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sexta-feira, 7 de março de 2014

O CICLO MILITAR E A TRADIÇÃO CIENTIFICISTA

Introdução

Este ensaio aparece publicado na edição de Março de 2014 da Revista do Clube da Aeronáutica  com o título de: "O ciclo militar no contexto da tradição cientificista brasileira". O autor expressa o seu agradecimento ao cel. av. Araken Hipólito da Costa, editor dessa prestigiosa revista.

Há cinquenta anos eclodia a intervenção militar de 64. Embora cogitada inicialmente como uma correção de rumo na desastrada ladeira por onde tinha enveredado o populismo janguista (na trilha das “intervenções salvadoras” típicas da nossa tradição republicana), o regime castrense terminou durando mais do que se imaginara inicialmente e acabou por desgastar as Forças Armadas, em governos de força que se estenderam ao longo de duas décadas.

Este é um período suficientemente longo como para imprimir num país diretrizes novas e, também, para cometer erros conjunturais e estratégicos. Ora, ambas as coisas precisam ser analisadas, notadamente no ambiente universitário, que deve ser, nas sociedades hodiernas, o celeiro de idéias novas, bem como o filtro por onde passam os acontecimentos à luz crítica da razão, a fim de que, com esse patrimônio de ilustração, se beneficiem as gerações futuras.

No caso da avaliação do regime militar, não foi isso, exatamente, o que aconteceu no Brasil. As Universidades, especialmente as públicas, controladas a partir da abertura democrática pela esquerda raivosa, terminaram fazendo da memória de 64, ato indiscriminado de repúdio aos militares e às diretrizes por eles traçadas, fazendo com que uma cortina de fumaça terminasse pairando sobre essa importante etapa da nossa vida republicana.

As coisas não mudaram com a chegada dos esquerdistas ao poder, notadamente no ciclo do lulopetismo. A criação, pelo atual governo, da “Comissão da Verdade” visando a uma “omissão da verdade”, e que coloca sob os holofotes a repressão praticada pelo Estado sem, no entanto, relembrar nada do terrorismo praticado pela esquerda radical, está a revelar que pouco se progrediu nesse terreno.  A finalidade prevista com a tal comissão é clara: torpedear a “Lei de Anistia”, que abriu as portas para a volta dos exilados e que firmou o início da abertura democrática.
Gostaria de destacar três coisas nesta introdução. Falemos inicialmente dos desacertos de 64. A grande falha consistiu, a meu ver, no viés autoritário do regime militar, decorrente do fato de que os profissionais das armas não estão habilitados para a chefia do Estado, toda vez que são preparados, como lembrou com propriedade o saudoso amigo Paulo Mercadante (1923-2013) em Militares e civis: a ética e o compromisso [1], para defender com coragem e eficiência os interesses soberanos da Nação, à luz da ética de convicção weberiana, que se caracteriza pela fidelidade aos princípios, sem que haja preocupação com o resultado da ação. Falta aos nossos homens de armas a sensibilidade da ética de responsabilidade, que exige que o governante calcule, nas decisões tomadas, as conseqüências que decorrerão para a comunidade, sendo esta, segundo Weber, a ética dos políticos.
Em segundo lugar, anotaria mais este ponto: por formação, os militares estão preparados para gerir a unanimidade decorrente da hierarquia e da obediência do profissional das armas. Afinal de contas, ninguém realiza assembléias no front, quando as balas silvam sobre as cabeças dos soldados. Eles cumprem as ordens dadas pelos seus comandantes, sem discussão. Ora, a política é o reino do dissenso, em decorrência da nossa natureza racional essencialmente dialética, condição já apontada por Aristóteles (384 a. C. – 322 a. C.) na sua Política. A organização da comunidade politicamente estruturada deve ser pensada como construção de consensos a partir do dissenso, não como eliminação pura e simples deste. Esse é o difícil trabalho dos homens públicos, que precisam se armar de dose infinita de paciência, a fim de conciliar os interesses dos seus representados, os cidadãos que votaram neles.
Adiantando-me ao que tratarei no último item desta análise, anotemos sumariamente os aspectos positivos do regime de 64: a intervenção militar evitou que os comunistas tomassem o poder instaurando uma ditadura do proletariado, com o banho de sangue que isso provocaria num país de dimensões continentais como o Brasil. A opinião pública sabe que o que a extrema esquerda buscava era isso. O Brasil não teve a sua “República das FARC”, com que se debate até os dias de hoje o governo colombiano, depois de meio século de guerra, graças à corajosa intervenção das Forças Armadas, notadamente do Exército, que aniquilou a possibilidade de um território controlado pelos terroristas, sendo esta a finalidade perseguida pela guerrilha do Araguaia. Jovens e inexperientes militantes foram criminosamente colocados na linha de fogo pelas lideranças comunistas. Este aspecto, aliás, é esquecido pela tal “Comissão da Verdade”.
No que tange à economia, o Brasil transformou-se, ao longo do ciclo militar, em país industrializado. Consolidou-se a indústria petroleira e desenvolveu-se a petroquímica, bem como a siderurgia e a fabricação de maquinaria pesada. A engenharia brasileira deu um grande salto para frente, com as obras públicas que pipocaram pelos quatro cantos do território nacional. Acelerou-se, por outro lado, a indústria bélica (em que pese o fato da falta de continuidade de uma política para o setor, como tem sido analisado oportunamente por Expedito Bastos, do Centro de Pesquisas Estratégicas da UFJF). Efetivou-se, com o fantástico desenvolvimento das telecomunicações e com a política de abertura de estradas, a denominada por Oliveira Vianna (1883-1951) de “circulação nacional”, unindo ao centro nevrálgico do poder as regiões mais afastadas e ligando estas às mais importantes áreas metropolitanas. O regime militar tinha um propósito, em que pese o viés autoritário evidentemente criticável. Mas hoje, trinta anos após os governos militares, carecemos de um projeto estratégico que nos indique para onde irá o país nas próximas décadas. Esse é o grande desafio: costurarmos uma proposta estratégica, no contexto da democracia que conquistamos, superando o vezo tutorial que empanou o regime de 64.
Mas isso só poderá ser feito se identificarmos, de forma pertinente, as origens culturológicas em que ancorou o regime modernizador ensejado pelos militares nos anos sessenta do século passado. Para isso, projetarei o ciclo de 64 sobre o pano de fundo da nossa tradição cientificista. Anotemos, de entrada, que o fenômeno do cientificismo consiste em identificar a racionalidade com um determinado estágio da ciência (o correspondente à sua dimensão aplicada), que passa a ser considerado como absoluto, pelo fato de ter sido colocado a serviço do Estado. Tal fenômeno, no seio da cultura luso-brasileira, encontrou formulação inicial no ciclo pombalino. A aritmética política apregoada pelo marquês de Pombal, Sebastião José de Carvalho e Mello (1699-1782), constituiu o arquétipo que inspirou, nos dois séculos subseqüentes, os mais destacados processos modernizadores sofridos pela sociedade brasileira. Afinal de contas, como frisa Antônio Paim, “O positivismo brasileiro tornou-se o desdobramento natural da tradição cientificista iniciada sob Pombal. Mais que isto: transformou-se no fundamento doutrinário do autoritarismo republicano e paulatinamente enquadrou o marxismo a partir de 1930. Encarado com essa amplitude, tem uma posição marcante em nossa cultura há cerca de dois séculos” [2].
Pretendo identificar os cinco momentos fundamentais através dos quais se manifestou o fenômeno do cientificismo na nossa cultura. Tais momentos são os seguintes: 1) a aritmética política pombalina; 2) a geometria política de frei Caneca (1774-1825); 3) o poder legitimado pelo saber dos positivistas ilustrados e dos castilhistas; 4) o equacionamento técnico dos problemas de Getúlio Vargas (1883-1954) e da segunda geração castilhista; 5) a engenharia política do general Golbery do Couto e Silva (1911-1987). Concluirei mostrando a atualidade do cientificismo brasileiro e os riscos que dele decorrem para a plena modernização da sociedade.
1)      A aritmética política pombalina

