O fenômeno do populismo está na crista da onda, não apenas na América
Latina, mas pelo mundo afora também. As incertezas geradas pela globalização do
mercado de trabalho nos países desenvolvidos (pondo em risco a antiga política
do welfare state); a inclusão na
economia de mercado de nações até há pouco tempo dependentes de regimes
totalitários (como no Leste europeu); a onda de regimes democráticos surgidos
na América Latina nos últimos vinte anos e que não conseguiram responder a
contento aos reptos crescentes das suas sociedades; as reformas de inspiração
liberal, feitas nas economias dos países sub-desenvolvidos, ao longo das
últimas décadas, à luz do “Consenso de Washington”, reformas que, se bem
reduziram a inflação de modo geral, no entanto não tiveram os resultados
esperados do ângulo da produtividade, ainda muito sufocada pelas tradições
estatizantes e familísticas na gestão da coisa pública; a democratização sui generis (com forte presença de uma
liderança tradicional e carismática), em países do mundo islâmico (Síria,
Líbia, Irã); a entrada das nações africanas no período pós-colonial (ao longo
da segunda metade do século passado) no caminho da regularização da vida
democrática, (num contexto ainda marcado fortemente pelo tribalismo); a desaceleração da economia
estadunidense e os freios que esse fenômeno está a produzir em outras
economias, particularmente no nosso Continente, essas seriam algumas das
variáveis que têm contribuído para o surgimento do populismo, que pode ser
considerado como uma espécie de doença que afeta às democracias no momento em
que se encontram em crise (de crescimento ou de desgaste).
Nações desenvolvidas, como a
França, viram surgir, nos pleitos eleitorais dos últimos dez anos,
sucessivamente, figuras de caráter populista, situadas em vários parâmetros do
espectro ideológico, como Jean-Marie Le-Pen, Michel Bové ou Ségolène Royal. Na
Itália, às voltas com a dramática redução do crescimento econômico nos últimos
dez anos e com a endêmica instabilidade parlamentar, vemos ressurgir o
populista Berlusconi como novo chefe do governo. A própria campanha para
indicação dos candidatos democratas à sucessão estadunidense não tem estado
vazia de aspectos de coloração populista, presentes nos discursos dos dois
aspirantes desse segmento político, na disputa por um eleitorado insatisfeito
com os rumos tomados pela superpotência americana. Na América Latina, é rica a
plêiade de líderes populistas que chegaram ao poder nos últimos anos: o casal
Kirschner na Argentina, o coronel Chávez na Venezuela, o presidente Correa no
Equador, Evo Morales na Bolívia e, nas últimas semanas, o bispo Lugo no
Paraguai. No Brasil, o populismo carismático de Lula, já está na sua segunda
rodada e ameaça com se prolongar num messiânico “terceiro mandato”, que é
insinuado ao ensejo de pesquisas de opinião favoráveis ao governo e
encomendadas por sindicatos com forte presença estatal.
Fenômeno tão amplo merece ser estudado com detalhe. Não me deterei numa
caracterização do Populismo, nas suas várias manifestações ao longo do século
XX. Isso exigiria um trabalho de mais fôlego, só para dar conta de populismos tradicionais
como o varguista, no Brasil, o peronista, na Argentina, o gaitanista (seguido,
depois, pelo rojas-pinillista ou anapista),
na Colômbia, ou o encarnado por ditadores militares como Juan Vicente Gómez ou
Pérez Jiménez, na Venezuela. Fixarei a
atenção no denominado neopopulismo,
que acompanha as reações das sociedades hodiernas perante a globalização
econômica. Tratarei, portanto, de fenômeno atual, que se circunscreve às duas
últimas décadas do século passado e que abarca, obviamente, os anos
transcorridos do presente século XXI. Pretendo, neste artigo, desenvolver dois
aspectos: I) o conceito de neopopulismo;
II) de que forma esse fenômeno afeta a vida democrática da América do Sul, atualmente
e no futuro próximo?
I) O conceito de neopopulismo.
Dentre as muitas descrições conceituais em voga, deter-me-ei na elaborada
por Pierre-André Taguieff, que me parece a mais adequada para caracterizar o
fenômeno populista nas suas mais recentes manifestações. Para este autor, “o
populismo, oscilando entre o autoritarismo e o hiper-democratismo, bem como
entre o conservadorismo e o progressismo reformista – não poderia ser
considerado nem como uma ideologia política, nem como um tipo de regime, mas
como um estilo político, alicerçado no recurso sistemático à retórica de apelo
ao povo e à posta em marcha de um modelo de legitimação de tipo carismático, o
mais adequado para valorizar a mudança.
É justamente porque se trata de um estilo, uma forma vazia preenchida do seu
jeito por cada líder, que o populismo pode ser posto ao serviço de objetivos
antidemocráticos, bem como de uma vontade de democratização” [Taguieff, 2007:
9]. Dois estudiosos brasileiros, Alberto Oliva e Mário Guerreiro [2007: 7],
fazem uma caracterização semelhante: “Longe de ser uma doutrina, o populismo é
um modo de fazer política e de exercer o poder”.
Destacarei, a seguir, 12 características que acompanham ao fenômeno do neopopulismo definido, segundo acabamos
de ver, como um estilo político de
amplo espectro ideológico. Alicerçar-me-ei, na identificação dessas
características, também nos estudos desenvolvidos por outros estudiosos entre
os que se contam Alan Greenspan, Horacio Vasquez-Rial, Simon Schwartzman,
Alberto Oliva, Mário Guerreiro, Alvaro Vargas Llosa, Francisco Wefort, Guillermo
O´ Donnell, etc.
