O Positivismo Ilustrado, em Portugal e no
Brasil, percorreu caminhos diferentes, embora os seus representantes tivessem
se alicerçado em fontes comuns. A diversidade correu por conta, em ambos os
contextos, das diferentes condições sócio-culturais em que foram recebidas as
idéias positivistas. Os Ilustrados brasileiros e portugueses assemelham-se em
dois pontos fundamentais: de um lado, rejeitaram o dogmatismo comteano e se
afastaram, de outro, da versão autoritária de República proposta pelos ícones
da escola. Deitaram, assim, os alicerces para uma prática política aberta às
instituições do governo representativo, bem como às reformas sociais.
Inseriram-se, destarte, no seio da vertente modernizadora que, do ângulo
sócio-econômico e político, abriu perspectivas novas, em Portugal e no Brasil,
para o ulterior desenvolvimento de agremiações próximas da social-democracia,
no decorrer do século XX.
Esta exposição tem por objetivo ressaltar os
aspectos básicos do pensamento de dois Positivistas Ilustrados: Sílvio Romero,
na Brasil, e Teófilo Braga, em Portugal. Embora, ao longo da sua atuação como
homens públicos e pensadores, ambos os autores tivessem se enfrentado em
debates de índole política e filosófica, os seus pontos de semelhança são,
contudo, bem marcantes, e ficarão patentes nas páginas que seguem. Serão
ressaltados, outrossim, os aspectos em que ambos se diferenciam.
Nesta apresentação será enfatizado o aspecto
do pensamento ético, a fim de cumprir com a temática adotada para o Colóquio
Antero de Quental (realizado na Universidade Federal de São João Del Rei, entre
12 e 17 de Setembro de 2011).
I - A questão ética no contexto do
Culturalismo Sociológico de Sílvio Romero.
Sílvio
Romero pertence ao grupo denominado de “Positivistas Ilustrados”, que tomou de
empréstimo de Augusto Comte (1798-1857) alguns elementos da sua classificação
das ciências, bem como da concepção da filosofia como síntese do conhecimento.
Mas a influência comteana, no pensador sergipano, não se estende até os
aspectos dogmáticos da Religião da Humanidade e deixa por fora, também, a
concepção ditatorial da política. No caso específico dos rumos
político-militaristas que o positivismo assumiu no Brasil, o nosso autor não
deixa sombra de dúvidas: considera isso uma verdadeira aberração doutrinária.
Em decorrência desse aspecto negativo, bem como do dogmatismo que inspira à
Religião da Humanidade, o nosso autor considera que o Positivismo, na forma em
que foi introduzido na cultura brasileira, constitui um verdadeiro perigo para
a formação das novas gerações, um perigo que precisa ser extirpado com a
crítica sistemática do ângulo filosófico. “O Positivismo no mundo, e
nomeadamente no Brasil – frisa Sílvio Romero – deve ser combatido larga, tenaz
e sistematicamente, ponto por ponto, idéia por idéia, doutrina por doutrina”
[Romero, 1969: 314].
Retomando
a idéia romântica de Zeitgeist (espírito do tempo), num contexto de
positivismo dinamizado pela concepção evolucionista, Romero destacava que o
clima dos novos tempos era, no terreno da classificação das ciências, o da
inter-relação dinâmica entre elas, de forma que a renovação das ciências
naturais provocava a reformulação das humanas. Na sua obra intitulada Ensaio de Filosofia do Direito,
Romero escrevia a respeito: “Aqueles que formamos idéia exata das evoluções do
pensamento humano, sabemos que a lei de seu desenvolvimento é um agente de
transformações. Todas as ciências avançam nessa translação; umas agem sobre as
outras, e é deste modo que as morais experimentam sempre o impulso provindo das
físicas e naturais. Uma vez que tenham estas últimas revelado alguma verdade
nova, cumpre àquela modificar suas concepções. É sabida a revolução que fez no
mundo filosófico a descoberta das verdadeiras leis do Universo. A própria
história, que é o receptáculo supremo de todos os avanços triunfais das idéias,
modifica-se também por elas” [Romero, 1969: 528].
