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terça-feira, 19 de maio de 2020

Pensadores Brasileiros - MIGUEL REALE (1910-2006)


A problemática da originalidade constitui uma das questões fundamentais da filosofia brasileira, bem como, num contexto mais largo da meditação filosófica no âmbito ibero-americano. Representa esta algo de novo no seio da filosofia ocidental? Diante dessa pergunta, surgem duas respostas radicais: não há qualquer originalidade, ou, ao contrário, é possível uma originalidade total.
Exemplo da primeira alternativa é a opinião do jusfilósofo brasileiro Clóvis Bevilacqua (1859-1944), para quem “a especulação filosófica pressupõe uma larga e profunda base de meditação, nos vários domínios do saber humano, aparecendo ela como uma flor misteriosa (...) dessa vegetação mental, assim como a poesia é a flor da emotividade” [Bevilacqua, 1899: 16]. Ora, frisa Bevilacqua, se bem a poesia floresce no Brasil, em decorrência do fato de se enraizar no sentimento, não ocorre isso, no entanto, com a filosofia, terreno no qual os brasileiros limitam-se a copiar o pensamento dos europeus, sem que exista uma escola própria, ou um conceito original de vulto.
Opinião igualmente radical é sustentada pelo pensador colombiano Fernando González Ochoa (1895-1964), para quem é impossível falar em filosofia latino-americana, em decorrência do fato de termos um espírito de colonizados. “Quem é colônia por dentro - escreve González Ochoa [1986: 76] - concebe a liberdade como câmbio de dono”.
Exemplo da segunda alternativa é a opinião do brasileiro Roberto Gomes (1944), para quem seria possível a elaboração de um pensamento latino-americano cem por cento original, surgido da meditação sobre a própria realidade e do esquecimento da filosofia européia, que virou, apenas, cultura ornamental na América Latina. A respeito, conclui o mencionado autor: “do ponto de vista de um pensar brasileiro, [o compositor carnavalesco] Noel Rosa (1910-1937) tem mais a nos ensinar que o senhor Immanuel Kant (1724-1804), uma vez que a filosofia, como o samba, não se aprende no colégio” [Gomes, 1980: 107].
Opinião semelhante é sustentada pelo peruano Alberto Palacios o qual, na sua “Mensagem à juventude universitária de Ibero-America”, considera que, até agora, a cultura filosófica latino-americana foi caudatária do pensamento europeu. Essa circunstância muda a partir da Primeira Guerra Mundial, que revelou a decadência da Europa. A América Latina, no sentir de Palacios, sente-se na iminência de dar à luz uma nova filosofia, perfeitamente original. Na trilha dessa absoluta novidade, a revista peruana Valoraciones chegou a propor o seguinte: “Liquidemos contas com os tópicos em uso, expressões agônicas da alma decrépita da Europa” [apud Mariátegui, J. C., 1986: 62]. O fundamento ontológico dessa renovação é a raça-síntese que vingou na América Latina. A respeito, escreve Palacios: “Somos povos nascentes, livres de amarras e atavismos, com imensas possibilidades e amplos horizontes diante de nós. O cruzamento de raças deu-nos uma alma nova. No interior das nossas fronteiras acampa a humanidade. Nós e os nossos filhos somos síntese de raças” [apud Mariátegui, 1986: 64].
Superando as posições extremadas que acabam de ser esboçadas, Miguel Reale (1910-2006) formulou a metodologia que permite à meditação filosófica luso-brasileira e ibero-americana caracterizar a sua originalidade, sem, contudo, cair no extremo de uma originalidade total, desvinculada da tradição filosófica ocidental. Essa posição equilibrada é defendida, também, por outros pensadores brasileiros e ibero-americanos como Antônio Paim [1984, 1986], Alcides Bezerra [1936], Luis Washington Vita [1964, 1969a e 1969b], Augusto Salazar Bondy [1968], Alejandro Korn [1940], José Vasconcelos [1926, 1986], José Carlos Mariátegui [1978, 1986], Francisco Romero [1944, 1952, 1986], Ernesto Mayz Vallenilla [1959, 1986], Francisco Miró Quesada [1974, 1986], Germán Marquínez Argote [1986], Leopoldo Zea [1974, 1976, 1986], etc.
