregada ainda de vícios corporativistas e casuístas [cf. Mercadante, 1990], pôde ser chamada de "Constituição cidadã", justamente pelo fato de ter sido concebida a partir da perspectiva do cidadão, não do Estado (como era praxe na nossa tradição constitucional). Esse fato novo é o seguinte: a sociedade brasileira tem tomado, paulatinamente, consciência de que ela própria deve se engajar na discussão e na fixação dos princípios de moral social.
Essa consciência tem-se desenvolvido, com maior intensidade, após o affaire Collor de Mello, que conduziu ao impeachment de um mandatário eleito a partir da pregação do binômio: moralidade-modernidade. Desiludida em face da incapacidade moralizadora do Estado, a sociedade tem acordado para múltiplas e variadas iniciativas que possuem, como base comum, a preocupação com a discussão dos princípios da moral social, bem como com o pressuposto de que ela deve ser formulada consensualmente. Tomara que no atual ciclo de renovado estatismo presidido pelo PT volte a surgir uma sadia reação, em prol da formulação de uma moral social consensual que ponha limites à ação indiscriminada do Estado autoritário.
5) O empresário, os valores morais e a cidadania no Brasil contemporâneo
A figura do empresário como produtor de riqueza tem sido muito desvalorizada no contexto da cultura brasileira, afinada com a mentalidade contra-reformista de ódio ao lucro e aos empreendimentos materiais. Mas não foi apenas a Contra-Reforma que atrapalhou o surgimento, no Brasil, de autêntica mentalidade capitalista. O Estado patrimonial, orçamentívoro e centralizador tem, na nossa história, boa parcela de responsabilidade. Ser empresário era, para a mentalidade ibérica dos séculos XV e XVI, estar com a cabeça a prêmio. O Rei, "mercador de mercadores" em Portugal, segundo a acertada expressão de Lúcio de Azevedo [1978], não admitia concorrentes. Max Weber [1944] tem demonstrado que da dinâmica do patrimonialismo decorre essa caraterística.
Um poder patriarcal omnímodo não tolera poderes paralelos. Estes foram, certamente, muito fortes na parte da Europa que conheceu o Feudalismo, tendo decorrido dessa luta entre interesses diferentes, a diversificação da sociedade em classes, o confronto entre estas e o surgimento do Estado a partir de um contrato entre as mesmas. Mas, no contexto patrimonialista que vingou na Península Ibérica e, por extensão, na América Latina, as coisas ocorreram de forma diferente. Entre nós, constituiu-se um Estado mais forte do que a sociedade, administrado ciosamente por estamentos que não toleravam poderes sociais concorrentes. Consequentemente, a sociedade não se diversificou e todo mundo ficou pendurado do Estado empresário. E o Brasil não achou o rumo para o seu desenvolvimento.
São inúmeros os testemunhos acerca da ausência, no Brasil, de uma autêntica mentalidade capitalista, que favoreça o desenvolvimento econômico. Ao passo que ser rico, num país desenvolvido como os Estados Unidos, é símbolo de vitória e de preeminência social, o rico, no Brasil, se esconde ou por medo a ser perseguido pelo Estado orçamentívoro, ou porque acha que será assinalado como causa da pobreza. A propósito, pesquisa desenvolvida pela Revista Exame mostrava que ninguém assume entre nós que é rico, preferindo se mimetizar na classe média [cf. Ferreira, 2000: 38-39]. Isso, aliás, constitui hábito cultural decantado na sociedade brasileira, em longos séculos de perseguição contra quem ostentasse, perante o Estado patrimonial, sucesso econômico. Primeiro, as vítimas foram os judeus e os cristãos novos. Logo, os empresários, aqueles que conseguem produzir riqueza. O interessante de tudo isso é que a figura do político, como aquele que utiliza o poder para enriquecimento próprio, não foi exorcizada da nossa cultura.[2]
A causa do nosso secular atraso consiste, sem dúvida, nessa hipertrofia do Estado sobre a sociedade e na falta de estímulos de tipo cultural, (e a ética do trabalho é um destes), para a livre iniciativa e a definitiva consolidação da economia de mercado. Os inimigos do nosso desenvolvimento não são exógenos, como pretende a chocha retórica nacionalista. Valham aqui as palavras de Roberto Campos: "Nunca aderi ao discurso de denúncia em relação aos agentes externos - imperialismo e capitalismo - pois sempre achei que os nossos demônios eram internos. Descobri o inimigo: somos nós mesmos, como se diz na fábula de Pogo. E cedo me desiludi do paternalismo governamental. Em nosso assistencialismo demagógico os assistentes se dão melhor que os assistidos. O gasto social no Brasil é uma sucessão de ralos burocráticos. Assim o atestam o péssimo estado da educação pública, o desastre no sistema de saúde e as humilhações impostas à clientela da previdência social. Cada vez mais me convenço da terrível verdade do que dizia o liberal mexicano Octavio Paz: O Estado é um pai terrível; na melhor das hipóteses, um ogro filantrópico" [Campos, 1994: 1282].
A Revolução Industrial ensejou uma sociedade dinâmica em que, pela primeira vez na história do homem, disseminou-se o bem-estar material. Surgiram grandes cidades e a situação dos trabalhadores, nelas, tornou-se algo muito difícil, haja vista os testemunhos de romancistas de início do século XIX na Inglaterra, como Dickens, ou de estudiosos das questões sociais, como Marx. Graças aos avanços da medicina e à acumulação de riquezas por parte dos industriais, as cidades melhoraram muito na sua estrutura urbanística, sendo abertos parques e jardins e tendo sido empreendidas obras de esgotamento sanitário. A história de cidades como Londres ou Paris é muito clara a esse respeito, com diversos planos de urbanização e de melhora das condições de vida, ao longo do século passado. Paralelamente, a indústria e a vida urbana aceleraram o surgimento de empresas de prestação de serviços e a propriedade disseminou-se. Os trabalhadores melhoraram sensivelmente o seu padrão de vida, tendo conquistado prerrogativas importantes. Ao mesmo tempo, desapareceram as grandes diferenças até então existentes entre campo e cidade. A agricultura tecnificou-se e as condições de vida no campo melhoraram sensivelmente. No chamado mundo desenvolvido, desapareceram os grandes desníveis na distribuição da renda [cf. Paim, Prota, Vélez, 1999, vol. I: 7-9].
Como o emprego tornou-se, na moderna sociedade industrial, o meio através do qual se garantia o padrão de vida do cidadão, o empresário que criava fontes de trabalho passou a ser muito valorizado. Destarte, em países como os Estados Unidos, todos os anos inúmeras publicações e eventos oficiais e particulares engrandecem a figura do empresário, como aquele que garante o bem-estar das suas comunidades. Contrariamente ao que se supunha no século XIX, a sociedade industrial não se consolidou em todo o mundo. Muitos países permaneceram pobres, como é o caso de Portugal, sendo que agora, com a inserção na Comunidade Européia viu-se obrigado a se modernizar, superando anacrônicos critérios em matéria econômica e social. Pensava-se que o atraso da África decorria da sua condição colonial; mas quando países outrora submetidos ao regime colonial, como os Estados Unidos, Austrália e o Canadá, tornaram-se amplamente desenvolvidos, viu-se que a razão para o atraso africano não era exatamente essa. Tendo-se tornado independentes dos antigos regimes coloniais, os países do continente africano permaneceram, via de regra, no atraso. A Revolução Industrial tampouco aconteceu em todos os países da Ásia, circunscrevendo-se ao Japão e aos chamados Tigres Asiáticos. Os sucessivos e enormes aumentos nos preços do petróleo não significaram, de outro lado, melhores condições de vida para as populações dos países do Extremo Oriente ou da América Latina (como é o caso da Venezuela).
De outro lado, podemos indagar por que razão um país como o Brasil, que no século XVII despontava como uma potência mundial, graças à hegemonia que lhe deu a produção de açúcar, ficou atrelado ao atraso nos séculos subseqüentes, sendo de longe ultrapassado por países (como os Estados Unidos), que estavam notoriamente atrás dele naquele tempo. Muita discussão tem ensejado essa pergunta. Algumas respostas reforçam a nossa situação de complexo subdesenvolvido: somos pobres porque os Estados Unidos são ricos. É uma forma de não responder à questão. Entre outras coisas, porque tal colocação situa-se, anacronicamente, no contexto mercantilista. Nele, os processos de enriquecimento implicam em empobrecimento de alguém, toda vez que se parte do pressuposto de que a riqueza já está feita. Qualquer alteração na posse dela pressupõe, portanto, um processo de soma zero. Se alguém fica rico, é porque tomou de outra pessoa. Ora, a questão tem de ser colocada no contexto macroeconômico, que foi formulado inicialmente por Adam Smith e em cujo seio situa-se a moderna concepção da economia, inclusive a do próprio Marx. Para esse contexto, a riqueza não está feita e pode ser produzida pelo trabalho e o engenho humanos. De forma tal que os ricos não o são porque roubaram dos pobres, mas porque produziram a riqueza.