Na segunda metade do século XVIII consolidou-se, em Portugal, a corrente filosófica do empirismo mitigado, que se caracterizava por uma forte critica à segunda escolástica e ao papel monopolizador que os jesuítas exerciam no ensino, bem como pela tentativa em prol da formulação de uma concepção de filosofia que se identificasse com a ciência aplicada.
Duas obras inspiraram essa corrente de pensamento: Instituições lógicas do italiano Antonio Genovesi (1713-1769) [3] e o Verdadeiro método de estudar de Luiz António Verney (1713-1792). [4] O empirismo mitigado foi formulado e desenvolveu-se no contexto mais amplo das reformas educacionais do marquês de Pombal, que visavam a incorporar a ciência aplicada ao esforço de modernização despótica do Estado português. No entanto, ao responder a uma problemática formulada a partir das necessidades do Estado absolutista e não de uma perspectiva que tivesse como centro o homem, o empirismo mitigado não conseguiu dar uma resposta satisfatória aos problemas da consciência e da liberdade, mesmo porque reduziu, de forma simplória, a filosofia à ciência e esta à ciência aplicada. Essa corrente empolgou, no entanto, importantes segmentos da intelligentsia brasileira a partir da vinda da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, em 1808.
A geração de homens públicos que organizou as primeiras instituições de ensino superior era de formação cientificista pombalina. Entre eles, convém mencionar a D. Rodrigo de Souza Coutinho, conde de Linhares (1755-1812), que em 1810 organizou a Real Academia Militar do Rio de Janeiro. [5] Podemos sintetizar nos seguintes pontos a aritmética política formulada por Pombal nas suas observações secretíssimas: a) o Estado empresário, com o auxílio da ciência aplicada, garante a riqueza da nação; b) o Estado, com o auxílio da ciência aplicada, garante a ordem política e a moral dos cidadãos; c) o Estado, ainda com o auxílio da ciência aplicada, garante a formação da elite burocrático-técnica de que precisa. [6]
Considerada a obra reformadora do marquês de Pombal, no âmbito da modernização que incutiu no seio do Estado português, podemos avalia-la como a substituição da crença nas tradições religiosas (até então mantidas ciosamente pela Igreja através das Ordens religiosas e da Inquisição, e que exerciam as funções de sustentáculo do poder patrimonial do monarca), pela crença na validade da ciência aplicada como fundamento do Estado. Configurar-se-ia assim, sob Pombal, uma forma de dominação patrimonialista modernizadora ou, em outros termos, uma modalidade de despotismo esclarecido. Duas realizações destacaram-se no contexto da reforma educacional pombalina: a reformulação da Universidade de Coimbra que, no sentir de Hernani Cidade “foi verdadeiramente a criação de uma nova Universidade” [7] e a organização do Colégio dos Nobres de Lisboa (1761), que correspondeu à exigência de dotar o Estado português de uma elite burocrático-técnica que garantisse a sua modernização, como salientei anteriormente.
Teófilo Braga (1843-1924) frisa que a idéia de criação do Colégio dos Nobres proveio do esclarecido médico português António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), que tinha prestado os seus serviços à Imperatriz da Rússia Ana Ivanovna (1693-1740), como médico e pesquisador no Colégio dos Nobres de São Petersburgo. Em carta dirigida em 1759 ao ministro português, afirma o ilustre médico: “No ano de 1751 se estabeleceu em Paris a Escola Real Militar (...). Em Dinamarca, em Suécia e em Prússia se instituíram e conservaram Escolas militares semelhantes, instituídas depois de poucos anos (...). Parece que Portugal está hoje quase obrigado não só a fundar uma Escola Militar, mas a preferi-la a todos os estabelecimentos literários que sustenta com tão excessivos gastos. O que se ensina e tem ensinado até agora neles é para chegar a ser sacerdote ou jurisconsulto; e como já vimos acima não tem a nobreza ensino algum para servir à sua pátria em tempos de paz nem de guerra”.
Eis aqui, na enumeração feita por Teófilo Braga, a lista das disciplinas que Ribeiro Sanches propunha que fossem ensinadas no Colégio dos Nobres: línguas portuguesa, latina, castelhana, francesa e inglesa; aritmética, geometria, álgebra, trigonometria, seções cônicas,etc.; geografia, história profana, sagrada e militar; risco, fortificação arquitetura militar, naval e civil; hidrografia e náutica; dança, esgrima, manejo da espingarda, equitação e natação. E, além destas disciplinas, filosofia moral, direito de gentes, direitos civil, político e pátrio; economia política do Estado, agricultura geral, navegação e comércio. “Manifestamente – conclui Teófilo – a fundação do Colégio dos Nobres em 1761 foi a realização prática desse pensamento”. [8]
A importância do Colégio dos Nobres foi grande, porquanto constituiu o primeiro esboço da Faculdade de Filosofia baseada no culto à ciência aplicada, que posteriormente deitaria as bases para a reforma da Universidade. Referindo-se à sua proposta, afirmava o médico Ribeiro Sanches que ali “está decretado o ensino da história filosófica, da lógica, da geografia, da cronologia, da história, das matemáticas elementares e transcendentais, da arquitetura civil e militar, da física geral e da experimental, estudos públicos desconhecidos até agora em Portugal”. [9] A idéia cientificista, em síntese, surgira em Portugal, sob o marquês de Pombal, na segunda metade do século XVIII, como alternativa modernizadora que substituiu a crença na tradição religiosa sobre a qual até então assentava o poder patrimonial do Estado. Em que pese o caráter modernizador da reforma pombalina, em nada modificou o esquema concentrado do poder patrimonialista: não surgira, então, da queda do absolutismo teocrático, um regime de democracia representativa, como tinha acontecido na Inglaterra após a Revolução Gloriosa de 1688. Apareceu, assim, como alternativa modernizadora, no seio da cultura lusa, o despotismo ilustrado ou patrimonialismo modernizador, [10] que exerceu forte influxo no desenvolvimento do cientificismo no Brasil.
2)      A geometria política de frei Caneca (1779-1825)
Antônio Paim salienta que as idéias fundamentais do cientificismo pombalino manifestaram-se, ao longo do Império, no Brasil, em primeiro lugar através do radicalismo republicano de frei Joaquim do Amor Divino Rabelo e Caneca, que sustentava poder-se organizar a sociedade em bases puramente racionais. Esse intento modernizador, no entanto, colidia frontalmente com a estrutura patrimonialista de cunho tradicional do Império. Em segundo lugar, o cientificismo pombalino manifestou-se na criação da Real Academia Militar (1810), cujo artífice foi um ex-aluno da Universidade pombalina e do Colégio dos Nobres de Lisboa: dom Rodrigo de Sousa Coutinho (1755-1812), conde de Linhares. A finalidade da Academia consistia em garantir a formação científica de oficiais do Exército e engenheiros. “O currículo da Academia – escreve Antônio Paim – e, através dele, o ideário pombalino, seria preservado ao longo do Império. Outras influências fizeram-se presentes, sobretudo nas Faculdades de Direito e Medicina, como de resto na esfera política. Contudo, no estabelecimento que daria origem à Escola Politécnica, mantinha-se o culto à ciência na mesma situação configurada pelo marquês de Pombal, isto é, nutrindo a suposição de que é competente em todas as esferas da vida social”. [11]  
