Universidade de Oxford, a mais antiga da Grã Bretanha e onde repercutiu, mais do que em outras Universidades européias, a tradição do empirismo |
1 – Conceituação.
Não há
dúvida quanto à valorização do conceito de experiência no pensamento inglês, já
a partir da Idade Média. Hegel, nas suas Lições sobre a filosofia da história
universal, frisava que “(...) os princípios abstratos e universais nada
representam para os Ingleses, nem lhes dizem nada” [1].
Comentando a
apreciação do pensador alemão, especificamente em relação ao campo do direito,
escreve Martin Laclau: “Referindo-se à Idade Moderna, (...) Hegel não pode
deixar de realçar, com certa admiração, o caso da Inglaterra, país dotado de
uma forte singularidade, que apresenta características que o diferenciam das
restantes nações européias que engloba sob a denominação genérica de mundo germânico. Assim, diz que a partir
do momento em que foi conquistado por Guilherme da Normandia[2],
este país beneficiou-se do singular privilégio de estar ocupado exclusivamente
consigo próprio. E adiante, referindo-se ao direito inglês, nota que nele não
há nenhum princípio universal, nem nenhum pensamento determinante. A
Inglaterra, para ele, é o país da particularidade, dos direitos totalmente
concretos. Evidentemente, este apego da mentalidade inglesa às singularidades
da experiência e esta consideração não sistemática da realidade, não poderiam
deixar de suscitar, num pensador como Hegel, atraído pelas altas abstrações da
metafísica, um sentimento em que coexistem o interesse e certo sentido crítico,
que o levava a falar do atraso em que se encontrava o direito privado inglês” [3].
Esse apego à
particularidade leva o espírito inglês à valorização da experiência do singular
para, a partir daí, pela via indutiva, chegar à generalidade. A respeito frisa
Laclau: “O pensamento inglês tem uma
raiz empírica e indutiva. O Inglês é um povo que ama as suas tradições,
especialmente apto para captar as facetas individuais e peculiares que
apresentam os diversos fenômenos, com certo desdém pelas abstrações, que tendem
a ser evitadas. Maitland[4],
o grande representante da escola histórica do século passado [XIX], dotado de
fina sensibilidade literária, que lhe permitia formular sínteses que se
tornaram lugares comuns, dizia, referindo-se ao comportamento inglês, que este
se caracterizava por continuar a esbarrar no modo empírico para, por fim,
através de sucessivos enganos alcançar a sabedoria: stumbling forward in our empirical fashion, blundering into wisdom”
[5].
À
singularidade histórica apontada veio se somar, sem dúvida, a valorização da
experiência por parte da ciência árabe, que difundiu no Ocidente a tradição
experimental dos Gregos, bem como os conhecimentos matemáticos da Índia e da
Pérsia, junto com uma forma de entender a religião que não atrelava a razão à
fé. Foi notável, na emergência da ciência moderna, a retomada do saber antigo
por parte dos estudiosos medievais, possibilitada pelas traduções das obras
mais representativas, efetivadas por homens que freqüentaram as universidades
espanholas (Toledo e Cordova). Entre esses estudiosos cabe mencionar Michael
Scott[6]
(1175-1232), Guilherme de Moerbecke (1215-1286), Geraldo de Cremona (morto em
1187), etc. A grande era das traduções, como lembra Edward Grant (nasc. 1926),
“foi precedida pelo retrocesso dos muçulmanos na Espanha e a sua total derrota
na Sicília ao longo do século XI. Com a queda de Toledo em 1085 e a captura da
Sicília em 1091, uma Europa cristã dinâmica tomou posse de grandes centros de
erudição arábica” [7].
Não podemos esquecer, aliás, outra janela de igual importância, por onde entrou
o saber da ciência antiga na Europa: a Abadia do Mont Saint-Michel, na
Normandia (França), que tinha ligações diretas com Bizâncio, sendo este mais um
caminho para a elaboração de traduções das obras de Aristóteles e dos escritos
remanescentes da Biblioteca de Alexandria [8].
2 – A valorização da experiência
na obra de Robert de Grosseteste (1168-1253) e Roger Bacon (1220-1292) [9].
