Em Agosto de 2002 escrevi esta análise acerca das semelhanças entre os socialismos francês e brasileiro. Depois de ver o desempenho do governo Hollande, que não consegue fazer despegar o avião da economia francesa, e depois de ver, por outro lado, o tamanho do "pibinho" com que o terceiro governo petista nos brinda, acho que a minha análise tem plena atualidade.
O que é que a França tem de comum com o
Brasil? Poderiamos dizer que, em primeiro lugar, a estrutura centralizada do
Estado. Em segundo lugar, poder-se-ia afirmar, validamente, que os nossos
marxistas são tão estatizantes e dogmáticos quanto os comunistas franceses.
Estalinistas mesmo. Com uma diferença: na França, e talvez em Portugal e na
Espanha, esses dinossauros ficaram confinados no PC. No Brasil, mimetizam-se em
tudo quanto é partido de esquerda, do PT ao PC do B, ocupando sofregamente o
segundo escalão dos Ministérios, quando não a direção das Universidades
Federais e as Secretarias Estaduais ou Municipais, nos lugares onde há
governantes favoráveis. Das diferentes siglas que integram a fatia ideológica soi disant "progressista",
parece que somente uma desencarnou, no Brasil, do velho marxismo-leninismo: o
PPS, que se apresenta, no seu programa, como um Partido de inspiração
social-democrata.
A recente derrota da esquerda nas eleições
presidenciais francesas, talvez deva ser inserida nesse contexto. A sociedade
não acredita mais no discurso ideológico tradicional da esquerda. Jospin levou
ao seu palanque o nosso bravo Lula, e está provado que isso não melhorou as
suas condições eleitorais. Será que Lula é pé frio? Deixemos a resposta a essa
pergunta para os que administram bola de cristal. O problema, no plano real,
não é esse. O problema radica na semelhança entre as esquerdas francesa e
brasileira. Nenhuma das duas conseguiu se modernizar, ao contrário do que
fizeram os esquerdistas na Espanha (com Felipe González), na Itália (com
Massimo d'Alema) e na Inglaterra (com Anthony Giddens e Tony Blair). Moral da
história: por não terem se modernizado, as esquerdas francesa e brasileira metem
medo no eleitorado e nos investidores. No caso francês, logo após a eleição de
Jospin para o cargo de primeiro-ministro, mais de quinze mil empresas cruzaram
o Canal da Mancha, fugindo do espírito orçamentívoro dos socialistas e buscando
os ares mais liberais da Grã Bretanha, onde o Novo Trabalhismo teve a sensatez
de manter uma política tributária que não desestimulasse os investimentos e a
livre iniciativa. Moral da história: a economia francesa estagnou-se e perdeu
competitividade, não diminuiu o desemprego, tendo aumentado sensivelmente, em
decorrência desses fatores, as tensões sociais e a insegurança geral da
população. Até os imigrantes do Centro da Europa preferem se expor aos riscos
de fugir dos refúgios para imigrantes construídos no noroeste da França, e se
aventuram a percorrer a pé a perigosa rota do Eurotúnel. O clima na Inglaterra
é melhor, até para os que não têm nada.
Por essas semelhanças entre a França e o
Brasil, certamente será de interesse para os leitores brasileiros a mais
recente obra do historiador francês Maurice Druon intitulada: La
France aux ordres d'un cadavre (Paris: Editions de Fallois / Editions
du Rocher, 2000, 146 pg.), cuja síntese é assim apresentada pelos editores:
"Depois do final da Segunda Guerra Mundial, a França vive em regime
semi-marxista, sendo o único país da Europa que se encontra nessa situação. O
cadáver evocado pelo título é o da União soviética, morta há cerca de dez anos,
mas cujas orientações, instruções e consignas dadas ao Partido Comunista
Francês e retomadas pelos sindicatos, continuam a se impor à nossa sociedade.
Função pública, setor nacionalizado, convenções coletivas, código de trabalho,
política fiscal, administração de justiça, ensino e pesquisa, tudo sofre
conseqüências dos planos, concertados à época da liberação e durante a guerra
fria, que tentavam fazer esmorecer ou desestabilizar nosso país, a fim de
alinhá-lo com o modelo soviético. Os efeitos penetraram de tal modo nos nossos
costumes que os cidadãos não os percebem. Mas a situação da França tem sido
gravemente afetada. Este livro apresenta coisas nunca ditas, nem com tal vigor,
por um escritor que tem ocupado altos cargos no Estado, e que está bem
informado acerca de todos os aspectos da vida pública" [Apresentação,
segunda capa].
