Gottfried Wilhelm Leibniz, nascido em Leipzig, em 1646 e falecido em Hannover, em 1716, é um dos grandes representantes da filosofia moderna. Ele sistematizou a metafísica que melhor respondia às preocupações de conciliação entre razão e fé, tradição e modernidade, filosofia e teologia, num momento em que muitos espíritos queriam voltar as costas definitivamente para a Idade Média. Leibniz foi um conciliador, mas não um eclético superficial. Foi profundo conhecedor da ciência do seu tempo, desde a física e a matemática, até a geologia e o direito. Conheceu profundamente o pensamento medieval e as escolásticas espanhola e portuguesa. A sua idéia de formular uma metafísica que dialogasse com a ciência moderna, foi-lhe incutida pela leitura de um filósofo espanhol: o padre jesuíta Francisco Suárez (1548-1617), que ensinou em Salamanca, Évora e Coimbra. Leibniz era um estudioso da teologia cristã, na vertente platônico-augustiniana, mas esteve também aberto a outras concepções teológicas, como, por exemplo, a decorrente do budismo tibetano.
A sua obra é extensíssima, sendo que a edição das Obras Completas (hoje, com mais de 40 volumes publicados), ainda não foi completada. Mencionemos algumas das obras mais representativas: De arte combinatória (1666), A profissão de fé do filósofo (1673), Discurso de Metafísica (1686), Acerca da harmonia pré-estabelecida (1695), Sistema novo da natureza e da comunicação das substância, bem como da união entre a alma e o corpo (1695), Considerações acerca da doutrina de um espírito universal (1702), Novos ensaios sobre o entendimento humano (1704), Ensaio de Teodicéia (1710), Monadologia (1714), Princípios da natureza e da graça (1714), Filosofia para princesas (1714) e Escritos sobre a China (1716).
Síntese acerca da Teoria do Conhecimento em Leibniz: em 10 pontos poderíamos sintetizar as idéias essenciais de Leibniz, destacando os aspectos relativos à Teoria do Conhecimento e à Metafísica:
1 – Ponto de partida: crítica à metafísica dualística de Descartes. Deus, que é perfeição infinita, não pode ter criado um universo bitolado em duas substâncias irreconciliáveis (res extensa e res cogitans), na forma em que foi pensado por Descartes.
2 – Deus, portanto, criou o “melhor dos mundos possíveis”, caracterizado pelo princípio da “harmonia preestabelecida”.
3 – O homem está chamado a tomar conhecimento da “harmonia preestabelecida” do Universo. Nisso consiste a verdade e a máxima felicidade do espírito. A nossa bem-aventurança, na Terra, consiste em contemplarmos a harmonia do Cosmo, que espelha a perfeição divina.
4 – O homem apreende, pelo seu conhecimento, a harmonia do Universo em dois níveis: matemático (pela ciência da natureza) e metafísico (pela filosofia), sendo que esta última constitui a apreensão mais completa da “harmonia preestabelecida”. Nas ciências, apreendemos a harmonia com a ajuda das matemáticas. Nelas, joga um papel importante o “cálculo infinitesimal”, que nos habilita a apreendermos a harmonia cósmica no contexto de uma infinita quantidade de variáveis. Na filosofia, apreendemo-la com a ajuda dos conceitos metafísicos, que exprimem a harmonia da totalidade. A ars combinatoria constitui, para as ciências e a filosofia, poderoso instrumento lógico que nos possibilita superar as contradições decorrentes dos significados equívocos das palavras (“calculemos para que nos entendamos”, afirmava Leibniz).
5 – Cerne da metafísica leibniziana: a monadologia. O universo foi formado mediante a criação, por Deus, de infinitas unidades substanciais de energia ou mônadas. Essas unidades estão rigorosamente hierarquizadas e organizadas pelo Supremo Arquiteto do Universo (Deus) que age à maneira de Causa Final, no contexto de um modelo que hoje caracterizaríamos como finalistico-cibernético. A matéria, em si, não existe. Ela é apenas manifestação aparente da única realidade existente: a força ou energia, constituída pelas mônadas. Estas podem, portanto, expandir no espaço a sua essência, ou contraí-la num ponto (à maneira dos buracos negros postulados pela astrofísica contemporânea). Cada uma das mônadas encerra, dentro de si, uma representação da harmonia do Cosmo. Essa representação, nos seres humanos, é consciente, sendo que os demais seres não possuem essa consciência, o que torna o homem o Rei da Criação, não para atrapalhar a ordem da “harmonia preestabelecida”, mas para, com a luz da razão, reconhecer essa ordem harmônica e louvar a Deus.