A
Universidade de Oxford, surgida no final do século XII das escolas fundadas no
século IX pelo rei Alfredo o Grande (849-899) constituiu, junto com a de Paris,
o arquétipo da Universidade da Europa ocidental. Oxford se converteu
rapidamente na caixa de ressonância mais importante na valorização da ciência
experimental. Retomando a tradição da espiritualidade inglesa expressa na obra
de Veda o Venerável (673-735), monge de Jarrou, norte da Inglaterra, que
conciliava a fé com a observação científica num contexto de agostinismo
mitigado[10],
Roberto de Grosseteste, sagrado bispo de Lincoln em 1253, desenvolveu, na
Universidade de Oxford, importante trabalho de valorização da ciência
experimental. Como lembra Colin Ronan (1920-1995), Grosseteste ensinava que a
ciência “começou pela experiência dos fenômenos pelo homem”, sendo que a sua
finalidade consistia em: “(...) descobrir as razões para a experiência,
encontrar suas causas. Então tendo descoberto as causas – os agentes causais -
o próximo passo seria analisá-las, selecionando-as em suas partes ou princípios
componentes. Depois disso, o fenômeno observado deveria ser reconstruído a
partir desses princípios, com base numa hipótese, e finalmente a própria
hipótese teria de ser testada e verificada – ou invalidada – pela observação.
Esses eram pontos de vista importantes, e o procedimento recomendado era
valioso, pois continha a base essencial de toda a ciência experimental” [11].
O mais
importante discípulo de Grosseteste, o igualmente franciscano Roger Bacon
prosseguiu na trilha da valorização da experiência científica, bem como da sua
conciliação com a fé. Empolgado pelas observações de Euclides (330-275 aC.),
Claudio Ptolomeu (90-168), Al-Haytham (965-1040) e do próprio Grosseteste,
sintetizou as suas próprias conclusões no terreno da óptica, no livro
intitulado Opus Majus (1267). Eis o teor evidentemente empirista de Bacon
nesse trabalho, ao descrever a utilidade das lentes: “(...) Então podemos dar
forma a corpos transparentes e arranjá-los de tal maneira com respeito à nossa
vista e objetos de visão que os raios se curvarão do modo que desejarmos e no
ângulo que quisermos; poderemos ver o objeto perto ou à distância. Assim
poderemos ler as menores letras a uma incrível distância (...). Poderíamos
também fazer, aparentemente, com que o Sol, a Lua e as estrelas descessem até
aqui embaixo” [12].
Ao mesmo
tempo em que Roger Bacon valorizava a experiência externa como ponto de partida
da ciência, chamava a atenção para os obstáculos que se opunham a esta
(autoridade fraca e inepta, hábitos antigos, opinião popular sem instrução,
encobrimento da ignorância de alguém por uma aparência de sabedoria). O
pensador atendia, também, à defesa da experiência mística interior, tão
objetiva e válida quanto a externa [13].
Nessa remota origem deita raízes a valorização da experiência interna, que será
retomada por John Locke (1632-1704) e David Hume (1711-1776), bem como pela
Escola Escocesa do Senso Comum e que chegará a influenciar os românticos
franceses, notadamente Madame de Staël (1766-1817) e Benjamin Constant de
Rebecque (1767-1830) e o nosso primeiro pensador pátrio, Silvestre Pinheiro
Ferreira (1769-1846), na defesa que faz da experiência da fé cristã [14].
3 – A valorização da experiência
na crítica nominalista à Escolástica.
Este momento
da meditação filosófica inglesa esteve representado pela obra de Duns Scot
(1270-1308) e de William Ockham (1280-1349). O primeiro firma a independência
da razão em relação à fé – contrariando, nesse ponto a convicção escolástica da
philosophia ancilla theologiae – e
desenvolve a teoria da bipolaridade das essências, que não seriam apenas
universais, mas também individuais. Como frisa Carlos Lopes de Mattos
(1910-1993), esta teoria (chamada da haecceitas
ou da estidade) “(...) afasta da
filosofia a preocupação exclusiva com as essências universais e transcendentes
e formula o início de uma concepção que atribui estatuto de ciência ao aqui e
agora. Essa legitimação racional do individual e do imediato parece continuar a
tradição inglesa, já evidenciada em Roger Bacon, de valorização da experiência”
[15].
William
Ockham, discípulo de Duns Scot, levou até as últimas conseqüências o processo
de crítica à Escolástica, deflagrado com a teoria da estidade. Retirou dos universais todo fundamento ontológico,
identificando-os somente com signos que serviriam apenas para designar um
conjunto de semelhanças abstraídas das coisas. López de Mattos caracteriza,
assim, as conseqüências que o nominalismo de Ockham trouxe para a filosofia
ocidental: “A primeira era a transformação de toda ciência em conhecimento
empírico dos indivíduos, posto que, por um lado, só eles constituiriam a
verdadeira realidade e, por outro, porque os indivíduos são conhecidos
principalmente no plano da experiência. Para Ockham, o conhecimento conceitual
ou abstrativo é confuso e indeterminado, pois apreende apenas os caracteres
comuns a vários objetos e deixa escapar o que eles têm de particular e que os
distingue dos demais. Outra conseqüência do nominalismo consistiu no abismo
criado entre o conhecimento científico (dos seres individuais, concretos,
encontrados na natureza) e os domínios do pensamento religioso” [16].