Miguel Reale parte do fato de que a criação filosófica contemporânea ocorre, preferencialmente, sob a forma de meditação sobre problemas e não como formulação das grandes perspectivas transcendente e transcendental, que já foram fixadas por Platão (428-348 a.C.) e por Kant, respectivamente, ou como construção de sistemas (modalidade adotada pela meditação filosófica ocidental até o final do século passado). A partir daí, o nosso autor formula um método que permite a análise da meditação filosófica brasileira e latino-americana como discussão de problemas, superando o vício do engajamento apologético, que condena ou hipervaloriza autores, de acordo com as preferências axiológicas do estudioso e vencendo, de outro lado, a atitude puramente analítica, que reduz a filosofia ao estudo dos clássicos, sem, contudo, reconhecer aos pensadores brasileiros e latino-americanos a capacidade de meditar sobre a própria realidade.
No seu ensaio intitulado: “A doutrina de Kant no Brasil” [1949], o filósofo paulista já tinha destacado o fato de o pensamento kantiano ter tido, no Brasil, um desenvolvimento criativo, em estreita relação com a reflexão dos nossos pensadores sobre as circunstâncias particulares da história brasileira. O criticismo kantiano, observa Reale no mencionado ensaio, não entrou no Brasil simplesmente como cópia das idéias do filósofo de Königsberg (hipótese que Clóvis Bevilacqua [1929: 5-14] tentou provar no seu trabalho dedicado à saga da doutrina kantiana em terras brasileiras), mas penetrou de forma viva e criativa. A respeito, escreve Miguel Reale [1949: 55]: “A doutrina de Kant, no que ela possui de perenemente vital, não se presta a essas recepções fáceis, nem pode ser convertida em um conjunto cerrado de princípios. O criticismo é, antes, um método, uma atitude ou posição espiritual. É um ponto de partida para a pesquisa criadora; mais uma forma de inquietação e de crise estimativa do que de plenitude e suficiência. Daí poder-se dizer que a presença de Kant, ao menos como motivo de filosofar, constitui um sinal de densidade cultural, como certas roupagens vegetais assinalam as terras ricas de húmus. A compreensão de Kant não permite, em verdade, uma atitude ou forma cômoda de filosofar, sem excessiva filosofia, sem serem empenhadas, a fundo, as nossas mais subtis capacidades de inteligência, em um trabalho perseverante e metódico”.
A filosofia clássica é, portanto, para o pensador paulista, não uma muralha que impede o voo do espírito, mas, antes, uma trilha aberta, que nos convida a caminhar por ela, iluminando, com os seus ensinamentos, a problemática que vivemos. Em relação a esse posicionamento, Antônio Paim (1927) escreveu: “A filosofia é, certamente, um saber especulativo, que se volta para uma problemática que, embora renovada através do tempo, se tem revelado perene em contraposição à alternância dos sistemas. Esses problemas, contudo, têm sempre a ver com a circunstância cultural. De sorte que o caráter especulativo da filosofia não pode ser arrolado como simples diletantismo, como se a filosofia não tivesse nenhum compromisso com a temporalidade e as angústias de determinado momento da cultura de um povo” [Paim, 1981: 92].
Em relação à metodologia formulada por Miguel Reale, para possibilitar a pesquisa da história das idéias filosóficas, Antônio Paim [1981: 92] escreveu: “O método sugerido por Miguel Reale para a investigação da filosofia brasileira compõe-se dos seguintes elementos: 1) identificar o problema (ou os problemas) que tinha pela frente o pensador, prescindindo da busca de filiações a correntes que lhes são contemporâneas no exterior; 2) abandonar o empenho de averiguar se o pensador brasileiro interpretou, adequadamente, as idéias de determinado autor estrangeiro, mais expressamente, renunciar ao confronto de interpretações e, portanto, ao cotejo da interpretação do pensador brasileiro estudado com outras interpretações possíveis, para eleger entre uma ou outra; e 3) ocupar-se, preferentemente, da identificação de elos e derivações, que permitem apreender as linhas de continuidade real de nossa meditação”.
