I - Perfil bio-bibliográfico de François Guizot (1787/1874)
Cinco momentos podemos distinguir na vida de
François Guizot: em primeiro lugar, período da infância, da primeira formação e
do início da vida intelectual ao ensejo dos seus estudos universitários, entre
1787 e 1812. Em segundo lugar, etapa de início da vida profissional, entre 1812
e 1820, em que o nosso autor trabalhou como funcionário de segundo escalão do
governo francês, em vários cargos (secretário ministerial, conselheiro do
Estado, etc.) e elaborou, junto com o grupo dos doutrinários, as primeiras propostas encaminhadas a consolidar a
representação política. Em terceiro lugar, etapa de reflexão entre 1820 e 1830,
em que o nosso autor ficou por fora do poder, mas pensou de maneira sistemática
a solução para os problemas da representação; ao longo dessa etapa, Guizot
aprofundou a sua amizade com os colegas doutrinários
e deu continuidade, junto com eles, aos estudos políticos. Nesta época ficaram
definidas as linhas mestras do projeto de governo para a França, que Guizot
realizou no momento seguinte. Em quarto lugar, etapa de atuação política entre
1830 e 1848, em que o nosso autor se tornou sucessivamente ministro da
instrução, ministro do interior, ministro de assuntos estrangeiros e
primeiro-ministro da monarquia liberal de Luís Filipe e elaborou a reforma do
ensino e das instituições do governo representativo. Esta foi a época mais
brilhante de sua vida. Em quinto lugar, etapa de retiro do governo e de ação
social entre 1848 e 1874, em que Guizot, afastado definitivamente do serviço
público em 1858, passou a trabalhar na consolidação das bases sociais da
representação, notadamente reforçando as associações civis ligadas às igrejas
protestantes; essa última etapa foi vivida pelo nosso autor na mansão de
Val-Richer, onde terminou os seus dias, rodeado de seus filhos e netos.
II - O pensamento político de Guizot
François Guizot representou, para o pensamento
político brasileiro do século XIX, o marco de referência conceitual do
Liberalismo Conservador, um de cujos máximos expoentes foi Paulino Soares de
Souza (1807-1866), visconde de Uruguai. A problemática vivida pelo Império
Brasileiro na sua etapa inicial (correspondente ao Primeiro Reinado e ao
Período Regencial, e que se estende entre 1824 e 1840), era bem semelhante à
vivida pela França da época da Restauração (1814-1830). A vida política
decorria, no Brasil, (no período apontado) entre os extremos do absolutismo e
do democratismo rousseauniano. De forma semelhante, na França da Restauração,
os abismos estavam identificados, de um lado, com o espírito reacionário dos ultras, que aspiravam os ares do Ancien Régime, e com o bonapartismo, que
constituía a versão burguesa do absolutismo; de outro lado, com o jacobinismo
revolucionário e o democratismo rousseauniano, que tinham ensejado a Revolução
de 1789 e o Terror [cf. Macedo e Vélez, 1996].
A queda do Ancien
Régime, ao tirar todo poder à Igreja, colocou no seu lugar o homem de
letras, certamente um intelectual diferente daquele do Iluminismo, porquanto
sensível à realidade histórica de sua época. A sua missão consistiria em erguer
um poder espiritual que iluminasse a sociedade com as luzes de uma religião
civil, diferente por certo da proposta por Rousseau, porquanto compatível com
uma sociedade estruturada em várias ordens de interesses. Essa nova religião
civil deveria garantir a unidade do tecido social, ao redor de uma gama de
interesses comuns a todas as classes e os seus dogmas seriam objeto de um
processo pedagógico ministrado pelos homens de letras, que teriam, também,
funções proféticas (porquanto pregoeiros de uma nova era) e dirigentes (seriam,
ao mesmo tempo, líderes da sociedade da sua época). Françoise Mélonio
sintetizou o perfil desses novos líderes, com as seguintes palavras:
"Saber para poder, superar a filosofia crítica das Luzes para elaborar os
novos dogmas, tal é o objetivo que todos, com não poucas variações, perseguem,
Jouffroi como Guizot, Comte, Hugo, Lamartine, Renan ou Renouvier"
[Mélonio, 1998: 195].