Quais
são as condições de cientificidade da sociologia? Certamente, destaca Sílvio
Romero, não poderíamos exigir que nela se desse sempre e infalivelmente a
previsão constante e a verificação imediata. Mas, nem por isso a sociologia
carece de estatuto científico. No seu Ensaio
de Filosofia do Direito, o nosso pensador fixava assim esse estatuto:
“Decerto, se de ciência formularmos um conceito exagerado, se dissermos, verbigratia, que só é ciência um complexo de conhecimentos organizados e
sistematizados de forma que neles se dê sempre e infalivelmente previsão
constante e verificação imediata; se dermos tal definição, a Sociologia não
é ciência; porém, com ela saem do quadro científico todas as suas companheiras,
restando apenas a Matemática. Mas isto é absurdo. Para haver ciência é
suficiente a delimitação dos assuntos, a possibilidade de aplicar-lhes o
método, a sistematização geral, a indução de leis fundamentais, a previsão mais
ou menos segura em vários casos, a verificação na maioria das hipóteses.
Destarte a Sociologia entra no quadro. O mais é exagero” [Romero, 1969:
545/546].
Em
que pese a presença, na sociologia romeriana, de uma herança determinística,
proveniente, sem dúvida, da sua inspiração positivista (fato que levou Romero a
formular, como já foi mostrado, o princípio de que as ciências morais
“experimentam sempre o impulso provindo das físicas e naturais”), o pensador
sergipano deixou claro, contudo, no que tange às ciências sociais, a
inexistência de hierarquias ou possíveis substituições entre as variáveis
estudadas. Isso equivale, sem dúvida, a rejeitar a idéia de monocausalismo.
Sílvio
Romero, seguindo a proposta de Henri de Tourville (1842-1903), alargou o
universo inicialmente indicado por Frederic Le-Play (1806-1882) para os seus
estudos monográficos, passando da família à sociedade, entendida esta não como
um todo unitário a ser estudado a partir de um único ângulo, mas como
totalidade complexa, passível de ser analisada a partir de “uma série de
questões e problemas a serem estudados pelos processos de observação”. Essas
questões e problemas tinham sido assim enunciados por Tourville: meios de existência,
o lugar, o trabalho, a propriedade, os bens móveis, o salário, a poupança, a
família, o modo de existência, a patronagem, o comércio, as culturas
intelectuais, a religião, a vizinhança, as corporações, a comuna, as uniões de
comunas, a cidade, a região, a província, o Estado, a expansão da raça, o
estrangeiro, a história da raça e a posição ou hierarquia da raça. Ora, Sílvio
Romero adotou o método monográfico aplicado a essas variáveis, pelo fato de ser
compatível com “as doutrinas capitais do evolucionismo sociológico de Spencer”.
Romero
agrupou, nas criações do grupo prático, a indústria, o direito, a moral e a
política e, nas do grupo teórico, a religião, a arte e a ciência. E não duvidou
em destacar o caráter equivalente e irredutível de todas elas. A respeito, o
nosso autor escreveu, no seu Ensaio
de Filosofia do Direito: “É claro que tal distribuição de fenômenos,
coevos, contemporâneos em todas as fases do desenvolvimento social, não
deve desconhecer a interdependência que eles mantêm entre si, nem a
irredutibilidade que devem conservar, e têm conservado de fato até hoje, a
despeito de quaisquer pretensões ilusórias e passageiras em contrário” [Romero,
1969: 605].
O
nosso autor rejeita, como se pode observar, a religião da humanidade comteana,
que fazia da sociedade objeto de culto, não objeto de estudo. Mas, mesmo
reconhecendo o estatuto científico da sociologia, Romero destaca a secreta
vinculação que encadeia toda a série de criações do espírito humano (entre as
quais se encontra a poesia), sob o primado do “espírito preparado pela crítica
científica”.
Mas,
indagamos: se o espírito do tempo é conformado à luz da resposta crítica dada
pela razão face à natureza, não estaria o pensador sergipano privilegiando uma
ordem de fenômenos, os naturais, sobre o fenômeno humano? E se, ao interior
deste último, o espírito do tempo é forjado ao ensejo da resposta crítica que a
razão dá, seguindo a corrente assinalada pelas ciências da natureza, não estará
a poesia prisioneira da razão científica? Não parece que o nosso autor consiga
superar essa aporia, em decorrência de sua inspiração positivista e
spenceriana, em que pese a profissão de fé humanista que o vimos fazer ao se
referir à criação poética.