1) Soteriologia. O
estilo político do neopopulismo se
encarna na figura do salvador do povo,
quando se juntam os aspectos da retórica fácil com os relativos à modalidade de
legitimação que Max Weber [1977: 847-888] identificava como carismática. A
respeito, frisa Taguieff [2007: 10]: “a combinação do populismo-retórico com o
populismo-legitimação carismática encarna-se na figura do demagogo ou do
tribuno do povo, personagem que é, ao mesmo tempo, expressão, guia e salvador do povo, e que se apresenta como homem providencial e realizador de
milagres – ou de um porvir maravilhoso”. O povo, para o líder populista, é uma
entidade mítica afinada misteriosamente com o seu carisma pessoal. Essa feição
arcaica do populismo é assim destacada por Taguieff [2007: 31-32]: “É
necessário não desconhecer a dimensão mitológica de todo populismo, que reside
na tese, sempre pressuposta, de que o
povo existe e de que ele é dotado de uma unidade que lhe confere a sua
identidade (ou a unicidade de sua figura), em face das elites ou das potências
ameaçadoras, ou contra elas”.
2) Personalismo. O líder
populista trabalha somente para a sua causa pessoal e, para isso, elabora um
discurso em que esta aparece identificada com a causa do povo, dando ensejo,
assim, a uma deformação do princípio da soberania; ele é um demagogo cínico. A respeito da alteração
que o princípio da soberania sofre nas mãos do líder populista, escreve Taguieff
[2007: 10-11]: “O princípio democrático da soberania, isolado e privilegiado em
relação aos princípios liberais da separação e limitação dos poderes, pode ser
objeto de interpretações diversas e inspirar múltiplas práticas, para as quais
ele serve de modo de legitimação. Nesse sentido, o populismo é definível como a
demagogia da época democrática, ou como a forma mínima assumida pela demagogia,
quando o povo é tratado como uma categoria que pertence ao domínio do sagrado e
fazendo parte de um culto”.
É na trilha do reforço à sua ação individual que o líder populista, no
sentir de Oliva e Guerreiro, coloca toda a sua iniciativa política, a fim de
manter os subordinados numa condição de dependência pessoal dele. A propósito,
os mencionados estudiosos destacam o seguinte: “O fato de povo ser uma entidade de difícil caracterização permite aos
populistas se apresentarem como seus porta-vozes. A nebulosidade do conceito de
povo propicia as mais diferentes formas de retórica engabeladora. É da
ambigüidade que se nutre o populismo. A busca de um contato direto com as massas tem geralmente por
objetivo manipular tanto seu imaginário quanto suas carências. A despeito de
todas as sublimações, o sonho dos populistas é exercer o poder da forma a mais
concentrada possível” [guerreiro – Oliva, 2007: 7].
3) Demagogia. O líder neopopulista
é um demagogo que explora sistematicamente, no seu discurso, o ressentimento
das massas contra as elites. Esse ressentimento alicerça-se, no caso
latino-americano, como frisa Álvaro Vargas Llosa [2007: 19], no fato de que
“temos uma cultura de pedintes, em lugar de uma cultura de criadores de
riqueza”. A respeito desse artifício, escreve Taguieff: “Supõe-se, de início,
que um líder é populista, quando se
esforça por fazer crer para fazer agir, se dirigindo diretamente ao povo para melhor manipulá-lo e
utilizá-lo. O que vem a conferir ao termo populismo
o sentido do velho termo demagogia é
ou bem o ato de agradar ao povo, e mais particularmente, a parte baixa do povo, para fazê-lo agir ou aceitar alguma coisa,
sob a condição de que esse discurso agradável implique uma denúncia dos
supostos responsáveis pelos males que são deplorados – no caso, as elites. É
por isso que numerosos intérpretes do fenômeno populista insistem na exploração
cínica, pelo líder, do ressentimento das massas contra as elites. O que leva a
reduzir o populismo a alguma coisa como a patologia da democracia
liberal/pluralista” [Taguieff, 2007: 11/12].
Essa patologia, nos casos mais extremados, conduz ao esmagamento de
qualquer oposição, em obediência aos imperativos da “vontade soberana do povo”,
expressos no imperativo unipessoal do líder carismático. Modalidade de
democratismo que termina sepultando as possibilidades de construção de uma
democracia pluralista verdadeiramente moderna. A propósito, escreve Taguieff
[2007: 29], enfatizando a ambigüidade do fenômeno populista, que oscila “entre
um hiper-democratismo (realização do sonho da transparência veiculada pelo
ideal da democracia direta) e um antidemocratismo alimentado por pulsões ou
pretensões autoritárias. Este é um aspecto essencial daquilo que pode ser
caracterizado como a ambigüidade do
populismo. Mas podemos entender também, por populismo, alguma coisa como um
democratismo abusivo, uma demissão das elites da inteligência e do saber em
face da massa, cujo poder funciona, desde logo, como poder de decisão. O
triunfo da doxa constitui uma figura
da tirania do maior número, índice do reino da quantidade. O povo sempre teria
razão contra aqueles que o contradizem, tidos como rivais ou inimigos”. É uma
versão atual e bem latino-americana da tirania
da maioria, que Tocqueville [1992: 300-318] identificava como um dos riscos
da democracia.
4) Sedução. O líder neopopulista
é um sedutor das massas populares, utilizando, para isso, a mídia e as
pesquisas de opinião. “Nas democracias representativas modernas – frisa
Taguieff [2007: 12] -, que se inclinam em direção à democracia de opinião,
trata-se, para todo populista, de
induzir o maior número possível de cidadãos a votarem no sedutor que ele
encarna, notadamente no meio de uma popularidade construída, legitimada e
medida pelas pesquisas de opinião. Trata-se de levá-los a confiar no líder, se
esforçando por seduzir, por todos os meios disponíveis, o maior número possível
de eleitores”.
