O pensamento político de Alexis de Tocqueville reveste-se de
grande atualidade, não só no contexto europeu e norte-americano, como também do
ponto de vista da problemática vivida hodiernamente pelos países
latino-americanos. A nossa história, em Ibero-América, desenvolveu-se sempre
entre dois extremos: de um lado, o velho absolutismo ibérico e o seu herdeiro,
o caudilhismo latino-americano; de outro, o anarquismo revolucionário. São as
"sístoles e diástoles do coração do Estado", de que falava o general
Golbery do Couto e Silva [1981], referindo-se à monocórdia sucessão de períodos
autoritários centrípetos e de "anarquia branca" [Oliveira Vianna,
1987] marcadamente centrífuga, presente nos momentos democráticos.
A história
política da França, ao longo do século XIX, esteve submetida a essas duas
forças, que assombravam a vida dos cidadãos com os fantasmas herdados do
centralismo absolutista e do anarquismo revolucionário. Não que um fosse alheio
ao outro. Pois o jacobinismo herdou o procedimento centralizador do velho
absolutismo, que pretendeu esconjurar. E os rituais cartoriais dos
"intendentes do Rei", ao longo do século XVIII, espalharam o terror e
a incerteza, de forma paradoxal, pois se apresentavam alicerçados nas luzes dos
"philosophes".
Mas o certo
é que a história francesa do oitocentos desenvolveu-se entre essas duas forças.
A grande façanha dos liberais doutrinários, Guizot à testa, consistiu em ter
conseguido estabelecer um divisor de águas entre tradição e anarquismo,
salientando a necessidade de práticas respeitadoras da liberdade, alicerçadas
em leis. Mas a geração de Guizot parou aí. Não se preocupou em equacionar a
questão da democracia. Já tinha dado suficiente contribuição ao ter conseguido
deter a maré revolucionária, bem como impedir a volta do Antigo Regime tout-court.
A discussão
da problemática da democracia, no seio do liberalismo francês do século
dezenove, coube ao herdeiro dos doutrinários: o jovem Tocqueville. É meu
propósito, neste trabalho, seguir as pegadas do pensador, na sua obra mais
conhecida: A Democracia na América, cujos dois volumes apareceram, sucessivamente, em 1835 e
em 1840. Destacarei, ao longo da minha exposição, os pontos em que o pensamento
tocquevilliano é, ainda hoje, fonte de profunda renovação para o republicanismo
contemporâneo, notadamente no meio latino-americano, submetido ao risco dos
extremos caudilhista e revolucionário.
Tocqueville recebeu especial influência de Guizot.
Detalhemos esse fato, que pôs em contato o nosso autor com as idéias dos liberais
doutrinários. Em 1829-1830, freqüentou os cursos que Guizot ministrou na
Sorbonne acerca da história da França. Como lembra Françoise Mélonio [1993:
17], o jovem Tocqueville foi um “ouvinte atento”, que “tomava notas nas quais se vê a admiração
do discípulo”. Mas, por outro lado, um discípulo crítico, que tinha sofrido, na
pele da sua família nobre, os excessos da Revolução, que era focalizada pelo
frio Guizot de uma forma mais distanciada e formalista. Particularmente, o
nosso autor encontrava dificuldade em aceitar a idéia de Guizot, de superar o
ciclo revolucionário num regime fundado apenas no voto censitário.
Sem dúvida
que a influência de Guizot foi decisiva em Tocqueville, em que pese o reparo
que acaba de ser mencionado. O cerne dessa influência consistiu na insistência
do velho doutrinário em “inculcar nas jovens gerações o respeito ao passado,
para restabelecer a unidade da Nação ao longo dos séculos” [Mélonio, 1993: 17].
Pierre Rosanvallon [1985: 26] destacou, com as seguintes palavras, a finalidade
perseguida por Guizot e pelos demais doutrinários: “Terminar a Revolução,
construir um governo representativo estável, estabelecer um regime garantidor
das liberdades e fundado na Razão. Esses objetivos definem a tripla tarefa que
se impõe a geração liberal nascida com o século. Tarefa indissoluvelmente
intelectual e política, que especifica um momento bem determinado do
liberalismo francês: aquele durante o qual o problema principal é prevenir a
volta de uma ruptura mortal entre a afirmação das liberdades e o
desenvolvimento do fato democrático. Momento conceitual que coincide com o
período histórico (da Restauração e da Monarquia de Julho), no curso do qual
essa tarefa está práticamente na ordem do dia e que se distingue, ao mesmo
tempo, do momento ideológico, que prolonga a herança das Luzes e do momento
democrático, que se inicia
depois de 1848 (...)”.