Mas o cientificismo pombalino, se bem é certo que manifesto paradigmaticamente no pensamento de frei Caneca e no currículo da Real Academia Militar, não se restringiu, contudo, a essas duas variáveis. Devido ao fato de a elite que fez a Independência ter-se formado na Universidade pombalina, o cientificismo passou a inspirar as instituições de ensino superior criadas no Brasil nas primeiras décadas do século XIX. Esse cientificismo traduzir-se-ia no afã profissionalizante que respondia às necessidades do Estado e no cultivo da ciência aplicada, com banimento da pesquisa básica e do saber humanístico. Até mesmo a formação do clero viu-se afetada pela maré cientificista-aplicada: o Seminário de Olinda, fundado em 1800 pelo bispo Azeredo Coutinho (1742-1821) [12], deu grande importância ao conhecimento prático do meio brasileiro, num contexto filosófico herdado de Luiz António Verney, que procurava o aspecto útil da educação.
Não há dúvida quanto ao caráter eminentemente profissionalizante e de serviço ao Estado que marcou as instituições de ensino superior ou de cultura, ao longo do século XIX. [13] Além da Real Academia Militar, inspiraram-se nessa tendência a Real Academia de Marinha (1808), os Cursos Médico-Cirúrgicos da Bahia (1808) e do Rio de Janeiro (1809), os Cursos de Agricultura da Bahia (1812) e do Rio de Janeiro (1814), o Gabinete de Química da Corte (1812) e a Cadeira de Química da Bahia (1817), a Cadeira e Aula Prática de Economia Política (1808) entregue a José da Silva Lisboa (1756-1835) visconde de Cairu, a Real Academia de Desenho, Pintura, Escultura e Arquitetura Civil (1820), a Imprensa Régia (1808), o Museu Real (1818), o Jardim Botânico (1810), a Biblioteca Pública (1810), a Missão Artística Francesa (1816), etc. A tendência profissionalizante e de serviço ao Estado, herdada da mentalidade pombalina, aproximava-se do modelo napoleônico das Faculdades e das Hautes Écoles. A idéia de Universidade, como instância de pesquisa científica desinteressada e de cultura superior, simplesmente seria deixada de lado.
Voltemos a frei Caneca. A sua menção aqui não é excludente, mas paradigmática. Ele encarnou, no meio brasileiro, a mentalidade cientificista que vingou entre os que pretendiam a independência de Portugal num contexto republicano. A crítica a esta posição foi efetivada, do ângulo liberal e monárquico, por Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846), que inspirado em Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) e nos publicistas alemães, considerava perfeitamente válida a idéia independentista, mas preservando a Monarquia Constitucional e o Governo Representativo. Nesta última vertente encaixam os estadistas do Segundo Reinado, denominados por Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951) de “Homens de Mil”, aqueles que rodearam de forma incondicional o Imperador e que fizeram emergir e consolidar as instituições do governo representativo, na trilha do liberalismo doutrinário formulado na França por Pierre-Paul Royer-Collard (1763-1845), Victor Cousin (1792-1867) e François Guizot (1787-1874). Esses “Homens de Mil” romperam com o cientificismo e deram ensejo à mais duradoura experiência de estabilidade institucional que o Brasil jamais conheceu, entre 1841 (após o Ato Adicional e o Regresso), até o final do Império, em 1889.
Essa variante da nossa formação política foi formulada precursoramente, como já foi dito, por Silvestre Pinheiro Ferreira, o estadista que ajudou dom João VI a dar o corajoso passo da monarquia absoluta à constitucional e que pensou, numa perspectiva liberal, pela primeira vez, o Brasil como projeto autônomo. Diríamos que o Segundo Reinado deu ensejo a criativa experiência modernizadora de inspiração liberal-doutrinária, que no entanto não vingou no período republicano, polarizado pelo velho cientificismo pombalino, do qual frei Caneca foi representante modelar. O velho cientificismo do despotismo ilustrado constituiu o leito de procusto onde se deitou a filosofia positivista, que, como diria posteriormente José Veríssimo (1857-1916), virou moda no Brasil republicano e terminou polarizando as outras manifestações modernizadoras da vida pública brasileira. O ideal republicano acalentado por frei Caneca inseria-se na trilha do democratismo [14] (à maneira do setembrismo português), que entendia ser a nova ordem fruto da imposição de mentes esclarecidas pelas matemáticas aplicadas sobre as massas ignaras.
Eis a forma em que o frade carmelita entendia o mundo e criticava o governo imperial, formulando ao mesmo tempo a sua geometria política: “Pela geometria conhecemos evidentemente a existência do Supremo Arquiteto do Universo; pela geometria admiramos a sua infinita sabedoria no sistema da criação, e sua providência no andamento regular da natureza; pela geometria domamos a fúria do oceano, dirigimos a força dos euros, penetramos os abismos, e subimos aos astros; ajustamos os impulsos do nosso coração com os ditames da reta razão; proporcionamos os trabalhos às nossas forças, os remédios às moléstias, as penas aos delitos, os prêmios às virtudes; pela geometria equilibramos os movimentos das grandes massas das nações, regularizamos o valor dos povos e o seu entusiasmo. Todas as coisas em que não entram a régua e o compasso da geometria são desregradas e descompassadas, são monstruosas. Por falta de geometria é que o nosso governo, não conhecendo a gravidade específica dos negócios civis e políticos nem a relação deles entre si, não sabe equilibrar as forças dos diversos agentes sociais, desencaixa dos seus lugares as molas da sociedade, vai quebrá-las e reduzir tudo a poeira”.[15]
3) O poder legitimado pelo saber dos Positivistas Ilustrados e dos Castilhistas
O positivismo teve no Brasil quatro manifestações diferentes: a ortodoxa, a ilustrada, a política e a militar. A corrente ortodoxa [16] teve como principais representantes a Miguel Lemos (1854-1917) e Teixeira Mendes (1855-1927), que em 1881 fundaram a Igreja Positivista Brasileira com o propósito de fomentar o culto da “Religião da Humanidade” proposta por Augusto Comte (1798-1857) no seu Catecismo positivista. A corrente ilustrada [17] teve como principais representantes a Luiz Pereira Barreto (1840-1923), Alberto Sales (1857-1904), Pedro Lessa (1859-1921) e Ivan Monteiro de Barros Lins (1904-1975). Defendia o plano proposto por Comte na primeira parte da sua obra, até 1845, antes que formulasse a “Religião da Humanidade”, e que poderia ser resumido assim: o positivismo constitui a última etapa (científica) da evolução do espírito humano, que já passou pelas etapas teológica e metafísica e que deve ser educado na ciência positiva, a fim de que surja, a partir desse esforço pedagógico, a verdadeira ordem social, que foi alterada pelas revoluções burguesas dos séculos XVII e XVIII. A corrente política do positivismo teve como maior representante a Júlio de Castilhos (1860-1903) [18] que redigiu, em 1891, a Constituição para o Estado do Rio Grande do Sul, que começou a vigorar nesse mesmo ano.