O caráter sedutor do populismo hodierno assoma nos apelos para reforçar a
confiança das massas no líder. Confiem em
mim! Essa seria a palavra de ordem. Modalidade ampla de paternalismo, que
convive muito bem com as antigas formas de patimonialismo, nos contextos em que
se preservaram tais formas de dominação, alheias ao contratualismo
europeu-ocidental. A propósito, Taguieff escreve: “Ora, a análise das formações
populistas permite estabelecer que o fenômeno neopopulista, na Europa, não
pressupõe a existência de uma coerência doutrinária, que conferiria identidade
a uma ideologia populista. Isso vale,
também, para as formas neopopulistas que surgem com as novas democracias pós-ditatoriais
ou pós-totalitárias, democracias frágeis,
que se observam notadamente na América Latina ou na Europa do Leste. A mensagem
neopopulista se reduz a um confiem em
mim! Ou sigam-me! Slogans
pronunciados por demagogos expertos na exploração dos recursos mediáticos. A
bem da verdade, não há ideologia populista, somente havendo sínteses entre
protestas populistas e tal ou qual construção ideológica. O populismo constitui
um estilo político alicerçado na convocação ao povo, bem como sobre o culto da
defesa do povo, compatível, em princípio, com todas as grandes ideologias
políticas (liberalismo, nacionalismo, socialismo, fascismo, anarquismo, etc.)”.
5) Contestação. O neopopulismo
contemporâneo parece emergir do desgaste das democracias representativas, a fim
de apresentar uma alternativa democrática, de caráter contestatório. Na América
Latina, como destaca O´ Donnell [1986: II, 935] tal fenômeno ocorre como reação
contra “formas tradicionais de dominação autoritária” que conduziram a
“democracias de participação restrita”. Seja como for, o populismo é uma
resposta diante de práticas políticas insatisfatórias e que não representam os
interesses da sociedade. A propósito deste ponto, escreve Taguieff [2007: 15]:
“A crise da representação, interpretada nos anos 1990 como crise de confiança nas democracias pluralistas, parece ter feito
surgir condutas ou atitudes de desconfiança que, pela sua normalização social,
tendem a desenhar a figura de uma antidemocracia
de caráter contestatório”. Nos hodiernos populismos
telúricos latino-americanos (chavista, zapatista, “moralista”, etc.), os
líderes aparecem como iconoclastas dos sistemas tradicionais de governo. Tudo
deve ir por água abaixo: leis, decisões judiciais, instituições das denominadas
democracias burguesas, dando a
impressão de que se colocou em marcha uma verdadeira tsunami que levará tudo para
o fundo, só restando o líder populista e o povo. Essa iconoclastia aparece como
operação de limpeza a ser efetivada, à maneira rousseauniana, pelos “puros” (o
líder e os seus asseclas).
Consolida-se, assim, um tipo de populismo contestatório, que é
caracterizado por Taguieff [2007: 20], nos seguintes termos: “Enfim, o apelo
direto ao povo contra os de cima ou
contra os do outro lado orienta-se
pela dupla prescrição de romper com o sistema político existente e de mudá-lo: acabar com a burocracia, a partidocracia, a
plutocracia, etc. Apelo à mudança,
que amiúde assume a forma de um varrer a
sujeira ou de uma grande operação de
limpeza. Quando prevalece a função tribunícia que expressa politicamente a
protesta social, o populismo pode ser chamado de contestatório”.
6) Ação direta. O líder neopopulista
apela para a vinculação direta entre ele e o povo, dispensadas mediações
institucionais, como as que dizem relação ao governo representativo. É uma
espécie de ação direta do líder
carismático sobre as massas, em que, certamente, são utilizadas as novas
tecnologias como a comunicação on line,
via chats, blogs ou foros de debate. A propósito, escreve Taguieff: [2007: 16]:
“Enquanto que, nas democracias pluralistas instaladas e tranqüilas, a política
supõe mediações e contemporizações – sendo que os debates e as deliberações
requerem tempo, bem como mediadores e lugares de mediação -, o imaginário
antipolítico do populismo centra-se totalmente na rejeição das mediações,
consideradas inúteis ou nocivas. Os líderes populistas propõem-se a derrubar a
barreira ou a distância, ou seja, qualquer diferença entre governantes e
governados, representantes e representados, ou bem sugerem que eles possuem o
poder para abolir qualquer distância entre os desejos e a sua satisfação, de
suspender este aspecto do princípio da realidade que é constituído pela
inserção na duração, pelo respeito aos prazos, pela contemporização”.
Trata-se, certamente, da irrupção pura e simples da magia na vida
política. O líder-salvador tem o poder extraordinário de satisfazer
instantaneamente os desejos das massas, só com a dinâmica onipotente de sua
vontade, e sem que intermedeiem outras instâncias pessoais ou institucionais. O líder-salvador pode encarnar uma tradição
ancestral de antigas civilizações, como é o caso de Evo Morales, identificado e
coroado por um grupo de intelectuais bolivianos na qualidade de “líder supremo
dos indígenas do Continente Americano” [Carranza – Ustariz, 2006: 9], antes de
ser aclamado como tal pelo povo camponês, quando da sua eleição para a
presidência de seu país. Essa relação direta entre líder populista e povo se
expressa, no mundo contemporâneo, pela utilização freqüente da consulta direta
via referendum ou plebiscito,
promovida pelo líder a fim de firmar a sua vontade sobre quaisquer
procedimentos institucionais alheios aos seus propósitos. É a prática que um neopopulista como Chávez sabe utilizar, de maneira perfeita.
