Estudar o
Castilhismo é identificar a ideologia que terminou por dar identidade ao Brasil
republicano. Porque foi ao ensejo dessa doutrina que se consolidaram as
instituições do Estado Nacional, no longo período getuliano. O Brasil, após a concretização
da proposta modernizadora de inspiração castilhista por Getúlio Vargas, já não
seria mais o mesmo. Superamos definitivamente, após esse ciclo, o velho
arquétipo de República oligárquica que nos irmanava às outras nações herdeiras
do patrimonialismo tradicional ibérico. Consolidou-se o nosso país como uma
nação moderna, que aspira ao progresso e ao desenvolvimento. Superamos o velho
caudilhismo, que ainda assoma em experiências políticas que pipocam aqui e
acolá no universo hispano-americano. Mas, ao mesmo tempo, consolidou-se entre
nós um modelo autoritário de governo, que apregoa alto e bom som uma proposta
modernizadora de feição vertical, centralizadora e tecnocrática. Como frisaram
Antônio Paim e Simon Schwartzman, não superamos definitivamente o patrimonialismo,
tendo desenvolvido uma versão modernizadora do mesmo, plantada no chão das
práticas centralizadoras herdadas do ciclo pombalino, administradas na pesada
liturgia cartorial pelos estamentos. Quase três décadas após iniciarmos a
abertura democrática, ainda a administração pública e a política se ressentem,
no Brasil, da feição centralizadora e dirigista impingida pelas reformas
ensejadas no ciclo getuliano. Esse é o grande repto neste novo século:
conseguiremos, nas próximas décadas, fazer amadurecer entre nós um modelo
plenamente modernizador e democrático? Responder a essa pergunta significa
indagar se conseguiremos superar o modelo castilhista que se institucionalizou
na nossa vida republicana.
O Castilhismo foi um
sucesso na experiência republicana brasileira. Isso, a meu ver, porque deitou
raízes na tradição pombalina, que deu ensejo a parte expressiva das reformas
modernizadoras ocorridas ao longo do Império. Não esqueçamos que foram de
inspiração cientificista-pombalina as primeiras medidas desenvolvidas para
dotar o país, no início do século XIX, das instituições de ensino superior. De
inspiração pombalina foi também a idéia estratégica de ocupar a hinterlândia do
Planalto Central com uma nova Capital, que se comunicasse em forma de raios que
sairiam diretamente dela até as demais regiões. De formação pombalina foi, igualmente,
a nossa elite que fez a independência de Portugal em 1822. Cientificistas foram
as reformas ensejadas por Paranhos em 1874. É claro que ao lado da herança
pombalina havia, na estrutura do Estado, as instituições liberais da
representação e do Poder Moderador, inseridas na nossa vida política por
influência dos doutrinários franceses, que inspiraram aos denominados por
Oliveira Vianna de “homens de mil”, aqueles que rodearam incondicionalmente dom
Pedro II, numa espécie de círculo impenetrável de fidelidade ao monarca e ao
modelo constitucional por ele posto em prática. A tradição cientificista do
despotismo ilustrado ver-se-ia mitigada, no século XIX, pelas instituições liberais
do Império.
Advinda a
República após o “surto de idéias novas” que acompanhou à propaganda
republicana, as novas instituições foram sendo desenhadas no contexto de uma
crítica radical ao liberalismo do período imperial, no contexto de múltiplas
filosofias de inspiração cientificista, que se contrapunham ao ecletismo
espiritualista dominante durante o Segundo Reinado. O positivismo, o
naturalismo, o darwinismo social, o monismo de Haeckel, o saint-simonismo, a
agitação socialista inspirada nos publicistas franceses, constituíram alguns
dos parâmetros conceituais à luz dos quais foram sendo pensadas as novas
instituições. Mas, descontinuada a experiência de governo representativo da
monarquia, as instituições republicanas passaram a se inspirar notadamente no
positivismo, que constituiu a forma de cientificismo mais forte entre nós.