Segundo essa Carta, as funções legislativas ficavam em mãos do Executivo (o Presidente do Estado sulino), passando os outros dois poderes públicos (Legislativo e Judiciário) a girar ao redor do governo. Segundo Castilhos, deveria ser invertido o dogma comteano de que à educação moralizadora seguiria pacificamente a ordem social e política: o Estado forte e centralizador arrumaria a casa, para depois educar compulsoriamente os cidadãos na nova mentalidade, ilustrada pela ciência positiva. Esta corrente teve maior repercussão do que as outras três, devido ao fato de ter obedecido à tendência cientificista de que se impregnou o Estado consolidado pelo marquês de Pombal, e também porque respondia aos apelos do caudilhismo gaúcho. Assim, as reformas autoritárias de tipo modernizador que o Brasil experimentou ao longo do século XX deram continuidade à mentalidade castilhista do Estado forte e tecnocrático. Esse modelo consolidou-se na obra de um seguidor de Castilhos: Getúlio Vargas (1883-1954). Aconteceu com o Castilhismo algo semelhante ao que ocorreu no México com o Porfirismo: cooptou a retórica positivista como ideologia estatizante e reformista, contra as velhas lideranças liberais e conservadoras. [19]

A corrente militar positivista [20] teve como principal representante a Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891), professor da Academia Militar e um dos chefes do movimento castrense que derrubou a Monarquia em 1889. Esta corrente estruturou-se de forma semelhante à ilustrada, adotando as teses comteanas anteriores a 1845. Mas a feição política que a partir da proclamação da República passaram a ter progressivamente as intervenções “salvadoras” dos militares foi aproximando o seu cientificismo do modelo castilhista. É assim como, a partir de 1930, os militares positivistas passam a agir em consonância com as propostas tecnocráticas getulianas. A idéia comteana de que “o poder vem do saber”, se bem é certo que inspirou as várias correntes do positivismo, encontrou, como vimos, mais acabada formulação de parte dos positivistas ilustrados e dos Castilhistas. A partir de 1874, quando da Academia Militar foi segregada a Escola Politécnica, os ideais cientificistas do comtismo encontraram nela terreno propício. Passou-se a cultuar a visão classificatória absoluta das ciências feita pelo filósofo francês. [21] O dogmatismo positivista defrontou-se, no entanto, no próprio seio da Escola Politécnica, com críticos sistemáticos como Otto de Alencar (1874-1912) e Amoroso Costa (1885-1928), que expuseram a insuficiência do comtismo como filosofia das ciências.
4) O equacionamento técnico dos problemas de Getúlio Vargas
A manifestação mais acabada do cientificismo brasileiro foi obra de Getúlio Vargas, que realizou a união definitiva das duas vertentes modernizadoras: a castilhista e a proveniente da Academia Militar e da Escola Politécnica. “Qual a contribuição de Vargas ao Castilhismo? - Pergunta Antônio Paim. E responde: - Indicaria, de um modo geral, que consistiu no empenho em transformar as questões políticas em problemas técnicos”. [22] O próprio Getúlio expressou esse propósito em discurso pronunciado em 4 de maio de 1931. Estas são as suas palavras: “A época é das assembléias especializadas, dos conselhos técnicos integrados à administração. O Estado puramente político, no sentido antigo do termo, podemos considera-lo atualmente entidade amorfa que, aos poucos, vai perdendo o valor e a significação. Creio azado o ensejo para o cancelamento de antigos códigos e elaboração de novos. A velha fórmula política, patrocinadora dos direitos do homem, parece estar decadente. Em vez do individualismo, sinônimo de excesso de liberdade, e do comunismo, nova modalidade de escravidão, deve prevalecer a coordenação perfeita de todas as iniciativas, circunscritas à órbita do Estado, e o reconhecimento das organizações de classe, como colaboradoras da administração pública”. [23]

A proposta modernizadora e autoritária de Vargas em 30, é certo, não foi obra exclusiva do líder são-borjense. Houve, de um lado, a marcante colaboração da segunda geração castilhista, na qual ressalta como figura de prol Lindolfo Boeckel Collor (1889-1942), primeiro ministro do Trabalho, Indústria e Comércio, idealizador da política trabalhista e estrategista da Plataforma da Aliança Liberal.  De outro lado, houve a participação dos mineiros, sob a liderança de Antônio Carlos Ribeiro de Andrada (1870-1946), que ensejaram os aspectos liberalizantes da Plataforma. Houve, também, a influência de Francisco José de Oliveira Vianna (1883-1951), cuja obra Populações meridionais do Brasil foi lida por Getúlio quando da sua passagem pelo Parlamento, entre 1923 e 1926. Referir-me-ei em detalhe, logo mais, a esta influência. O líder são-borjense mitigou, na leitura do sociólogo fluminense, o seu acirrado castilhismo, mitigando-o com uma concepção sociológica arejada e completando esta visão com aspectos da sociologia saint-simoniana (que Getúlio conhecia bem), e que se aproximava da realidade social como se se tratasse de um ser vivo.