7) Semelhança popular. Apela-se, no contexto do populismo
contemporâneo, para restabelecer uma relação de semelhança entre o líder e o
povo. As antigas elites são desprezadas, na medida em que não se assemelham à
massa popular, não possuem a sua alma. O governo, para ser legítimo, tem de estar
presidido por alguém que tenha a cara e a
alma do povão. Essa tese da ausência de semelhança entre líderes e
liderados e da necessidade de restabelecê-la é antiga e se remonta a fontes
diversas: Rousseau, Robespierre e Stuart Mill. [Cf. Taguieff, 2007: 17].
No seio dos hodiernos populismos suscitados pela integração européia,
prevalece a denúncia de que as elites subordinadas a Bruxelas teriam traído o
povo das suas nações, tendo-se colocado a serviço de interesses internacionais.
Essas elites não retratam a cara dos seus povos respectivos. A respeito, o Taguieff
escreve: “O que chama a atenção do leitor, à primeira vista, em relação aos
discursos nacional-populistas contemporâneos é, de um lado, a oposição à construção
européia (indo do euro-ceticismo até a pura e simples rejeição), e, de outro
lado, a denúncia virulenta contra a globalização. O antieuropeismo não é aqui
mais do que uma variável do antielitismo: se a União européia é objeto de
críticas, é porque ela seria construída e dirigida por elites separadas do povo e convertidas em
estrangeiras em face dos povos europeus. Quanto aos atores sociais mobilizados
pelos partidos populistas, podem ser caracterizados, genericamente, como perdedores da globalização. Na retórica
do novo populismo, à denúncia do sistema político vigente se junta, pois, a de
que se trata de uma realidade mundialista,
interpretada como um complô contra os povos e as nações. O antielitismo e a
antiglobalização formam um círculo vicioso que se alimenta do imaginário
conspiratório [Taguieff, 2007: 28]”.
8) Ampla fenotipia. Sendo o neopopulismo
um estilo propriamente dito, o seu
formato pode informar diversos conteúdos. Três são, segundo Taguieff, as
principais manifestações do fenômeno: populismo político, agrário e cultural.
Eis a caracterização que deles traça o mencionado autor: “Os populismos
políticos apresentam-se como mobilizações ou como regimes compatíveis com
qualquer ideologia (socialismo, comunismo, nacionalismo, fascismo anarquismo
liberalismo, etc.). Assim, os cesarismos populistas latino-americanos são
formas de nacionalismo; há populismos que são reacionários, até mesmo racistas,
mas não se lhes pode desconhecer nem as realizações parciais da democracia
populista (na Suíça, por exemplo), nem o populismo
dos políticos, que pode ser definido, segundo Margaret Canovan, como o
apelo à reunião do povo para além das diferenças ideológicas. Os populismos
agrários, alicerçados na idealização do povo-camponês,
ou na estrita defesa dos seus interesses, podem estar ligados a uma forma de
messianismo (o populismo russo), a uma reação antiurbana e antiestatizante (o
radicalismo dos proprietários rurais de certos Estados norte-americanos) ou a
uma variante do nacionalismo étnico (Polônia, Romênia). Quanto ao populismo
cultural, manifesta-se na literatura, na pintura ou no cinema, todas as vezes
que, nessas manifestações artísticas, predominam temas referidos à vida do povo
comum, do povinho ou da gente do lugar, como se dizia
antigamente ou, como se diz hoje, das massas
ou dos de baixo”. [Taguieff, 2007:
20-21].
9) Denuncismo. O estilo neopopulista
de fazer política está acompanhado, quase sempre, de uma variante da mídia: a
imprensa que denuncia, de forma sistemática, os males sociais como provenientes
das artimanhas dos de cima contra os de baixo. “A sensibilidade populista
confunde-se amiúde com a sensibilidade em face da miséria, e o estilo populista
com o estilo proletário ou plebeu. O seu postulado ideológico é que
os Grandes ou Os de cima mentem e se enriquecem às expensas das pessoas comuns,
descritas como vítimas que sofrem. Essa sensibilidade que mistura sentimentos
de revolta e compaixão se expressa, encenada e instrumentalizada com fins
comerciais, em numerosos diários e semanários que rivalizam em matéria de
denúncia contra as elites, mediante a revelação de escândalos que as inculpam.
É nesse sentido que se pode dizer que há uma imprensa populista (...)”
[Taguieff, 2007: 21].
10) Feição antipolítica. Estilo eminentemente individual de
relacionamento entre o líder carismático e o povo, o neopopulismo é,
paradoxalmente, antipolítico, na
medida em que rejeita qualquer institucionalização no exercício do poder; o
líder populista aproxima-se, destarte, do ideal do mínimo institucional, com a
finalidade de manter incólume a sua relação de prestígio pessoal em face do
povo. García Márquez [2005: 41], em O Outono do Patriarca, deixou clara
esta característica, ao mostrar a despreocupação do líder – Juan Vicente Gómez,
encarnado no Autocrata solitário – para
com a estrutura do Estado, reduzido aos limites da sua casa. Qualquer mediação que escape ao seu
poder pessoal incomoda. Qualquer liderança que apague a sua presença deve ser
banida. Taguieff [2007: 22] completa, da seguinte forma, a descrição desta
característica do populismo contemporâneo: “As novas formas de populismo, na
Europa especialmente, caracterizam-se pela sua orientação antipolítica, que se
revela na aparição de paradoxais partidos anti-partidistas nos contextos
marcados pela crise da representação política, até mesmo pela crise de
confiança nas democracias representativas. Daí provém a rejeição à classe
política, que implica, por sua vez, na negação das diferenças
político-ideológicas institucionalizadas e dos próprios partidos”.