A respeito
dessa mudança de rumos na política do país, Antônio Paim escreveu: “A República
corresponde à brusca interrupção do processo de estruturação, no país, das
instituições do sistema representativo, sob a égide da doutrina eclética,
segundo a qual o homem e sua obra cultural são perfectíveis ao infinito e têm
assegurada a sua continuidade no tempo. Agora acredita-se que o homem é
determinado e determinável. Ao invés da organização do livre choque entre os
interesses, passa a admitir-se que o interesse nacional pode ser fixado a
partir da simples meditação científica. E se no ecletismo a moralidade era
conciliatória e ambígua, atribuindo-se mesmo certo papel à Igreja Católica
nessa matéria, a elite republicana crê na moral científica. Ao longo da
República Velha vigora a simples prática autoritária, isto é, o poder central elimina, com a denominada política dos governadores, o instituto
da representação, mas mantém-se o simulacro das eleições” [Paim, 1984: 101].
Diríamos
que, com o advento da República, o complexo de clã (presente nas oligarquias
rurais cooptadas pelo Império, mas mitigado pelo parlamentarismo e o exercício
zeloso do Poder Moderador), passou a dominar sem pólo de poder que o
contrabalançasse. A velha tendência
patrimonialista, presente na nossa história, ressurgiria ávida de privatização
do espaço público, ao longo da República Velha. É, nesse contexto de
privatização despudorada do poder na política dos governadores, que o
Castilhismo ocupou espaço importante, não como contrapeso que mitigasse o
autoritarismo, mas como opção centralizadora que se contrapunha à tendência
privatizante que, após o “encilhamento”, nos albores republicanos, prolongar-se-ia
numa clara apropriação da máquina do poder, nos Estados, pelas oligarquias. O
Estado, na República Velha, foi enxergado por estas como butim a ser apropriado
no enriquecimento próprio e das suas clientelas. É o velho “espírito
orçamentívoro” da “política alimentar”, criticado por Oliveira Vianna.
Três
aspectos desenvolverei na minha exposição: 1 – O Castilhismo, regime da
virtude. 2 – Um governo tutelar. 3 – Um “autoritarismo modernizador” que se
perpetuou na história republicana. Concluirei enfatizando a presença, no Brasil
atual, da tradição castilhista.
1 – O Castilhismo, “regime da virtude”.
Se houve um
traço marcante do Castilhismo, nas suas origens, foi o cultivo do ideal do
“regime da virtude”. Arthur Ferreira Filho fez uma bela caracterização desse
regime, com as seguintes palavras: “(Para Júlio de Castilhos) a República era o
reino da virtude. Somente os puros, os desambiciosos, os impregnados de
espírito público deveriam exercer funções de governo. No seu conceito, a
política jamais poderia constituir uma profissão ou um meio de vida, mas um
meio de prestar serviços à coletividade, mesmo com prejuízo dos interesses
individuais. Aquele que se servisse da política para seu bem estar pessoal, ou
para aumentar sua fortuna, seria desde logo indigno de exercê-la. Em igual
culpa, no conceito castilhista, incorreria o político que usasse das posições
como se usasse de um bem de família (...). Como governante, Júlio de Castilhos
imprimiu na administração rio-grandense um traço tão fundo de austeridade que,
apesar de tudo, ainda não desapareceu” [Ferreira Filho, 1958: 149].
Muitos são
os textos de inspiração castilhista nos quais se apregoa a pureza de intenções e o desinteresse
pessoal como virtudes supremas do político. Eis o que a respeito escrevia o
editorialista do jornal do Partido Republicano Sul-Rio-Grandense, A
Federação, em 7 de fevereiro de 1898: “Termina hoje o seu mandato de
Presidente do Rio Grande do Sul o benemérito republicano Dr. Júlio de
Castilhos. Historiar o governo de Júlio de Castilhos é escrever um manual de
educação cívica. O eminente cidadão (...) revelou as mais altas qualidades
políticas durante o seu período presidencial, qualidades que, reunidas às que
patenteou como homem da propaganda, como apóstolo intransigente de uma doutrina
(...) imprimem ao seu nobre caráter um tom de pureza verdadeiramente exemplar.
A sua personalidade (...) é
caracterizada sempre pelo mais amplo desinteresse material, pelo ódio aos
sofismas com que a consciência contemporânea explica as mais funestas
capitulações do dever. Em todas as páginas de sua vida (...) transluz esse culto raro da moral, esse
concentrado desejo de tornar a sua ação benéfica à comunidade em que vive
(...). Hoje, no Rio Grande do Sul, graças à ação educadora de Júlio de Castilhos,
o povo possui uma idéia elevada dos seus deveres políticos, tem consciência
nítida da sua responsabilidade, do valor do seu voto, da necessidade
indeclinável da sua interferência cívica nos destinos do Estado e da Nação”.