A questão de fundo é de índole moral e consiste no fato de que entre nós não se solidificou uma ética do trabalho nem uma apreciação positiva dos valores que ensejaram o surgimento do capitalismo: eficiência, produtividade, espírito de empreendimento. Muito pelo contrário, a nossa cultura incorporou os anti-valores da concepção contrarreformista: ódio ao lucro, desinteresse pelas coisas deste mundo, avaliação negativa do trabalho como castigo pelo pecado original. A propósito deste aspecto, é destacado o seguinte no curso intitulado O empresário e a cidadania: "Pretendemos que se proceda a uma discussão mais sofisticada e, com essa intenção, submetemos à meditação dos participantes a questão da persistência, entre nós, dos valores que nos foram transmitidos pela Contra Reforma. Tudo leva a crer que justamente essa persistência explique alguns fenômenos que nem sempre são considerados em conjunto, mas que constituem um todo homogêneo. Temos em vista o desapreço pelo empresário e a simultânea adoração do Estado, de um lado e, de outro, as dificuldades com que nos defrontamos, há cerca de duzentos anos, para implantar as instituições do sistema representativo" [Paim, Prota, Vélez, 1999, vol. I: 9]. 
A mudança somente ocorrerá pela troca de paradigma cultural. Trata-se de substituir o modelo contrarreformista por uma concepção moderna, aberta ao capitalismo e ao desenvolvimento. Isso só ocorrerá através de um amplo processo educacional que deverá levar em consideração dois aspectos: 1) mostrar aos empresários o papel mais ativo que podem assumir para mudar as instituições no Brasil, não promovendo apenas clubes de estudo, mas se organizando políticamente para promover mudanças na legislação, que favoreçam a consolidação da modernidade econômica entre nós; 2) incutir nas novas gerações um conjunto de valores condizentes com a modernidade, o que implicaria a discussão de um novo paradigma de educação para a cidadania. É necessário discutir propostas nesse sentido. Parece que, até agora, as mais agressivas alternativas tem sido assinaladas pelos que pretendem continuar com o nosso subdesenvolvimento tradicional, reforçando um modelo de Estado patrimonial vinculado a propostas estatizantes e socialistas. Uma proposta do ângulo liberal é apresentada na obra Cidadania: o que todo cidadão precisa saber [cf. Paim, Prota, Vélez, 1999a].
Em outras palavras, trata-se de substituir uma ordem de valores tradicionalistas, vinculados à Contra-Reforma e ao desprezo deste mundo, por outra ordem axiológica aberta à modernidade, à produção de riqueza e à promoção do bem-estar material de todos os cidadãos. Sem essa mudança de fundo, de pouco adiantarão reformas na legislação. As novas leis simplesmente não pegarão. A nova ordem de valores deverá expressar a realidade da economia capitalista, que segundo Max Weber caracteriza-se pelos seguintes itens: "1) apropriação de todos os bens materiais de produção como propriedade de livre disposição por parte das empresas lucrativas autônomas; 2) a liberdade mercantil, isto é, a liberdade de mercado em relação a toda irracional limitação; 3) técnica racional, isto é, contabilizável ao máximo e, por conseguinte, mecanizada, tanto na produção como na troca, não só quanto à confecção senão também com respeito aos custos de transporte; 4) direito racional, isto é, direito calculável. Para que a exploração capitalista proceda racionalmente, precisa confiar em que a justiça e a administração seguirão determinadas pautas; 5) trabalho livre, isto é, que existam pessoas, não somente do ponto de vista jurídico mas econômico, (que vendam) livremente a sua atividade num mercado; 6) comercialização da economia, sob cuja denominação compreendemos o uso geral de títulos de valor para os direitos de participação nas empresas e igualmente para os direitos patrimoniais" [Max Weber, História econômica geral, 1923, cit. por Paim, Prota, Vélez, 1999, vol. I: 11].
É evidente que uma ordem de valores morais que responda à realidade econômica que acabamos de descrever, deverá ser muito diferente dos primeiros oito modelos de moral social que foram descritos no item 4 desta exposição. A nova ordem de valores deverá ser um modelo de moral social consensual (formulado, portanto, horizontalmente no seio da sociedade brasileira), aberto à modernidade e à empresa capitalista.
Mencionemos os valores que esse novo modelo deveria comportar: apreço pelo trabalho produtivo, eficiência, racionalidade, apreço pela liberdade e valorização da livre iniciativa. O valor da solidariedade deverá estar presente, mas não da forma em que se faz costumeiramente na nossa cultura, banindo como imoral a produtividade e o lucro. A questão do bem comum é fundamental, mas como expressão da conciliação dos interesses materiais dos indivíduos. Deve ficar claro que não existe interesse público nem bem comum que desconheçam a defesa dos interesses dos indivíduos.
Benjamin Constant de Rebecque, em texto lúcido e clássico do pensamento liberal, deixou clara a relação estreita que existe entre bem público e defesa incondicional dos interesses individuais. Terminaremos esta exposição com a transcrição desse texto, tirado dos Princípios de Política (obra escrita em 1815): "O que é o interesse geral senão a transação que se faz entre os interesses particulares? O que é a representação geral senão a representação de todos os interesses parciais que devem transigir naquilo que lhes é comum? O interesse geral é diferente, sem dúvida, dos interesses particulares, mas não é contrário a eles. Fala-se sempre como se uma pessoa ganhasse o que os outros perdem; o geral não é senão o resultado desses interesses combinados; deles difere como um corpo difere das suas partes. Os interesses individuais são os que mais concernem aos indivíduos; os interesses dos distritos são os que mais concernem a estes. Ora, são os indivíduos e os distritos os que compõem o corpo político; são, consequentemente, os interesses desses indivíduos e desses distritos os que devem ser protegidos. Ao protegê-los a todos, suprimir-se-á de cada um deles o que prejudica aos demais, disso resultando o verdadeiro interesse público, que coincide com os interesses individuais, uma vez que lhes foi tirado o poder de se prejudicarem mutuamente. Cem deputados nomeados por cem distritos de um Estado levam ao seio da assembléia os interesses particulares, as preocupações locais dos seus representados. Essa base é útil a eles: forçados a deliberarem juntos, logo percebem os sacrifícios respectivos que são indispensáveis. Esforçam-se para diminuir a extensão deles, e nisso reside uma das maiores vantagens da forma de sua designação. A necessidade acaba sempre por uni-los numa transação comum, e quanto mais fragmentadas tiverem sido as eleições, a representação consegue um caráter mais geral. Se for invertida a gradação natural, se for colocado o corpo eleitoral na cúpula do edifício, os nomeados por ele deverão se pronunciar em relação a um interesse público cujos elementos desconhecem, (pois) lhes é incumbida a tarefa de conciliar interesses cujas necessidades ignoram ou desprezam. Convém que o representante de um distrito atue como órgão do mesmo, que não abra mão de nenhum dos seus direitos, reais ou imaginários, senão depois de tê-los defendido; que seja parcial na defesa dos interesses de que é mandatário, porque se cada um for parcial nessa defesa, a parcialidade de cada um, unida e conciliada, terá as vantagens da imparcialidade de todos" [Constant de Rebecque, 1970: 46-47].
6) O fenômeno da globalização: pressupostos éticos 
A comunicação a nível mundial é, neste novo milênio, o fato cultural mais relevante a que a Humanidade já assistiu, desde a invenção do Lógos filosófico pelos Gregos. Destacarei neste item a base ético/filosófica desse fato. Para cumprir com este objetivo desenvolverei quatro itens: em primeiro lugar, os paradoxos do início de milênio e o papel desempenhado, em face deles, pela comunicação globalizada; em segundo lugar, a estrutura e a dinâmica da integração mundial via redes; em terceiro lugar, as exigências educacionais dos novos sistemas comunicativos e, por último as bases humanísticas, notadamente éticas, da globalização no novo milênio.