Tocqueville
assimilou perfeitamente a herança dos doutrinários, notadamente de Guizot. “A
obra de Tocqueville - escreve Françoise
Mélonio [1993: 16] - nasce do sentimento
da precariedade do compromisso efetivado pela monarquia constitucional entre a
reivindicação igualitária e a herança do Antigo Regime. Tocqueville vivenciou
esse sentimento nas desgraças da sua família. Mas ele lhe deu uma forma
racional, graças à leitura das obras dos seus antepassados. Desde 1828 ele se
afasta do radicalismo dos seus familiares, ao repudiar a ilusão de uma volta ao
passado: ele aceita 1789 como uma ruptura definitiva na história da França. De
entrada, ele compartilha com os liberais ou os doutrinários, seus antepassados,
o sentimento de pertencer a obscuras gerações de momentos de mudança. Como
eles, observa a democracia correndo a
margens cheias[1]. Como eles, crê no caráter irresistível do curso dos
acontecimentos: Os rios não remontam em direção à
fonte[2] . A obra de
Tocqueville seguirá interminavelmente a metáfora fluvial introduzida pelos
doutrinários. Ao aceitar o diagnóstico dos liberais, Tocqueville faz também
seus os objetivos deles. Pois tudo está destruído, é tempo de reconstrução.
Tarefa difícil. A paixão de destruír, que sobrevive à Revolução, mantém a
sociedade em estado de guerra civil. Depois de 1820, a Restauração é alvo de
complôs renovados que manifestam a impossibilidade de um consenso em relação às
instituições”.
Mas se
Tocqueville é tributário dos doutrinários, no entanto supera-os. A defesa da
liberdade, que no pensamento daqueles veio a se traduzir num certo formalismo,
que pretendia garantir as conquistas da Revolução apenas para a burguesia
cômodamente instalada no poder, no nosso autor constitui imperativo categórico
a ser consolidado e garantido para todos os franceses. Tocqueville abre-se à
democracia, que experimenta de fato na América, através do caminho da defesa da liberdade para todos.
Em relação
à maneira peculiar em que o nosso autor entende o seu ideal liberal e
democrático, em contraposição à forma tacanha como era concebido pelos doutrinários, Françoise Mélonio [1993:
37] escreve: “Mas o self-government não é mais do que um dos aspectos da auto-regulação da
sociedade. Tocqueville faz de toda a vida social uma grande escola de
responsabilidade; na ordem jurídica, pela participação de todos no juri, na
ordem da opinião por uma reflexão sobre os partidos e os jornais, que ele designa
com o termo generico de associação. Polêmica, a argumentação de Tocqueville é dirigida contra
a feição conservadora dos publicistas liberais ou doutrinários (...). Toda a
estratégia de Tocqueville consiste em mostrar que a ordem tão cara aos conservadores
não pode ser garantida senão graças à liberdade de se reunir, que eles negam
precisamente ao cidadão francês. É necessário arriscar, estamos envolvidos. Não
há meio-termo entre a servidão e a extrema liberdade. (...). A democracia não é
o lugar da identidade miraculosa entre os homens, mas é aquele regime que se
consolida na relação entre as classes antagónicas”.
A posição
crítica de Tocqueville em face dos doutrinários suscitou a reação deles.
Françoise Mélonio [1993: 57] sintetizou a posição de Guizot a respeito, nos
seguintes termos: “Para Guizot, Tocqueville destruiu a moralidade ao proclamar
a autonomia das vontades em detrimento dos direitos da Verdade, tal como ela se
apresenta aos espíritos esclarecidos. Guizot não é um filósofo da liberdade.
Para ele, a liberdade não é no homem mais do que o poder de obedecer à verdade.
A nocão de capacidade (...) remete também a uma teoria da razão e a uma
teologia, segundo a qual há, na economia da salvação, procuradores do Direito
investidos da missão de guiar a humanidade. A argumentação de Guizot se
encontra em todos os escritores preocupados em preservar as elites (...)”.
A “conversão” de Tocqueville ao ideal democrático
Quando se
deu a “conversão” de Tocqueville à idéia democrática? Essa conversão efetivou-se,
de forma clara, na sua viagem à América, que ocorreu entre 11 de maio de 1831 e
20 de fevereiro de 1832. “É possível datar as etapas dessa conversão - escreve Françoise Mélonio [1993: 29-30] -.