"Passar a França pós-revolucionária a
limpo", esse poderia ter sido o princípio inspirador dos chamados doutrinários, Guizot à testa. Quanto ao
nome dessa corrente, assim explica Rosanvallon o seu significado: "A
denominação de doutrinários, que
parece ter sido utilizada pela primeira vez em 1817 nos corredores da Câmara
dos Deputados, referia-se no início unicamente a Camille Jordan, de Broglie e
Royer-Collard. A expressão caracterizará em seguida a corrente
indissociavelmente intelectual e política que se estruturará progressivamente
ao redor de Guizot, aparecendo este após 1820 como o verdadeiro líder do que no
início não era mais do que um pequeno grupo de parlamentares"
[Rosanvallon, 1985: 26, nota 1]. O grupo dos doutrinários esteve também
integrado por Remusat e de Serre. Tocqueville, como frisa Ubiratan Macedo,
"a rigor, não pode ser agregado aos doutrinários mas é impensável sem eles
e corresponde certamente ao corolário de sua obra" [Macedo, 1987: 33].
III - A influência de Guizot no Liberalismo Conservador
Brasileiro do século XIX
O autor que mais diretamente recebeu a influência de
Guizot foi Paulino Soares de Souza, visconde de Uruguai (1807-1866). Para ele,
a elite imperial tinha uma missão fundamental: garantir a criação e o
funcionamento de instituições que garantissem, no Brasil, o exercício da
liberdade e o progresso da sociedade, a exemplo dos dirigentes franceses e
britânicos. O terreno onde se deveria travar essa luta era, para Paulino, o do
direito administrativo, já que à luz deste poderiam ser pensadas as
instituições do governo, bem como os meios jurídicos e práticos que garantissem
o seu funcionamento. Essa era a finalidade primordial do seu Ensaio
de Direito Administrativo, publicado em 1862. A respeito, escreve
Themistocles Brandão Cavalcanti: "Ali se estudam os elementos fundamentais
do Direito Administrativo e principalmente a estrutura do Estado e da
administração, o problema da centralização, do Poder Moderador, da
administração graciosa e contenciosa, do Conselho de Estado. O conteúdo próprio
das normas administrativas não estava ainda bem caracterizado e, por isso
mesmo, não tinha a doutrina a merecida expansão. Afora, portanto, os elementos
básicos de direito administrativo bem expostos no princípio da obra, o autor
deu singular importância a duas instituições fundamentais da Política
Constitucional do Império e que teriam influência preponderante no
desenvolvimento do nosso direito administrativo e do nosso direito político - o
Poder Moderador e o Conselho de Estado" [Cavalcanti, 1960: VII-VIII].
O trabalho não foi pura e simples elucubração
teórica. Como Guizot em
relação à França, Paulino considerava que deveriam ser
pensadas as instituições brasileiras à luz da história e da cultura nacionais.
O Ensaio
é fruto do profundo conhecimento que tinha do país, amadurecido na sua
participação em vários órgãos do Governo Imperial, entre 1840 e 1862. A obra foi motivada
pela viagem que o visconde realizou à Inglaterra e à França, com a finalidade
de estudar o funcionamento das Instituições Públicas. A respeito, Paulino
escreve o seguinte testemunho: "Na viagem que ultimamente fiz à Europa não
me causaram tamanha impressão os monumentos das artes e das ciências, a
riqueza, força e poder material de duas grandes nações: a França e a
Inglaterra, quanto os resultados práticos e palpáveis da sua administração. Os
primeiros fenômenos podemos nós conhecê-los pelos escritos que deles dão larga
notícia. Para conhecer e avaliar os segundos não bastam descrições. Tudo ali se
move, vem e chega a ponto com ordem e regularidade, quer na administração
pública, quer nos estabelecimentos organizados e dirigidos por companhias
particulares. Nem o público toleraria o contrário. As relações entre a
administração e os administrados são fáceis, simples, benévolas e sempre
corteses. Não encontrava na imprensa, nas discussões das câmaras, nas
conversações particulares essa infinidade de queixas e doestos, tão freqüentes
entre nós, contra verdadeiros ou supostos erros, descuidos e injustiças da
administração, e mesmo contra a justiça civil e criminal. A população tinha
confiança na justiça quer administrativa, quer civil, quer criminal. E é sem
dúvida por isso que a França tem podido suportar as restrições que sofre na
liberdade política" [Souza, 1960: 5].