O
governante, para Castilhos, tinha de ser um apóstolo republicano, missão que se
exprimia na absoluta pureza de intenções,
que eqüivalia à ausência de interesses materiais de índole pessoal. Somente
assim poder-se-ia dar, em quem dirige a sociedade, a capacidade para perceber
cientificamente o sentido da racionalidade social, que se revelava, como
frisava Comte, unicamente às mentes livres dos prejuízos teológicos e
metafísicos. Victor de Britto caracterizou com propriedade a concepção
castilhista da política, quando frisou que, para essa tradição, “a autoridade
saída do consentimento geral dos povos não passa de uma fórmula grotesca, cuja
impotência e incapacidade para a solução dos magnos problemas, oferecidos pela
civilização hodierna, dia a dia se vão afirmando na consciência dos homens
esclarecidos. A obsoleta democracia foi-se com a bancarrota da metafísica. A
sociedade precisa ser regida pelas mesmas leis, submetida aos mesmos métodos
positivos das matemáticas e da biologia. Isso de soberania popular, de governo
do povo pelo povo, são conceitos vãos, criados para estorvar a ação da
autoridade no estudo das questões sociais, cuja solução só se deve inspirar na
necessidade histórica e na utilidade pública” [Britto, 1908: 48-49].
Encarnação
do “regime da virtude” foi, em grau supremo, a figura de Júlio de Castilhos. No
discurso pronunciado na sessão fúnebre de 31 de outubro de 1903 para honrar a
memória do Patriarca gaúcho, o jovem acadêmico Getúlio Vargas assim desenhava a
estatura moral do líder republicano: “O Brasil, colosso generoso, ajoelha
soluçando junto da tumba do condor altaneiro que pairava nos píncaros da
glória. Júlio de Castilhos para o Rio Grande é um santo. É santo porque é puro,
é puro porque é grande, é grande porque é sábio, é sábio porque, quando o
Brasil inteiro se debate na noite trevosa da dúvida e da incerteza, quando
outros Estados cobertos de andrajos, com as finanças desmanteladas, batem às
portas da bancarrota, o Rio Grande é o timoneiro da Pátria, é o santelmo
brilhante espargindo luz para o futuro. Tudo isso devemos ao cérebro genial
desse homem. Os seus correligionários devem-lhe a orientação política; os seus
coetâneos o exemplo de perseverança na luta por um ideal; a mocidade deve-lhe o
exemplo da pureza e honradez de caráter” [apud Lins, 1967: 192-193].
A “pureza
de intenções” castilhista traduziu-se, nos seus seguidores, numa austeridade
administrativa próxima do estoicismo. Contam os biógrafos de Borges de Medeiros
que, nos seus vários governos, o Palácio Piratini não dispunha de veículo
próprio, sendo alugado um carro de praça quando uma visita ilustre viesse à
capital do Estado. De Pinheiro Machado se diz que chegou, em certa
oportunidade, a pagar do seu próprio bolso os juros do serviço da dívida
externa brasileira, num momento de “vacas magras” do tesouro. Pinheiro Machado
gostava de se apresentar como “o pálio debaixo do qual se guarda a hóstia
republicana”, destacando a inspiração quase religiosa que o inspirava, quando
se tratava da defesa da coisa pública. O próprio senador castilhista ficou tão
chateado de ser acusado de corrupto por um deputado, que o reptou a duelo nas
areias da praia de Ipanema. Contrastam esses exemplos de virtude republicana
com o carnaval de gastos às custas do tesouro, que causam rombos e mais rombos
aos cofres da União e dos Estados, na nossa combalida história republicana
contemporânea.
2 - Um governo tutelar.
Paralela à
moralidade castilhista era a índole tutelar do regime implantado por Júlio de
Castilhos. O cidadão era considerado, à maneira pombalina, como peça da
engrenagem do Estado. Nada de direitos individuais sobranceiros à coletividade.