Mont Saint-Michel, na Normandia (França), em cuja Abadia foram acolhidos e traduzidos para o Latim, textos antigos de Aristóteles e de pensadores da Escola de Alexandria |
4 – A valorização da experiência
na obra de Francis Bacon (1561-1626).
A tradição
empirista inglesa ganhou uma primeira sistematização na obra de Sir Francis
Bacon intitulada: Novum Organon (1620). A significação deste escrito do chanceler
do Reino foi instrumental ou lógica, a julgar pela apreciação de Voltaire
(1694-1778) que, nas suas Cartas filosóficas, escrevia
referindo-se a Bacon: “A mais singular e a melhor das suas obras é hoje a menos
lida e a mais inútil: refiro-me ao seu Novum Scientiarum Organon. É o
andaime com que se construiu a nova filosofia; e quando esse edifício foi
levantado, ao menos em parte, o andaime não serviu para mais nada” [17].
Se bem é
certo que o conceito de natureza com que Bacon trabalha é bastante nebuloso,
coube-lhe, no entanto, um duplo mérito: em primeiro lugar, ter assinalado o
caráter concreto e observável das formas
naturais (corrigindo, nesse ponto, a física aristotélica, que considerava a
forma algo metafísico) e, em segundo
lugar, ter formulado os procedimentos metodológicos a serem seguidos, com
vistas a uma observação rigorosa e experimental das formas naturais. Bacon
recolhia, assim, a melhor tradição britânica de valorização da experiência,
presente no pensamento de Grosseteste, Roger Bacon e os nominalistas.
No trabalho
em prol de assinalar a contribuição baconiana ao método experimental,
destaquemos o seu ponto de partida e o ponto de chegada. Em relação ao
primeiro, Bacon chama a atenção para os ídolos
ou erros do espírito: idola tribus
(ídolos da tribo, consistentes na preguiça mental que nos leva a tecermos
generalizações sem prova empírica); idola
especus (ídolos da caverna, erros originados pela inércia do costume): idola fori (ídolos da praça pública,
palavras que contribuem a falsear o nosso conceito das coisas) e idola theatri (ídolos do teatro,
procedentes do argumento dos grandes sofistas) [18].
Em relação
ao ponto de chegada do seu método, Bacon destaca os socorros com que ajuda a
razão a chegar a um resultado definitivo. Esses socorros consistem nas prerrogativae instantiarum (ou prerrogativas
dos fatos), nas instantiae migrantes
(ou fatos translatícios), nas instantiae
ostensivae et clandestinae (ou casos em que a natureza está no seu máximo
de revelação ou no seu mínimo), nas instantiae
monodicae et deviantes (ou casos em que a natureza se revela de forma
excepcional), nas instantiae divortii
(ou casos que nos revelam, desunidas, duas naturezas ordinariamente unidas),
nas instantiae crucis (ou fatos
cruciais), nas instantiae lampadis
(ou simples meios para alargar a nossa informação), etc. [19]
O
fundamental da contribuição de Francis Bacon reside, portanto, na valorização
do método experimental, que seria largamente valorizado na Inglaterra ao longo
do século XVII, notadamente por parte de Robert Boyle (1627-1691), Isaac Newton
(1642-1727) e em geral todos os cientistas que colaboraram no empenho da Royal
Society de Londres (fundada em 1645), no sentido de elaborar o catálogo dos
fenômenos da natureza. Essa circunstância, como diz Émile Bréhier (1876-1952),
constituiu “um ensaio para realizar a primeira exigência da ciência baconiana:
a história” [20].
A tradição de dar valor à experimentação, impulsionada e sistematizada
metodologicamente por Francis Bacon, influiu decisivamente no abandono da
perspectiva dinâmica na cosmologia, tendência que se firma a partir de Galileu
(1564-1642) e Newton, em prol da adoção da perspectiva cinemática [21].
Já não se tratava de indagar pelas causas ocultas da natureza, mas de observar
e mensurar os fenômenos, com a utilização do método experimental.
5 – A valorização da experiência
na filosofia inglesa dos séculos XVII e XVIII: Thomas Hobbes (1588-1679), John
Locke (1632-1704), David Hume (1711-1776) e Thomas Reid (1710-1796).
Os mais
destacados pensadores ingleses do período compartilham este leitmotiv: a importância fundamental que
atribuem à experiência como fonte de certeza. Isso aparece claro na
antropologia de teor mecanicista que inspira o Leviatã (1651) de Thomas
Hobbes (1588-1679). Na primeira parte do livro, o homem é apresentado como
aparece para quem o observa com critério empírico: ele é dotado de uma dupla
tendência a se apropriar aquilo que lhe convém e a rejeitar o que não lhe
convém. O Estado, que na filosofia política antiga e medieval era concebido
como decorrente de uma tendência natural do homem, é apresentado por Hobbes
como ente artificial a ser construído pelos próprios homens.