A classe política, para os líderes neopopulistas,
é totalmente corrupta, não vale a pena o trabalho de moralizá-la ou
modificá-la, deve-se prescindir dela. Os novos governantes devem surgir
diretamente do seio do povo, sem mediações partidárias ou institucionais.
Apela-se, aqui, para o antigo sentimento jacobino da pureza ou da virtude.
Somente é puro ou virtuoso aquele que provém das entranhas populares.
A respeito deste ponto, escreve Taguieff [2007: 23-24]: “O eco que
encontram os líderes populistas depende, notadamente, de um fator
circunstancial: o sentimento, fortemente espalhado, de que a classe política, afastada, até mesmo
segregada do povo é toda ela corrupta, não reformável. Através da tomada de
consciência dessa crise profunda de legitimidade, desenvolve-se a convicção de
que é necessário, em conseqüência, mudar as elites dirigentes, fazê-las surgir
do povo, a fim de que os governantes se
assemelhem aos governados, que os representantes se aproximem, portanto,
dos representados. Essa exigência democrática de similitude é lembrada, entre
outros, por John Stuart Mill. O ideal consiste no seguinte: os governantes
devem ser, de modo insofismável, filhos do povo. É isso precisamente que Platão
recusava no regime democrático, em que os governantes se assemelham aos
governados e os governados aos governantes, fazendo da democracia um tipo de
governo intrinsecamente contingente. Esse é, também, um velho sonho dirigido
especialmente, na modernidade européia, contra o quase-racismo existente no
Antigo Regime entre as classes superiores e as inferiores, dos de cima (de sangue claro e puro) e dos de baixo (de sangue vil e abjeto). Trata-se, pois,
de democratizar o elo representativo pela aproximação e a maximização da
semelhança entre representantes e representados. Lucien Jaume destaca
criteriosamente que o clube dos Jacobinos assimilou, de Rousseau, aquilo que o
poderia legitimar, a saber: a tese normativa de que somente delegados ou mandatários virtuosos (à imagem de um povo
virtuoso) poderiam reconciliar a soberania do povo com a sua representação, ou
ainda que, para falar como Robespierre, se o corpo representativo não é puro e quase identificado com o povo,
a liberdade se perde”.
A opção neopopulista pela antipolítica,
cruzada com a secular tradição patrimonialista ibero-americana que faz da coisa
pública negócio a ser tangido pelos donos do poder, como se fosse a sua
propriedade privada, transfere para o reino do Estado uma atitude de não
profissionalismo e de espírito familístico, que fazem com que aquele perca a
competitividade necessária nos tempos atuais. A respeito desse fenômeno,
Guerreiro e Oliva [2007: 9] destacam o seguinte, adotando, nesse ponto, os
arrazoados do cientista político Torquato di Tella: “O fato é que existe uma
forma subdesenvolvida de se fazer
política, de se administrar e prover serviços públicos essenciais. A maioria
dos países da América do Sul não consegue encaminhar soluções objetivas para
seus problemas e dilemas sóciopolítico-econômicos. Talvez por isso muitos de
seus governantes sejam aprendizes de ditadores e recorram à retórica escapista
de que só a revolução dá jeito”.
11) Antielitismo. Os hodiernos populismos possuem uma enorme carga
de ressentimento em face das dificuldades que enfrentam os países em vias de
desenvolvimento. Os problemas sociais são atribuídos, de forma maniquéia, à
presença, no cenário internacional do mundo globalizado, de nações líderes ou
poderosas. Esse sentimento ganha destaque em face dos Estados Unidos
(especialmente nos casos latino-americano e árabe), ou de Israel (no caso
palestino). Taguieff [2007: 23] detalha, da seguinte forma, esta
característica: “Quanto ao antiamericanismo que, depois do início dos anos 90, revela-se,
via de regra, associado a um anti-sionismo
virulento, aparece em todas as formas, de esquerda e de direita, do novo
populismo. O antielitismo assume ali, corriqueiramente, a forma clássica da
teoria do complô: (Dizem-nos mentiras;
somos enganados; somos passados para trás),
sobre a base da convicção de que o povo é vítima de um complô organizado contra
ele pelos de cima ou pelos de fora ou pelos de lugar nenhum, identificados com as elites transnacionais ou
cosmopolitas (os novos donos do mundo),
que encarnam o mal político. O antielitismo deriva, amiúde, em conspiracionismo:
a globalização é imaginada como a
fonte de todos os males da humanidade”.
Vásquez Rial [2003: 247] também destacou a presença do binômio
antiamericanismo / anti-semitismo nos discursos de líderes neopopulistas na Conferência Mundial contra o Racismo, a
Discriminação Racial, a Xenofobia e a Intolerância, reunida em Durban, em 2001,
pouco antes dos ataques de 11 de setembro. No caso do neopopulismo brasileiro, é de se destacar o antiamericanismo que
inspira a política externa do governo Lula. No plano internacional, o governo
brasileiro preferiu se distanciar dos Estados Unidos e se alinhar com a França,
sem levar em consideração que, como frisam Viola e Leis [2007: 121], este país
“é o que mais fortemente se contrapõe à agenda econômica brasileira”.
12) Nacionalismo. De um modo paradoxal, os neopopulismos telúricos latino-americanos (Chávez, Correa, Morales,
Lugo) partem para um acirramento da onda estatizante, a fim de reagir contra as
privatizações efetivadas pelas elites liberal-conservadoras nos momentos
anteriores. Elas teriam traído a causa do povo ao entregar às multinacionais a
riqueza do país. Sem que tal processo signifique uma racionalização do Estado,
os novos messias partem para estatizar em nome do povo, politizando, nos casos
mais moderados (como no populismo petista) as agências reguladoras, que são
tiradas do domínio dos técnicos e entregues às lideranças sindicais, essas sim
representativas do povão. No contexto dessa nacionalização, emerge uma
espécie de mágica econômica, que produz resultados alvissareiros.
