O Brasil vive tempos
de turbulência. Não se trata de algo absolutamente negativo. Trata-se da vida
de uma sociedade que tenta descobrir os seus caminhos, na trabalhosa via que
conduz à democracia. Surgida, para o mundo da política, “em berço esplêndido” à
sombra do Estado patrimonial, a sociedade brasileira busca encontrar caminhos
próprios, que revertam a tutela do Estado, a fim de que ela própria se torne
senhora do seu destino histórico. Trata-se de uma “crise” no sentido grego do
termo, ou seja, uma etapa de crescimento. É evidente que vivemos tempos
complexos, na medida em que os parâmetros que temos de encarar não são simples.
Quais os elementos que, na atual conjuntura, nós, brasileiros, nos vemos
obrigados a encarar? Eles se identificam com as várias opções que os atores
políticos colocam e que não aparecem organizadas nem logica nem historicamente.
Tudo desaba ex-abrupto sobre as nossas cabeças, à semelhança das múltiplas
tendências que, no início da vida republicana, o grande Sílvio Romero
identificava como “surto de ideias novas que se projetaram sobre a realidade
brasileira dos quatro cantos do horizonte”.
A complexidade social
dos dias que correm está certamente identificada, de um lado, com o canto de
sereia dos que pretendem que tudo será efeito de uma entropia social ao redor
do centro do poder, numa solução de tipo hobbessiano que apregoa a unanimidade
como regra de comportamento político. É o expediente jacobino que ainda paira
sobre as nossas cabeças, apregoado, em alto e bom som, pelo PT e os seus
principais atores, a presidente Dilma e o seu inspirador e guia, Lula. No outro
canto das opções sobre o tapete, aparece a variada gama dos que defendem uma
desconstrução anárquica de tudo quanto está aí, utilizando, na pregação
iconoclasta, as redes sociais e a violenta ação direta de grupos neofascistas e
das ONGs, que tanto tem proliferado nas últimas décadas. São os espertalhões
que surfam à mercê dos ventos orçamentários, como os capilés da vida. São os skin heads e os black blocs caboclos, todos de rosto mascarado, que espalham o
terror indiscriminado nas badernas infiltradas nas manifestações. Espertice,
aliás, que tenta ser capitalizada pelo centro do poder com a intermediação
ministerial de um dos tentáculos de Lula, o ministro Gilberto Carvalho que
anunciou, no findar das luzes do ano passado que, em 2013, “o bicho iria
pegar”, em alusão à alternativa da agitação dos movimentos sociais como fortim
de barganha dos donos do poder. Num outro canto do tapete aparece o fenômeno
que foi considerado assaz novo na nossa história recente: a massiva e pacífica movimentação
e participação dos jovens nas denominadas “Jornadas de Junho”, convocados via
redes, que bem poderíamos comparar, servatis
servandis, com as que, com o mesmo nome, Tocqueville estudou na França de
1848 na obra que o escritor francês intitulou: Lembranças de 1848 - As jornadas
revolucionárias em Paris [tradução de Modesto Florenzano; prefácio
de Fernand Braudel; introdução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Companhia
das Letras / Penguin, 2011], livro que se tornou clássico para o estudo
sociológico da movimentação revolucionária das ruas, do ângulo liberal. As
manifestações brasileiras foram pacíficas e espontâneas, diferentemente das que
sacudiram a França daquela época. Num outro ponto das propostas em jogo,
aparece o setor do Estado que melhor tem se desempenhado na atual conjuntura,
identificado com o Supremo Tribunal Federal, bravamente guiado pelo seu
presidente, o ministro Joaquim Barbosa, na tentativa dramática de fazer
prevalecer a lei na defesa dos valores essenciais da nossa democracia,
identificados com o respeito pela coisa pública, com a igualdade de todos
perante a lei e com a defesa da liberdade. Ocupa lugar, também, na collage de opções ideológico-políticas,
a pregação dos que tentam uma volta ao passado, como se a manutenção da ordem
dependesse de um cerrar fileiras em torno a propostas autoritárias. É a
conhecida opção pelo golpismo como forma extrema de manter a ordem conspurcada
pelo populismo da última década. Muito simbolicamente as sombras do passado
parecem assomar num canto do horizonte, ao ensejo da exumação dos restos
mortais do finado ex-presidente João Goulart, que se tornou pivô do ciclo de
exceção militar. Por fim, no fundo do quadro da atual situação, aparece o
Legislativo desmoralizado pelo corporativismo que o levou a defender até o
limite um deputado-presidiário, fato que terminou fazendo com que, para se
redimir perante as ruas, o próprio Legislativo, na Câmara dos Deputados,
terminasse aprovando, de forma atabalhoada, o fim do voto secreto.