Antes de prosseguir, no entanto, falemos um
pouco do autor. Maurice Druon, da Academia Francesa, é um escritor conhecido
internacionalmente graças à saga histórica intitulada Les rois maudits (cuja
última edição apareceu na coleção "Volumes", Paris: Plon, 1999, 7
volumes). Druon é autor também de duas séries de romances históricos, ambas
reeditadas pela editora Plon, em 1999: Romans Mithologiques (Les Mémoires de Zeus, Alexandre le Grand,
Les Rivages et les Sources) e Romans Contemporains (Les grandes Familles, La chute des corps,
Rendez-vous aux enfers, La volupté d'être). Outras obras de Maurice Druon
são as seguintes: Mégarée, pièce en trois actes (1944), Lettres d'un Européen (1944),
Nouvelles lettres d'un Européen (1970), La dernière brigade
(1946), Remarques (1962), Un voyageur (1954), L'Hôtel
de Mondez (1956), Tistou, les pouces verts (1957), Des
seigneurs de la plaine à l'Hôtel de Mondez (1962), Paris, de César à Saint Louis
(1964), Bernard Buffet (1964), Le pouvoir, notes et maximes (1965), Le
bonheur des uns (1967), Vézelay, colline éternelle (1968),
L'Avenir en désarroi (1968), Une église qui se trompe de siècle
(1972), La parole et le pouvoir (1974), Attention la France! (1981),
Réformer
la démocratie (1982), Lettre aux Français sur la langue et leur
âme (1994), Circonstances 1 - Circonstances civiques, du voyage, du gaullisme (1997,
prêmio Jules Simon), Circonstances 2 -Circonstances politiques I,
1954-1974 (1998), Circonstances 3 - Circonstances politiques
II, 1974-1998 (1999), Le "bon Français" (1999, prêmio
Agrippa d'Aubigné).
Voltemos à obra que ora comentamos: La
France aux ordres d'un cadavre. O autor inspira-se na famosa sentença
de Tocqueville: "Os Franceses querem a igualdade; e quando não a encontram
na liberdade, procuram-na na escravidão" [pg. 135]. Como epígrafe, utiliza
as palavras de Montesquieu: "Quando se trata de provar coisas tão claras,
estamos seguros de que não convenceremos" [pg. 7]. Mesmo que o PC francês,
os comunistas portugueses ou os marxistas-leninistas tupiniquins não se convençam
muito com as coisas tão claras mostradas pelo autor, são meridianas as ligações
que ele estabelece entre o centralismo cartorial francês (que, como mostrou
Tocqueville na sua obra L'Ancien Régime et la Révolution tem
séculos de história) e o processo de marxistização ocorrido por influência
soviética. Não que o primeiro tenha sido causado pelo segundo. Mas a
marxistização deitou no leito de Procusto do velho centralismo e lhe forneceu
sangue novo. Ou sangue ectoplasmático, já que Druon fala em obediência a um
cadáver.
A União Soviética aplicou à França as
receitas de Sun-Zu (o famoso estrategista chinês contemporâneo de Buda e
Péricles, cujos escritos eram uma espécie de catecismo para os serviços
secretos soviéticos). A respeito, frisa Maurice Druon: "A arte suprema da
guerra, para Sun-Zu, consiste em conquistar o país ou cidades sem ter de dar a
batalha, mas debilitando-os no interior, diminuindo os seus recursos e
minando-os moralmente, até que fossem incapazes de se defenderem e se pudesse
então pegá-los como frutos já podres. Para isso, todos os meios e todos os
aliados são bons: a propagação de falsas notícias (ou desinformação), o
estímulo às rivalidades internas, o descrédito jogado sobre os chefes por meio
de falsas acusações, a infiltração das administrações por agentes da
propaganda, a parálise do trabalho, a queda dos rendimentos. Depois de 2500
anos, se os processos são evidentemente diferentes, os princípios e os
objetivos permanecem os mesmos" [pg. 14-15].
Em meados de 1920, Lenine tinha formulado e
feito adotar pelo Komintern (a Internacional Comunista) as 21 condições que
deveriam ser aceitas pelos partidos que quisessem fazer parte dessa
Internacional. O Komintern era definido como "o partido internacional da
insurreição e da ditadura proletária" [pg. 20-21]. E um dos seus
mandamentos era o seguinte: "Em quase todos os países da Europa e da
América, a luta de classes entra no período de guerra civil. Os comunistas não
podem, nessas condições, confiar na legalidade burguesa. É seu dever criar em
todos os lugares, paralelamente à organização legal, um organismo clandestino
capaz de cumprir, no momento decisivo, com o seu dever em face da
revolução" [pg. 21].