É o denominado por Alan Greenspan de “populismo econômico”, caracterizado
da seguinte forma: “O populismo econômico imagina um mundo mais simples e
direto, no qual as estruturas teóricas não passam de dispersões em relação às
necessidades evidentes e prementes. Seus princípios sãos simples. Se há
desemprego, o governo deve contratar os desempregados. Se o dinheiro está
escasso e as taxas de juros, em conseqüência, estão altas, o governo deve impor
limites artificiais ou, então, imprimir mais dinheiro. Se as importações estão
ameaçando empregos, proíba as importações” [Greenspan, 2008: 326].
Esta característica nacionalizante, na Europa hodierna, tomou um rumo sui generis: o da contestação
antimundialista que exclui imigrantes, no desenvolvimento de um modelo
econômico nacional-populista. Nele, as oportunidades de trabalho devem ser
preservadas, exclusivamente, para os representantes da autêntica nação (francesa, alemã, austríaca, etc.). A propósito,
Taguieff [2007: 26] escreve: “A segunda vaga populista tem-se caracterizado
pela geminação da dimensão contestatória e a de origem nacionalista,
privilegiando o motivo da identidade – essencialmente definido contra a ameaça da imigração-invasão. Essa tendência irrompeu na França, onde a
entrada em cena política do Front national (FN) produziu-se em 1983-1984, ao
mesmo tempo em que se impunha a figura emblemática de Jean-Marie Le Pen, o seu
líder carismático. Essa onda em seguida tocou a Áustria, com o avanço do
Partido da liberdade (FPÖ), encarnado em Jörg Haider a partir de 1986. A
evolução dessas duas formações políticas ilustra a oscilação do novo populismo
entre um pólo contestatório e um pólo de identidade: enquanto predomina o
exercício da função tribunícia (expressão política do mal-estar social, da
raiva de grupos ameaçados ou excluídos), o populismo é de tipo contestatório;
já quando prevalecem as preocupações com a identidade (defesa da identidade
nacional, rejeição à imigração) apresenta-se como um nacional-populismo”.
II) De que forma o fenômeno do neopopulismo afeta a vida
democrática da América do Sul, atualmente e no futuro próximo?
Inserido o estilo populista de governar no contexto da tradição
patrimonialista latino-americana, a principal conseqüência é o reforço à tendência
que faz da política iniciativa do líder patrimonial, num contexto de espírito
clânico e familista. Efetivamente, no patrimonialismo encontramos a privatização
da iniciativa política por parte dos denominados “donos do poder”. A sociedade
é fraca. O Estado é mais forte do que a sociedade. E, no interior deste, a ação
do líder é mais forte do que as iniciativas dos membros da sociedade.
Na atual conjuntura latino-americana observamos isso: a preponderância de
políticas personalistas, formuladas pelos líderes neopopulistas, muitas vezes na contramão das expectativas das
respectivas sociedades: ocorre isso na Venezuela do presidente Chávez, no
Equador do presidente Correa, na Bolívia do presidente Morales, na Argentina do
casal Kirschner e no Brasil do presidente Lula. Para que as políticas públicas
formuladas correspondessem, de fato, aos interesses nacionais, tornar-se-ia
necessária a presença atuante dos respectivos Congressos. No entanto, o que se
observa é que em todos os países mencionados, o Poder Executivo entrou em
atrito com os outros poderes, tendo havido uma evidente hipertrofia daquele.
Quando não houve confronto declarado com o Legislativo e o Judiciário,
registrou-se amplo processo de cooptação por parte do Executivo (com as
conseqüentes práticas corruptas de mensalões
e outras modalidades cooptativas). Os Presidentes, via de regra, terminaram
assumindo um papel crucial e hipertrofiado no comando do Estado, a partir de
reformas constitucionais, como as efetivadas na Venezuela, no Equador e na Bolívia.
Formuladas a partir dos pontos de vista particulares de cada um desses
mandatários, as políticas públicas terminam-se chocando com os interesses
diversificados das suas respectivas sociedades, tendo dado ensejo a profundos
conflitos que, como o que está acontecendo na Bolívia, põem em tela de juízo o
excessivo centralismo do governo nacional.
A revolução bolivariana do
coronel Chávez, peça-chave da sua proposta política, cindiu ao meio, com
certeza, a sociedade venezuelana. Aqueles setores populares que recebem
generosamente as verbas oficiais, través de inúmeros programas
assistencialistas financiados com os petrodólares, têm dado o seu apoio
incondicional ao Chefe do Estado, sendo que nos últimos meses, em decorrência
dos problemas de desabastecimento produzidos pela descoordenada ação
governamental, esse apoio tem arrefecido. De qualquer forma, a aliança do chefe
do Estado “con los de abajo”, típica do neopopulismo,
tem sido uma das notas características do regime venezuelano, bem como a sua
política de “mano dura” para com as classes médias, os intelectuais, os
empresários (ameaçados volta e meia com a estatização do respectivo setor
produtivo) e a imprensa. Sem mencionar os recentes acontecimentos que, no
terreno internacional, involucraram o excêntrico presidente venezuelano (um
ator marxista-narcisista, como diz o
jornalista Andrés Oppenheimer), com as FARC, ao redor do problema dos reféns da
narcoguerrilha colombiana e de obscuras transações ligadas aos lucros desse
grupo armado.