Já na
introdução ao Leviatã afirma o filósofo: “Do mesmo modo que tantas outras
coisas, a natureza (a arte mediante a qual Deus fez e governa o mundo) é imitada
pela arte dos homens também nisto: que lhe é possível fazer um animal
artificial (...). E a arte vai mais longe ainda, imitando aquela criatura
racional, a mais excelente obra da natureza, o Homem. Porque pela arte é criado
aquele grande Leviatã a que se chama Estado, ou Cidade (em latim civitas), que não é senão um homem
artificial, embora de maior estatura e força do que o homem natural para cuja
proteção e defesa foi projetado (...). Por último, os pactos e convenções
mediante os quais as partes deste Corpo Político foram criadas, reunidas e
unificadas assemelham-se àquele Fiat,
ao Façamos o homem por Deus na
criação” [22].
Fica
evidente, assim, o caráter experimental (artificial,
diz Hobbes), da política, tanto no plano de construir o Estado, como no que
tange ao se conhecimento. Embora John Locke tivesse haurido inspiração em
fontes medievais do pensamento político inglês e, através delas, tivesse
recebido a influência aristotélica [23],
não é menos certo o decisivo influxo que sobre o seu pensamento teve a tradição
empirista de Francis Bacon, Robert Boyle e Isaac Newton. Nos seus estudos e
trabalhos de medicina, outrossim, o
filósofo do liberalismo recebeu a influência do empirismo que animava a Thomas
Sydenham (1624-1689) com quem, em 1668 e 1669, escreveu alguns opúsculos
médicos [24].
Podemos
estabelecer um paralelismo de cunho empirista entre as duas grandes obras de
Locke, O Ensaio sobre o entendimento humano [25]
e os Dois
tratados sobre o governo [26].
Assim como, a partir da experiência, podemos concluir que não há idéias inatas,
a experiência igualmente nos mostra que não há soberanos inatos. Assim como os
nossos conhecimentos devem ser construídos a partir de idéias simples,
originadas da experiência (externa ou interna), o Estado deve ser efeito de uma
ação humana. E essa ação é o pacto social,
efetivado pelos cidadãos. Coube a Locke o mérito de ter deitado os alicerces
epistemológicos e políticos para a nova sociedade inglesa que emergiu da
Revolução Gloriosa de 1688. E esses fundamentos são calcados numa epistemologia
empirista e numa filosofia política acorde com essa forma de conhecimento.
Abadia do Mont Saint-Michel - foto de 1865. |
No
pensamento de David Hume, expresso fundamentalmente na sua Investigação sobre o entendimento
humano [27],
também aparece clara a valorização da experiência. Hume critica os dois
extremos em que pode cair a filosofia: o da teoria abstrata desligada da vida,
e o do espírito prático que somente olha para o dia-a-dia, menosprezando a
teoria. A verdadeira filosofia, considera Hume, deve ser, como ele diz, uma
“geografia moral” que nos permita classificar, com rigor científico todos, os
elementos que integram a nossa faculdade cognitiva. Na busca de objetividade
nesse tipo de reflexão, o filósofo formula a perspectiva transcendental: tudo
quanto temos no nosso conhecimento é representação da realidade, não a
realidade mesma. Portanto, o estudo que deve ser empreendido pela filosofia não
é o da coisa em si, mas o da nossa faculdade cognitiva, no ato de construir as
representações a partir de instâncias apriori
chamadas por Hume de “hábitos”, que nos permitem associar idéias e elaborar
juízos. Embora o nosso conhecimento possa se elevar até representações
abstratas, para Hume não há dúvida de que todo ele provém da experiência
(interna ou externa).
No caso de
Thomas Reid (1710-1796), o mais importante pensador da denominada Escola Escocesa do Senso Comum, a
fidelidade à experiência é uma constante, embora o seu pensamento tenha sido
formulado no contexto de uma crítica abrangente à obra de David Hume. Reid, que
ocupou a vaga que Adam Smith (1723-1790) tinha deixado em Glasgow como
professor de Moral, escreveu três obras importantes: Investigação sobre o pensamento
humano, acerca dos princípios do senso comum (1764) e Ensaio
sobre os poderes intelectuais do homem (1788). Parte de uma crítica
frontal à teoria de Locke, Berkeley (1685-1753) e Hume acerca das idéias. Eles
aceitavam o pressuposto de que o objeto imediato do conhecimento é algo que
está na alma e que recebe o nome de idéia, ou (como dizia Hume), de impressão. Por
esse motivo, no sentir do pensador escocês, eles não conseguiram afirmar a
existência de alguma realidade exterior à alma, da alma mesma, ou das relações
entre as coisas. “As idéias – frisava Reid – parece que possuem na sua natureza
algo que é hostil a outras existências” [28].