O Partido Comunista constituiria a
"seção francesa" da Internacional comunista. Em dezembro de 1920
houve uma polarização das organizações trabalhistas da França ao redor de dois
núcleos: a Section Française de
l'International Ouvrière (SFIO) e a Section
Française de l'Internationale Communiste, que se converteu no Partido
Comunista Francês (PCF), com a sua filial sindical, a Confédération Générale du Travail Unitaire (CGTU), alinhadas, estas
duas últimas organizações, com os princípios formulados por Moscou. É bom
lembrar que o Komintern constituiu, no período estalinista, uma
"gigantesca burocracia com vocação mundial para a subversão e a
propaganda" [pg. 21], um formidável ordenador ou processador da
estratégia, ao mesmo tempo que um formulador de ordens táticas instalado a dois
passos do Kremlin, e onde os Partidos Comunistas dos diversos países não
existiam senão como "seções".
A respeito da política estalinista, frisa
Druon: "A genialidade de Stalin consistiu em construir e sustentar, na
mesma mão, de um lado um Estado-partido com todos os traços do nacionalismo, do
imperialismo e da ditadura totalitária, mas que era considerado como a fachada
do socialismo em construção e, de outra parte, esse estado maior da revolução mundial que, na falta de chegar
rapidamente a esta, servia principalmente aos interesses e ao poder da
URSS" [pg. 21-22].
O fato de o PC francês não ter conseguido
enquadrar todos os ativistas, em decorrência da indisciplina que grassava nos
seus quadros, fez com que, no Komintern, a França fosse jogada no saco de lixo
dos "países latinos". Mas, devido à importância estratégica do país
na Europa, os soviéticos decidiram apostar na marxistização ou sovietização dos
quadros, enviando para a França um representante direto, Eugen Fried (judeu
húngaro de nascimento, de nacionalidade tcheco-eslovaca, que tinha sido um dos
fundadores do PC tcheco e que era um homem sedutor, que falava fluentemente
várias línguas, que era, de outro lado, um ativista perfeito, teórico e tático,
bom negociador, trabalhador incansável e muito próximo de um dos colaboradores
mais íntimos de Stalin). Druon alicerça-se, neste ponto, na obra de Annie
Kriegel e Stéphane Courois, intitulada Eugen Fried (Paris: Seuil, 1997).
Poucas pessoas sabiam que Fried integrava o bureau político do PC francês, ao
lado de Thorez, Duclos, Marty e Frachon, mais precisamente desempenhando as
funções de chefia. Fried foi quem expulsou Doriot (que desempenhava as funções
de maire em Saint-Denis), pelo crime
de "desviacionismo". Foi igualmente Fried quem confirmou Maurice
Thorez na chefia do Partido. A respeito, escreve Druon: "Nada de raro que,
sob essa férula, o PCF tenha se convertido no mais estalinista dos partidos
comunistas e que, por impregnação mental e força de hábito, tenha se conservado
tal até os nossos dias, tendo renunciado ao estalinismo apenas de dentes para
fora" [pg. 25].
O Front
Populaire de Léon Blum, com as reformas socialistas em andamento, semeou o
terror no seio da burguesia, segundo Druon, em relação à revolução proletária e
à sovietização do país. Esse clima abriu a porta ao espírito de
colaboracionismo da República de Vichy. No momento de reordenamento das
instituições após a Segunda Guerra Mundial, o autor traça o seguinte quadro:
"No governo de 1945, no qual de Gaulle deveria abrir espaço aos
comunistas, eles teriam querido o exército; mas ficaram com o armamento. Eles
desejavam, de outro lado, o ministério do Interior, mas não conseguiram. Em
compensação, Maurice Thorez recebeu o ministério da Função Pública. Atribuição
sem risco subversivo imediato, mas cujas conseqüências seriam duradouras e
significativas. A Função Pública é todo o aparelho do Estado, as suas alavancas
e as suas engrenagens" [pg. 47].
Maurice Thorez foi o encarregado, como
ministro da Função Pública, de redigir o estatuto do servidor público. A
respectiva lei foi promulgada em 5 de outubro de 1946. A respeito dessa
legislação, afirma Druon: "Pode-se datar dessa lei a dinossaurização das
administrações, a sua tendência a um crescimento pletórico, a lentidão dos seus
procedimentos, a incapacidade crônica do Estado para proceder às reformas mais
evidentemente necessárias. Essa lei significava a petrificação de tudo!"