Valha recordar aqui, também, a decisão do presidente Chávez de criar
linhas de aceitação para a sua política antiimperialista e de cruzada
bolivariana, seduzindo outros países da região com os sus petrodólares. Na alça
da mira da política exterior bolivariana de Chávez estão, de início, dois
países sul-americanos: Bolívia e Equador, possuidores de riquezas petrolíferas
e de gás natural. Notadamente é grande o interesse de Chávez pela Bolívia,
situada no coração da América do Sul, a partir de cujo território poderia expandir,
de forma mais fácil, a sua “revolução” pelo cone sul do Continente.
A telúrica “revolución indígena” do presidente Morales, irmã gêmea da
“revolução bolivariana” de Chávez, tem partido para uma agressiva política de
estatizações no terreno da mineração e da exploração de hidrocarbonetos, aliada
a uma decidida ação de expropriações de terras nas áreas produtivas, que tem
conduzido ao atual referendum efetivado pela parte mais rica do país, que quer
se ver livre da tutela financeira do governo central. Problemas de
desabastecimento, de carência de créditos externos para a exploração petroleira
e de ordem pública estão a ocorrer na Bolívia, com a queda correspondente nos
índices de crescimento econômico e os problemas sociais conhecidos de todos.
É de se destacar, de novo, aqui, a aliança, típica do neopopulismo, entre o Executivo
hipertrofiado “y los humildes”, os indígenas quéchuas e aymaras, tradicionais
plantadores de folha de coca, em cujo benefício, segundo a retórica
governamental, são feitas todas as reformas revolucionárias. Mas que, com
certeza, estão a pagar a conta da elevação dos preços dos alimentos e dos
combustíveis. Poder-se-ia falar, no caso boliviano, da “utopía arcaica” (que
puxa o fio da história para trás), de que falava Vargas Llosa [1996] ao
analisar a obra de um dos grandes autores do gênero indigenista, José Maria Arguedas, autor do clássico romance
intitulado Los ríos profundos. É uma utopia situada no passado longínquo
do império incaico, impossível de ser revivido.
No Equador do presidente Correa, observa-se a mesma aliança entre o chefe
do Estado e “los de abajo”, os cholos,
historicamente explorados como denunciava o grande romancista Jorge Icaza, na
década de vinte do século passado, no seu belo romance Huasipungo. Após vários
governos que foram colocados em questão pelos movimentos indígenas, o atual
mandatário, formado em reconhecida universidade estadunidense, elaborou ampla
proposta de reformas que fortaleceram o executivo sobre os demais poderes.
Ampla ação legislativa em benefício das comunidades indígenas foi deflagrada
pelo atual presidente equatoriano, ao passo que denunciava o tratado que o
Equador tinha com os Estados Unidos para a manutenção da Base de Manta, e negociava
a mesma com os chineses. Amplamente apoiado pelo presidente Chávez, Correa partiu
para uma agressiva política de confronto com o governo da Colômbia, a partir da
morte do segundo homem das FARC em território equatoriano, pelas forças armadas
colombianas. Parece que, tanto no caso equatoriano quanto no boliviano, os
petrodólares do presidente Chávez são um argumento forte para apoiar a
“revolução bolivariana”, que busca integrar os países da América do Sul ao
redor da Venezuela, e em confronto com os Estados Unidos.
Na Argentina do casal Kirschner, permanece clara a aliança do governo com
os grandes sindicatos de trabalhadores, reforçando, assim, a tradição populista
do peronismo, na qual se situam esses novos atores políticos. É clara a
simpatia – e a dependência em matéria de petrodólares para as passadas eleições
– do atual governo argentino em face do presidente Chávez. O recente confronto
com os tradicionais produtores rurais deixa clara a aliança “con los de abajo”,
mas aumentará, com certeza, os problemas de desabastecimento, comprometendo, de
outro lado, a capacidade exportadora do país.
No Brasil, a política desenvolvida pelo presidente Lula, ao longo de seus
dois mandatos, deixou clara uma coisa: a aliança neopopulista do governo com os denominados “movimentos sociais”, no
contexto ideológico da denominada “revolução cultural gramsciana” [cf.
Vélez-Rodríguez, 2006a: 71-99]. Movimento dos Sem Terra, Movimento dos Afetados
por Barragens, Movimento dos Quilombolas, Movimento dos Indígenas, Movimento
dos Sem Teto, etc., são inúmeras as entidades contempladas pelos generosos
recursos oficiais, distribuídos à torta e à direita por centenas de Ongs, cuja gestão fugiu ao controle do
governo brasileiro. Isso para não falar do programa “Bolsa Família”, que se
tornou verdadeira festança assistencialista, devido ao fato de que não há
seguimento significativo do Estado em face desses benefícios, que em muito
fizeram crescer os gastos públicos. (Fica evidente, aqui, a presença do modelo
ético pombalino do “Estado Empresário que garante a riqueza da nação”). É clara
a tolerância oficial em face dos desmandos de movimentos como o MST, cujos
ativistas peitam autoridades locais, destroem patrimônio público, invadem
propriedades produtivas, desconhecem sumariamente decisões da justiça,
aniquilam centros de pesquisa agropecuária, tudo em aliança com grupos
internacionais como Via Campesina e
contando com a complacência do ministério da Reforma Agrária [Cf.
Vélez-Rodríguez, 2005].
Paralelamente, nenhuma medida é tomada pelo governo para que os
arruaceiros passem a respeitar as instituições de direito. Tudo sob as bênçãos
estapafúrdias da Comissão da Pastoral da Terra y do Conselho Indigenista
Missionário da CNBB. Políticas atentatórias contra a soberania nacional são
postas irresponsavelmente sobre o tapete, com assinatura de documentos e
declarações em foros internacionais que, se forem levados à prática, conduzirão
a sérios riscos para a manutenção da unidade nacional em terras indígenas, como
está acontecendo na criação da reserva “Raposa Serra do Sol”, em Roraima,
seriamente questionada por juristas, intelectuais, empresários e militares.