Qual a orientação que
Tocqueville daria hoje aos brasileiros, em face da complexa situação que
acabamos de desenhar? Em primeiro lugar, recomendaria fazer um balanço, o mais
claro possível, da situação conflituosa com que o país se defronta. Em segundo
lugar, proporia apostar na mudança, mas cerrando fileiras ao redor das
instituições que defendem a liberdade.
No que tange ao
primeiro ponto, fazer um balanço completo da situação, Tocqueville destacava que
na França de 1848 o grande problema consistia em que os políticos no Parlamento
tinham deixado de cumprir com a sua função de representar os interesses da
população, tendo ficado reféns das benesses oferecidas pelo soberano Luís
Filipe, que ofereceu a todos uma espécie de “mensalão” para comprar a sua
fidelidade. Diante do risco de perder as benesses, em decorrência da mudança de
ministério anunciada por Guizot, os deputados ficaram em pânico. Eis as
palavras de Tocqueville a respeito: “(...) Esse desespero não deve surpreender,
se se levar em conta que a maioria desses homens sentia-se atingida, não só em
suas opiniões políticas, mas também no mais profundo de seus interesses
privados. O acontecimento que derrubara o ministério comprometia toda a fortuna
de tal deputado, o dote da filha daquele ou a carreira do filho do outro. Era
por esse meio que quase todos eram domados. A maior parte deles havia ascendido
com a ajuda das complacências governamentais e, pode-se dizer, delas tinha
vivido, delas ainda vivia e esperava continuar vivendo, porque, uma vez que o ministério
durara oito anos, acostumara-se à ideia de que duraria para sempre; ligara-se a
ele com o gosto honesto e tranquilo que se sente pela própria terra. De meu
banco, observava essa multidão ondulante; percebia a surpresa, a cólera, o medo
e a cupidez, perturbados, antes de ser saciados, misturarem seus traços
naquelas fisionomias desorientadas; comparava, com meus botões, todos esses legisladores a uma matilha de cães da
qual se arranca a carne ainda não devorada” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob. cit., p. 69-70]. Quadro bastante
realista que bem poderia servir para desenhar a cupidez e o imediatismo dos
nossos representantes no Congresso.
O problema da falta de
espírito público da classe política não se restringia, para Tocqueville, apenas
aos parlamentares da situação. Grassava essa falha, também, entre os membros da
oposição. A respeito, escrevia: “De resto, é preciso reconhecer que um grande
número de membros da oposição teria dado o mesmo espetáculo, se fosse submetido
à mesma prova. Se muitos conservadores só defendiam o ministério com vistas a
manter emolumentos e cargos, devo dizer que, a meu ver, muitos membros da
oposição só o atacavam para conquista-los. A verdade, deplorável verdade, é que
o gosto pelas funções públicas e o desejo de viver à custa dos impostos não
são, entre nós, uma doença particular de um partido: é a grande e permanente
enfermidade democrática da nossa sociedade civil e da centralização excessiva
de nosso governo; é esse mal secreto que corroeu todos os antigos poderes e
corroerá igualmente todos os novos” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob.
cit., p. 70]. O que o pensador francês retratava era justamente aquilo que
Oliveira Vianna identificava como marca registrada da nossa República: a política alimentar.
Passemos ao segundo
ponto que mencionei anteriormente: a proposta tocquevilliana de apostar na
mudança, mas cerrando fileiras ao redor das instituições que garantissem a
liberdade dos cidadãos. Se o Legislativo da época na França estava
desprestigiado, o nosso autor considerava que deveria ser preservado em face da
maré montante dos revolucionários que queriam a pura e simples abolição das
instituições. Ora, a reflexão de Tocqueville é clara: a representação política não
pode ser substituída pela movimentação das ruas, embora esta deva ser sempre
auscultada como caixa de ressonância do que os cidadãos querem. Por outro lado,
não pode haver representação adequada sem partidos que canalizem a defesa dos
interesses dos indivíduos. Não se pode brigar de peito aberto nas ruas, sem ter
uma instituição que garanta a eficácia e a legitimidade da luta. “Tenho mais
experiência que o senhor em movimentos populares – dizia Tocqueville ao general
Bugeaud, que tentava peitar, sozinho, os revolucionários de 1848 na rua -;
creia-me e volte imediatamente ao seu cavalo, pois, se ficar, será morto o
aprisionado em menos de cinco minutos”. O cavalo dos cidadãos é a
representação. Sem ela, a defesa dos seus interesses irá por água abaixo.