O filósofo de Glasgow coloca em dúvida a existência da idéia como objeto. “As
idéias de cuja existência exijo a prova, não são as operações da alma, mas os
objetos supostos dessas operações” [29].
Reid nega, a seguir, a existência dessas “imagens de objetos exteriores” na
alma.
O pensador
escocês identificou, no contexto da experiência, certos princípios decorrentes
da própria constituição da nossa natureza, aos quais dá o nome de “princípios
do senso comum”. Por esse caminho, nitidamente experimental, Reid afirma a
existência real da alma e dos objetos exteriores que Hume negava, no seu
entender. Trata-se de uma espécie de vivência da nossa alma, que nos leva a
aceitar a sua existência e a afirmar a dos objetos externos. O filósofo escocês
retoma, sem dúvida, a trilha da “experiência interna”, aberta séculos atrás por
pensadores de inspiração agostiniana como Beda, o Venerável e Roger Bacon.
6 – A valorização da experiência
na filosofia inglesa do século XIX: Thomas Hill Green (1836-1882), Francis
Herbert Bradley (1846-1924) e Bernard Bosanquet (1848-1923).
Nada mais
adequado para mostrar o peso que a valorização da experiência tem na meditação
inglesa do século XIX, do que expor, aqui, as idéias fundamentais dos
idealistas britânicos. O contraste seria evidentemente menor se tivéssemos decidido,
por exemplo, analisar o pensamento do teórico do utilitarismo, Jeremy Bentham
(1748-1832) ou de um liberal que sofreu a influência do positivismo como John
Stuart Mill (1806-1873). Eles, evidentemente, recolheram o legado empirista de
Locke e Hume.
Thomas Hill
Green [30]
foi o primeiro, em Oxford, a se consagrar exclusivamente ao ensino da
filosofia. Tinha estudado a obra de Kant (1724-1804) e conhecia as idéias de
Hegel. As suas principais obras foram a Introdução ao tratado da natureza humana de
Hume (1874), os Prolegómenos à ética (1883) e as Lições
sobre os princípios da obrigação política (1866), sendo que estes dois
últimos livros passaram a integrar o currículo das Universidades inglesas alo
longo dos cinqüenta anos seguintes.
Em que pese
o fato da inspiração de Green em Kant e Hegel, o pensador inglês ultrapassa o
ponto de vista estritamente crítico dos filósofos alemães. Isto se dá em função
dos pressupostos de típico sabor empirista (herdeiros das teses da Escola Escocesa do Senso Comum), em que
se alicerça. Valorizando a experiência do eu interno, ao criticar a modalidade
do empirismo de Locke e de Hume, Green considera que: “(...) não poderíamos ter
nenhuma experiência da continuidade e do desenvolvimento de nossas idéias e de
nossas impressões, se não houvesse, em nós, um eu suscetível de efetivar a
unidade que estabeleça a ligação entre o que se produziu antes com o que vem a
seguir. Nada pode ser objeto da experiência fora da atividade coordenadora da
mente” [31].
É
interessante anotar, à margem da inspiração empirista de Green, a importância
por ele atribuída ao Estado no controle da vida econômica. Certamente aí
encontramos a influência hegeliana. Para Green, como frisa Harry Burrows Acton
(1908-1974) [32],
“(...) a ação governamental não pode tornar os homens moralmente melhores, mas
pode dar-lhes os meios para conseguir isso por si mesmos”. Green sentou, assim,
as bases, na tradição política inglesa, da crítica ao laissez-fairismo, que John Maynard Keynes (1883-1946) desenvolveu a
partir da década de vinte do século passado.
Francis
Herbert Bradley chegou a ser, no sentir de Harry B. Acton. “(...) o filósofo
mais conhecido e mais discutido dos países de fala inglesa” [33].
As suas principais obras foram: Os pressupostos da crítica histórica
(1874), Estudos éticos (1876), Princípios de lógica (1883) e Aparência
e realidade (1893). Muito influenciado por Thomas Green, o seu
pensamento representa uma original interpretação da filosofia hegeliana, do
ponto de vista da valorização da experiência. Na sua última obra, o pensador
inglês salienta os laços que unem o pensamento à realidade. Ao analisar a
questão da aparência, Bradley examina conceitos como os de coisas, qualidades,
relações, espaço e tempo, causalidade, eu e atividade. Esses conceitos, no
sentir dele, implicam imposição de contradição entre si e não devem ser
aceitos. O conceito de realidade, que abarca a noção de coerência, exclui esses
conceitos situados no terreno da aparência. “Nosso critério – frisa Bradley –
exclui a incoerência e postula (...) a existência de uma coerência” [34].