Sílvio
Romero dedicou especial atenção à discussão acerca de se a sociologia negava a
liberdade humana. Essa problemática tinha sido levantada por Tobias Barreto
(1839-1889), que afirmava: “Enquanto não se provar ser a vontade humana uma
força motriz, como o calor ou a eletricidade, a sociologia nada vale” [apud
Romero, 1969: 535]. O nosso autor considerava que a dificuldade levantada pelo
fundador da Escola do Recife decorria de um duplo equívoco: em primeiro lugar,
postular um único tipo de causalidade para todas as ciências, o mecanicista; em
segundo lugar, afirmar um conceito de liberdade à maneira dos escolásticos,
como liberdade absoluta ou liberum arbitrium indifferentiae. Ora, Sílvio
Romero mostrou que nem uma nem outra hipóteses eram válidas. No seu Ensaio de Filosofia do Direito,
o grande sergipano afirmou: “Opinamos de modo diverso: admitimos com Tobias
Barreto a liberdade, e com Spencer a sociologia. Não existe incompatibilidade
entre as duas afirmações. O próprio filósofo brasileiro nos fala de uma ciência
do Direito, como disciplina da sociedade, ciência que deveria ser impossível se,
onde se desse a liberdade, como no Direito, não chegasse a Ciência. Esse
preconceito (...) provinha de outro ainda maior: supor que só mecanismos, só de
coisas mecânicas é que pode haver ciência. Tal a razão por que ele acrescenta —enquanto não se provar ser a vontade humana
uma força motriz, como o calor ou a eletricidade, a Sociologia nada vale.
Nosso trabalho neste ponto está, pois, indicado pelo próprio filósofo, nosso
amigo: provar a existência da liberdade e conciliá-la com a Ciência. A primeira
parte da empresa é quase desnecessária, porquanto ele próprio admite a
liberdade. Ninguém hoje acredita mais, nem defende a liberdade absoluta (...).
Sustenta-se apenas a liberdade relativa, fato indiscutível da consciência. Reconheceu-se,
e Tobias Barreto mais tarde também entrou nesta direção, ser ela um predicado
da inteligência mais do que da vontade” [Romero, 1969: 534-535].
O culturalismo sociológico em que desaguou
o legado de Tobias Barreto na Escola do Recife, abriu a porta para estudos
científicos das várias áreas da cultura, sendo a moral um desses objetos. Esta
não seria alvo de uma reflexão metafísica ou crítica propriamente tal, mas de
uma descrição sociológica, circunstanciada e abrangente, como as demais realidades
culturais [cf. Paim, 1984: 413]. A respeito dessa abordagem praticada por
Sílvio Romero e Arthur Orlando da Silva (1858-1916), frisa Antônio Paim:
“Recusando a hipótese da moral científica, mas sem pretender, ao mesmo tempo,
livrar-se da filosofia sintética para conceituá-la exclusivamente como
epistemologia, Silvio Romero e Clovis Beviláqua (1859-1944) acabariam ancorando
na temática filosófica suscitada pelo evolucionismo spenceriano. Coube, com
efeito, a Herbert Spencer (1820-1903) o mérito de ter modificado o sentido da
sociologia comteana ao circunscrever os seus limites à tarefa puramente
descritiva do desenvolvimento da sociedade, separando-a expressamente da ética.
Comte havia vinculado sua doutrina da sociedade ao conjunto do sistema, que
objetiva a conquista de um regime sociocrático, de índole totalitária, e que se
identificaria com os regimes nazista e soviético formados no século XX. O
evolucionismo spenceriano, contudo, não assegurava a superação do positivismo,
circulando ambos no âmbito do cientificismo. E só o abandono deste poderia
abrir as comportas à inquirição metafísica, desejada e pretendida pela Escola
do Recife” [Paim, 1984: 411-412].
Embora,
como vimos, aberto ao reconhecimento da liberdade e do seu universo específico,
a cultura, a filosofia de Silvio Romero não parte para uma fundamentação da
disciplina “ética”, como estudo filosófico propriamente dito. A abordagem dos
assuntos relativos a esta vertente ficará mais como uma das múltiplas
possibilidades monográficas do estudo do fenômeno social. A variável ética
ficaria, assim, em Romero, circunscrita a uma “ciência específica”. Fica vazia,
portanto, uma verdadeira conceituação filosófica do que seja o universo moral.