Tocqueville saudava a
mudança. Mas não acreditava na convulsão revolucionária como meio de ação. Confiava
mais em reformas que garantissem o exercício da liberdade. Em face da
movimentação revolucionária de 1848, o pensador observava que muitos estavam
felizes com o fato de as vetustas instituições terem ido por terra, a começar
pelo parlamento. O seu amigo Beaumont era um desses otimistas. “Eu estava longe
de esposar essa alegria – escreve Tocqueville – e, como me achava entre pessoas
com as quais podia falar livremente, expus-lhes os meus pensamentos: A guarda nacional de Paris acaba de
destruir um governo; é pois de acordo com ela que os novos ministros vão
dirigir os assuntos. Alegram-se porque o ministério foi derrubado; mas não
percebem que é o próprio poder que foi lançado por terra. Essa política
sombria não agradava a Beaumont. O senhor
vê tudo sempre negro, disse-me, gozemos
antes nossa vitória. Mais tarde nos inquietaremos com suas consequências (...).
Nem por isso deixei de manter minha tese diante dele, sustentando que, fosse
como fosse, o incidente tinha sido infeliz ou, antes, que era necessário nele
ver mais que um incidente, que se tratava de um grande acontecimento que iria
mudar a face de todas as coisas (...). O movimento imprimido à máquina pública
parecia-me muito violento para que o poder pudesse ser retido pelos partidos
intermediários aos quais eu pertencia; segundo minhas previsões, ele cairia
logo em mãos que eram quase tão hostis quanto aquelas das quais escapara”
[Tocqueville, Lembranças de 1848, ob cit, p. 71-72].
Confiar cegamente nas
revoluções não era uma boa alternativa, segundo Tocqueville. Isso porque elas
obedecem a uma dinâmica irracional e terminam beneficiando os oportunistas e
sacrificando a maioria. “As revoluções – frisava o nosso autor – nascem
espontaneamente de uma doença geral dos espíritos, induzida de repente ao
estado de crise por uma circunstância fortuita que ninguém previu; quanto aos
pretensos inventores ou condutores dessas revoluções, nada inventam ou
conduzem; seu único mérito é o dos aventureiros que descobriram a maior parte
das terras desconhecidas: atrever-se a ir sempre em linha reta, para a frente,
com o vento a favor. Retirei-me cedo; deitei-me logo depois., Embora morasse
bem próximo do palácio dos Negócios Estrangeiros, não ouvi a fuzilaria que
tanta influência exerceu sobre os destinos, e adormeci sem saber que tinha
visto o último dia da Monarquia de Julho” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob.
cit., p. 73].
Tocqueville
considerava que, no contexto da revolução que tudo removia, era necessário
salvar a instituição que encarnava a representação dos interesses dos cidadãos,
o Parlamento. Em tempos de turbulência os representantes do Estado devem ocupar
os seus lugares. Tocqueville, nas Jornadas de Junho de 1848, correu para o
Parlamento e sentou na sua cadeira. Eis
a forma em que, nessas circunstâncias, o nosso autor vivenciava a preocupação
para com o Legislativo. Diante das turbas iradas que tinham deposto o
Ministério, ele procurava salvar a mínima dignidade do Parlamento, impedindo
que simplesmente fosse fechado pela turba incendiária. Tocqueville, deputado
eleito pelo seu torrão familiar, a Normandia, lutava para salvar a Casa do Povo.
Escreve: “Ao atravessar a praça do Palácio Bourbon, com esse objetivo, avistei
uma multidão muito heterogênea que acompanhava entre grandes aclamações dois
homens que reconheci imediatamente: Barrot e Beaumont, com os chapéus enfiados
até os olhos, as roupas cheias de pó, os rostos encovados, os olhares abatidos –
nunca vencedores assemelharam-se mais com homens que estão a caminho a forca.