Toda mudança de século aguça a imaginação de líderes religiosos, historiadores, cientistas e do próprio homem comum. Quando se trata da passagem de um milênio para outro, as expectativas se exacerbam. O advento do Cristianismo marcou o início do primeiro milênio. As esperanças messiânicas da unidade religiosa européia marcaram o trânsito do ano 999 para o 1000, com a conversão da Rússia ao Cristianismo em 989. As tendências à globalização da política, da economia e da cultura, marcaram a passagem ao terceiro milênio.

Em face da virada milenar, descortinaram-se dois caminhos: o da ratio e o da fides. Poderia se encarar o novo milênio rationaliter - como dizia Nicolau de Cusa, no início da Renascença - checando à luz da razão, uma a uma, todas as variáveis que se apresentam. Ou poderíamos, diversamente, encarar os novos tempos intellectualiter  - na terminologia do mencionado pensador - à luz da fé no mistério. Não se trata aqui de fazer uma escolha excludente. Ambos os pontos de vista, no terreno que lhes compete, são válidos, conquanto um não pretenda impedir a existência do outro. Provenientes de fontes diversas, fides e ratio podem conviver no homem, respeitando cada uma a sua peculiaridade. Essa síntese dialética era a que constituía a douta ignorância proposta por Nicolau de Cusa. Síntese paradoxal dos contrários, sem a qual o conhecimento humano ficaria incompleto e que o pensamento renascentista soube manter em toda a sua complexidade dinâmica. Lembremos, por exemplo, a singular valorização da magia ao lado da ciência que encontramos no pensamento de Galileu Galilei, ou a dupla vertente representativa proposta por Leonardo da Vinci: a plástica (imago) e a racional (conceito), ambas indissoluvelmente ligadas.