Nada de controle da máquina do governo pela “média da opinião”, como
reivindicavam os gasparistas[1]
e, posteriormente, os assisistas.[2]
O poder vem do saber, não do voto. Victor de Britto caracterizou muito bem a
concepção castilhista do poder, quando afirmou que para esta tradição, “a
autoridade saída do consentimento geral dos povos não passa de uma fórmula
grotesca, cuja impotência e incapacidade para a solução dos magnos problemas,
oferecidos pela civilização hodierna, dia a dia se vão afirmando na consciência
dos homens esclarecidos. A obsoleta democracia foi-se com a bancarrota da
metafísica. A sociedade precisa ser regida pelas mesmas leis, submetida aos
mesmos métodos positivos das matemáticas e da biologia. Isso de soberania
popular, de governo do povo pelo povo, são conceitos vãos, criados para
estorvar a ação da autoridade no estudo das questões sociais, cuja solução só
se deve inspirar na necessidade histórica e na utilidade pública” [Brito, 1908:
48-49].
O
Castilhismo partia do princípio de que a sociedade caminha inexoravelmente rumo
à sua estruturação racional. Atingem-se esta convicção e os meios necessários
para torná-la realidade, através do cultivo da ciência social. Esta é,
sobretudo, privilégio de personalidades carismáticas, que se impõem nos meios sociais
onde se encontram. Quando uma personalidade esclarecida pela ciência social
assume o governo, pode transformar o caráter de uma sociedade que levou séculos
para constituir-se. A ação política de Castilhos inscreveu-se neste contexto:
não consultou a opinião do povo, nem sequer indagou as condições de
receptividade do meio para a sua ação, porque, impelido por uma luz poderosa –
visão científica da sociedade e da missão que nela lhe correspondia – soube
aproveitar o concurso dos fatores determinantes e, de acordo com eles, influir
nas multidões. A crise do governo representativo, para o pensamento
castilhista, provém daqui: se a única alternativa para a estruturação racional
da sociedade é a imposição do governante esclarecido, qualquer outro tipo de organização
social que não for o seu tornar-se-á necessariamente caótico. Daí a feroz
crítica que o Castilhismo desatou contra o sistema parlamentar (sistema para lamentar, segundo o deputado
castilhista Germano Hasslocher).
No modelo
castilhista, o Executivo convertia-se num superpoder sobranceiro ao Legislativo
e ao Judiciário. Competia ao Executivo (que presidia com mão de ferro o Partido
Republicano Rio-Grandense, definitivamente majoritário na Assembléia e tornado,
praticamente, partido único no Estado), elaborar os projetos de lei e
submeté-los à apreciação dos cidadãos. Se, passados 90 dias da publicação do
projeto de lei nenhum cidadão se pronunciasse contra, se identificando perante
o intendente municipal, o projeto virava lei. A assembléia legislativa era
puramente orçamentária e a votação das matérias, nela discutidas, deveria ser
efetivada mediante o mecanismo do voto a
descoberto. A sua missão não consistia em legislar, mas em votar o projeto
de gastos que o Executivo lhe apresentava. E o Judiciário ficava em mãos do
Executivo, ao serem os seus membros nomeados pelo Presidente do Estado, segundo
dispunha a Constituição gaúcha de 14 de Julho de 1891 (artigos 7 a 11, 21 e 31
a 33), de autoria de Júlio de Castilhos.
É bem
verdade que Castilhos aqui não inovou. Seguiu o modelo elaborado por Augusto
Comte, na sua proposta de ditadura
científica. Acerca da inspiração comteana de Castilhos, escreveu Rubens de
Barcelos: “Enquanto muitos republicanos permaneceram embalados ao ritmo da
Marselhesa, alimentando o espírito com a ideologia revolucionária dos
convencionais franceses, exaltados celebrantes de uma forma de soberania
popular que entrega os governos aos azares da opinião flutuante,
transformando-os de órgãos diretores da sociedade, que devem ser, em meros
executores da vontade indisciplinada das correntes ocasionais; enquanto outros,
fiéis a Montesquieu, quedaram-se na obsessão das garantias da divisão tripartite
dos poderes, e procuraram nos federalistas americanos o ensino doutrinário,
Castilhos achou na meditação da obra de Comte e na observação dos fatos
históricos a fórmula mais capaz de resolver, de um ponto de vista humano, o
insanável problema político” [apud Paim, 1984: 107-108].