Em New York, onde permanece de 11 de maio a 2 de julho, Tocqueville é, de
entrada, muito reticente. Essa sociedade de mercado onde o governo está ainda
na infância, não possui nada que possa seduzir a um jovem aristocrata. (...).
Mas ele não pode deixar de invejar o patriotismo do povo americano e a tranqüilidade
com a qual ele se
mantém em ordem, graças somente ao sentimento de que não há mais salvaguarda
contra si mesmo do que em si mesmo. A conversão se completa em Boston (7 de setembro - 3 de outubro),
onde Tocqueville, ao descobrir o que é a
igualdade bem regrada, adere a uma democracia que, de resto, triunfa
irresistívelmente. É então somente agora, no fim de setembro, quando ele decide
escrever um livro sobre as instituições americanas, a fim de testemunhar, entre
os franceses, que a democracia feliz existe, pois a tem encontrado (...)”
Vale a pena
citar o trecho da carta em que Tocqueville dá conta do novo projeto ao seu
primo, Luis de Kergorkay: “Descrever muito exatamente o que seria necessário
esperar e temer da liberdade. Nós temos tido na França, nos últimos cem anos, a
anarquia e o despotismo sob todas as suas formas, mas jamais nada que se
assemelhasse a uma república. Se os monarquistas pudessem ver a marcha interior
de uma república bem organizada, o respeito profundo que se tem ali pelos
direitos adquiridos, a pujanza desses direitos nas massas, a religião da lei, a
liberdade real e eficaz de que ali se goza, o verdadeiro reino da maioria, o
progresso cômodo e natural que ali seguem todas as coisas, perceberiam que
abarcam sob um nome comum, estados diversos que nada possuem de análogo. Os
nossos republicanos, por sua vez, sentiriam que o que temos chamado de
República, não tem sido mais do que um monstro que não se saberia classificar
(...), coberto de sangue e de sujeira, vestido de farrapos, ao som das querelas
da antigüidade” [apud Mélonio, 1993: 30].
Tocqueville e a nova ciência política
Alexis de
Tocqueville, com a sua Démocratie en
Amérique deu ensejo, na
França, a uma nova ciência política. Quais os contornos que a definem? Em primeiro
lugar, o nosso autor estava inspirado numa epistemologia que hoje chamariamos
de modesta. Se é verdade que o absolutismo é, em política, irmão gêmeo
do dogmatismo em filosofia, também podemos afirmar que a modéstia
epistemológica é pressuposto
do liberalismo. Não pode haver autêntica defesa da liberdade e da tolerância,
ali onde se professam verdades inamovíveis, no que tange à concepção do homem e
do mundo. Eis o que Tocqueville escrevia, em 1831, ao seu amigo Charles
Stöffels: “Para a imensa majoria dos pontos que nos interessa conhecer, nós não
temos mais do que verosimilhanças, aproximações. Se desesperar porque as coisas
são assim, é se desesperar pelo fato de ser homem; pois essa é uma das mais
inflexíveis leis da nossa natureza (...). Sempre considerei a metafísica e
todas as ciências puramente teóricas, que de nada servem na realidade da vida,
como um tormento voluntário que o homem consentia em se impor” [apud Mélonio,
1993: 31].
Em 1858, o
nosso autor explicava ao filósofo Bouchitté, em termos de sabor pascaliano, que
a mais refinada metafísica não era mais clara que o simples senso comum acerca
do sentido do mundo e, especialmente, em relação “(...) à razão do destino
deste ser singular que chamamos homem, ao qual foi dada justamente tanta luz
quanta era necessária para lhe mostrar as misérias da sua condição e
insuficiente para mudá-la” [Mélonio, 1993: 31].
Na trilha
que acaba de ser mencionada, Tocqueville situa a sua crítica ao historicismo, que termina sacrificando a liberdade e a pessoa no altar
da abstração histórica. Tocqueville considerava que esse era um vício próprio
dos historiadores que vivem “em séculos democráticos”, preocupados mais em
serem lidos com facilidade pelas grandes multidões, do que em fazer uma análise
verdadeira dos fatos. Antecipava-se genialmente o nosso autor, destarte, à
crítica que os neo-kantianos, com Rickert à testa, deflagraram, na virada do
século XIX para o XX, à tendência abstrata da escola histórica alemã de
Savigny.