Esta variável, no entanto, embora não tenha no nosso pensador um aprofundamento
adequado do ângulo filosófico, fica no patamar das demais variáveis, não
passíveis, portanto, de serem reduzidas, simploriamente, ao arcabouço de um
monocausalismo, como tinha feito Comte. Seria uma variável passível de
descrição científica, mais no contexto do pensamento de Herber Spencer, do que
propriamente no seio de um aprofundamento filosófico da questão.
Alguns
elementos de reflexão ética aparecem aqui e acolá no discurso do nosso
pensador, mas, como frisei atrás, mais como apontamentos antropológicos, do que
como um aprofundamento filosófico, do ângulo da ética. Examinando, por exemplo,
a questão do dogmatismo positivista em matéria de moral, Silvio criticava
fortemente a visão totalizante de Comte, que inseria o homem como peça de uma
engrenagem salvífica e totalitária, no seio da Religião da Humanidade. A
tolerância, para o pensador sergipano, deveria ser defendida por quem quisesse
manter incólume a dignidade humana. A virtude da tolerância, frisava o nosso
pensador, “fez calar o fanatismo retrógrado e míope do sectarismo obcecado;
apagou as fogueiras da Inquisição; deu aos Estados a igualdade perante a
internacionalidade, atirando para o domínio da consciência as questões de
religião; ela é quem nos garante, agora, o direito de livre discussão diante
desse jesuitismo pavoroso e tremendo que aí tenta levantar-se com o nome de
positivismo ou Religião da Humanidade” [apud Paim, A filosofia da Escola do Recife, 1ª
edição, Rio de Janeiro: Saga, 1966, p. 161].
II - A questão ética, no seio do Positivismo Ilustrado
de Teófilo Braga.
Teófilo Braga destaca a luta que se travou, em meados do século XVIII, ao
ensejo das Reformas Pombalinas, entre o teologismo imperante e a tendência
modernizadora, e define esse confronto desta forma: “Havia uma corrente hostil
contra o Dr. Sanches[1],
argüindo-o de judaísmo para assim combater a liberdade crítica do seu espírito
científico, e a forma como impunha a esfera civil ou o regalismo acima
das ambições teocráticas, pugnando pela criação do ensino secular. Por estas
razões não quis regressar a Portugal, temendo as perseguições inquisitoriais; e
o próprio ministro que o consultava não se atrevia a apresentar o seu nome
glorioso, cobrindo-o com o pseudônimo de Dr. João Mendes Sachetti” [Braga,
1898: III, 381].
Em relação ao Marquês de Pombal,
Teófilo considera que a sua luta contra os jesuítas e a antiga nobreza,
representantes do regime teocrático, foi a base necessária para o ingresso da ciência moderna em Portugal. Eis o seu
conceito resumido acerca da obra do Marquês: “O juízo sobre a sua ação
histórica resume-se em poucas palavras: combateu as duas fortes classes
retrógradas, o clericalismo e a aristocracia, concentrando o poder na ditadura
monárquica, sob a nova forma de ação ministerial; mas nesta obra contraditória
deixou a realeza isolada, como absoluta, a qual, não podendo só por si
sustentar o decadente regime católico-feudal, teve de transigir com a corrente
revolucionária e admitir as instituições liberais. O grande estadista dera
também, pela sua preponderância como ministro, um golpe inconsciente no
prestígio tradicional do poder régio autoritário, que se contentou com a
nominal soberania de reinar sem governar” [Braga, 1898, III, 576].
Em síntese, trava-se de uma modernização incompleta que, ao transigir com
a corrente liberal, teve de admitir instituições imperfeitas próprias do que os
positivistas depreciativamente denominavam de “estado metafísico”. Paradoxalmente,
caberia ao positivismo superar essas imperfeições, bem como o perigo da reação
teológica, levando a termo a almejada reforma do ensino e da sociedade, com
base no culto à ciência, que garantiria a aplicação de conhecimentos para
resolver problemas, à luz dos ensinamentos de Ribeiro Sanches. Teófilo Braga
dedica boa parte da sua História da Universidade de Coimbra (volume terceiro) à criação do Colégio dos
Nobres de Lisboa (1761) [Braga, 1898: III, 351 seg.].