É evidente
que não apenas Castilhos se inspirava na obra de Comte. As correntes do Apostolado Positivista e do Positivismo Ilustrado também o fizeram.
Mas, tanto o Apostolado quanto os Positivistas Ilustrados privilegiavam a
educação das mentes e das vontades no método positivo, como caminho para a
implantação da sociedade racional, enquanto que Castilhos inverteu a equação:
tratar-se-ia, para garantir a regeneração da sociedade, primeiro de instaurar
um regime forte, que, em segundo lugar, educasse compulsoriamente os cidadãos.
O Castilhismo foi, assim, um modelo de tutoria política muito mais estatizante
que as demais vertentes do positivismo.
O pai do
Positivismo inspirou-se, para elaborar a sua proposta da ditadura científica, na figura de Napoleão Bonaparte, que na
Constituição francesa de 1802 sistematizou o modelo de ditadura esclarecida dos Cônsules que, no sentir de Comte, salvou a
França da instabilidade revolucionária. Vale a pena nos determos uns momentos
na análise do arquétipo bonapartista, que deu ensejo aos vários modelos de ditadura científica que foram tentados
ao longo do século XIX, inclusive no Rio Grande do Sul.
O Primeiro
Cônsul, segundo o pensamento de Napoleão, concentrava em si a representação
nacional. O Ancien Régime, bem como
os mecanismos tradicionais da representação corporativa de origem medieval
tinham caído por terra com a Revolução de 1789. Inoperante a representação
política como proveniente do povo, a Nação ficava sem instrumentos para exigir
dos membros do Governo a mínima responsabilidade. Os Cônsules e os seus
Ministros viraram espécies de semideuses, irresponsáveis perante a sociedade e
inatingíveis. A França caminhava na contramão da história dos países onde houve
um amadurecimento da representação, como a Inglaterra.
A respeito,
o banqueiro Jacques Necker (que foi ministro das Finanças de Luís XVI), escrevia:
"A responsabilidade dos Ministros na Inglaterra é algo real e bem
concreto. Mas tudo é diferente na França. Hoje, tudo caminha em sentido
contrário. Nada de Câmara dos Pares, que se imponha pelo seu caráter
hereditário. Nada de assembléia política representativa da Nação. Nada de
Parlamento, enfim, enraizado no espírito e no coração do povo. E além do mais,
nenhuma liberdade para escrever, para opinar sem pautas e sem tutores. Como,
com uma tal distribuição política, com uma desproporção tão marcante entre a
autoridade Executiva e todas as outras autoridades, ousaria alguém acusar um
Ministro! Essa seria uma empresa tão vã quanto perigosa" [Necker, 1802: I,
84].
Em meio a essa
falta de controles sobre o poder, a burocracia miúda tornou-se todo-poderosa, à
sombra do Primeiro Cônsul e dos seus Ministros. O efeito de tudo isso foi a
morte da liberdade e o fortalecimento do absolutismo. Todos passaram a ter
medo, menos o chefe do Executivo. Todos ficaram reféns do seu poder sem freio.
Eis o sombrio quadro traçado por Necker: "Que acontecerá com a liberdade
no meio de todos esses dispositivos políticos? O que o Cônsul quiser. O
Tribunado poderá lhe dirigir a palavra. Mas está previsto que não é obrigado
nem a escutá-lo, nem a lhe responder. O Senado Conservador está investido do
direito de anular os atos inconstitucionais. Mas ousará tal coisa? (...) E todo
mundo, em determinado momento, terá medo, exceto o Cônsul" [Necker, 1802:
I, 85].
Ora,
nenhuma estabilidade institucional poderia advir de tal regime. Tratava-se de
uma República de faz-de-conta. Tudo girava ao redor do único poder
verdadeiramente forte: o general Bonaparte. A feição dessa pseudo República foi
resumida perfeitamente por Jean-Jacques Chevallier, com as seguintes palavras:
"Uma fachada de sufrágio
universal (simples direito de apresentação). Uma fachada de assembléias: o Senado,
o Tribunato, o Corpo Legislativo. No governo uma fachada de três cônsules, sendo que o
poder repousava realmente no Primeiro Cônsul. Na tarde em que o texto
constitucional foi solenemente promulgado nas ruas de Paris, as pessoas
perguntavam: O que há na Constituição?