No terreno das expectativas racionais, como se apresentou o novo milênio? Segundo Paul Kennedy [1993], seis tendências gerais puderam ser identificadas nesse limiar: a explosão demográfica; a revolução nas comunicações, bem como no terreno financeiro e no da ascensão da empresa multinacional; a questão da agricultura mundial e a revolução da biotecnologia; a robótica, a automação e a nova revolução industrial; os perigos para o nosso meio ambiente natural e a problemática do Estado nacional.

Poderíamos falar, ao nos referirmos a essas seis grandes tendências, de gravíssimos paradoxos que enfrenta a Humanidade no início de milênio. Façamos um rápido balanço, mesmo que superficial, acerca das momentosas questões que cada uma dessas tendências levantou, destacando o estreito nexo que há entre o equacionamento dos problemas propostos por elas e o fenômeno da comunicação.

Quanto à explosão demográfica [cf. Kennedy 1993: 28 seg.], é necessário destacar a dimensão gigantesca do problema. A população mundial passará dos atuais 6 bilhões de habitantes para 8,5 bilhões em 2025 e 14,8 bilhões em 2075. A aceleração do crescimento demográfico tem aumentado consideravelmente nos últimos sessenta anos  e a previsão é de que continue a aumentar. No período compreendido entre 1950 e 1955, a população do planeta cresceu anualmente numa proporção equivalente ao número de habitantes da Inglaterra (47 milhões). No período 1985-1990 a população mundial cresceu, por ano, numa proporção equivalente aos habitantes do México (88 milhões). No período 1995-2000, estimava-se que a população mundial aumentaria anualmente na proporção do número de habitantes da Nigéria (112 milhões). Se os países quiserem equacionar racionalmente a questão do crescimento populacional, deveriam fazer um grande esforço de esclarecimento dos seus habitantes, no que tange às políticas e técnicas de controle da natalidade. É evidente que, nessa empreitada, os meios de comunicação de massa representavam o mais importante instrumento de que dispunham os governos, especialmente os dos países em desenvolvimento, às voltas com sérios problemas no ensino básico.

No relativo às comunicações, à revolução financeira e à ascensão da empresa multinacional, Paul Kennedy [1993: 45] frisava que o atual fenômeno da economia mundial corresponde à globalização. As empresas multinacionais, estimuladas pela redução do protecionismo e pela decisão dos Estados Unidos, tomada em 1970, de abandonar o padrão ouro e de liberalizar os controles cambiais, firmam-se como os principais atores econômicos neste início de milênio. Em função de um mercado global, as empresas estão sendo levadas a produzir nas regiões do mundo que melhores condições ofereçam. Além de se beneficiarem com as economias de escala, elas passam a se resguardar das incertezas do mercado e das flutuações das moedas. A recessão na América Latina ou na Europa, certamente preocupará menos a uma empresa que tenha penetrado no mercado asiático. Os novos sistemas de teleinformática permitem ao mercado financeiro trabalhar ininterruptamente durante as 24 horas do dia e transferir, em segundos, de um ponto a outro do planeta, enormes somas de dinheiro, de acordo com as necessidades do mercado [cf. Kennedy, 1993: 51 seg.]. Do processo de globalização sairão beneficiadas as nações que melhor se tiverem preparado tecnológica, cultural e politicamente para lidar com as empresas multinacionais e com a atual realidade do mercado mundial. É evidente que, nesse contexto, o acesso à teleinformática será definitivo para os países do Terceiro Mundo se integrar à economia internacional. Para que isso se concretize, eles deverão dar preferência ao alargamento e aperfeiçoamento do ensino básico, bem como à política de abertura tecnológica dos seus sistemas de comunicação.