As falhas que Teófilo encontra no funcionamento do Colégio dos Nobres,
dez anos após a sua criação, derivam, segundo ele, do caráter incompleto das
reformas modernizadoras empreendidas pelo Marquês de Pombal. “A grande reforma
pedagógica – conclui Teófilo - não dependia só de decretos; para pô-la em vigor
faltavam elementos que não se criam de repente” [Braga, 1898: III, 354]. Esses
elementos estariam presentes no século seguinte, segundo Teófilo, quando o
advento do positivismo daria as condições para a modernização da sociedade
portuguesa. Assim, o positivismo, nas versões republicana e pedagógica que
vingaram em Portugal, seria a maturação natural das reformas modernizadoras
tentadas por Pombal.
À luz do que foi analisado anteriormente, fica claro que, no contexto das
idéias reformadoras de Pombal, que privilegiavam um conceito prático de ciência
com fins políticos, não poderiam vingar nem uma interpretação puramente teórica
do positivismo, nem uma versão religiosa do mesmo. O positivismo português
ficaria aderido à visão científico-prática e pedagógica herdada da modernização
pombalina, e rejeitaria a interpretação mística da Religião da Humanidade. Como
observa Almeida Catroga, “a par de algumas analogias, o positivismo português
assumiu características diferentes do positivismo brasileiro”. Na verdade,
enquanto em Portugal o dogmatismo da Religião da Humanidade não teve qualquer
acolhimento, no Brasil, o positivismo ortodoxo, ensinado por Miguel Lemos (1845-1917)
e Teixeira Mendes (1855-1927), ganhou muitos adeptos” [Catroga, 1977: 31, nota
2].
No Brasil vingou uma interpretação mais ampla do positivismo, não se
restringindo à simples versão pedagógico-científica (denominada de positivismo
ilustrado), mas abrangendo, também, os aspectos místicos da Religião da
Humanidade (sustentados pela Igreja Positivista), bem como a interpretação
político-autocrática do comtismo (presente na ditadura castilhista [cf. Vélez
Rodríguez, 2000], que vingou no Rio Grande do Sul e que se converteu no
arquétipo autoritário da República, que foi proclamada no Brasil no golpe
militar de 15 de novembro de 1889).
Segundo Almeida Catroga, o positivismo contribuiu grandemente para a
coesão doutrinária do Partido Republicano em Portugal. O republicanismo
português teria sentido de perto as seqüelas do radicalismo que inspirou à
Comuna de Paris (1871), depois da qual a situação política evoluiu, após o processo
repressivo, até instalar-se uma República moderada, na qual foi significativo o
influxo do ideário comteano. “Deste modo – diz Catroga – (em Portugal) desde
cedo se inicia o acasalamento entre o positivismo e o republicanismo. Em 1874,
já Emil Littré (1801-1881) se congratulava pelo avanço da filosofia positivista
em Portugal” [Catroga, 1977: 36-37]. Há uma diferença marcante entre o
republicanismo positivista português, da lavra de Teófilo Braga, e o
brasileiro, na versão castilhista que foi a que terminou prevalecendo.
Para Teófilo, seguidor do positivismo legado à tradição do século XX por
Emil Littré (1801-1881) e, de outro lado, influenciado pelos ideais liberais do
romantismo, o republicanismo não se coadunava com a versão autoritária pensada
por Comte. O pensador português achava que a constituição das instituições
republicanas não poderia ser feita de costas para a tradição histórica
nacional, sendo que, na consolidação das mesmas, deveria se levar em
consideração o funcionamento de mecanismos governamentais que abarcassem a
sociedade portuguesa como um todo. Teófilo apelava, outrossim, para uma base
étnica que abarcasse, na sua essência e diversidade, o povo português. Ficava a
porta aberta, aqui, para a aceitação da prática parlamentar no contexto de um
regime inspirado na filosofia positivista. Os castilhistas, no Brasil,
certamente ficaram longe desse ideal integrador, por conta do seu preconceito
contra a representação política, genericamente rejeitada como “prática
metafísica”. Lembremos que, para Júlio de Castilhos (1860-1903) e Getúlio
Vargas (1883-1954), “o regime parlamentar era um regime para lamentar”, ao
passo que, para Teófilo, como muito bem lembra Pedro Calafate [2010: 53-61], “o
regime democrático e republicano era uma conseqüência lógica das tradições e
instituições mais genuínas da história nacional”.