O visconde regressa da sua viagem à Europa com o
firme propósito de pensar as instituições que garantissem, no Brasil, o
exercício da liberdade. Esse é o seu imperativo categórico, que o distancia da
pura teoria e da pura prática, e que o aproxima do ideal dos doutrinários. Eis
a forma em que ele entende o seu propósito: "Convenci-me ainda mais de que
se a liberdade política é essencial para a felicidade de uma nação, boas
instituições administrativas apropriadas às suas circunstâncias, e
convenientemente desenvolvidas não o são menos. Aquela sem estas não pode
produzir bons resultados. O que tive ocasião de observar e estudar produziu uma
grande revolução nas minhas idéias e modo de encarar as coisas. E se quando
parti ia cansado e aborrecido das nossas lutas políticas pessoais, pouco
confiado nos resultados da política que acabava de ser inaugurada, regressei
ainda mais firmemente resolvido, a buscar exclusivamente no estudo do gabinete
aquela ocupação do espírito, sem a qual não podem viver os que se habituaram a
trazê-lo ocupado" [Souza, 1960: 5-6].
A primeira convicção que tem o visconde de
Uruguai - como de resto os demais
estadistas da sua época - é a de que a
monarquia constitucional é o regime que melhor se adaptava às necessidades
brasileiras. Essa convicção, é bem verdade, tinha sido sedimentada pela obra
pioneira de Silvestre Pinheiro Ferreira. Mas o interessante é que Paulino
encontra no próprio Guizot um arrazoado claro e favorável à monarquia
brasileira. Efetivamente, o pensador francês, na nona lição da sua Histoire
de la Civilisation
en Europe, tinha deixado claro que a monarquia foi, na Europa e
notadamente na França, a primeira garantia de legalidade no início da
modernidade, por cima da turbulenta atmosfera de particularismos em pugna.
Referindo-se especificamente ao Brasil, escrevia Guizot: "Abri a obra onde
M. Benjamin Constant tem representado de forma tão engenhosa a realeza como um
poder neutro, um poder moderador, elevado por cima dos acidentes, das lutas da
sociedade e somente intervindo nas grandes crises. Não é essa, por assim dizer,
a atitude do soberano de direito no governo das coisas humanas? É necessário
que haja nessa idéia algo de muito especial que chame a atenção das pessoas,
pois ela passou com extraordinária rapidez dos livros aos fatos. Um soberano
fez dessa idéia, na constituição do Brasil, a base mesma do seu trono; a
realeza é ali representada como um poder moderador, elevado por cima dos
poderes ativos, como um espectador e um juiz das lutas políticas" [Guizot,
1864: 256].
Paulino era consciente da complexidade da tarefa
empreendida. Pensar as instituições do direito administrativo, era algo mais do
que conceber os termos de uma Constituição Política. Implicava, também, criar
os caminhos jurídicos e institucionais que permitissem a boa administração e
que se enraizassem, portanto, na cultura e nos hábitos do país. É significativo
dessa preocupação o texto de Guizot (tirado da obra L'Église et la
Societé Chrétiennes, publicada em 1861) que
serve de epígrafe à obra de Paulino, e que reza assim: "Não basta
estabelecer num país eleições, câmaras e o governo parlamentar, para libertá-lo
dos seus males, dar a todos os bens que lhes são prometidos e poupá-los das
funestas conseqüências de todos os erros que ali se cometem. As condições do
bom governo dos povos são mais complicadas; não se satisfaz a todos os
interesses, não se garantem todos os direitos colocando uma constituição no
lugar de um velho poder, e não se pode ter instituído em Turim um parlamento
italiano sem ter fundado na Itália a liberdade" [apud Souza, 1960: folha
de rosto].