[pg. 49]. O nosso autor destaca o imobilismo a que conduziu essa nova
legislação, com as seguintes palavras: "Pois seja lá o que se queira ou o
que se faça, não se pode impedir que, alicerçados no estatuto de 46, os
sindicatos controlem o desenvolvimento das carreiras, as promoções, as
mudanças, as sanções. Salvo para os postos muito altos, a promoção por mérito
ou por eficiência é impossível; os funcionários, bons ou maus, progridem de
nível em nível, de forma pouco racional. O absenteísmo é tolerado, senão
encorajado, os sindicatos garantindo a freguesia. É necessário que uma falta
seja gravíssima, uma desonestidade verdadeiramente enorme ou um escândalo muito
patente, para que medidas disciplinares sejam tomadas. O culpável sempre
encontra um sindicato para se proteger ou para encontrar situações atenuantes.
A preguiça, a lentidão, a falta de atenção, o erro, coisas todas prejudiciais
aos cidadãos, são faltas veniais e perdoadas de antemão" [pg. 51-52].
O fato de os comunistas terem se apropriado
do Ministério da Função Pública produziu, no seio do Estado francês, um efeito
perverso: reforçou a velha tendência estatizante e centralizadora, proveniente
do Ancien Régime e mantida inalterada
pelo regime napoleônico e pelo republicanismo autoritário. Esse fator é o
responsável, nos dias que correm, pela
perda de competitividade da França no seio da União Européia e no plano
internacional. Em relação ao inchaço burocrático que essa legislação produz,
frisa o nosso autor: "Mas ninguém ousa evocar os 20 mil empregos fictícios
que as administrações abrigam. Quando adianto essa cifra de 20 mil, estou
seguramente por baixo da conta. Há vinte anos, esses empregos eram calculados
entre 16 mil e 18 mil. Pois o número exato jamais consegue ser estabelecido,
mesmo que exista um ministério da Função Pública que poderia tratar de sabê-lo.
Esse é, ao que parece, um tema tabu, acerca do qual é mantido o mais completo
silêncio" [pg. 60].
O engessamento da função pública tem
beneficiado, em primeiro lugar, à burocracia improdutiva e corrupta. Druon
considera que os Ministérios da Educação e da Justiça foram invadidos, nos
últimos 60 anos, por verdadeiros batalhões de burocratas que tinham como única divisa
manter os seus privilégios, mesmo que para isso fosse necessário desmontar a
instrução pública e a administração de justiça. O ministério da Educação, por
exemplo, tem crescido em burocratas
muito mais do que o necessário. Conta atualmente com 1,1 milhão de
funcionários, dos quais 900 mil docentes. Nos últimos vinte anos, o número de
estudantes aumentou, no entanto, apenas 17%, ao passo que o de docentes cresceu
40%, muito além das necessidades reais.
Mas também têm sido beneficiadas as empresas
estatais, verdadeiras massas falidas que custam caro ao tesouro público.
"Se o Estado produz - frisa Druon -, ele só pode fá-lo em situação de
monopólio. O Estado não saberia se permitir entrar no circuito da concorrência.
Isso vai contra a sua dignidade. O Estado está aí para fixar as regras do jogo,
não para jogar e muito menos para perder. Ora, o peso dos procedimentos nas
empresas públicas, a burocratização do seu pessoal, a irresponsabilidade
material dos seus quadros, as vacinam contra a competitividade. E se elas usam
procedimentos porventura duvidosos (que às vezes são usados pelas empresas
particulares), o descrédito recai sobre o Estado. É só lembrar o escândalo do affaire Elf-Aquitaine" [pg. 66].
O crescimento descontrolado do pessoal
vinculado ao Ministério da Função Pública custa caro aos cofres da nação. A
carga tributária que pagam os contribuintes franceses é, sem sombra de dúvida,
a mais alta da Europa Ocidental. E explica o fenômeno de que mais de 15 mil
empresas tenham cruzado, nos últimos cinco anos, o Canal da Mancha, para se
estabelecerem na Inglaterra, país que goza de uma política tributária muito
mais favorável aos investimentos e à geração de empregos. A respeito, afirma
Druon: "As cargas que pesam sobre o contribuinte francês, imposto sobre a
renda, taxas, quotas, retenções obrigatórias, transferências sociais (saúde,
família, desemprego, velhice) elevam-se, todas compreendidas, a 62% do ganho
individual médio. Dizemos médio. Como um número importante de cidadãos, levando
em consideração a franqueza dos seus ingressos, são livres de algumas dessas
contribuições, é apenas lógico que os outros assumam encargos tributários que
oscilam entre 70% e 100%. A Grã Bretanha conheceu há trinta anos esse tipo de
excesso. A vida ali era sinistra; as lojas, desertas, faliam umas após outras,
e todo o país periclitava. Hoje, é um país próspero e atraente; o desemprego
caiu ali a 5,9% e Londres é uma festa. A carga fiscal média foi reduzida a
40%" [pg. 90].