E a resposta era a seguinte: Há Bonaparte.
O referendum sobre um texto
constitucional tinha fatalmente virado um plebiscito
sobre um homem" [Chevallier, 1977: 107]. A propósito dessa enorme
encenação, escreveu Necker: "Mostraremos agora que toda essa organização é,
ao mesmo tempo, motivo de irritação para a massa geral dos Cidadãos, bem como
um atentado aos seus direitos, um estorvo para o Governo e um constrangimento
prejudicial para o bem do Estado" [Necker, 1802: I, 4-5].
No caso do
modelo de executivo hipertrofiado transplantado para os pampas, tratava-se, sem
dúvida, de uma autêntica ditadura
científica. A respeito, Venceslau Escobar escreveu na sua obra Apontamentos
para a história da Revolução de 1893: “Tal obra era, pois, a
consagração da preconizada Ditadura
Científica, o supremo ideal político da poderosa mentalidade do sábio de
Montpellier (...). Por um tal sistema constitucional, ficava o presidente
investido de grande soma de poder público; era quase, senão, um ditador, cuja
atribuição ia até nomear seu próprio substituto legal (...), para governar sem
dar contas à opinião (...). O estatuto político rio-grandense é o mais bem
ideado embuste democrático” [Escobar, 1920: 37-38].
É evidente
que o autoritarismo castilhista, embora pretendesse garantir a “continuidade
administrativa”, mediante a indicação do sucessor à Presidência do Estado pelo
seu antecessor, gerou mais turbulências do que períodos de tranqüilidade. Estão
aí, para provar esta apreciação, as duas grandes conflagrações que varreram os
campos do Estado, no final do século XIX, no período 1893 / 1897 (o conflito
entre pica-paus e maragatos) e nas primeiras décadas do século XX (a guerra
entre borgistas e assisistas, que terminou com a assinatura do Tratado de Paz
de Pedras Altas, em 1923). A instabilidade, de outro lado, alargou-se aos
sucessores do modelo castilhista, Getúlio e os seus colaboradores da Segunda
Geração. O Diário de Getúlio patenteia duas coisas, aos olhos de quem
quiser lê-lo com cuidado: a férrea vontade do líder são-borgense de modernizar
o Brasil, de um lado, e, de outro lado, as constantes preocupações, ao longo do
consulado getuliano, em face das inúmeras conspirações de que foi objeto o
Executivo hipertrofiado, alvo natural de todos os descontentes.
3 - Um autoritarismo modernizador, que se perpetuou na
história republicana.
O
Castilhismo, no Brasil, como o bonapartismo, na França, tiveram ampla
repercussão no esforço em prol de modernizar a máquina do Estado. Modernização
que, aliás, deixou marcas indeléveis na história moderna dos dois países.
Ninguém visita em Paris Les Invalides, sem um sentimento de
admiração em face da magna obra de reconstrução empreendida por Napoleão nos
terrenos econômico, político, jurídico e cultural, sem descartar a nova feição
do Exército que Bonaparte herdara das reformas feitas ao longo do século XVIII.
No caso
brasileiro, o a segunda geração castilhista que
subiu ao poder com Getúlio, em 1930, deixou marcas indeléveis na estrutura do
Estado e na própria configuração da sociedade. Se o Brasil teve um Presidente
operário, ex-líder sindical dos metalúrgicos de São Paulo (fato, aliás, incomum
na América Latina), isso se tornou possível porque Vargas, nas reformas
empreendidas há setenta anos, dotou o país da legislação necessária para que
surgissem os modernos sindicatos.
Embora
ferrenhamente comprometido com a defesa do regime sul-rio-grandense, Getúlio
Vargas acordou cedo, na sua função parlamentar, para a discussão dos principais
problemas nacionais, em face dos quais se preocupava com a busca de soluções
viáveis. Já em 19 de novembro de 1924, o deputado gaúcho fez, em memorável
discurso, uma clara enumeração dos principais problemas enfrentados pelo país:
desequilíbrio orçamentário, questão social, isolamento regional. A solução
deveria ser efetivada por meio de reformas, não de revoluções. Encontramos aí,
formulada em germe, a ulterior política getuliana de “equacionamento técnico
dos problemas”.