A respeito
da historiografia que se pratica nos séculos
democráticos, Tocqueville [1977:
375] escreve o seguinte, diferenciando-a da que se pratica nos séculos
aristocráticos: “Os
historiadores que vivem nos séculos democráticos mostram tendências
inteiramente contrárias. A maior parte deles quase não atribui influência
alguma ao indivíduo sobre o destino da espécie, nem aos cidadãos sobre a sorte
do povo. Mas, em troca, atribuem grandes causas gerais aos pequenos fatos
particulares. Essas tendências opostas são explicáveis. Quando os historiadores
dos séculos aristocráticos lançam os olhos para o teatro do mundo, a primeira
coisa que nele percebem é um pequeno número de atores principais, que conduzem
toda a peça. Essas grandes personagens, que se mantêm à frente da cena, detêm a
sua visão e a fixam: ao passo que se dedicam a revelar os motivos secretos que
fazem com que ajam e falem, esquecem-se do resto. A importância das coisas que
vêem alguns homens fazer dá-lhes uma idéia exagerada da influência que pode
exercer um homem e, naturalmente, os dispõe a crer que é sempre necessário
remontar à ação particular de um indivíduo para explicar os movimentos da
multidão”.
“Quando, ao
contrário, - prossegue Tocqueville
- todos os cidadãos são independentes
uns dos outros, e cada um deles é frágil, não se descobre nenhum que exerça um
poder muito grande nem, sobretudo, muito durável, sobre a massa. À primeira
vista, os indivíduos parecem absolutamente impotentes sobre ela e dissera-se
que a sociedade marcha sozinha pelo concurso livre e espontâneo de todos os
homens que a compõem. Isso leva naturalmente o espírito humano a procurar a
razão geral que pode assim atingir, a um tempo, tantas inteligências e
voltá-las simultaneamente para o mesmo lado”.
O principal
defeito que Tocqueville enxergava na historiografia dos tempos democráticos, consistia no fato de tal
modelo se alicerçar numa concepção fatalista da história, que pressupõe, em
primeiro lugar, uma concepção determinista do homem. A respeito, o nosso autor
escreve: “Os historiadores que vivem nos tempos democráticos não recusam, pois,
apenas atribuir a alguns cidadãos o poder de agir sobre o destino do povo;
ainda tiram aos próprios povos a faculdade de modificar a sua própria sorte e
os submetem, ora a uma providência inflexível,
ora a uma espécie de cega fatalidade. Segundo eles, cada nação é invencivelmente ligada, pela sua
posição, sua origem, seus antecedentes, sua natureza, a certo destino, que nem
todos os esforços poderiam modificar. Tornam as gerações solidárias umas às outras
e, remontando assim, de época em época e de acontecimentos necessários em
acontecimentos necessários, à origem do mundo,
compõem uma cadeia cerrada e imensa, que envolve todo o gênero humano e
o prende. Não lhes basta mostrar como se deram os fatos: comprazem-se ainda em
mostrar que não podiam dar-se de outra forma. Consideram uma nação que chegou a
certo ponto da sua história e afirmam que foi obrigada a seguir o caminho que a
conduziu até ali. Isto é muito mais fácil que mostrar como teria podido fazer
para seguir um melhor caminho” [Tocqueville, 1977: ibid].
Tocqueville,
pensador definidamente liberal, rejeita de plano tal historiografia, por
considerar que essa concepção nega a liberdade humana, base da “dignidade das
almas”. Trata-se de superar as desgraças da Revolução e do Terror, não de
conduzir a nação francesa à sua definitiva destruição. O nosso autor
identifica, em alto e bom som, o caminho que deve ser seguido: o da conquista
da liberdade para todos os franceses.
A respeito
da crítica efetivada a essa concepção fatalista, Tocqueville [1977: 377]
escreve: “Se essa doutrina da fatalidade, que tem tantos atrativos para aqueles
que escrevem a história nos tempos democráticos, passando dos escritores a seus
leitores, penetrasse, assim, em toda a massa de cidadãos e se apoderasse do
espírito público, pode-se prever que logo paralisaria o movimento das
sociedades novas e reduziria os cristãos a turcos. Direi mais: semelhante
doutrina é particularmente perigosa à época em que nos encontramos; nossos
contemporâneos acham-se muitíssimo inclinados a duvidar do livre arbítrio,
porque cada um deles sente-se limitado por todos os lados pela sua fraqueza,
mas ainda atribuem de boa vontade força e independência aos homens reunidos em
corpo social. É necessário que nos guardemos de obscurecer essa idéia, pois se
trata de restabelecer a dignidade das almas e não de completar a sua
destruição”.