Paulino Soares de Souza considerava que, no processo
de construção das instituições que garantiam no Brasil o exercício da
liberdade, as condições assemelhavam-se muito às da França pós-revolucionária.
A experiência inglesa de self-government
era mais distante. A nossa prática do municipalismo esteve sempre vinculada à
garantia da legislação e das instituições por um poder central, que se soerguia
por sobre o universo de particularismos e castas predispostos à privatização do
poder. A prática do direito administrativo inspirou-se, no caso de Portugal e
no do Brasil, na tradição francesa, centralizadora, diferente da tradição
anglo-saxã, eminentemente descentralizadora.
A propósito, escreve Paulino: "O sistema
francês, inteiramente diverso do anglo-saxônio, mais ou menos modificado, é o
mais simples, mais metódico, mais claro e compreensivo, e o que mais facilmente
pode ser adotado por um país que arrasa, de um só golpe todas as suas antigas
instituições, para adotar as constitucionais ou representativas, e isto muito
principalmente quando esse país larga as faixas do sistema absoluto, e abrindo
pela primeira vez os olhos à luz da liberdade, está mal, ou não está de todo
preparado para se governar em tudo e por tudo a si mesmo. (...) Adotados em um
país, como nós adotamos, os pontos cardeais desse sistema, organizado o país
segundo o seu espírito em geral, não é possível proscrevê-lo, sem adotar o
contrário, e sem a completa mudança de toda a organização existente. O sistema
administrativo francês concede pouco ao self
government, é um e muito uniforme, preventivo e muito centralizador. Alarga
muito a direção, tutela a fiscalização do Governo. Admite largamente a
hierarquia. Reduz o Poder Judicial ao Civil e Criminal. (...) Este sistema é
muito ligado, lógico e harmônico, e tem incontestáveis vantagens. Depois de bem
montado e desenvolvido é o que apresenta melhores condições de resistência e
estabilidade. (...). Cada indivíduo tem menos ingerência nos negócios públicos,
porém o seu direito está mais bem resguardado e garantido do que em muitos
países que se dizem livres. Bem desenvolvido e executado, como o é na França,
não se dão as violências, e as injustiças flagrantes, das quais apresentam não
raros exemplos países que aliás gozam de liberdade. A França não goza de uma
completa liberdade política, mas não há talvez país melhor administrado, e onde
a segurança pessoal, o direito de propriedade, e a imparcialidade dos tribunais
sejam melhor assegurados e garantidos" [Souza, 1960: 417].
Paulino Soares de Souza não renunciava à prática do self government. Não escondia a sua
admiração por essa forma de governo, na forma em que foi belamente descrita por
Tocqueville na sua Democracia na América.
É explícita a
admiração de Paulino pelo regime de self
government que Tocqueville encontrou na América, e que ele aproxima do
regime de liberdade municipal. A respeito, escreve o visconde: "Um povo,
diz Tocqueville, pode sempre estabelecer Assembléias políticas, porque
ordinariamente encontra no seu seio certo número de homens nos quais as luzes
substituem até certo ponto a prática dos negócios... A liberdade municipal escapa,
para assim dizer, aos esforços do homem. É raro que seja criada pelas leis;
nasce por algum modo por si mesma. São, a ação contínua das leis e dos
costumes, as circunstâncias e sobretudo o tempo, que conseguem consolidá-la. De
todas as nações do continente da Europa, não há talvez uma só que a conheça. É
contudo na Municipalidade que reside a força dos povos livres. As instituições
municipais são para a liberdade o que as escolas primárias são para a ciência:
põem a liberdade ao alcance do povo, fazem com que aprecie o seu gozo
tranqüilo, e habituam-no a servir-se dela. Sem instituições municipais pode uma
nação dar-se um governo livre, mas não tem o espírito da liberdade"
[Souza, 1960: 405].