Como
apreender a realidade que é, fundamentalmente, harmonia? Para Bradley não há
dúvida: mediante a experiência sensível. Harry B. Acton sintetizou assim o
pensamento de Bradley a respeito: “A realidade não pode estar feita de uma
pluralidade de objetos reais desprovidos de qualquer relação entre eles, mas
deve ser um todo cujas diferenças se
baseiam na harmonia. Além disso, deve ser experiência e, mais ainda,
experiência sensível. Para provar que a realidade deve ser experiência, Bradley
recorre ao argumento idealista bem conhecido, segundo o qual é impossível
conceber qualquer coisa fora de toda experiência. E para provar que deve
tratar-se de experiência sensível, afirma que somente a sensibilidade permite
distinguir as diferenças sem que, por isso, possam ser separadas do conjunto
que as contém. Quase veladas pela nossa experiência cotidiana, encontram-se
experiências ao mesmo tempo diferentes e ligadas, que nos antecipam o que deve
ser a realidade última ou o Absoluto” [35].
Em relação a
este ponto, afirma o próprio Bradley: “Isso nos sugere a idéia de uma
experiência total em que a vontade, o pensamento e a sensibilidade não
formassem já mais do que um só conjunto” [36].
Harry B. Acton considera que Bradley se alicerça em Hegel ao afirmar que quanto
mais espiritual é uma coisa, mais real é; no entanto, o nosso autor entende
“(...) a palavra espiritual num sentido menos intelectual que o filósofo
alemão. Nosso hegeliano inglês – conclui Acton – está influenciado pela
tradição empirista como para não desejar se converter num metafísico
racionalista”.
Contemporâneo
e debatedor das idéias de Bradley, Bernard Bosanquet situa-se mais perto de
Hegel do que o seu concorrente. Foi autor de várias obras, entre as quais Conhecimento
e realidade (1885), Lógica ou morfologia do conhecimento (1888),
Teoria
filosófica acerca do Estado (1889), Princípios da individualidade e
do valor (1912) e Valor e destino do individual (1913).
Para Bosanquet, o mundo é um todo integrado por elementos estreitamente
inter-relacionados uns com os outros no conjunto do sistema. Cada elemento,
conseqüentemente, possui em si indícios dos outros elementos existentes no
sistema, de forma tal que o conhecimento do particular leva implícito o do
geral, em decorrência da inter-relação existente. A história, para Bosanquet,
não é uma disciplina muito rigorosa do ponto de vista da razão, que se prende
ao conhecimento científico do contingente. A experiência vivencial do todo, no
entanto, supera os limites da razão, e transcende em formas de conhecimento
supra-científico, através da arte, da religião e da filosofia. O idealismo de
Bosanquet entronca de novo com a tradição empirista inglesa, notadamente com a
herança da Escola Escocesa do Senso Comum,
ao relacionar diretamente a apreensão do todo com o conhecimento, pela
experiência, das suas manifestações concretas. Estas somente se podem dar nela.
No terreno da filosofia política, Bosanquet reforçou a tendência hegeliana à
valorização da intervenção do Estado na vida social, que já tinha sido
defendida por Bradley [37].
Conclusão.
Alicercei-me,
neste artigo, no insofismável testemunho de Hegel, para quem as filosofias
nacionais integram momento fundamental da dialética da razão, porquanto captam
“o espírito da época”. Procurei ilustrar, à luz da análise feita pelo filósofo
alemão, a idéia ou leit-motiv que serviu de pano de fundo à
meditação inglesa, desde as suas origens medievais até o momento da sua
consolidação no século XIX. Essa idéia, vimos, é a da experiência. Ela aparece
como fio condutor da filosofia, em que pese a variedade de autores e
tendências.
Se, por um
lado, a análise das filosofias nacionais deve ser objeto de estudo da história
da filosofia, no sentir de Hegel, a inquirição, contudo, não pode parar aí.
Momento fundamental da dialética da razão constitui também a busca da
identidade dela consigo mesma, ao que só se pode chegar a partir da integração
das várias filosofias nacionais e dos vários sistemas, numa visão de conjunto.
Tal visão, revelando as diferenças históricas, deve explicitar, também, o fundo
comum que as une, a força do espírito humano na busca da sua identidade. Para
utilizar a bela imagem criada por António Braz Teixeira (nasc. 1936), o fato de
ter pernas que repousam sobre a terra, não tira à ave a capacidade de voar até
os céus.
