Qual é a raiz do nosso atraso
como nação no mundo contemporâneo? Respondo sem titubeios: a cultura
patrimonialista que impera no Brasil. Ela é a representação de uma realidade
radical que nos condiciona desde que nascemos ao mundo como nação organizada: o
Estado patrimonial. Este consiste, lembrando a caracterização feita por Max
Weber, em organizar as instituições políticas como alargamento de uma
autoridade patriarcal original, que expande a sua dominação doméstica sobre territórios,
pessoas e coisas extrapatrimoniais, passando a administra-lo tudo, imaginando que fosse
bem de família. A cultura patrimonialista consiste nesse pensar todas as
instâncias sociais à maneira de patrimônio familiar.
Essa é, infelizmente, a nossa
origem histórica, no seio da secular tradição política luso-brasileira. Uma
prova atual desse caldo de cultura patrimonialista: a infeliz iniciativa em
curso de vários astros da nossa música popular (Gilberto Gil, Chico Buarque,
Roberto Carlos e Caetano Veloso) que praticamente instaura a execrável prática
da censura. O motivo? Resguardar a privacidade em face de possíveis desvios
entre os que escrevem biografias. Os mencionados
artistas pediram audiência à Presidente Dilma, com a finalidade de garantirem o
apoio do governo na tentativa de endurecer a legislação, de forma a impedir que
surjam biografias não autorizadas. Convenhamos que já os artigos 20 e 21 do
Código Civil criam dificuldades para quem pretende se aventurar nesse gênero
literário no Brasil. O artigo 20 estabelece que “salvo se autorizadas (...), a
divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição
ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas (...) se lhe
atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins
comerciais”.
À luz desse estatuto legal,
qualquer biografia precisaria ser autorizada previamente pelo biografado ou
pelos seus herdeiros. Em entrevista à revista Veja (edição 2344 de 23
de outubro de 2013), o procurador regional da República e professor de direito
constitucional da UERJ, Daniel Sarmento, frisou a respeito: “Isso é um caso
muito claro de censura (...). O Código Civil dá todo o peso à privacidade e
nenhum à liberdade de expressão. Nem na França, cuja lei protege mais a
privacidade, há essa necessidade de autorização prévia”. Ora, a fama obtida com
o sucesso artístico, muitas vezes denunciando a censura que imperava nos anos
de chumbo do regime militar, torna os beneficiários da mesma, proprietários do
que se possa falar deles impedindo, na contramão do que acontece no mundo
civilizado, a livre pesquisa e a divulgação das suas biografias. Isso é, em
palavras claras, censura. A memória cultural e histórica passa a ser
propriedade privada de uma casta que julga o que pode ser pesquisado e
divulgado! A essa casta se somariam os políticos, se tivessem sucesso absurdos projetos
de lei apresentados, em anos recentes, no Congresso.
Não é por outra razão que o
professor Francis Fukuyama, na entrevista concedida à revista Veja
(edição citada anteriormente), considera que o Brasil “ainda não possui as
bases de uma sociedade avançada” e alerta para o fato de que “a manutenção da
desigualdade pode levar ao radicalismo”. Para Fukuyama, “O Estado é a expressão
maior do poder, como o poder de aplicar as leis e de oferecer certos serviços
exclusivos para a população. Um Estado moderno é aquele capaz de cumprir essas
funções de maneira impessoal. Isso significa um Estado que trate todos os seus
cidadãos de maneira indistinta, independentemente deles possuírem conexões com
autoridades. O verdadeiro significado do Estado de direito é a limitação do
poder”. Ora, no Brasil do mensalão e de toda a carga negativa de crimes
praticados pela cúpula que tomou conta do governo, isso simplesmente se tornou
impossível. Os donos do poder podem tudo. A sociedade assiste de boca aberta a
todos os desmandos e paga a conta.
Embora os cientistas políticos
americanos relutem em utilizar as categorias weberianas, que muito poderiam
esclarecer tanto no relativo ao “retardamento cultural” dos países
latino-americanos, quanto no que tange à crise de desgaste das suas burocracias
nos atuais momentos, o professor Fukuyama se aproxima muito das análises feitas
pelos nossos sociólogos weberianos acerca da causa dos nossos males, o
patrimonialismo. O scholar americano chama
a atenção para a pesada herança ibérica que instaurou sociedades
desiguais. Com a palavra o professor
Fukuyama: “(...) Os espanhóis e os portugueses implantaram na região suas
instituições pré-modernas. Além disso, não foram sociedades compostas
inteiramente de colonos europeus, mas sobrepostas, de maneira desigual, a uma
vasta população de indígenas, tratados como escravos. No Brasil, assim como no
Caribe, a economia foi moldada ao redor do açúcar, uma agricultura baseada em
grandes propriedades e mão de obra escrava. Trata-se de um modelo cujo
resultado é a desigualdade. Não havia os incentivos para constituir uma burocracia
administrativa de qualidade nas colônias. Em razão desse estágio inicial de
profunda desigualdade, as instituições foram se moldando para servir às elites.
Nunca houve o princípio de oferecer educação de qualidade a toda a população.
Desde que a elite estivesse atendida, bastava”.
Nem tanto ao mar nem tanto à
terra. Houve, sim, no Brasil, como lembram Antônio Paim e Simon Schwartzman,
projetos modernizadores que, como clarões de luz, iluminaram o nosso sombrio
panorama. A modernização do nosso ciclo açucareiro promovida pelo conde de
Olivares, no século XVII, com a cooptação dos capitais judaicos, foi um desses
momentos. O ciclo pombalino foi outro. O Segundo Reinado constituiu outra
manifestação modernizadora. O Estado getuliano, no contexto autoritário herdado
do Castilhismo, pensou o Brasil industrializado e deitou as bases legais para
que acontecesse o surgimento da nossa industrialização. Os “cinquenta anos em
cinco” de Juscelino foram um clarão modernizador e democrático. O ciclo militar
empenhou-se em modernizar o nosso parque industrial, solucionar o problema da
integração nacional, construir estradas e portos, possibilitar as comunicações
telefónicas modernas, etc. Tudo isso, claro, no contexto de um estatismo que
fez passar as empresas estatais de 36, em 1964, para perto de 400, no final do período.
Mas justamente nesse viés de estatismo é que se perdeu novamente, no momento
republicano, a nossa vez de contarmos com um continuado projeto nacional
modernizador e aberto à sociedade, fazendo pesados investimentos em educação
básica. Hoje pagamos a conta pelos defeitos dos nossos ciclos modernizadores,
autoritários na sua maioria e que, pelas suas deficiências, propiciaram as
nossas aceleradas intermitentes rumo à modernidade, os conhecidos “voos de
galinha”.
Teremos perdido o bonde da
história? Espero que não, embora os governos lulopetistas tenham feito o
possível para fazer emergir o messianismo político e o neopopulismo como
respostas aos complexos reptos do mundo globalizado. O imperativo categórico da
lulopetralhada no poder consiste em enxergar o Brasil como simples
prolongamento do PT e de pensar as coisas, exclusivamente, do ângulo da
perpetuação da hegemonia partidária. Espero que os nossos Partidos da oposição
reajam e apresentem plataformas diferentes do surrado patotismo e da retórica
esquerdizante, que já vem cansando muitos setores da nossa sociedade.
Cultura Patrimonial
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