Mas, à semelhança de Guizot, Paulino era consciente
de que a liberdade democrática requeria uma base moral, que não estava
suficientemente consolidada entre nós. Para atingir o estágio da plena
democracia, seria necessário primeiro educar o povo nos hábitos do respeito ao
bem público e da participação na gestão responsável da res publica. A tirania é a conseqüência da construção afoita da
democracia, sem as bases morais que tornam o self government uma instituição a serviço da liberdade e não do
despotismo. Em relação a esse ponto, escreve o visconde: "Assim é e deve
ser, ao menos a certos respeitos, naqueles afortunados países, onde o povo for
homogêneo, geralmente ilustrado e moralizado, e onde a sua educação e hábitos o
habilitem para se governar bem a si mesmo. Quais e quantas são as nações entre
as quais se tem podido estabelecer o
self government? Ide estabelecê-lo em certos lugares da Itália, entre os
Lazzaroni, no México, e nas Repúblicas da América Meridional! O pobre Soberano,
o povo, deixar-se-á iludir, e será vítima do primeiro ambicioso esperto (....).
Nos países nos quais ainda não estão difundidos em todas as classes da
sociedade aqueles hábitos de ordem e legalidade, que únicos podem colocar as
liberdades públicas fora do alcance das invasões do Poder, dos caprichos da
multidão, e dos botes dos ambiciosos, e que não estão portanto devidamente
habilitados para o self government,
é preciso começar a introduzi-lo pouco a pouco, e sujeitar esses ensaios a uma
certa cautela, e a certos corretivos. Não convém proscrevê-lo, porque, em
termos hábeis, tem grandes vantagens, e
nem o Governo central, principalmente em países extensos e pouco povoados, pode
administrar tudo. É preciso ir educando o povo, habituando-o pouco a pouco, a
gerir os seus negócios" [Souza, 1960: 404-405].
Sintetizando: Paulino advogava por um direito
administrativo centralizador, como o francês, que na sua aplicação, no entanto,
estivesse pedagogicamente aberto à prática do self government. "Isto não tira que seja possível e muito
conveniente, -- frisava o estadista do Império --, no desenvolvimento e reforma
das nossas instituições administrativas, ir dando (à sociedade), (a) parte de self government que (as instituições)
encerram, mais alguma expansão temperada com ajustados corretivos, habituando
assim o nosso povo ao uso de uma liberdade prática, séria e tranqüila,
preservando sempre o elemento monárquico da Constituição, porque, por fim de
contas, é para aqueles povos que nela nasceram e foram criados, essa forma de
governo, rodeada de garantias e instituições livres, a que melhor pode assegurar
uma liberdade sólida, tranqüila e duradoura" [Soares, 1960: 412]. Proposta
de autêntico liberalismo conservador,
como a defendida pelos doutrinários, notadamente Guizot.
Na sua análise da realidade brasileira, Paulino
Soares de Souza adotava como pano de fundo a perspectiva histórica proposta por
Guizot. O grande problema no estudo da nossa realidade, considerava Paulino, é
o fato de os estudiosos esquecerem-se da própria realidade. A propósito,
escreve: "Tive muitas vezes ocasião de deplorar o desamor com que tratamos
o que é nosso, deixando de estudá-lo, para somente ler superficialmente e citar
coisas alheias, desprezando a experiência que transluz em opiniões e
apreciações de estadistas nossos" [Soares, 1960: 8]. A perspectiva
histórica identificada com o conhecimento das próprias raízes (que, como vimos
no item 1, inspirou a Guizot na elaboração das soluções institucionais para a
França do seu tempo), era também a perspectiva adotada por Paulino. "É
preciso, frisava ele, primeiro que tudo estudar e conhecer bem as nossas
instituições, e fixar bem as causas porque não funcionam, ou porque funcionam
mal e imperfeitamente. Convém muito o estudo e o conhecimento todo que sobre
elas pensaram os nossos homens de Estado, e o dos fatos próprios do país que podem
esclarecer o assunto" [Souza, 1960: 12]. Sobre esta base histórica de
conhecimento das próprias origens, ardentemente defendida por Paulino Soares de
Souza e os demais estadistas do Império, alicerçar-se-ia a etapa posterior da
emergência da sociologia brasileira, com Silvio Romero e Oliveira Vianna, na
adoção do método monográfico. Paulino e os restantes "homens de mil"
do Segundo Reinado foram, assim, os precursores da ciência social desenvolvida
pelos seguidores do "culturalismo sociológico".