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sobre el entendimiento humano. 1ª edição em espanhol (segunda
reimpressão). (Tradução de Edmundo O’ Gorman). México: Fondo de Cultura
Económica, 1986.
MATTOS, Carlos Lopes de. “Duns Scot – Ockham: vida e obra”.
In: SCOTUS, João Duns, Escritos filosóficos, (tradução de
Carlos Lopes de Mattos), São Paulo: Nova Cultural, 1989, p. IX.
PAIM em História das idéias filosóficas no Brasil,
3ª edição: Convívio; Brasília: INL – Fundação Pró-Memória, 1984, Prêmio Jabuti
1985.
RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência. (Tradução
de José Enéas Fortes), Rio de Janeiro: Zahar, 1987, vol. II.
SORLEY, W. R., Historia de la filosofia inglesa. (Tradução
ao espanhol de Teodora Efrón e Julieta Gómez Paz), Buenos Aires: Losada, 1951.
WRIGTH, Muriel H.
“Thomas Hill Green”, in: BENTON, William (editor), Encyclopaedia Britannica, Chicago – London: Encyclopaedia Britannica Inc., 1972, vol.
10, p. 890.
[1] HEGEL, Wilhelm
Friedrich. Lecciones
sobre la filosofia de la historia universal. Madrid: Alianza, 1982, p.
699.
[2] Guilherme da
Normandia, o Conquistador (1028-1087), que submeteu a Inglaterra após a batalha
de Hastings (1066).
[3] LACLAU, Martin. “Os pressupostos do pensamento
jurídico inglês”. In: Nomos – Revista Portuguesa de Filosofia do
Direito e do Estado. Amadora, Nº. 3 – 4 (janeiro / dezembro 1987): p.
83.
[4] Frederic William Maitland (1850-1906).
[5] LACLAU, Martin. “Os pressupostos do pensamento jurídico inglês”. Art. Cit., p. 83.
[6] Cf. DUNCAN, Archibald A. M., “Michael
Scott”, in: BENTON, William (Publisher), Encyclopaedia Britannica, Chicago –
London: Encyclopaedia Britannica Inc., 1972, vol. 20, p. 30-31. Quanto aos outros
tradutores medievais, cf. DUNCAN, Archibald A. M., “Michael Scott”, in: BENTON, William
(Publisher), Encyclopaedia Britannica, Chicago – London: Encyclopaedia
Britannica Inc., 1972, vol. 20, p. 30-31, p. 103-104; 122-125; 127-165; 205.
[7] GRANT, Edward. La ciencia física en la Edad Media,
ob. cit., p. 40.
[8] Cf. GOUGENHEIM, Sylvain. Aristote
au Mont Saint-Michel – Les racines grecques de l’ Europe Chrétienne. Paris:
Seuil, 2008.
[9] Cf. CROWLEY, T. “Rev. Roger Bacon”, in:
BENTON, William (Publisher), Encyclopaedia Britannica, ob. cit.,
vol. 2, p. 1000-1001. GRANT, Edward, La ciencia física en la Edad Media,
ob. cit., p. 103-104.
[10] Cf. RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência. (Tradução
de José Enéas Fortes), Rio de Janeiro: Zahar, 1987, vol. II, p. 136-137.
[11] RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência. Ob. cit., vol. II, p.
139.
[12] RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência. Ob. cit., vol. II, p.
142.
[13] Cf. RONAN, Colin A. História ilustrada da ciência. Ob. cit.,vol. II, p.
141.
[14] No seu exílio em Paris Silvestre Pinheiro Ferreira escreveu o livro intitulado:
Theodicée
ou traité de la religion revelée, cujo original, inédito, foi
preservado pela Academia de Ciências de Lisboa, segundo informa Antônio PAIM em
História
das idéias filosóficas no Brasil, 3ª edição: Convívio; Brasília: INL –
Fundação Pró-Memória, 1984, Prêmio Jabuti 1985, p. 16.
[15] MATTOS, Carlos Lopes de. “Duns Scot – Ockham: vida e obra”. In: SCOTUS,
João Duns, Escritos filosóficos, (tradução de Carlos Lopes de Mattos), São
Paulo: Nova Cultural, 1989, p. IX. Cf. BRÉHIER, Émile, Historia de la filosofia,
Buenos Aires: Sudamericana, s/d, vol. II, p. 439 seg. .
[16] MATTOS, Carlos Lopes de. “Duns Scot – Ockham”, art. cit., p. IX.
[17] Apud BRÉHIER, Émile, Historia de la filosofia, ob cit.,
vol. II, p. 537.
[18] BRÉHIER, Émile, Historia de la filosofia, ob. cit.,
v. II, p. 528 seg. ADAMSON, Robert e MITCHELL, John Malcolm. “Francis Bacon”, in:
BENTON, William (Publisher),
Encyclopaedia Britannica, ob. cit., v. 2, p. 993-999.