Corri para Beaumont e perguntei-lhe o que acontecia; disse-me ao ouvido que o
rei havia abdicado em sua presença, que fugira (...) , que tudo ia à deriva;
enfim, que ele e Barrot se dirigiam ao Ministério do Interior para tomar-lhe a
posse e procurar estabelecer um centro de autoridade e de resistência em alguma
parte. E a Câmara? Perguntei-lhe, tomaram precauções para sua defesa?
Beaumont recebeu a indagação com irritação, como seu tivesse lhe falado de
minha própria casa. Quem pensa na Câmara?
, respondeu-me bruscamente. Para que
pode servir e a quem pode prejudicar nesta situação? Achei que ele estava
errado ao pensar daquela forma, e com efeito estava. Era verdade que, naquele
momento, a Câmara estava reduzida a uma singular impotência, com sua maioria
desprezada e sua minoria ultrapassada pela opinião do momento. Mas Beaumont
esquecia-se de que é sobretudo em tempos de revolução que as menores
instituições do direito – e mais: os próprios objetos exteriores – adquirem a
máxima importância, ao recordar ao espírito do povo a ideia de lei; pois é
principalmente em meio à anarquia a ao abalo universais que se sente a
necessidade de apego, por um momento, ao menor simulacro de tradição ou aos
laivos de autoridade, para salvar o que resta de uma Constituição semidestruída
ou para acabar de fazê-la desaparecer completamente. Se os deputados tivessem
podido proclamar a regência, talvez ela tivesse prevalecido, apesar da
impopularidade; e, por outro lado, não se poderia negar que o governo
provisório devia muito ao acaso que o fez nascer entre quatro paredes por tanto
tempo habitadas pela representação nacional” [Tocqueville, Lembranças de 1848, ob
cit., p. 85-86].
Ao ler estas palavras
de Tocqueville lembro-me das jornadas brasileiras de junho e vejo que as
multidões cobraram responsabilidade dos seus representantes no Congresso
Nacional, nas Assembleias Legislativas nos Estados e das Câmaras Municipais das
cidades. As Casas Legislativas, pelo país afora, foram ocupadas pelos
manifestantes. A mensagem estava dada: os cidadãos queriam reconstruir o elo de
ligação entre os seus representantes e eles. Mas, paralelamente, num crescendo
patológico, muitas dessas casas do povo terminaram sendo ocupadas por
militantes black-blocs e anarquistas,
simplesmente com o intuito de desmoraliza-las, tendo servido os espaços do
poder legislativo como palcos para cenas de vandalismo, de prostituição e de
simples aniquilação de qualquer simbolismo de poder. Isso ocorreu na Assembleia
Legislativa do Rio, na Câmara Municipal de Porto Alegre, na Câmara de
Vereadores de São Paulo e de outras cidades. O recado dos baderneiros está
dado: não dão a mínima para a representação dos interesses dos cidadãos! De
outro lado, no seio do Supremo Tribunal Federal, os juízes indicados
recentemente e que entraram a formar parte do colegiado, passam também o seu
recado: vieram para “fazer o serviço”, tentando esvaziar o ímpeto da aplicação
rigorosa da lei impresso pelo Presidente da Instituição, Joaquim Barbosa,
mediante a posta em marcha de firulas revisionistas que ameaçam paralisar o
processo. Os beneficiados com essa protelação sabemos quem são: os mensaleiros
e o Partido que exerce o poder. Os perdedores também são conhecidos: todos os
brasileiros e as instituições republicanas! Seria fundamental, para a preservação
destas, que os cidadãos de novo se manifestassem como o fizeram em Junho e que
os intelectuais bradassem contra o desleixo em face da sorte do país. O que se
vê é o descaso carnavalesco como essa parada que, em Salvador, tumultuou o trânsito
em protesto contra o abandono da banda Chiclete com Banana por um dos seus
integrantes...
Seria necessário no
Brasil, nos dias atuais, pensaria Tocqueville, que os cidadãos deste país
sacudissem de novo a poeira do marasmo e voltassem às ruas para exigir o
respeito às instituições que lhes garantem a liberdade, a começar pelo
saneamento completo dos partidos políticos e do Congresso e pelo respeito ao
Supremo Tribunal Federal, que deveria manter o seu rumo de valorização da lei e
das instituições, julgando definitivamente os mensaleiros. Mas o fim do ano se
aproxima, o calor se instala e o carnaval de 2014 se insinua no horizonte...
Tocqueville nunca foi tão atual professor!
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