A contribuição de Lindolfo Collor foi decisiva: sob sua inspiração, os Castilhistas deixaram o provincianismo gaúcho, para pensarem o Brasil numa dimensão nacional, superando os traços do coronelismo familístico. Lindolfo Collor foi, igualmente, responsável pela elaboração dos aspectos estratégicos da Aliança, que abarcavam uma clara proposta de modernização do país, levando em consideração as variáveis econômicas, políticas, militares, trabalhistas, educacionais, etc. Esta proposta de modernização foi concebida no contexto de um estrito centralismo, que conferia ao Executivo soma incalculável de poderes. A principal finalidade do Poder Central era, para Collor, garantir o progresso do país e a unidade da nação. [24]

O esforço modernizador e autoritário de Vargas, ao passo que levava até às últimas conseqüências o preconceito castilhista contra a classe política (“o regime parlamentar – diziam os castilhistas – é um regime para lamentar”), deitava os alicerces para o fortalecimento definitivo do Estado brasileiro e o surgimento da tecnocracia como o seu sustentáculo, materializando assim o ideal do patrimonialismo modernizador pombalino, de organizar a sociedade e o Estado sobre uma base científica. “Todo o esforço de Vargas – afirma Antônio Paim - vai consistir em criar organismos onde as questões de alguma relevância passem a ser consideradas do ângulo técnico. Amadurecido o ponto de vista dos técnicos, a instituição deve assegurar a audiência dos interessados. O governo não se identificará com qualquer das tendências em choque, porquanto exercerá as funções de árbitro”. [25]

 Vale a pena destacar que o esforço modernizador de Vargas encontrou na obra de Francisco José de Oliveira Vianna forte apelo para descobrir a perspectiva nacional dos problemas. O contato de Vargas com o pensamento do sociólogo fluminense deu-se ao ensejo da sua passagem pelo Congresso Nacional, como chefe da bancada gaúcha, ao longo da década de 20 do século passado. Essa influência, mais a experiência parlamentar, terminaram por burilar a personalidade pública do jovem advogado dos pagos gaúchos, que terminou se convertendo em estadista sensível aos problemas nacionais, não apenas às reivindicações regionais. Um ponto da sociologia de Oliveira Vianna ficou claro para Getúlio: não há monocausalismos em ciências sociais. Para bem compreender o Brasil, far-se-ia necessário desenvolver estudos monográficos, à maneira apregoada por Sílvio Romero (1851-1914), autor em quem Oliveira Vianna fartamente se inspirou.

Destarte, Vargas conseguiu fazer a crítica à visão unilateral de inspiração positivista e desenvolver uma perspectiva sociológica mais ampla, para compreender a problemática nacional. No tocante à administração do Estado, a lição de Oliveira Vianna era clara: são necessários conselhos técnicos que abarquem a variada gama de problemas nacionais. Sem eles, qualquer administração não passaria de amadorística. É claro, contudo, que Getúlio não chegou a desenvolver uma concepção tecnocrática e liberal do Estado. Ancorou numa perspectiva tecnocrática autoritária, com os Conselhos Técnicos iluminando a ação todo-poderosa do Executivo, sem referência ao Parlamento (que na visão getuliana precisava ser simplesmente esvaziado).

Vargas materializou o princípio do encaminhamento técnico dos problemas, nos principais campos da administração pública e da política. No terreno educacional, por exemplo, promoveu o consenso dos técnicos através da Associação Brasileira de Ensino. No âmbito da política salarial, chegou à adoção, por parte do governo, de mecanismos técnicos, mediante a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio; surgiu assim uma legislação abrangente que possibilitou a organização da Justiça do Trabalho e dos sindicatos como peças dessa engrenagem. No campo legislativo, depois de fechado o Congresso em 1937, realizou-se ampla experiência de legislação atendendo a critérios técnicos, com a formação de comissões especiais para elaborar leis e decretos, no terreno do ministério da Justiça e dos Estados. [26] O princípio do encaminhamento técnico dos problemas manifestar-se-ia, finalmente, no campo econômico, no fato de ter sido atribuído ao Estado a missão primordial de promover a racionalidade econômica, que implicava – segundo a tradição castilhista e à luz do intervencionismo autoritário apregoado por Aarão Reis (1856-1936) [27] – crescente papel tutelar do governo na economia. Esse intervencionismo, que tornava realidade o ideal pombalino do Estado empresário, teve como principais manifestações a criação da Siderúrgica de Volta Redonda, a ingerência do poder público na negociação da moeda estrangeira, a consolidação da centralização das emissões pelo Banco do Brasil, a criação da Superintendência da Moeda e do Crédito, precursora do Banco Central, a criação do Conselho Federal de Comércio Exterior e a constituição, no interior desse Conselho, de uma Comissão Especial para estudar o problema do aço. [28]

O cientificismo que acompanhou a evolução do Estado patrimonial modernizador brasileiro entre 1930 e 1954, pode ser ilustrado com os seguintes fatos: a) a emergência da idéia e da prática de planejamento, entendido como conjunto de técnicas destinadas a assegurar a consecução de determinadas metas, no campo da racionalização da economia; esse fato manifestou-se a partir dos trabalhos da Comissão Mista Brasil-Estados Unidos (1951-1953), reunida no decorrer do último mandato de Getúlio. b) A criação do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) em 1952, que constituiu o elemento catalisador das novas técnicas e que permitiu o teste da sua eficácia nos anos 50. No BNDE formou-se a primeira geração de tecnocratas treinados para efetivarem a racionalização da economia, sob a intervenção do Estado. O ulterior Programa de Metas de Juscelino Kubitschek (1902-1976) veio reforçar essa racionalização da economia, decorrente da adoção da idéia de planejamento. O governo de João Goulart (1918-1976) poderia ser caracterizado – segundo a apreciação de Antônio Paim [29] - como “autêntico acerto de contas do patrimonialismo tradicional com o segmento modernizador”. Nele, os setores não modernizados (classe política e burocracia) tentaram frear o processo de racionalização econômica em curso, mediante o esvaziamento do BNDE.