No relativo à agricultura e à revolução da biotecnologia, é necessário destacar que o modelo atual de produção está esgotado. De acordo com o World Watch Institute, é necessário um aumento na produção de alimentos de 28 milhões de toneladas a cada ano, somente para acompanhar o crescimento populacional. Ora, o ritmo atual de aumento da produção agrícola é de apenas 15 milhões de toneladas por ano. Várias possibilidades são levantadas pelos especialistas, visando a equacionar este grande problema: em primeiro lugar, a criação de estímulos para a transferência dos excedentes agrícolas dos países desenvolvidos para o Terceiro Mundo; em segundo lugar, a multiplicação do volume de terras cultivadas; em terceiro lugar, o aumento da eficiência dos agricultores nos países pobres; em quarto lugar, a adoção sistemática da biotecnologia, que consiste numa técnica que utiliza organismos ou processos vivos "para fazer ou modificar produtos, melhorar plantas ou animais, ou para desenvolver microorganismos para usos específicos" [Kennedy, 1993: 67]. Ora, esse elenco de alternativas exige o desenvolvimento acelerado de conhecimentos e a sua circulação em largas camadas da população que se dedica às fainas agrícolas, especialmente no Terceiro Mundo. Sem um sistema moderno de ensino básico e de teleinformática, será impossível a um país como o Brasil ter acesso às novas tecnologias que aceleram a produção no campo.

No que diz respeito à robótica, à automação e a uma nova revolução industrial [cf. Kennedy, 1993: 81 seg.], pode-se afirmar que, nos dias que correm, assistimos a uma modificação tão profunda como a causada pela Inglaterra no século XVIII, quando da invenção da produção fabril. Assim como a era do artesanato foi substituída pela primeira revolução industrial (que homogeneizou nas cidades um proletariado separado das suas bases rurais), está acontecendo hoje, sob a batuta do Japão, outra revolução igualmente profunda e prenhe de conseqüências sociais: os robôs mandam os trabalhadores para casa, enquanto as máquinas os tinham concentrado nas fábricas.

A partir da utilização sistemática dos robôs de terceira geração (ou robôs inteligentes, capazes de resolver problemas) assistimos, nas empresas japonesas, a uma nova revolução industrial, a chamada por Alvin Toffler [1995: 16 ; 1997: 141-143] de terceira onda, alicerçada na aplicação de conhecimentos muito especializados, bem como na sua transmissão. Neste, como em outros terrenos, beneficiar-se-ão os países que tiverem equacionado o problema do ensino básico e que houverem realizado notáveis investimentos em pesquisa e em tecnologia de comunicações. Além do Japão e dos Tigres Asiáticos, a Europa Ocidental, os Estados Unidos, Austrália e o Canadá estão sem dúvida em condições de aproveitar cada vez mais a robótica. Teremos possibilidades, no Brasil, de chegar a essa tecnologia, com a tendência do Estado a dinossaurizá-lo tudo, notadamente o que diz respeito à democratização do conhecimento?

Já no relacionado aos perigos crescentes para o nosso meio ambiente natural [cf. Kennedy, 1993: 95 seg.], não perdeu validade o que tantas vezes foi dito na reunião da Eco 92, no Rio de Janeiro: são gravíssimos os danos causados à natureza pelo crescimento demográfico e pela industrialização. Levando apenas em consideração o período compreendido entre 1950 e 1993, estima-se que o mundo perdeu aproximadamente um quinto de solo arável em terras férteis, um quinto de suas florestas tropicais e algumas dezenas de milhares de espécies vegetais e animais. Isso sem considerar a contaminação das águas e do ar, responsável esta última pelo efeito estufa e pela destruição da camada de ozônio. De novo salta aqui à vista a importância do ensino básico e das comunicações no equacionamento dos problemas ambientais, pois os danos ao ecossistema mundial são causados por todos, ricos e pobres, e a inviabilização da vida sobre a Terra é um risco que afeta à Humanidade como um todo. Consequentemente, a consciência da solidariedade planetária é a condição prévia para qualquer política ecológica de longo alcance. Ora, essa consciência é constituída, fundamentalmente, pela meditação filosófica e pela aplicação das tecnologias de comunicação de massa aos processos educativos formais e informais.

No que diz respeito à problemática do Estado nacional [cf. Kennedy, 1993: 121], em que pese o fato de os governos não possuírem hoje a força de que dispunham em séculos anteriores, devido à crescente internacionalização da política e da economia, é necessário reconhecer, contudo, que o Estado é ainda o mais importante instrumento com que contam as nações para se prepararem a fim de enfrentar os reptos do novo milênio. É evidente que se faz necessário, especialmente nos países do Terceiro Mundo, racionalizar o papel do Estado e limitar o seu tamanho, reduzindo-o àquilo que a iniciativa privada não puder resolver. Mas justamente no cumprimento das suas funções essenciais, uma das quais é sem dúvida a formulação de políticas de desenvolvimento levando em consideração a conjuntura internacional, os Estados precisam hoje de um cabedal crescente de informações, bem como de processos rápidos e eficazes de comunicação com os seus cidadãos, com as agências e as instituições internacionais e com outros governos.

Ao analisarmos os paradoxos do início de milênio, chegamos à seguinte conclusão: a comunicação entre os homens em nível mundial, está na base da busca de soluções aos problemas que enfrenta a humanidade. Esse caminho, aliás, não é novo. Já no século XVII, o filósofo Gottfried Wilhelm Leibniz, em face do paradoxo da atomização cultural da Europa decorrente do abandono do latim como língua franca da cultura, bem como das guerras de religião, da dessacralização do mundo efetivada pela revolução científica e o surgimento das filosofias nacionais expressas em línguas vernáculas, propunha uma linguagem universal que garantisse a comunicação entre os homens.