[19] Cf. BRÉHIER, Émile, Historia de la filosofia, ob. cit.,
vol. II, p. 534-535. ADAMSON, Robert e MITCHELL, John Malcolm, “Francis Bacon”, art. cit.
[20] BRÉHIER, Émile, Historia de la filosofia, ob. cit.,
vol. II, p. 537.
[21] Cf. LADRIÈRE, Jean, Éléments de critique des sciences et de
cosmologie, Louvain: Université de Louvain, 1967, p. 140 seg.
[22] HOBBES, Thomas. Leviatã, ou matéria, forma e poder de um
Estado eclesiástico e civil. (Tradução de João Paulo Monteiro e Maria
Beatriz Nizza da Silva), 4ª edição, São Paulo: Nova Cultural, 1988, coleção
“Nova Cultural”, p. 5.
[23] A influência de Aristóteles revela-se no conceito, utilizado por Locke,
de que o homem busca naturalmente o convívio social (lembrando o princípio
aristotélico de que o homem é um “animal político”), para ver garantidos os
seus direitos inalienáveis à vida, à liberdade e às posses, que lhe garantem a
felicidade (eudemonía).
[24] Cf. BRÉHIER, Émile. Historia de la filosofia, ob. cit.,
vol. II, p. 722.
[25] LOCKE, John. Ensayo sobre el entendimiento humano. 1ª edição em espanhol
(segunda reimpressão). (Tradução de Edmundo O’ Gorman). México: Fondo de
Cultura Económica, 1986.
[26] LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. (Prefácio e introdução de Peter
LASLETT, tradução de Julio Fischer), São Paulo: Martins Fontes, 1998.
[27] HUME, David. Investigação sobre o entendimento humano. (Tradução de Leonel
Vallandro). 1ª edição. São Paulo: Abril Cu8ltural, 1973, coleção “Os
Pensadores”. Cf. JESSOP, Thomas Edmund. “David Hume”, in:
BENTON, William (Publisher), Encyclopaedia Britannica, ob. cit.,
vol. 2, p. 833-837.
[28] SORLEY, W. R., Historia de la filosofia inglesa. (Tradução
ao espanhol de Teodora Efrón e Julieta Gómez Paz), Buenos Aires: Losada, 1951,
p. 226-227.
[29] SORLEY, W. R., Historia de la filosofia inglesa. Ob cit., p. 228.
[30] Cf. ACTON, Harry Burrows. “La filosofia
anglosajona”, in: BELAVAL, Yvon, (coord). Las filosofias nacionales: siglos XIX y XX.
(Tradução de José Miguel Marinas e Eduardo Bustos). 3ª edição em espanhol.
México: Siglo XXI Editores, 1984. WRIGTH, Muriel H. “Thomas Hill Green”, in:
BENTON, William (editor), Encyclopaedia Britannica, ob. cit.,
vol. 10, p. 890.
[31] ACTON, Harry Burrows. “La filosofia anglosajona”, in: BELAVAL, Yvon
(coord.), Historia de la filosofia: las filosofías nacionales – Siglos XIX y XX, ob.
cit., p. 5.
[32] ACTON, Harry Burrows. “La filosofia anglosajona”. In: BELAVAL, Yvon
(coord.), Historia de la filosofia: las filosofias nacionales – siglos XIX y XX, ob.
cit., p. 9.
[33] ACTON, Harry Burrows. “La filosofia anglosajona”. In: BELAVAL, Yvon
(coord.), Historia de la filosofía: las filosofias nacionales – Siglos XIX y XX.
Ob. cit., p. 17.
[34] BRADLEY, Francis Herbert. Appearence
and Reality, cit. por ACTON, Harry Burrows, La filosofia anglosajona. In: BELAVAL, Yvon
(oord.), Historia de la filosofia: Las filosofías nacionales – Siglos XIX y XX.
[35] ACTON, Harry Burrows. “La filosofía anglosajona”, in: BELAVAL, Yvon,
(coord.), Historia de la filosofía: las filosofías nacionales – Siglos XIX y XX, ob.
cit., p. 17-18.
[36] BRADLEY, Francis Herbert. Appearence and Reality, cit. por
ACTON, Harry Burrows, “La filosofia anglosajona”, in: BELAVAL, Yvon, Historia
de la filosofia: las filosofias nacionales – Siglos XIX y XX, ob. cit.,
p. 18.
[37] Cf. ACTON, Harry Burrows, “La filosofia anglosajona”, in: BELAVAL, Yvon,
(coord.), Historia de la filosofia: las filosofias nacionales – Siglos XIX y XX, ob.
cit., p. 21-23.
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