De forma semelhante a como Guizot entendia a
civilização ocidental como uma luta entre os princípios de liberdade e de
ordem, Paulino concebia a nossa vida política como pautada por dois grandes
princípios jurídicos, contrapostos mas complementares: aquele que consolidava
os direitos individuais em
face do Estado (chamado de direito público interno ou
constitucional) e aquele que garantia o funcionamento do Estado (chamado de
direito administrativo). Paulino definia o direito
constitucional ou político
como aquele que compreendia "aquelas matérias que constituem o chamado
direito público propriamente dito" e que tem como finalidade garantir
"a inviolabilidade dos direitos civis e políticos, que têm por base os
direitos absolutos que derivam da mesma natureza do homem, e se reduzem a três
pontos principais, a saber: liberdade, segurança individual e
propriedade". Já o direito
administrativo era definido por ele
como "a ciência da ação e da competência do Poder Executivo, das
administrações gerais e locais, e dos Conselhos Administrativos, em suas
relações com os interesses ou direitos dos administrados, ou com o interesse geral do Estado" [Souza,
1960: 18-19].
O equilíbrio entre ambas as ordens de direito, a
constitucional e a administrativa, exige que, do ponto de vista da legislação,
não se fixem apenas os direitos dos cidadãos, mas também os seus deveres
(correspondentes aos direitos da sociedade). A respeito deste atualíssimo ponto
(o problema da nossa Constituição de 1988 é justamente a hipertrofia dos
direitos do cidadão esquecendo os seus deveres), escrevia Paulino: "É
necessário também que a legislação não se limite a estabelecer e a proteger
direitos, é também preciso que fixe e defina bem as obrigações. Um dos grandes
erros, observa Laferrière, da Assembléia Constituinte da França, seguido em
outros países inexperientes que a tomaram por modelo, consistiu em ter
protegido mais os direitos do homem do que os da sociedade, e em ter
desconhecido e estabelecido com timidez a união indispensável e fundamental do direito
e do dever. É agradável ter somente direitos, e os aduladores do povo fogem de
falar-lhe em deveres. A legislação inglesa e americana ocupam-se especialmente
em fixar os deveres" [Souza, 1960: 406-407].Na formulação dessa dupla
vertente (direitos e deveres do cidadão), Paulino alicerça-se em Guizot,
fazendo referência ao seguinte texto extraído de Mémoires pour servir à l'histoire de mon Temps:
"Duas idéias constituem os dois grandes
caracteres da civilização moderna e lhe imprimem o seu formidável movimento;
sintetizo-os nestes termos: - há direitos universais inerentes unicamente à
condição humana e que nenhum regime pode legitimamente recusar a homem nenhum;
- há direitos individuais que decorrem unicamente do mérito pessoal de cada
homem, sem levar em consideração as circunstâncias exteriores do nascimento, da
fortuna, ou da posição social, e que todo homem que os porta em si mesmo deve
ter a possibilidade de desenvolver. O respeito legal aos direitos gerais da
humanidade e o livre desenvolvimento das capacidades naturais, desses dois
princípios, bem ou mal entendidos, têm decorrido ao longo do último século os
bens e os males, as grandes ações e os crimes, os progressos e os descaminhos
que ora as revoluções, ora os governos mesmos têm feito surgir no seio das
Sociedades Européias" [Souza, 1960: 448, nota 8].
Fazendo-se eco do hegelianismo soft que inspirava a Guizot, Paulino considera que os grandes
atores da história não são, no século XIX, apenas os indivíduos, mas também, e
de forma decisiva, as massas. Um governo que olhe apenas para a perspectiva
individual, não consegue atingir o seu escopo. A nota caraterística da política
moderna consiste em levar em consideração a perspectiva das massas, pois é
nelas que passou a residir a força e a legitimidade dos governos.