Mas se, por
um lado, Tocqueville se insurge contra o historicismo que torna o homem peça de
uma engrenagem universal, por outro lado, a sua formação cristã o leva a
aceitar a Providência divina, não como “deus ex
machina” que negue a
liberdade, mas justamente como marco teórico que a pressupõe: o plano de Deus
consiste em que os homens sejam livres, não em que se tornem escravos. O
progresso e a liberdade, não são caprichos humanos, mas formam parte do plano
que Deus providencialmente traçou ao gênero humano. Lembramo-nos, aqui, da
figura de outro liberal de formação católica, contemporâneo de Tocqueville: o
historiador português Alexandre Herculano, cuja visão providencialista se
aproxima muito da acalentada pelo pensador francês.
Françoise
Mélonio [1993: 32] explica da seguinte forma o providencialismo tocquevilliano:
“De entrada, o recurso à Providência aparece, de um lado, como uma ampliação
retórica da derrota dos aristocratas ou um mito consolador. O avanço
irresistível da democracia é essencialmente uma constatação histórica em grande
escala e a Providência fornece o aspecto objetivo de uma lei à intuição que Tocqueville
tem das tendências do corpo social. Ela é a palavra que designa aquilo que é
revelado pelo espírito de finesse: aquilo que sentimos, que está diante dos olhos de todos
mas que não sabemos demonstrar; aquilo que é patente ao juízo, mais do que à razão
cognoscente. Invocar a Providência é, pois, explicar o que não é
geometricamente demonstrável, mas não somente isso: é também escolher o que
deve ser explicado. O espírito de finesse permite discernir, no espetáculo do mundo democrático em
gestação, a verdade, afinal desvendada, da revelação cristã: o verdadeiro
quadro da humanidade reduzido
à simplicidade da natureza, na qual todos os homens são semelhantes. Invocar a
Providência é, pois, buscar interpretar os acontecimentos humanos como um todo,
sob o ângulo do universalismo cristão e tomar a decisão de resolver o dualismo
entre a história e o seu fim, na liberdade igual de todos os filhos de Deus.”
“Assim
concebido, - prossegue Françoise Mélonio -
o recurso à Providência não dá à história um sentido obrigatório A Providência traça,
é verdade, ao redor de cada homem, um círculo fatal do qual não pode sair; mas,
nos seus amplos limites, o homem é poderoso e livre; da mesma forma acontece
com os povos (....). A
igualdade e o poder do povo são irresistíveis, mas a história humana, aberta à possibilidade da
liberdade, é o fruto de uma cooperação entre Deus e os homens. A afirmação da
inexorabilidade do curso da história é, em virtude desse fato, continuamente
corroída mediante a introdução de degraus e passos, ao ponto de Tocqueville,
este profeta famoso, somente utilizar o linguajar da predição para
lembrar a sua recusa a um determinismo absoluto”.
A idéia
providencialista em Tocqueville não é, pois, um dogma teológico que interfira
na sua visão racional da política, colocando uma espécie de fim absoluto para a
história. É um recurso epistémico que de um lado, lhe permite delimitar a área
de estudos da política e, de outro, lhe serve para tender uma ponte com a sua
concepção ética, que pressupõe a mesma dignidade para todos os homens. A
respeito do papel instrumental da idéia providencialista em Tocqueville,
escreve Françoise Mélonio [1993: 33]: “O recurso à Providência não implica,
pois, que a ciência política seja um ramo da teologia, da fenomenologia do
espírito ou da história natural. Tendo afirmado, ao mesmo tempo, a Providência
e a liberdade, Tocqueville pode demarcar o campo da política e procurar ali uma
racionalidade específica. A primeira Démocratie apresenta-se como uma inquirição acerca do regime
democrático”.
Um outro
aspecto que salta à vista na ciência política tocquevilliana é a influência que
recebe da que poderíamos chamar tendência
orgânica dos estudos sociais,
caraterística que era comum no final do século XVIII e início do século XIX.