De outro lado, a versão
republicana proposta por Teófilo contava com amplas bases doutrinárias, que lhe
dariam um arcabouço teórico alicerçado na filosofia positiva. Teófilo se aproximava,
sob este viés, do “positivismo ilustrado” brasileiro, na versão de autores como
Silvio Romero e Pedro Lessa (1859-1921), bem como, já num plano mais amplo, de
pensadores da talha de John Stuart Mill (1806-1873) que, na Inglaterra,
elaborou versão do positivismo crítica do dogmatismo comteano. Faltava aos
positivistas gaúchos, no Brasil, no entanto, esse élan teórico, tendo-se
caracterizado mais como espíritos pragmáticos, sem maiores preocupações
doutrinárias. Sob este viés, certamente,
o positivismo de Teófilo contrastava com o republicanismo autoritário e
caudilhesco de Júlio de Castilhos, Pinheiro Machado (1851-1915), Borges de
Medeiros (1864-1961) e Getúlio Vargas, que terminou formatando as instituições
brasileiras, ao longo do século XX.
No terreno
específico do pensamento ético, Teófilo, ao contrário de Sílvio Romero,
preocupou-se em formular uma concepção filosófica que abarcava, outrossim, os
aspectos antropológico, gnosiológico e político, como de forma erudita mostrou
António Braz Teixeira [2011]. No entanto, longe de formular uma concepção com
sólidos alicerces na tradição filosófica ocidental, o nosso autor ficou preso,
como frisa Joaquim de Carvalho (1892-1958), ao “espírito de sistema”, tomando
de empréstimo, de Comte e de Littré, idéias que o conduziram a uma síntese com
pouco rigor filosófico e muita generalização sociológica, numa enfadonha
amálgama de idéias hauridas do messianismo de Jules Michelet (1798-1874) e do
historicismo de Giambattista Vico (1668-1744), com a presença de uma concepção
dialética das etnias (godo-lite X árabes, de onde teriam surgido os moçárabes,
expressão telúrica da nacionalidade). Estaria presente aqui, nesta
contraposição, “de oídas que no de vista”, como diria dom Quixote, a dialética
“liberdade bárbara X ordem romana”, formulada por François Guizot (1787-1874)
para explicar a formação da Idade Média européia?
No magno
esforço de traduzir o Volkgeist português,
o nosso autor desaguou numa concepção que poderíamos denominar de “ética
heterônoma”, segundo a qual a grande realização moral consistiria em auscultar
a melodia comteana da marcha da civilização rumo à grande síntese universal e
definitiva, colocando, nessa maré, a façanha do povo português na busca da sua
identidade, revelada nas criações literárias de todas as épocas. Aí radicaria a
grandeza, bem como a limitação do nosso autor. Grandeza que se confunde com a
exaltação da alma portuguesa, acreditando firmemente na sua existência e não
poupando esforços para encontrá-la viva ao longo dos séculos; limitação que
decorre da escassa disciplina historiográfica que o contrapôs ao grande
Alexandre Herculano (1810-1877).
No terreno
político, esse hercúleo esforço traduziu-se numa visão abrangente de República,
que abrigaria todos os segmentos da Nação portuguesa. À sombra desse ideal,
consolidou-se, em Portugal, uma proposta política abarcante e não excludente,
dando alimento à posterior evolução de um socialismo democrático. Diferente
caminho do trilhado pelo republicanismo no Brasil, que foi formatado no leito
de Procusto do cientificismo castilhista, muito mais totalitário do que a
proposta comteana.
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[1] António Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), médico português de formação
enciclopedista, um dos idealizadores das Reformas Pombalinas, com a suas obras
intituladas: Cartas sobre a educação da mocidade (1760) e Método
para aprender a estudar Medicina (1763). Exerceu as funções de médico
militar na Rússia. Inspirado no Colégio dos Nobres de São Petersburgo, foi o
idealizador do Colégio Militar ou dos Nobres, criado em Lisboa em 1761. Ribeiro
Sanches tinha sido discípulo do médico holandês Hermann Boerhaave (1688-1738),
em Leiden.
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