Eis o
trecho mais significativo do mencionado discurso: “Feita a República, que foi o
grande ideal nacional, garantidas as mais amplas conquistas liberais, com a
Constituição de 24 de Fevereiro, resta-nos apenas a realização dos grandes
problemas nacionais para que o Brasil possa descrever a curva harmônica do seu
progresso. Esses problemas têm constituído a preocupação patriótica do Governo
da República e têm sido largamente discutidos nesta Câmara, ainda este ano, nos
notáveis pareceres apresentados pelos relatores das diferentes Comissões e nos
discursos de todos os brilhantes espíritos que aqui se têm ocupado do assunto.
Estes problemas nacionais são, em primeiro lugar, o equilíbrio orçamentário,
porque, tanto os países quanto os indivíduos que gastam mais do que ganham,
desordenadamente, terão de chegar fatalmente à ruína. Restabelecido o
equilíbrio orçamentário, teremos a solidez das finanças, a fortaleza do crédito
público, a alta do câmbio, o barateamento da vida, a abundância material. Ao
lado deste, teremos os problemas
correlatos, a valorização do fator humano pela profilaxia, pela educação
primária, pelo ensino profissional; o aumento da produção e da circulação da
riqueza, pelo desenvolvimento dos meios de transportes. Mas, para que o Brasil
realize esses problemas, não precisa de revoluções, porque todos esses
problemas podem e devem ser resolvidos dentro do nosso regime. Essas
revoluções, absolutamente, não representam um ideal, porque não têm por si a
maioria da opinião nacional” [In: Brasil, 1930: 207].
Foi a
leitura da obra de Oliveira Vianna que levou Getúlio a descobrir a dimensão
nacional dos problemas e lhe permitiu superar o ranço de regionalismo gaúcho,
na abordagem dos mesmos. Getúlio citava, nos seus discursos, a partir de 1925,
trechos inteiros de Populações meridionais do Brasil, cuja primeira edição datava
de 1920. Foi através da leitura de Oliveira Vianna que o deputado castilhista
começou a superar os estreitos limites do comtismo, se abrindo a uma
perspectiva sociológica mais larga, na qual, sem esquecer os princípios do
organicismo saintsimoniano e do darwinismo social, incorporou a feição
monográfica da sociologia de Le Play e de Desmoulins, que já tinham, aliás,
inspirado ao próprio Silvio Romero.
No seu
memorável discurso de 25 de outubro de 1925, frisava Getúlio: “Ninguém melhor
que Oliveira Vianna, cujas idéias compendiamos em algumas destas sugestões, com
a esclarecida visão do sociólogo, apreendeu a evolução do povo brasileiro.
Fracassaram as generalizações apressadas da sociologia, pretendendo aplicar as
leis gerais da evolução, como um paradigma que todos os povos tivessem de
seguir, na sua marcha. Esqueceram-se que a ação modeladora do meio cósmico, da
composição étnica e dos fatores externos tinham que variar o processo do seu
desenvolvimento, que sofre avanços e recuos, desvios e contramarchas, conforme
a atuação preponderante desses agentes. Foi preciso que aparecesse a plêiade
brilhantíssima dos discípulos da Escola de Le Play, para, no estudo pormenorizado dos pequenos núcleos
sociais, apanhar toda a infinita variedade da vida” [Brasil, 1925: 4931].
Oliveira
Vianna identificou dois momentos-chave no processo brasileiro de centralização,
em Instituições
políticas brasileiras: o Segundo Reinado e o Estado getuliano. Dom
Pedro II e Getúlio Vargas enfeixaram, em suas mãos, o maior acúmulo de poder
que governante algum já conseguiu ter ao longo da história brasileira. A originalidade
política de ambos decorria do fato de terem encarnado uma autoridade de cunho
patriarcal, mas pondo-a a serviço de um processo modernizador, que tinha como
finalidade a definitiva consolidação do Estado nacional, sobranceiro aos clãs. Oliveira
Vianna considerava que o Estado getuliano tinha-se sobreposto à privatização do
poder político, decorrente da queda do Império e da adoção da instituição republicana,
calcada na Carta norte-americana pelas oligarquias da República Velha. Isso
terminou sacrificando o poder central no altar do vácuo federalista.