Françoise Mélonio [1993: 33] registrou essa influência da seguinte forma: “A
prática de Tocqueville tinha um precedente: as pesquisas sociais, inauguradas
no século XVIII, que conheceram a sua idade de ouro na primeira metade do
século XIX. Elas tinham como objeto privilegiado o mal social. Tendo sido
pensada a sociedade como um organismo, a sua doença implicava uma disfunção
geral. Se interessar pelo pauperismo, pela criminalidade, pela prostituição,
constituía o caminho para elaborar um diagnóstico acerca da sociedade, a fim de
fixar uma terapéutica. A viagem de Tocqueville insere-se na grande corrente da
pesquisa social, estatística e qualitativa (...)”.
Repercussão passada e presente da meditação de Tocqueville
A
publicação da Primeira Democracia grangeou a Tocqueville o reconhecimento da sociedade
francesa. O nosso autor passou a ser convidado habitual dos salões mais
exclusivos de Paris, como o da duquesa de Dino (que era freqüentado pelo velho
Talleyrand, Royer-Collard, Berryer e pelo duque de Noailles); outros salões por
ele freqüentados foram o de Madame D’Arguesseau, o de Madame Ancelot, o de
Madame Récamier, situado em L’Abbaye-au-Bois.
Nada melhor
para auferir a repercussão da obra de Tocqueville na sua época, do que
transcrever o parecer da Academia Francesa, quando da premiação do nosso autor,
em 1836. O porta-voz da Academia, Villemain, afirmou no seu discurso:
“Encontram-se reunidas aí a grandeza da matéria, a novidade das pesquisas, a
elevação das perspectivas. De qualquer ângulo que se considere, o governo e a
sociedade dos Estados Unidos são um problema curioso e inquietante para a
Europa. Discutir esse problema, analisar esse novo mundo, mostrar as suas
analogias com o nosso e as suas insuperáveis diferenças, ver transplantadas ao
seu lugar de origem e desenvolvidas, num alto grau de crescimento, algumas das
teorias que agitam a Europa e julgar assim o que, mesmo no meio de uma natureza
feita expressamente para elas, falta ao seu sucesso ou tangencia a duração e as
torna de entrada impossíveis, eis sem dúvida uma das mais graves lições que
poderia dar o publicista amigo da humanidade, e tais são os resultados
involuntários ou buscados do trabalho de Monsieur de Tocqueville (...). Uma das belas caraterísticas do seu
livro é a de ser um protesto contra toda iniquidade social, de qualquer um que
a autorizar (...). Hábil apreciador dos grandes princípios da imprensa livre e
do júri, lamenta-se de vê-los às vezes esvaziados na América, por essas
correntes uniformes de opinião, que ele chama de despotismo intelectual da
maioria e, por esse caminho, indica como seria conveniente um tipo de governo
mais concentrado, menos popular para beneficiar esses mesmos princípios e lhes
conferir força, encontrando neles apoio. Tal é o livro de Monsieur de Tocqueville. O talento, a razão, a amplitude de visão, a
firme simplicidade do estilo, um eloquente amor ao bem caracterizam esta obra,
não deixando à Academia a esperança de coroar tão cedo outras obras
semelhantes” [apud Pierre Larousse, 1865a: vol. 6, pg. 408]. Apreciação
positiva, não há dúvida, mas cautelosa. Nada de projecções diretas da análise
tocquevilliana sobre a realidade francesa da época.
Apreciação
ponderada, porém mais aberta às suas teses fundamentais, fez da obra de
Tocqueville, entre nós, Paulino Soares de Souza, visconde de Uruguai [1960:
343-418]. O grande estadista do Império valorizava em A
Democracia na América, a defesa da descentralização administrativa entre os americanos. Mas
considerava que a descentalização, tal como existia nos Estados Unidos,
pressuponha uma tradição política que era alheia ao Brasil. O self-government, não sendo uma prática decantada na realidade brasileira,
mal poderia ser pressuposto no nosso meio, a fim de nele alicerçar a
descentralização administrativa. No entanto, considerava Paulino Soares de
Souza [1960: 418]: “Há muito o que estudar e aproveitar nesse sistema, por meio
de um esclarecido ecletismo. Cumpre porém conhecê-lo a fundo, não o copiar
servilmente como o temos copiado, muitas vezes mal, mas sim acomodá-lo com
critério, como convém ao país (...). Cumpre distinguir acuradamente quais sejam
esses negócios para evitar confusão, usurpações e conflitos, e, a respeito
deles, dar mais largas ao self
government entre nós, reservada
sempre ao poder central aquela fiscalização e tutela que ainda mais
indispensáveis são em países nas circunstâncias do nosso (...)”.