Segundo Leibniz, há discussões e desentendimentos porque a linguagem usa palavras equívocas, que acobertam sob o mesmo vocábulo conceitos diversos e até contraditórios. O caminho para superar esse impasse seria, para o filósofo alemão, a adoção de uma linguagem matemática, que substituísse as inexatas expressões das línguas vernáculas por símbolos algébricos. "Calculemos, a fim de que nos entendamos", esse era o slogan que Leibniz divulgou na sua obra intitulada De arte combinatória, que constitui a remota origem da lógica matemática. Esta disciplina foi sistematizada, no início do século XX, por Bertrand Russell e Alfred North Whitehead na obra Principia mathematica e constituiu, por sua vez, a base para a elaboração, a partir dos anos 50, da lógica dos circuitos ou lógica binária, fundamento da memória artificial dos computadores. A lógica dos circuitos substituiu por impulsos elétricos os símbolos algébricos propostos pela lógica matemática.

Acontece hoje, graças à telemática (ou informática utilizada nos meios de comunicação), o magnífico fenômeno da integração mundial via redes, que permite ao homem de nossos dias ampliar indefinidamente o horizonte da comunicação com os seus semelhantes, tornando realidade em boa medida o ideal acalentado por Leibniz no século XVII. Essa nova realidade constitui uma autêntica revolução nas comunicações e está tendo insuspeitas conseqüências  nos terrenos do exercício do poder, da economia, da educação e, em geral, da cultura contemporânea [cf. Dorneles e Carvalho, 1994]. Esse novo fato constitui o cerne da terceira onda, que é entendida pelo seu teorizador, Alvin Toffler [1995:16], como "a mudança na relação entre conhecimento e economia".

A mais importante manifestação dessa terceira onda é a Internet, que tem sido objeto de análises recentes do ângulo de como essa tecnologia está mudando os caminhos para os negócios [Verity e Hof, 1994: 38-44]. As origens da Internet situam-se em plena guerra fria. Em 1969 o Pentágono, preocupado com uma possível "decapitação" do sistema de telecomunicações nos Estados Unidos, criou o estratégico programa chamado de Arpanet, que vinculava via telemática quatro laboratórios de pesquisa, dando ensejo a que dezenas de pesquisadores e engenheiros trocassem informações básicas de segurança e testassem formas para tornar essa rede mais ampla e eficaz. Diminuídas as tensões da guerra fria, o sistema se alargou ao resto da sociedade americana e ao mundo, como forma de correio eletrônico que se expandiu vertiginosamente. Em 1983 a rede interligava um milhão de pessoas; em 1994 esse número pulou para 20 milhões e chegou a 300 milhões em 2000. No Brasil, os usuários da rede ultrapassam, hoje, os 100 milhões de internautas.

As possibilidades abertas pela rede são infinitas, no que tange ao correio eletrônico, à participação em grupos de discussão através de chats, às compras em shoppings centers virtuais, ao lazer, à pesquisa bibliográfica e documental, às trocas de informações culturais e práticas, ao ensino e treinamento profissional, à indústria do turismo, à prestação eficaz de serviços de saúde (através dos hospitais virtuais), à agilização dos processos de avaliação acadêmica e de recursos humanos, etc. Até os guerrilheiros das FARC divulgam as suas reivindicações via Internet. E abre-se também a possibilidade para cometer crimes virtuais no terreno do terrorismo, da pedofilia, da prostituição, da chantagem e dos atentados contra o patrimônio e a privacidade das pessoas. Os hackers são considerados hoje, sem exagero, os piratas do mundo virtual.

Nem os filósofos neoplatônicos, que falavam de uma "alma do mundo" ou razão universal, nem Immanuel Kant (que no século XVIII desenvolveu a idéia de eu transcendental para se referir à capacidade da razão de elaborar conhecimentos universalmente válidos), [Cf. Kant, 1985]  nem Georg Wilhelm Friedrich Hegel (que no século XIX elaborou o conceito de espírito absoluto para significar o mesmo fenômeno, destacando a sua natureza histórica) imaginaram que a Humanidade chegaria tão perto da comunicação planetária, no final do século XX. Não é casual que pensadores como Jürgen Habermas [1989] tenham desenvolvido modelos de éticas dialógicas ou comunicativas e que culturalistas como Antônio Paim [1977] falem em moral social consensual, justamente chamando a atenção para o fato de o homem ser, fundamentalmente, um ser que se comunica.

             Conclusão: Bases éticas e humanísticas da globalização.


Tenho destacado nos itens anteriores, em primeiro lugar, de que forma a comunicação entre os homens está na base do equacionamento dos grandes problemas que enfrentamos neste início de milênio; em segundo lugar, tenho salientado a mais importante manifestação da terceira onda, o sistema Internet, que constitui hoje fenômeno extraordinário de comunicação cibernética entre os seres humanos. Foram destacadas, de outro lado, as exigências educacionais dos novos sistemas comunicativos. Concluirei mostrando que sem o fundamento do estudo das Humanidades, não saberemos incorporar plenamente esses recursos tecnológicos.

Os processos cibernéticos (e a telemática é um deles) pressupõem, além das máquinas programáveis (os computadores, que constituem o hardware), um elenco de informações programadas (ou software). Ora, tanto umas quanto outras pressupõem a razão. É evidente que sem homens pensantes os computadores viram sucata. Portanto, formar a razão das novas gerações é garantir a continuidade da teleinformática, bem como a assimilação dessa tecnologia por outras gerações.