6 – A liberdade humana é um postulado teológico que se depreende da tese do “melhor dos mundos possíveis”. Se Deus não tivesse criado o homem livre, faltaria ao Cosmo uma perfeição importante, a mais exímia entre as perfeições finitas: a liberdade. Como conciliar a liberdade com a “presciência divina?” – Ao praticar o mal, o homem não está dando ensejo a um ser: o mal moral é entendido por Leibniz como ignorância (carência de conhecimento) de parte do homem, da “harmonia preestabelecida” por Deus no Cosmo. O pecador é um ignorante. A sua infelicidade consiste em desconhecer a ordem cósmica. Para Leibniz, “Deus escreve certo com linhas tortas”. Ele, na sua infinita sabedoria, antecipa-se a todos os nossos comportamentos, certos ou errados. Permite os errados, como decorrentes da nossa liberdade. Mas, tomando conhecimento do contexto em que eles acontecem, minimiza-os mediante uma ação providencial, que coloca as más ações dos pecadores junto às boas ações dos homens virtuosos, a fim de que o conjunto de todas as ações humanas seja harmonioso, como num grande mosaico bizantino. As pedrinhas escuras, irregulares, seriam as más ações. Mas estas praticamente desaparecem, ofuscadas pelo brilho das pedrinhas que representam, reluzentes e coloridas, os inumeráveis atos virtuosos dos homens bons. Assim, a ação dos maus serve como pano de fundo que ressalta a beleza das boas ações. No contexto deste arrazoado, Leibniz formula o seu “providencialismo ou lex melioris”, que se estende a todos os seres do Cosmo. Nada foi criado para ser aniquilado. Isto iria contra a bondade infinita de Deus. Todos os seres foram criados para integrarem o Universo definitivamente liberto do Mal, na Parusia (à maneira como, no século XX, Teilhard de Chardin imaginou a caminhada de toda a criação em direção ao Ponto Ômega). As unidades de energia, que são as mônadas, revestir-se-ão da mais maravilhosa materialização que poderíamos imaginar, a fim de toda a criação testemunhar a grandeza e a sabedoria infinitas do Criador.
7 – A sociedade humana, na sua organização política, deve refletir a harmonia cósmica, mediante a estruturação harmônica das instituições a serviço do bem comum dos cidadãos, preservado graças à sabedoria previdente do Rei, que constitui uma espécie de poder moderador entre todas as forças sociais e os indivíduos, a fim de que o bem de todos se realize. As teorias do poder moderador ou do poder neutro, que foram formuladas no século XIX por Jacques Necker, Benjamin Constant de Rebecque, François Guizot, Silvestre Pinheiro Ferreira, Domingos Gonçalves de Magalhães, Paulino Soares de Sousa, etc., encontram em Leibniz o seu inspirador.
8 – Do ponto de vista religioso, Leibniz apelava para o ecumenismo entre todas as Igrejas cristãs, superando o trágico período das guerras de religião, que ocorreram na Europa ao longo dos séculos XVI e XVII. O filósofo imaginava que esse ecumenismo poderia ser construído por um Monarca cristão ilustrado (Luis XIV, da França), que faria uma espécie de pacto moderador entre as várias igrejas, incluídos os católicos e os outros príncipes e soberanos europeus, a fim de fazer frente à ameaça do Islã. Leibniz chegou a cogitar numa ordem político-religiosa universal, que incluísse a China, mediante a relação de diálogo e de atividades conjuntas entre cristãos ocidentais e budistas tibetanos.
9 – Do ângulo antropológico, Leibniz considerava que os seres humanos, criados por Deus à sua imagem e semelhança, davam ensejo a criações variadas que deveriam ser conhecidas na sua origem e nas suas manifestações, não se restringindo isso à cultura européia. Para apreendermos o fenômeno humano, pensava Leibniz, seria necessário abordarmos todas as culturas, respeitando a sua identidade, num esforço de abertura às criações humanas. Este aspecto contrastava, evidentemente, com as reservas que o filósofo tinha em face do Islamismo.
10 – O filósofo desenvolveu amplo trabalho de aconselhamento a reis e príncipes europeus, na tentativa de consolidar a unidade continental. Essa idéia da Europa Unida seria retomada, no início do século XIX, por Napoleão Bonaparte e, no século XX, pelos idealizadores do Mercado Comum Europeu e, ulteriormente, da Unidade Européia.
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