A obra de
Alexis de Tocqueville, no século XX, somente começou a ser valorizada na França
a partir dos anos cinqüenta. Segundo Françoise Mélonio pode-se distinguir três
momentos na re-leitura que os franceses fizeram da obra de Tocqueville, ao
longo do século passado: em primeiro lugar, os anos cinqüenta, época em que
Raymond Aron estimula uma reflexão sobre os regimes, centrada na leitura da Primeira
Democracia. Em segundo
lugar, os anos sessenta, período no qual os sociólogos, filósofos e etnólogos
focalizam a Segunda Democracia, aprofundando a concepção tocquevilliana acerca da cultura
democrática. Em terceiro lugar, os anos setenta, período no qual François Furet
e o grupo dos seus colaboradores (entre os quais se sitúa Françoise Mélonio),
reunidos no Centre de Recherches Politiques
Raymond Aron (entidade
ligada à École des Hautes Études en Sciences
Sociales de Paris), deram ao
trabalho de Tocqueville intitulado L’Ancien
Régime et la Révolution (editado pela primeira vez em 1856) um lugar de destaque na
interpretação da história da França.
A respeito
do significado desse triplo enfoque por parte dos estudiosos franceses,
Françoise Mélonio [1993: 274] escreve: “Três leituras que se sucedem mas que
também se inter-relacionam pois pertencem ao mesmo universo intelectual. Todas
nascem de um encontro frutífero com a cultura americana e colocam como cerne da
reflexão a comparação entre Europa e América; todas elas buscam reintroduzir a
liberdade como critério central nas ciências sociais, que se tinham constituído
na hipertrofia de uma positividade cega”.
Raymond
Aron, lembra com propriedade Françoise Mélonio, considerava que as sociedades
ocidentais se polarizaram, ao longo do século passado, ao redor de dois modelos
de democracia: o totalitário, que seguiu as pegadas de Jean-Jacques Rousseau e
que terminou sendo encampado pelo pensamento de Marx, e o liberal, herdeiro dos
ensinamentos de Tocqueville. Ao passo que o primeiro modelo seduziu a
intelectualidade européia até os anos trinta, o segundo passou a ser valorizado
quando foram sentidas as catastróficas conseqüências do totalitarismo, ao longo
das décadas de 40 e 50.
A
indiscutível atualidade de Tocqueville na cultura francesa hodierna decorre,
com certeza, da sua defesa incondicional da liberdade no contexto da tradição
democrática. A respeito, Françoise Mélonio [1993: 304] conclui: “A obra de
Tocqueville tem um alcance diferente pelo fato de ser um elo na história do
liberalismo, depois de Montesquieu ou Constant e antes do liberalismo
democrático moderno (...). A obra de Tocqueville nos interessa, pois, menos
pela linhagem na qual se insere, do que pelo seu exotismo. Aristocrata por
instinto e democrata por razão, na encruzilhada das duas culturas, a americana
e a francesa, Tocqueville foi o esquecido da nossa tradição democrática”.
Podemos
afirmar que, no Brasil, o pensamento de Tocqueville merece aprofundado estudo, pois
que descobrimos - como fez o pensador na
França do século XIX - a falência do
democratismo patrimonialista, e passamos a valorizar uma versão de democracia
consentânea com o exercício da liberdade e o funcionamento das instituições do
governo representativo. De forma semelhante a como a reflexão de Tocqueville
sobre a sociedade e as instituições americanas iluminou a trilha pela qual
deveria enveredar a França pós- revolucionária, também podemos aproveitar as
suas análises acerca da problemática democrática na América e no Velho Mundo,
para encontrarmos o caminho que devemos trilhar, neste início de milênio, no
Brasil e na América Latina, na caminhada rumo à plena democracia.
Conclusão
Dois pensadores colocaram sobre o tapete do debate político
a questão da problemática democrática: Tocqueville e Marx. Ao passo que o
segundo equaciona o ideal da igualdade sacrificando a liberdade, o primeiro
elabora um modelo de conquista da igualdade preservando a liberdade. Ora, como
o debate em torno à democracia foi o ponto básico da problemática política dos
séculos XIX e XX, notadamente do "curto século XX" (para repetir as
palavras de Eric Hobsbawm), de uma certa forma Tocqueville e Marx foram os
grandes inspiradores do debate político no século passado.