Três grandes problemas filosóficos coloca hoje a nova tecnologia da comunicação: a questão da verdade, a do conhecimento a serviço do poder e a tradicional problemática da liberdade em face da tecnologia. Apenas para mostrar a rica gama de questões levantadas, do ângulo da filosofia, por esses problemas, aprofundemos um pouco em cada um deles.

No que tange à problemática da verdade, o mundo virtual tanto pode ser um caminho para o esclarecimento, quanto para a falsidade. A nova tecnologia do ciberespaço é, como diria o velho Parmênides, uma dokounta, ou seja, uma faca de dois gumes, que tanto pode servir ao homem para a sua libertação rumo à luz, quanto para mantê-lo encadeado às sombras da ignorância. Quantos enganos cometem-se diariamente em chats e homepages! Quantos falsos retratos de seres humanos que oferecem (e buscam) carinho! Quanta informação fraudulenta é repassada sem escrúpulo. Quanta falsidade é veiculada pela net! Diríamos que se multiplicou por milhões o risco de ser enganado. Esse fato cria, para o homem contemporâneo, uma situação existencial de desconfiança em face das informações que recebe, o que leva ao usuário da rede a surfar com cuidado. Está presente aqui o rico tema da Sorge que o existencialismo heideggeriano tão pertinentemente desenvolveu, bem como a velha questão da contraposição entre verdade (aletheia) e aparência (dóxa) [cf. Heidegger, 1991: 119-135]. E nem falar dos vírus que os hackers, sem a menor consideração derramam na Internet, com o ânimo anti-ético de omnes nocere ou de prejudicar, indiscriminadamente, a todos. De novo aparece diante dos nossos olhos a velha questão que já tinha sido colocada ao longo do século XX por pensadores os mais diversos, em relação à neutralidade axiológica da tecnologia, carente, por isso mesmo, de um fundamento ético. O compromisso com a busca da verdade deve ser a nossa exigência moral básica ao utilizarmos a rede. O imperativo categórico da transparência, tão bem definido por Kant na sua Paz perpétua [1989], conserva plenamente a sua validez.

No que tange à problemática do conhecimento a serviço do poder, a Internet apresenta-nos hoje um exemplo concreto: a utilização de sofisticadíssimos mecanismos tecnológicos para "sugar" da rede informações confidenciais que interessam às grandes potências, passando por cima da legislação que garante a privacidade das pessoas. É o que revelaram, nos anos 90 do século passado, as denúncias feitas pela imprensa européia acerca da indiscriminada invasão, por parte dos organismos de inteligência de alguns países ligados à Commonwealth (Estados Unidos, Grã Bretanha, Canadá, Austrália, Nova Zelândia), das informações que circulam pela rede no mundo inteiro. Efetivamente o projeto Echelon conseguia clonar, mediante maciça utilização da tecnologia digital, qualquer informação ligada a algumas palavras-chave, que revelariam temas de interesse para a segurança dos países mencionados. Tratava-se de um projeto que visava a utilizar sistematicamente os conhecimentos para finalidades de dominação. Mais recentemente, a divulgação de dados pelo técnico americano Edward Snowden, ex-funcionário da CIA e ex-contratado da NSA revelava um esforço do governo dos Estados Unidos, no sentido de invadir domínios de dados, em vários países, com a finalidade de garantir a segurança estratégica desse país.

Ora, esse fenômeno somente poderia ser compreendido e analisado criticamente em profundidade, à luz da milenária tradição filosófica ocidental. Não foi por outro motivo, senão para desligar o conhecimento dos anseios de poder, que o velho filósofo Sócrates deu a vida, ao criticar, sem meias palavras, o uso politicamente correto da inteligência dos jovens, para manter estruturas de dominação na sociedade ateniense. Esse foi o cerne da briga que contrapôs Sócrates aos seus colegas de profissão, os sofistas, que pretendiam ensinar aos jovens com a finalidade exclusiva de que mantivessem o seu status, mediante os conhecimentos adquiridos. O exemplo socrático talvez fosse mais construtivo do que a saída imaginada por Snowden, no sentido de que, divulgando sem nenhuma intermediação os dados de que dispunha, conseguiria, num mundo complexo como o atual, garantir a liberdade das pessoas.

Já no que diz relação ao binômio liberdade/tecnologia, a questão aparece em primeiro plano, nos debates travados entre os governos e os usuários da Internet, de um lado, e empresas detentoras de tecnologia digital de ponta, de outro. O que se debate nesse caso é até que ponto a tecnologia gerada por essas empresas não obriga o usuário da mesma a ficar atrelado aos produtos que monopolisticamente lhe são oferecidos. Clara discussão ética acerca da liberdade no contexto das relações econômicas, bem como sobre a defesa dos interesses dos usuários e da sua representação política. O que se deduz destes arrazoados é que sem uma base humanística ampla, em que a reflexão filosófica sirva como alicerce fundante da razão, não haverá a mínima possibilidade para uma utilização da tecnologia informática, na Internet, de forma a preservar a liberdade e a dignidade das pessoas.