5) A engenharia política do general Golbery do Couto e Silva (1911-1987)

O golpe de 64 e os vinte anos de regime de exceção que se seguiram podem ser caracterizados, do ponto de vista da evolução do cientificismo no Brasil, como a volta aos critérios da racionalidade econômica através da intervenção autoritária do Estado e da plena adoção, para isso, da idéia de planejamento. O modelo de Estado patrimonial-modernizador instaurado por Getúlio em 30 teve a sua continuidade com o golpe de 64, especialmente após a reforma administrativa de 1967, que enfeixou nas mãos da elite tecnocrático-militar a formulação da alta política nos terrenos econômico e social, com a marginalização e ulterior cooptação da classe política. [30]

Após vinte anos de governo tecnocrático-militar, o quadro resultante lembrava bastante o modelo pombalino de despotismo esclarecido: hipertrofia do Poder Executivo (que passou a legislar pelo caminho autoritário do decreto-lei, marginalizando o Legislativo); gigantismo do Estado-empresário, que fez crescer descontroladamente o setor estatal da economia (as empresas estatais passaram de aproximadamente 100 em 1964 para 480 no final do governo Geisel); aceleração do ritmo da inflação (decorrente do paternalismo estatal em face das empresas públicas e privadas improdutivas); desrespeito às liberdades dos cidadãos e criação de privilégios que passaram a beneficiar minorias. A respeito deste último aspecto, escreveu o jurista Ricardo Lobo Torres: “Entre nós a ruptura (do princípio da imunidade em benefício do cidadão) se deu no regime autoritário inaugurado em 1964, que, apropriando-se do discurso positivista pretensamente dotado de cientificidade, (...) confundiu imunidade com isenção (...) (e enfraqueceu) as garantias do mínimo existencial”. [31] A Constituição revogada, frisa o mencionado jurista, desrespeitou a justiça social, ao conceder “indiscriminadamente subvenções e subsídios para a burguesia e isenções para militares, juízes e deputados” e ao ferir, destarte, “os privilégios do cidadão pobre, a quem pouco se concedeu”. [32]

Do ângulo político, a herança mais negativa de 64 foi a desvalorização da representação a partir da dependência do Congresso em relação ao Executivo. Após os generais gaúchos terem tomado em suas mãos o controle do governo, ao ensejo da morte do marechal Castelo Branco (1897-1967), a questão da representação passou a segundo plano, como se o espírito do castilhismo tivesse revivido. A manifestação mais clara desse viés foi o Pacote de 13 de Abril de 1977 promulgado pelo presidente Ernesto Geisel (1907-1996), que ensejou o controle da representação pelo Executivo, com a criação dos senadores biônicos e a adoção do voto indireto na eleição dos membros desta casa do Congresso. De outro lado, a proporcionalidade da representação para a Câmara dos Deputados passou a beneficiar aqueles Estados (os menos desenvolvidos da Federação, como os do Nordeste) que dependiam mais dos favores do Executivo.

Mas o processo de modernização centrípeta e autoritária não foi apenas uma política que se pôs em prática. Constituiu também todo um conjunto de princípios que foram colocados em circulação especialmente pela Escola Superior de Guerra. A respeito, salienta Antônio Paim: “O pressuposto essencial da Escola tornou-se a promoção da racionalidade na atuação do Estado. Semelhante objetivo é entendido como correspondendo à velha aspiração da intelectualidade e da elite militar e consiste no empenho decidido em prol da superação das deformações do Estado liberal”. [33] Ora, nessa tarefa assiste à elite tecnocrático-militar a capacidade de formular os “objetivos nacionais permanentes”, que constituem imperativos morais que pairam acima das discussões políticas. A legitimidade na formulação desses objetivos é dada pela ciência, que pretensamente assiste aos formuladores dos mesmos.

O mais importante teórico da modernização do Estado brasileiro ao longo do ciclo militar foi, sem dúvida, o general Golbery do Couto e Silva. Alicerçado na proposta de “autoritarismo instrumental” elaborada por Oliveira Vianna [34], o general Golbery considerava que ao Estado forte e centralizador cabe promover a participação política, orientada à consolidação do sistema democrático, que deve chegar a se tornar “capaz de aperfeiçoar-se ainda mais, assegurando o salutar usufruto das franquias individuais e coletivas e implantando o exercício corrente e eficaz da atuação participativa de todos os cidadãos e grupos sociais na tomada das grandes decisões de interesse da coletividade nacional”. [35]

Este seria o objetivo fundamental a ser alcançado. Essa seria a essência da tarefa de construção ou de engenharia política, que estaria garantida pela racionalidade que assiste ao Poder Executivo, como diretor de todo o processo. Encontramos vigente na proposta de Golbery, embora mitigado com os acenos democratizantes, o modelo modernizador getuliano-pombalino, que apela para a ciência aplicada a serviço do Estado, como fonte de legitimação do autoritarismo centrípeto. A democracia, para as nações afetadas pelo complexo de clã (que conduz ao insolidarismo) e dispersas na imensidão de grandes extensões continentais, somente poderia vir pelo amargo caminho do Estado autoritário e centralizador. Esse é o caso do Brasil, submetido a crises cíclicas de autoritarismo e excesso de tolerância (“sístoles e diástoles do coração do Estado”). Tal é a lição de Golbery.

Conclusão

É muito forte a tradição cientificista brasileira. A minha análise deteve-se, apenas, nos momentos em que ela se manifestou nos terrenos político e econômico, mostrando como o regime militar se inseriu nesse contexto. Mas outras variáveis também poderiam ser consideradas. A mentalidade cientificista é marcante, por exemplo, no meio universitário, onde um difuso culto à retórica científica, casado com a “vulgata marxista”, levou a que muitos achassem que faziam ciência ao repetir apenas slogans ditados pelo cientificismo de plantão, tendo sido banida a pesquisa básica e o estudo aprofundado das humanidades. [36]

No terreno político, ainda não foram superados os riscos de enveredarmos por nova trilha de autoritarismo tecnocrático, dado o acúmulo de poderes de que ainda goza o Executivo e os tropeços na modernização da representação parlamentar. A medida provisória, emergente da Constituição de 1988, tem-se revelado estatuto político de cunho autoritário que, apesar dos dispositivos jurídicos para a sua limitação conferidos ao Congresso nas últimas décadas, consegue ainda atravancar o trabalho legislativo e dar tremenda volatilidade ao marco jurídico sobre o qual devem repousar as instituições. A instabilidade institucional que afasta investidores encontra nesse ponto, sem lugar a dúvidas, uma das suas causas mais poderosas. O Executivo age, em não poucas oportunidades, como a “mula sem cabeça” de que falava, na época do governo Collor, conhecido intelectual de esquerda.