As propostas de um e de outro foram submetidas à "prova
da história". A queda do Muro de Berlim e, com ela, do modelo democrático
não comprometido com a defesa da liberdade proposto por Marx, entrou
definitivamente em declínio. O modelo tocquevilliano de democracia liberal,
pelo contrário, está em alta e inspira, nos dias que correm, as propostas que
animam a liberais, liberais-conservadores e sociais-democratas.
No caso concreto da França, sem a definitiva contribuição
teórica de Tocqueville, não teria sido possível superar a pesada herança do
centralismo absolutista, que terminou deixando marcas profundamente enraizadas
nas instituições francesas. Recordemos que o modelo da V República, inaugurada
por De Gaulle em 1962, girava ao redor da figura presidencial que Jean-Jacques
Chevallier [1977: 769] identificou como "monarca republicano".
Segundo Françoise Mélonio [1993: 274], foi a retomada do
liberalismo tocquevilliano por Raymond Aron, nos anos 50, que permitiu aos
franceses superar definitivamente o canto de sereia da democracia totalitária e
reviver um modelo de democracia liberal e pluralista que já tinha inspirado,
aliás, momentos importantes da vida política francesa como o Front Populaire
(1936-1937) quando, sob inspiração dos radicais (herdeiros do ideal da
igualdade de oportunidades defendido por Tocqueville), foram empreendidas
reformas democráticas de nomeada.
Herdeiras da pesada tradição positivista e caudilhista, as
esquerdas latino-americanas defendem, ainda hoje, anacrônicamente, o modelo de
igualdade apregoado por Marx, contaminado pelo complexo de clã que anima ao
corporativismo estatizante. Não percebem que a social-democracia (de Tony Blair
na Inglaterra, de Massimo D'Alema na Itália, de Pierre Rosanvallon na França,
de Felipe González e Zapatero na Espanha, de Mário Soares em Portugal, de
Angela Merkel na Alemanha) é a versão possível da esquerda que ocupou
definitivamente o lugar do socialismo estatizante, neste início de milênio,
justamente porque tomou do liberalismo o ideal de busca da igualdade
preservando a liberdade.
Nesse contexto de defasagem cultural que afeta à esquerda na
América Latina, os liberais têm uma contribuição importante a dar. É
necessário, em primeiro lugar, repetir que o liberalismo equaciona a questão
social. Somente com o incentivo à iniciativa privada e com o controle sobre o
Estado orçamentívoro, será possível conseguir o saneamento da economia e
encarar, de forma realista e eficaz, a problemática da pobreza.
Em segundo lugar, é preciso deixar claro que o único modelo
de democracia republicana que não constitui um estelionato político, é o
pluralista, comprometido com a defesa da liberdade [cf. Botana, 1984: 163
seg.]. Ora, esse modelo avança pelo caminho do fortalecimento da representação,
não pela via da sua substituição por demagógicas práticas de democracia direta
ou participativa, afinadas mais com o democratismo rousseauniano, em que a
autoridade do partido único sobrepõe-se à pluralista representação de
interesses. É evidente que a prática do self-government e a multiplicação das associações civis são importantes
fatores de democratização, como Tocqueville destacou na sua análise da vida
política americana. Mas essas experiências precisam se abrir à questão mais
ampla da representação, sem a qual não haverá democracia. A luta parlamentar do
pensador francês foi justamente nesse sentido: tentar reforçar a representação
política, num país atomizado pelo centralismo.
Em terceiro lugar, é necessário lembrar, como frisava
Tocqueville, que precisamos "construir o homem político", ou seja, desenvolver
dois tipos de trabalhos complementares no caminho do amadurecimento
democrático: de um lado, analisar em profundidade os nossos grandes problemas
sociais (pobreza, violência, crise do ensino em todos os seus níveis, saúde
pública, corrupção, administração de justiça, etc.), a fim de desenhar soluções
compatíveis com a defesa da dignidade e da liberdade dos cidadãos. De outro
lado, é imprescindível que nos comprometamos eficazmente no encaminhamento das
soluções que emergirem dessa análise.
Poderiamos lembrar, a respeito, as palavras que Guizot, no
final da sua vida, escrevia referindo-se à obra de Calvino intitulada Instituição
da religião cristã: "Esse livro não foi a mais difícil nem a mais
meritória ação de Calvino; pois não é nos trabalhos do pensamento solitário,
mas nas lutas da vida prática e pública onde se revelam a superioridade e a
força do caráter dos homens" [apud Rosanvallon, 1985: 31]. Nessa
empreitada, os ensinamentos e o exemplo de Tocqueville são de grande valor para
os espíritos liberais na América Latina.
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