Durante muito tempo se pensou no Brasil, ao abrigo da ideologia positivista, que o estudo das matemáticas era suficiente para formar a razão dos jovens. No entanto, a experiência de países com longa tradição de cultivo das ciências (como Alemanha, França, Inglaterra ou Estados Unidos), deixou claro que a formação humanística é básica para o desenvolvimento da razão do educando, pressupondo a educação tecnológica essa base. Hegel, na sua primeira aula na Universidade de Heidelberg, em 1816, dizia aos seus alunos que o pressuposto da filosofia (como o de qualquer ciência) é a fé no valor do espírito humano. Eis as palavras com que o mestre alemão descrevia aos seus discípulos a aventura do espírito, franqueada a todos aqueles que cultivarem as Humanidades: "Espero que hei de merecer e conquistar a confiança de todos. De início, só uma coisa exijo: confiai na ciência e em vós mesmos. A coragem da verdade, a fé no poder do espírito é a condição primordial da filosofia. O homem, por ser espírito, pode e deve julgar-se digno de tudo quanto há de mais sublime. Da grandeza e do poder do seu espírito nunca pode formar um conceito demasiado altivo, e animado por esta fé não se negará a desvelar o seu segredo. A essência do universo, a princípio oculta e encerrada, não dispõe de força capaz de resistir à tentativa de quem pretenda conhecê-la; acaba sempre por se desvendar e patentear a sua riqueza e profundidade, para que o homem dela desfrute" [Hegel, 1985: 318].

Referindo-se à importância dos estudos humanísticos ou de história da cultura, o historiador francês Pierre Vidal-Naquet [1992: 27] frisava que "é necessário enraizar os jovens numa tradição, lhes dizer de onde viemos. Essa tradição, bem como o sentido da distância temporal, constituem os dois pontos fundamentais". Foi precisamente por ter-se perdido nas nossas instituições de ensino, sobretudo nas Universidades, o contato dos jovens com a tradição humanística, que o Brasil entrou na crise de identidade que hoje o afeta, conforme lembra Antônio Paim [cf. 1983: 99 seg.].

Assistimos hoje ao fenômeno da globalização econômica, política e cultural. Em escala continental, oferecem-se, hoje, duas opções: a do MERCOSUL, cada vez mais atrelado ao Terceiro Mundo e aos ideais ultrapassados e totalitários da “revolução bolivariana”, e a Aliança do Pacífico, promovida pela Colômbia, o Chile, o Peru e o México, com a finalidade de tender uma ponte entre os dois grandes polos do capitalismo mundial, os Estados Unidos e a China e os países latino-americanos. Qual das duas opções é a melhor para os brasileiros? Onde fica, nesse contexto de integração continental e mundial, a questão da nacionalidade? Sobre quais fundamentos de conhecimento deve ser dada resposta a essas questões? Elas, certamente, deverão ser respondidas levando em consideração os interesses dos cidadãos do nosso país, não apenas as preferências ideológicas de militantes partidários.

O que fica claro no horizonte é que sem uma visão humanística ampla, não haverá resposta satisfatória a essas perguntas. Ela não é hoje problema de reserva de mercado ou de isolamento cultural. Ela é, basicamente, conhecimento dos valores da cultura ocidental e, no interior desta, dos valores que constituem o nosso modo peculiar de sentir e de ser. Mesmo que o Brasil se integre em grandes blocos, ou justamente por isso os brasileiros precisaremos, sempre, de termos consciência dos valores que nos caracterizam. Os estudos de história da cultura ocidental, bem como dos nossos valores, não são simples ornato intelectual, mas questão de sobrevivência como nação.

O pior atentado que alguém pode cometer hoje contra a soberania de um país é renunciar ao estudo das humanidades e dos próprios valores, e fechar esse caminho às novas gerações. Peter Drucker [1993: 211] destacou que o ideal básico da sociedade pós-capitalista é o de pessoa formada ("the educated person"), que contrasta com o ideal cavalheiresco (das sociedades antiga e medieval) e burguês (da sociedade industrial). A respeito, escreve o notável educador norte-americano: "A sociedade pós-capitalista ocupa-se com o conjunto de circunstâncias em que se desenvolve a vida humana, bem como com o trabalho e a aprendizagem. Não se ocupa com a pessoa. Mas na sociedade do conhecimento na qual nos movimentamos, os indivíduos são centrais. O conhecimento não é impessoal, como a moeda. O conhecimento não reside num livro, num banco de dados ou num programa de software; ele somente contém informações. O conhecimento sempre se concretiza numa pessoa; é transportado, criado, aumentado ou improvisado por uma pessoa; é aplicado por uma pessoa; é pensado e esquecido por uma pessoa; usado ou colocado fora de uso por uma pessoa. A passagem à sociedade do conhecimento coloca, portanto, a pessoa no centro. E unicamente fazendo isso é como a pessoa formada propõe novos desafios, novos problemas, novas e insuspeitas questões acerca do conhecimento da sociedade representativa".

"Em todas as sociedades mais antigas -frisa ainda Drucker - a pessoa educada ou formada era um ornato. (...) Mas na sociedade do conhecimento, a pessoa formada é o emblema da sociedade; é o símbolo da sociedade; é a porta estandarte da sociedade. A pessoa formada é o arquétipo social, para usar a palavra dos sociólogos".
Três integrantes do Instituto de Humanidades. (Da esq. para direita): Arsênio Eduardo Corrêa, Antônio Paim e Leonardo Prota. (Tiradentes, MG., Setembro de 2009). 


Bibliografia
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Quatro figuras da Filosofia Luso-brasileira contemporânea: (de esq. para direita): Antônio Paim, Leonardo Prota, Ricardo Vélez Rodríguez e José Esteves Pereira (Porto, Novembro de 2007).





[1] Deve-se reconhecer, com justiça, o fervor quase religioso dos Castilhistas na administração dos dinheiros públicos.
[2] Como frisa Simon Schwartzman, ao passo que a política é, para outros povos, um meio de melhorar os negócios, para o brasileiro ainda é o grande negócio [cf. Schwartzman, 1982].

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