As possibilidades desse tipo de instabilidade aumentam, na medida em que parcela significativa do Partido atualmente no poder continua pressa à visão retrógrada das denominadas “viúvas da Praça Vermelha”, sendo acompanhada pelos defensores da Teologia da Libertação. [37] O risco maior, certamente, provém da fragilidade do nosso tecido social, que se exprime, no terreno da política, na falta de uma autêntica representação. A pobreza, o analfabetismo, o clientelismo, o desemprego crescente, são mazelas que tornam a sociedade brasileira presa fácil dos cientificismos populistas.

As Forças Armadas brasileiras, que entre 1964 e 1985 protagonizaram a mais longa intervenção cientificista do período republicano, parece terem-se afastado dessa visão, se levarmos em consideração o pensamento de figuras de prol como o brigadeiro Murilo Santos [38] e o Almirante Mário César Flores [39], claros defensores da tese da profissionalização das mesmas e da sua inserção no contexto de uma democracia moderna, em que os militares estão submetidos ao poder civil legitimamente constituído.

Ao longo dos quase trinta anos que se passaram desde o fim do ciclo militar, os nossos oficiais e soldados voltaram para a caserna, a fim de defender o país de acordo com as diretrizes traçadas pela Constituição de 1988. Respeitosos da Lei de Anistia, não questionaram a volta dos exilados, entre os quais se encontravam antigos terroristas que assassinaram cidadãos inermes ou membros das Forças Armadas e das Polícias estaduais. Têm participado, com dedicação, eficiência e espírito patriótico, das missões de paz em que o Estado brasileiro decidiu estar presente. Têm reconhecido e servido fielmente aos governos civis legitimamente eleitos, sem considerações ideológicas ou ressentimentos. Têm colaborado de forma desinteressada e pronta nas ações humanitárias a que foram chamados, quer pela União, quer pelos governos estaduais, em momentos de desgraças coletivas. Gozam os nossos militares, por isso, de alta valoração no seio da opinião pública, nas diversas enquetes efetivadas por institutos de pesquisa.

Mas a atitude dos civis não tem sido apropriada em face das necessidades orçamentárias das Forças Armadas. Legislando à luz do revide ideológico, os civis, no poder, têm cerceado os recursos que se faziam necessários para a manutenção da tropa e o cabal cumprimento das missões constitucionais assinaladas àquelas. O Exército, por exemplo, viu contingenciados os recursos necessários para a implantação do SISFRON. Este projeto permitiria a efetiva vigilância da nossa fronteira seca com os países sul-americanos. A invasão do território brasileiro por traficantes de drogas e de armas não tem sido estancada, em consequência desse descaso do governo. A insensatez é mais gritante, se levarmos em consideração as quantias milionárias de dinheiro público que têm sido desviadas, ao longo da última década, em programas sociais mal desenhados e em distribuição corrupta de benesses entre amigos e apaniguados.