Getúlio
conseguiu reerguer um centro de poder nacional. Ao seu redor, em élan
modernizador, o estadista gaúcho deflagrou amplo processo de reformas
econômicas, sociais, trabalhistas e educacionais, que permitiram ao Estado
intervir nos principais setores da vida nacional, a fim de sobrepor a unidade
política e o sentimento nacional à colcha de retalhos de interesses clânicos em
que tinha afundado a República Velha. Esforço político-pedagógico que visava ao
surgimento de uma nova consciência social, como a pretendida pelo processo
centralizador do Império. O direito social, presente na legislação trabalhista
getuliana, seria elemento fundamental do processo [cf. Vianna, 1987 e Vélez,
1997].
Getúlio,
como era de se esperar, em decorrência de sua formação castilhista, endossava a
tese de Oliveira Vianna de que a representação, ao longo do Império, constituiu
mais uma pura formalidade a serviço da centralização dominante. A respeito,
frisava o deputado gaúcho: “É que no Brasil, verdadeiramente, nunca houve
regime parlamentar, como reflexo da vitória dos partidos. O Poder Moderador
abatia ou elevava Ministérios, e estes é que, paradoxalmente, elevavam ou
derrubavam as situações políticas. (...) O verdadeiro parlamentarismo nunca foi
exercido. Proibia-o a Constituição imperial. Impediram-no a falta de eleições
livres, o dissídio intestino dos partidos e, por fim, o poder efetivo da coroa”
[In: Brasil, 1925: 4722].
Conclusão.
A
modernização, no ciclo republicano, terminou se consolidando, infelizmente,
sobre a base do preconceito castilhista contra a representação política. Isso
fez com que a sociedade brasileira não cuidasse, a contento, de aperfeiçoar os
mecanismos que a tornariam mais eficiente e adaptada às necessidades do mundo
atual.
Os entraves
que o Brasil enfrenta, neste início de milênio, para se consolidar como nação
plenamente moderna decorrem, em boa medida, desse atraso institucional, bem
como da cultura patrimonialista de dependência do favor estatal, que impede o
surgimento de um modelo de gestão pública racional e afinado com as demandas do
mundo atual. Ambos os aspectos foram reforçados pela tradição castilhista na
vida republicana brasileira.
Seria
necessário, para superar essas dificuldades, que fosse feito um balanço do
modelo republicano herdado da tradição castilhista. Não ignorando,
evidentemente, o que de positivo tal modelo trouxe. Já seria muito
alvissareiro, por exemplo, que fosse revivido, no trato do dinheiro público
(nestes momentos de corrupção generalizada), o espírito do “regime da virtude”,
desvinculando a prática de tal regime do espírito jacobino em que foi entendido
por Comte e os Castilhistas. Encarar o dinheiro da Nação como algo de sagrado,
que não pode ser desviado da finalidade do bem comum, essa seria uma atitude a
ser seguida por governantes e governados, à luz da memória do “regime da
virtude” castilhista.
O aspecto
que, certamente, deveria ser superado ficaria por conta dos preconceitos
castilhistas para com a representação de interesses no Legislativo. Hoje se faz
necessário reconstituir o elo perdido entre representantes e representados nas
“Casas do Povo”, no Congresso Nacional, nas Assembleias Legislativas dos
Estados e nas Câmaras Municipais pelo país afora. Nessa empreitada, o resgate
da preocupação com a representação, presente nas críticas dos liberais gaúchos
ao Castilhismo no decorrer da República Velha, seria certamente um elemento que
iluminaria o debate atual.
Bibliografia
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Federal Fluminense, 1987, 2 volumes.
[1] Gasparistas: seguidores do líder
maragato (liberal), Gaspar da Silveira Martins (1835-1901), opositor ferrenho
do regime castilhista durante a guerra civil entre maragatos e pica-paus
(castilhistas), ocorrida no Rio Grande do Sul no período de 1893 a 1897.
[2] Assisistas: seguidores do líder liberal
Joaquim Francisco de Assis Brasil (1857-1938), que chefiou a oposição contra a
ditadura de Borges de Medeiros que deu ensejo à guerra civil em que se
defrontaram, no Rio Grande do Sul, borgistas e assisistas, entre 1922 e 1923.
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