Na retórica do atual presidente, aparece como leitmotiv dos seus pronunciamentos a denúncia contra as maquinações
das denominadas elites, que estariam tentando preservar privilégios em face das
demandas do povão. Lula situa-se, nos palanques, do lado dos humildes, dos
descamisados, dos pretos, índios e quilombolas. Mas, de outro lado, preserva as
linhas mestras da política macroeconômica herdada dos governos anteriores, o que
lhe tem possibilitado atrair as inversões externas e a entrada de divisas
necessárias para manter o crescimento econômico, em que pese o absurdo aumento
do gasto público e o calote do governo à dívida interna, que mais do que
triplicou ao longo dos últimos sete anos e que força a manutenção de juros
estratosféricos (para alegria dos banqueiros) e a aplicação de uma iníqua
política tributária que pune brutalmente quem trabalha e quem produz.
É clara a simpatia do presidente Lula pelo seu homólogo venezuelano a
quem deu apoio estratégico num momento decisivo para a permanência de Chávez no
poder, enviando um navio da Petrobrás a fim de garantir o abastecimento,
ameaçado pela greve geral em 2003. O populismo do carismático Lula coexiste
perfeitamente com a estrutura patrimonial do Estado, que levou o partido do
governo a gerir a coisa pública como propriedade privada, com os desmandos de
corrupção generalizada que mancharam a memória do outrora moralizante grupo de
petistas alçados ao poder em 2002. Populismo e tradição patrimonialista
fundiram-se, certamente, em macunaímico carnaval que deitou por terra a moral
pública e que entronizou o cinismo do bateu-levou
ou da ética totalitária gramsciana, que visa à hegemonia do proletariado
(leia-se: do novo peleguismo sindical, que escapa aos controles do Tribunal de
Contas da União). Está consolidado, no Brasil, novo modelo de neopopulismo de esquerda, de tipo
peleguista e estatizante.
Conclusão.
O neopopulismo na América do
Sul, como estilo praticado por governantes carismáticos no seio da mais ampla
estrutura patrimonialista da sociedade, conduzirá estes países, certamente,
como já está acontecendo, a um longo período de estagnação, em decorrência da
falta de racionalidade na gestão do Estado. Compadrio, corrupção,
autoritarismo, falta de transparência, desaguarão em enfraquecimento
progressivo da democracia e perda da capacidade competitiva, num mundo em que
este fator é fundamental para garantir a sobrevivência em meio a países que,
como a China e a Índia, crescem de forma continuada e agressiva. O neopopulismo traduz-se, assim, em fator
de atraso para os nossos países.
É bem verdade que a atual onda neopopulista
encontrou os nossos países com uma boa situação econômica, em parte decorrente
das medidas saneadoras realizadas ao longo dos anos 90 do século passado, no
terreno do controle sobre a inflação e em parte, também, em virtude da
valorização das commodities
produzidas na região, no mercado internacional. Assim, como frisa Álvaro Vargas
Llosa, [2007: 19], “o que está ocorrendo agora é que os populistas têm muito
dinheiro à sua disposição, desde Hugo Chávez até Nestor Kirschner”. Mas a
situação, não podemos negar, tende a mudar fortemente nos próximas anos, sendo
que já se anunciam dificuldades decorrentes da instabilidade dos mercados
internacionais, causada basicamente pela desaceleração da economia americana.
Em face das incertezas que começam a aparecer, os mandatários populistas ainda
assumem posições de palanque.
Preocupa notadamente o fato, observado em todos os casos analisados, da
tentativa dos Executivos hipertrofiados pretenderem se vincular diretamente às
massas - ao povão que dizem representar – deixando de lado as instituições do
governo representativo. Isso, num mundo cada vez mais complexo e com sociedades
cada vez mais informadas e diferenciadas em grupos ascendentes, traduzir-se-á
em conflitos violentos, que somente poderão ser desmontados e equacionados com
a prática da representação de interesses nos correspondentes Parlamentos. O que
está acontecendo nas últimas semanas na Bolívia é uma prova disso, bem como a
insatisfação crescente que os observadores auscultam na sociedade venezuelana.
Na medida em que a representação – e os Partidos que a alimentam – falha,
falham também os caminhos para o equacionamento dos problemas. Pretender
substituir a representação política pela política de participação direta do
povo em praça pública, é uma infantilidade que sempre sai cara. Nas sociedades
de massas, a deliberação da democracia participativa pressupõe e complementa,
não substitui, a democracia representativa. Essa vã tentativa escora-se num
pressuposto falso, decorrente do democratismo
rousseauniano: a legitimidade de quem é eleito pelo voto direto confere-lhe
uma soberania total, sendo que o mandato conferido em eleições refere-se a
aspectos limitados que não abarcam a totalidade da vida social. Presidentes
eleitos são legítimos para agirem dentro dos marcos da soberania limitada
assinalada pela Constituição, não para exercerem um poder discricionário. Esta
crítica já tinha sido feita, no início do século XIX, por Benjamin Constant de
Rebecque, nos seus Princípios de política. A
nossa tradição patrimonialista simplesmente passou uma borracha sobre estes
ensinamentos do liberalismo doutrinário.
Somente uma crítica continuada acerca dos mecanismos de ensimesmamento,
de autoritarismo e de espírito antiliberal presentes nos vários neopopulismos na América Latina,
afastar-nos-á da cilada da utopia arcaica
que ameaça nos levar de volta ao passado.
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