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[1] Mercadante, Paulo. Militares e civis: a ética e o compromisso. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
[2] Paim, Antônio. A escola cientificista brasileira – Estudos complementares à História das Idéias Filosóficas no Brasil – Vol. VI. Londrina: Edições CEFIL, 2002, pg. 1-2. A versão positivista do marxismo é da lavra de Leônidas de Resende (1889-1950), como deixou Antônio Paim na apresentação à obra do mencionado autor, intitulada: A formação do capital e seu desenvolvimento, Brasília: Senado Federal – Conselho Editorial, 2011.
[3] Instituições lógicas resumidas do Genuense, por J. S. P. lente de filosofia, Rio de Janeiro: Imprensa Americana de J. P. da Costa, 1937. A mais recente edição desta obra foi publicada sob o título de As instituições da lógica, (tradução de M. Cardoso, introdução de A. Paim), Rio de Janeiro: PUC / Documentário / Conselho Federal de Cultura, 1977.
[4] Verdadeiro método de estudar, (edição organizada por António Salgado Júnior), Lisboa: Sá da Costa, 1950, volumes I – V.
[5] Cf. Paim, Antônio (organizador), Pombal e a cultura brasileira. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro /Fundação Cultural Brasil-Portugal, 1982.
[6] Paim, Antônio. A querela do estatismo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, pgs. 24-25.
[7] Cidade, Hernani, A reforma pombalina da instrução, Rio de Janeiro: PUC-RJ / Departamento de Filosofia, 1973.
[8] Braga, Teófilo. História da Universidade de Coimbra – Tomo III: 1700 a 1800. Lisboa: Academia Real das Ciências, 1898, pgs. 350-351.
[9] Braga, Teófilo, História da Universidade de Coimbra, ob. cit., pg. 351.
[10] O conceito de patrimonialismo modernizador ou neopatrimonialismo, de inspiração weberiana, foi formulado por Simon Schwartzman nas obras São Paulo e o Estado Nacional (São Paulo: DIFEL, 1975) e Bases do autoritarismo brasileiro (1a. Edição, Rio de Janeiro: Campus, 1982) e aplicado sistematicamente por Antônio Paim à formação e evolução do Estado no Brasil (cf. A querela do estatismo, ob. cit.).
[11] Cf. Paim, Antônio, A querela do estatismo, ob. cit., pg. 29.
[12] Cf. Cardoso, Elpídio Marcolino, “Azeredo Coutinho e o Seminário de Olinda”, in: Antônio Paim (organizador), Pombal e a cultura brasileira, ob. cit., pg. 50-83.
[13] Cf.Bittencourt, Raul Jobim. “A educação brasileira no Império e na República”, in: Aspectos da formação e evolução do Brasil, Rio de Janeiro: Tipografia do Jornal do Comércio, 1953.
[14] Cf. Malfatti, Selvino Antônio. “Gênese do democratismo na cultura luso-brasileira”. Palestra proferida no Centro de Estudos Filosóficos de Juiz de Fora, em 19/09/1990.
[15] Caneca, frei Joaquim do Amor Divino Rabelo e. Ensaios políticos (Cartas de Pítia a Damião, Crítica da Constituição outorgada, Bases para a formação do Pacto Social e outros). (Introdução de Antônio Paim, apresentação de Celina Junqueira). Rio de Janeiro: Documentário / PUC / Conselho Federal de Cultura, 1976, pg. 51-52.
[16] Cf. Vélez Rodríguez, Ricardo. A ditadura republicana segundo o Apostolado positivista.  1a. Edição. Brasília: Editora da Un. B., 1982. Paim, Antônio, “Como se caracteriza a ascensão do Positivismo”. In: Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, vol. 30, no. 119 (julho/setembro de 1980): pg. 249-269.
[17] O mais importante estudo a respeito é o de Ivan Lins, História do positivismo no Brasil, 2a.Edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1967. Cf. Paim, Antônio (organizador e introdução), Plataforma política do positivismo ilustrado. Brasília: Câmara dos Deputados, 1981, Coleção Pensamento Político Republicano.
[18] Cf. Vélez Rodríguez, Ricardo, Castilhismo: uma filosofia da República. 2a. Edição, Brasília: Senado Federal, 2000, Coleção Brasil 500 anos.
[19] Cf. Vélez Rodríguez, Ricardo. “Positivismo y realidad latinoamericana”. In: Revista Brasileira de Filosofia, São Paulo, vol. 34, no. 133 (janeiro / março de 1984): pg. 61-73.
[20] Cf. Paim, Antônio. “Como se caracteriza a ascensão do positivismo”.Art.cit., pg. 249-269.
[21] Cf.Paim, Antônio. História das idéias filosóficas no Brasil. 3a.Edição revista e aumentada. São Paulo: Convívio; Brasília: INL/ Fundação Pró-Memória, 1984, pg. 473 seg. Cf. outrossim, Quintero Samaniego, Luis Elias, A crítica ao positivismo na Academia Brasileira de Ciências, Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 1990 (dissertação de mestrado em filosofia).
[22] Paim, Antônio, A querela do estatismo, ob. cit., pg. 73.
[23] Paim, ob. cit., pg. 75.
[24] Cf. Vélez Rodríguez, Ricardo. “Tradição centralista e Aliança Liberal”. Introdução à obra Aliança Liberal: documentos da campanha presidencial. Brasília: Câmara dos Deputados, 1982, pg. 9-43. Para uma análise mais completa da contribuição de Lindolfo Collor à segunda geração castilhista, cf. do mesmo autor, “Lindolfo Collor e a plataforma modernizadora da Aliança Liberal”, in: Convivium, São Paulo, vol. 32, no. 2 (março/abril 1982): pg. 97-113.
[25] Paim, Antônio. A querela do estatismo, ob. cit., pg. 24.
[26] Cf. Paim, Antônio. A querela do estatismo, ob. cit.,  pg. 71-86. Getúlio tentou, no terreno da política, estabelecer um consenso entre as várias tendências conservadoras existentes. Para isso, criou um foro de debates na revista Cultura Política, dirigida por Almir de Andrade. Cf. a respeito: Brasil, Congresso Nacional, Câmara dos Deputados, Cultura Política e o pensamento autoritário. (Introdução de Ricardo Vélez Rodríguez). Brasília: Câmara dos Deputados, 1983. 
[27] A obra deste autor, que lecionou na Escola Politécnica, ao fazer um combate frontal ao liberalismo econômico, formulando uma ampla doutrina centrada nos intervencionismo estatal de cunho autoritário na economia e tendo como pressuposto a crença na capacidade ético-normativa da ciência, revelou, mais uma vez, o influxo das idéias cientificistas de origem pombalina na República Velha. O principal escrito de Aarão Reis, Economia política, finanças e contabilidade (Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1918) exerceu grande influência, especialmente a partir de 1930.
[28] Cf. Paim, Antônio, A querela do estatismo, ob.cit., pg. 81-83.
[29] Cf. Paim, Antônio. A querela do estatismo, ob.cit., pg. 101.
[30] Cf.Crippa, Adolpho; Campos, Antônio Carlos de Moura; Lenzi, Mário Ângelo; Passarelli, Sílvio; Vélez Rodríguez, Ricardo. Democracia e participação. São Paulo: Convívio, 1979.
[31] Torres, Ricardo Lobo, “O mínimo existencial e os direitos fundamentais”. In: Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas,  no. 117 (julho-setembro 1989): pg. 39.
[32] Torres, Ricardo Lobo, art. cit., pg. 41-42.
[33] Paim, Antônio. A querela do estatismo, ob. cit., pg. 117.
[34] Cf.Vianna, Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil e Instituições políticas brasileiras. Primeira edição num único volume. Brasília: Câmara dos Deputados, 1983, Biblioteca do Pensamento Político Republicano.  O termo “autoritarismo instrumental” foi cunhado por Wanderley-Guilherme dos Santos (Ordem burguesa e liberalismo, São Paulo: Duas Cidades, 1978) para identificar a índole autoritária do processo modernizador proposto pelo sociólogo fluminense. Em face do esfacelamento do Brasil causado pelo “complexo de clã” ou insolidarismo dos seus habitantes e pela imensidade territorial, a instauração da democracia necessariamente deveria transitar pelo caminho da ação centrípeta e autoritária do Estado. Cf. a minha obra Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro, Londrina: Editora da Universidade Estadual de Londrina, 1997.
[35] Silva, Golbery do Couto e. Conjuntura política nacional: O Poder Executivo & Geopolítica do Brasil. 2a edição, Rio de Janeiro: José Olympio, 1981, pg. 3-37.
[36] A análise mais completa desta variável foi efetivada por Antônio Paim na sua obra intitulada: Marxismo e descendência (Campinas: Vide Editorial, 2009).
[37] A respeito, Antônio Paim frisa na sua obra A escola cientificista brasileira, ob.cit., pg. 167-168: “As viúvas do comunismo têm conseguido impedir que uma agremiação como o PT, que se imaginava consistiria numa proposta moderna,continue encurralado pelo patrulhamento ideológico dos comunistas. Estes nada têm a ver com o socialismo, inspirando-se diretamente no despotismo oriental e não passando, o que produziram na Rússia, de uma das virtualidades do velho Estado Patrimonial”.
[38] Santos, Murillo, brigadeiro. O caminho da profissionalização das Forças Armadas. (Prefácio de Miguel Reale; apresentação do brigadeiro Sócrates Monteiro da Costa, Ministro da Aeronáutica e do general Leônidas Pires Gonçalves). Rio de Janeiro: Instituto Histórico-Cultural da Aeronáutica 1991.
[39] Flores, Mário César, almirante. Bases para uma política militar. (Prefácio de Carlos Vogdt; apresentação de Eliézer Rizzo de Oliveira). Campinas: Editora da Unicamp, 1992.

Um comentário:

  1. Tens uma mente que sabe distinguir e sintetizar. Parabéns, Professor Ricardo.

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