Eis a forma em que o estadista brasileiro
fundamentava o seu pensamento a respeito deste ponto: "Os seguintes
profundos trechos de M. Guizot -- Des moyens de gouvernement -- explicam e completam o meu pensamento. Quando
se considera o poder, não isolado e em si mesmo, mas na sua relação íntima com
a sociedade, a sua ação apresenta-se sob um duplo aspecto. Ele deve tratar, de
um lado, com essa massa geral de cidadãos que ele não vê, mas que o sofrem, o
sentem e o julgam; de outro lado, com indivíduos que tal ou qual causa aproxima
de si e que estabelecem com ele uma relação pessoal ou direta, já se trate de
que eles lhe sirvam nas suas funções, ou de que ele próprio sinta necessidade
de se servir de sua influência. Agir sobre as massas e agir através dos
indivíduos, é isso que se chama governar. Dessas duas partes do governo, o
poder é inclinado a negligenciar a primeira. Fraco e pressionado, é absorvido
pelo trabalho de tratar com os indivíduos. Nada mais comum do que vê-lo
esquecer que há um povo no qual vai terminar parando tudo quanto ele faz. Dos
erros do poder, esse é sobre tudo o mais fatal, pois é nas massas, no povo
mesmo que ele deve encontrar a sua força principal, os principais meios de
governo. O público, a nação, o país, é lá que reside a força, lá que é possível
conseguí-la. Tratar com as massas, essa é a grande mola do poder. Em seguida
vem a arte de tratar com os indivíduos; arte necessária, mas que, sozinha, de
nada vale e produz pouco efeito" [apud Souza, 1960: 502-503].
IV - A ética pública de Guizot e de Paulino Soares de Souza
Não são poucas as novidades que nos apresentam
Guizot e os doutrinários, no seu arrazoado acerca das condições históricas da
França de meados do século XIX. Da mesma forma, são muitas as lições de ciência
política que podemos tirar da leitura do Ensaio
sobre o Direito Administrativo de Paulino Soares de Souza. Gostaria de
terminar estas reflexões destacando um ponto que me parece essencial no
pensamento de ambos os autores: o seu conceito de ética pública. Quatro aspectos podem ser assinalados (tanto em
Guizot como em Paulino):
Em primeiro lugar, o imperativo categórico do
governante consiste em transformar as instituições do seu país, para garantir
aos seus concidadãos, de maneira eficaz, o exercício da liberdade, no contexto
do estudo diuturno das tradições históricas da nação.
Em segundo lugar, é necessário que o governante, na
sua ação, não se perca na perspectiva individual, mas que enxergue sempre e sem
vacilação o fundo que constitui a essência da legitimidade política: a vontade
das massas. O folclore político resumiu esse ideal no princípio de "ouvir
o clamor das ruas".
Em terceiro lugar, cabe ao governante o compromisso
pedagógico de formar, mediante a educação cívica, a consciência do bem público
nos seus governados, de forma que eles não reivindiquem apenas os seus
direitos, mas que acordem, também, para os seus deveres. No sentir de Guizot,
essa tarefa traduzia-se em acordar nas classes médias a consciência da sua
responsabilidade histórica. Algo semelhante pensava o visconde de Uruguai:
tratava-se de formar, a partir de um eleitorado censitário, um núcleo
disciplinado ao redor da idéia de nação e sensível às demandas do bem público.
Em quarto lugar, não há na caminhada histórica da
sociedade um final utópico, em que todas as contradições sejam resolvidas. O
processo de luta de classes permanecerá como característica essencial à vida
política. O que Guizot e Paulino destacam é que essa luta pode ser civilizada
pelo debate parlamentar e pela prática, cada vez mais aperfeiçoada, da
representação. Aqui radica a diferença fundamental entre liberais e
socialistas. Estes últimos terminaram acreditando no "fim utópico da
história", na conquista de um paraíso em que desaparecesse a luta pela
defesa dos próprios interesses.
Muitas coisas poderíamos escrever acerca da tremenda
atualidade da ética pública apresentada por Guizot e adotada por Paulino Soares
de Souza. Reste apenas, expressar o nosso sentimento de admiração face a esses
grandes pensadores-estadistas, que conseguiram encarnar o princípio da moral de responsabilidade no momento
histórico em que viveram.
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