Fica clara uma lição do drama
sofrido pelo falecido presidente Chávez, da Venezuela, bem como pelo povo desse
país irmão. Os homens passam, as nações ficam. O grande problema dos populismos
(a mais recente variável do Patrimonialismo na América Latina) é que guindam às
alturas líderes carismáticos, que passam a se considerar sobranceiros ao
próprio povo que os colocou no altar da fama e que tentam pôr as instituições e
as nações respectivas a serviço do seu projeto pessoal de imortalidade. A
mumificação do líder carismático é o corolário natural desse processo.
Esse fenômeno, que era
corriqueiro na Antigüidade, ao ensejo dos despotismos hidráulicos, muito bem
estudados por Karl Wittfogel na sua clássica obra O despotismo oriental (1951) manifestou-se, no Antigo Egito,
nos impérios pré-colombianos inca e asteca, no Império Chinês, após a
unificação dos chamados “Estados combatentes” efetivada pelo imperador Chin,
nos impérios sumero-babilônicos, etc. Era conhecida, nesses contextos, a
macabra praxe da imolação coletiva dos funcionários reais e das suas famílias,
ao ensejo da morte do líder. Prática que, diga-se de passagem, não deixaria de
ser profilática na atual sem-vergonhice do patrimonialismo caboclo.
A primeira manifestação moderna
da pretensão de imortalidade pessoal veio na trilha do patrimonialismo ibérico,
ao ensejo do absolutismo da dinastia dos Áustrias, com Carlos V e Filipe II,
que encontraram no pensamento contra-reformista a ideologia de que precisavam
para a perpetuação no poder. O conluio entre poder absoluto da realeza e
burocracia eclesiástica foi a resultante dessa simbiose entre religião e
política, com os resultados muito bem conhecidos no Império espanhol,
notadamente no México. Sofremos também no Brasil as conseqüências dessa
mistura, no absolutismo piegas de dona Maria I, que levou ao patíbulo a
Tiradentes e que perseguiu com mão de ferro os demais conjurados mineiros.
A pretensão hegemônica do líder
carismático veio a ser sistematizada por Jean-Jacques Rousseau, que efetivou a
síntese do pensamento totalitário no seu opúsculo intitulado O
Contrato social (1763). O Legislador, para ele, seria o salvador, porquanto
imporia a unanimidade e eliminaria o dissenso, condições da felicidade geral.
Na América Latina, em perversa síntese juntou-se a tradição patrimonialista
ibérica com o pensamento de Rousseau, o que produziu um reforço à idéia do
poder total, que se manifestou no feroz patrimonialismo que tomou conta dos
países hispano-americanos após as guerras da Independência. No Brasil, essa
variável se concretizou, depois de proclamada a República positivista, com a
eliminação dos que se manifestassem contra. Canudos e a saga do Contestado são
expressão desse modelo.
No século XX, a concepção do
poder total deixou de ser uma religião revelada para se transformar em
ideologia, “a religião totalitária”. Ora, é desse teor o pano de fundo de
crenças em que se alicerça o populismo. Chávez considerou-se, numa primeira
etapa, o enviado de Cristo para apregoar, nas Américas, a Teologia da
Libertação. Já num segundo momento, premido pela doença, apelou para um
coquetel ideológico em que foram misturados elementos do cristianismo evangélico
(praticado pela avó) e da santeria afro-caribenha. É sabido, como nos conta
Beatriz Lecumberri na sua obra intitulada: La revolución sentimental (Caracas:
Puntocero, 2012) que, na cerimônia com os paleros
(assim chamados os chefes dos terreiros de santeria), o cadáver do
Libertador Simón Bolívar foi exumado num ritual rigorosamente planejado, com a
finalidade de que o líder doente pudesse se apropriar da imortalidade do herói.
A resultante desse processo, num contexto fortemente patrimonialista como o
venezuelano, é a radicalização do exército dos seguidores de Chávez (hoje
estimado em perto de 120 mil camponeses e líderes sindicais armados nas
denominadas “Milícias Bolivarianas”) que, certamente, farão muito barulho,
causarão inúmeras mortes e dificultarão ao máximo a volta do país ao leito da
normalidade democrática.
No Brasil não ficamos imunes a
esse fenômeno de maluquice coletiva. Já estamos pagando a conta da era lulopetista,
com a inflação que chegou, com a Petrobrás sendo cada dia mais descapitalizada,
com a gastança federal da pupila do líder carismático (que levou a Roma imensa
comitiva que se hospedou em hotéis de primeira “para facilitar os trabalhos”,
segundo a alegação oficial) e com a nossa infraestrutura em frangalhos, depois
de a petralhada ter torrado em políticas sociais sem rumo o caixa que tinha
sido feito por FHC e que pagaria os investimentos que não foram feitos. Isso
sem falar no “mar de lama” patrocinado desde a alta cúpula para pagar
fidelidades no Congresso (no nosso “Presidencialismo de coalizão”). Para não
mencionar o estalinismo da direção petista, que enfileira as suas baterias
contra todo e qualquer um que se opuser ao projeto de hegemonia partidária,
desde os Ministros do Supremo, até os jornalistas, blogueiros e empresas de
mídia que não se afinem com a pretensão oligárquica. Para piorar as coisas, num
momento em que o Brasil se atrapalha com montes de obras atrasadas para os
eventos esportivos previstos, o líder carismático faz deslanchar
antecipadamente a campanha presidencial, com o corriqueiro clima de palanque
que já tomou conta do país e que impede uma administração transparente do
dinheiro público.
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