Para ilustrar um pouco o pessimismo do nosso
autor, vale a pena lembrar os números do gigantismo estatal francês. No ano de
1998, segundo pesquisa desenvolvida pelo jornal Le Figaro [cf. Nirascou,
1998: 10], calcula-se que foram criados ao redor de 15 a 16 mil cargos públicos
suplementares. Isso, num país que conta com uma significativa população de
empregados públicos (5,1 milhões) e de funcionários das empresas estatais (1,2
milhões), é realmente um exagera e sinaliza de forma negativa à sociedade uma
falsa saída: tudo se resolve pelo Estado encostando nele mais gente. Esse é
muito provavelmente o combustível que alimenta as freqüentes passeatas pelas
avenidas parisienses dos chamados "excluídos", ou seja, dos que não
gozam das benesses do funcionalismo e que gostariam de participar do bolo nacional.
O tamanho do funcionalismo público francês (equivalente a 25% da população
economicamente ativa) contrasta com o de outros países desenvolvidos: 15% nos
Estados Unidos e na Alemanha, 19% na Bélgica, 18.4% em Portugal, 17,8 % na
Itália, 17% na Irlanda, 14,8% na Espanha, 14,4% no Reino Unido, 12% nos Países
Baixos, 11% em Luxemburgo, 9,8% na Grécia, etc.
As benesses do funcionalismo público francês
são, aliás, nada desprezíveis. Com exceção dos altos cargos públicos (ao redor
de 25 mil funcionários, cujos salários são inferiores aos do setor privado em
aproximadamente 25 ou 30%), todas as outras categorias ganham melhor do que no
setor privado. Do ponto de vista da distribuição do bolo orçamentário que
chegou em 1998 a 1.550 bilhões de francos (258 bilhões de dólares), o
funcionalismo público abocanha ao redor de 40%, equivalentes a 650 bilhões de
francos (103,3 bilhões de dólares). Longe de gerar essa situação a paz social,
constitui motivo de perturbação universal. O funcionalismo, ao que tudo indica,
quer mais. Calcula-se que as greves no setor público eqüivalem a 60% dos
movimentos sociais na França. os outros 40% devem corresponder aos protestos
dos que se consideram excluídos da festança oficial [cf. Vélez, 2000: 16-17].
A burocracia alimentada pelos regulamentos
favoráveis do Ministério da Função Pública garante, no sentir de Druon, que tal
estado de coisas se mantenha inalterado. O sistema tributário repousa num
verdadeiro cipoal de leis e regulamentos que ninguém consegue entender. A
última edição do Code général des impôts conta com 2.097 páginas. Mas isso não é
tudo. A Documentation fiscale de base, publicada em 1999 pela Direção
Nacional de Impostos (a temida DGI, uma espécie de Big Brother fiscal) tem
5.948 páginas, exatamente 2.170 páginas a mais do que a publicação
correspondente ao ano de 1990! Verdadeiro monumento digno do mais perfeito
colbertismo, em pleno século XXI. Para garantir a tortura aos contribuintes, a
DGI conta com nada menos do que com 80 mil funcionários. Esse emaranhado de
burocratas e de leis produz no cidadão francês uma terrível doença, segundo
Druon: "le Français ne comprend rien
à la fiscalité qui l'accable" [pg. 91]. Atrever-me-ia a dizer que talvez
não se trate de uma doença, mas de um expediente dos atribulados cidadãos para
poder conservar a saúde mental, algo assim como o espírito carnavalesco
brasileiro em face da irracionalidade do Leviatã orçamentívoro, que là-bas, no Brasil tropical, cobra mais
de 50 impostos em cascata, além de contribuições compulsórias como a CPMF e os
impostos disfarçados como o ICMS.
Bibliografia citada
NIRASCOU, Gérard. "Fonctionnaires: le trop-plein
(Enquete)". In Le Figaro, Paris, 12 de fevereiro de 1998, pg. 10.
VÉLEZ Rodríguez,
Ricardo. "O gigantismo estatal francês: aspecto político". In: Ubiratan Macedo (organizador), Avaliação
crítica da social-democracia - o exemplo francês. São Paulo: Massao Ohno / Instituto Tancredo Neves, 2000, pg.
15-36.