Convém indagar, a esta altura da concisa exposição que desenvolvo acerca do pensamento de Miguel Reale, face à história das idéias, como fundamenta o filósofo paulista a metodologia apontada. A meu entender, o nosso autor concebe a história das idéias como um desdobramento da “reflexão crítico-histórica” por ele analisada em Experiência e Cultura [Reale, 1977: 126 seg.].
No contexto da original interpretação que o pensador paulista realiza da fenomenologia husserliana, à luz da herança transcendental kantiano-hegeliana, ele destaca a correlação in fieri do subjetivo e do objetivo na subjetividade concreta. “Em verdade - frisa a respeito Miguel Reale [1977: 27] - se a consciência intencional se dirige sempre para algo, visando à conversão de algo em objeto, e se este, enquanto objeto, não se distingue daquilo que se oferece à consciência, não se pode considerar ‘puramente subjetivo’ o momento culminante do processo eidético. Parece-me, ao contrário, que a ‘reflexão fenomenológica’ é necessária e intrinsecamente subjetivo-objetiva, isto é, ontognoseológica, consoante terminologia que julgo mais adequada para indicar o âmbito em que se dão todos os atos cognoscitivos e as volições do homem, em sua perene e dinâmica relação com a natureza, assim como na trama de seus próprios conhecimentos e volições e do percebido e querido por ‘um eu’ e ‘outro eu’. Na subjetividade transcendental já está, por assim dizer, in nuce, a experiência ontognoseológica, o processo de significações ou ‘intencionalidades objetivadas’ que são a realidade da ‘cultura’. Consciência intencional ou temporalidade ou historicidade, longe de serem antitéticas, são, pois, expressões que se exigem e se complementam (...)”.
Ora, se consciência intencional e historicidade são expressões dialéticas e complementares, a “reflexão crítico-histórica” é, para Miguel Reale, o momento culminante do processo ontognoseológico, que é, essencialmente, “reflexão ambivalente”, no seio da qual “quanto mais se desvelam as fontes da subjetividade mais se capta o sentido da objetividade” [Reale, 1977: 129]. Somente assim, considera o nosso autor, é possível salvaguardar os dois aspectos básicos destacados, pela fenomenologia, na dinâmica do conhecimento: o da subjetividade e o da objetividade (ou “mundo do viver comum”, ou “mundo da originariedade natural”).
É conhecida a forma clara e contundente com que o nosso pensador aplica o conceito de “reflexão crítico-histórica” ao filosofar, quando reflete sobre a doutrina da Lebenswelt husserliana. Para Miguel Reale, é claro que “nenhum conhecimento ou nenhuma Filosofia tem sentido fora do diálogo da história, ou sem consciência da historicidade do homem e de suas idéias, de sorte que o desconhecimento do valor da História equivale a abdicar da Filosofia, da cultura e do sentido da própria vida” [Reale, 1977: 130-131]. Esta concepção insurge-se contra a denominada, por Husserl (1859-1938), “Filosofia da decadência” (Verfallphilosophie), que pratica a “retirada do mundo” e que “espelha um fenômeno de massa”, ao olvidar o “espírito de responsabilidade pessoal e radical inerente ao ethos da autêntica Filosofia” [Reale, 1977: 131].
O nosso pensador já pressentia, sem dúvida, há mais de vinte anos atrás, quando escrevia estas palavras em Experiência e Cultura, o fenômeno de alienação protagonizado, hodiernamente, pela moda analítica, que se pratica nas corporações autistas e pseudo filosofantes, em que, infelizmente, se converteram não poucos departamentos de filosofia das Universidades brasileiras.
À luz da “reflexão crítico-histórica” proposta por Miguel Reale, o filosofar brasileiro teria, basicamente, duas tarefas: identificar os temas-chave da filosofia ocidental e, em segundo lugar, refletir, à luz desse legado, sobre a própria problemática histórica. Valeria aqui lembrar rapidamente a forma em que Hegel (1770-1831) entendia o estudo da filosofia, pois o nosso autor aproxima-se neste ponto, a meu ver, do filósofo alemão. Se, por um lado, a análise das filosofias nacionais e dos sistemas deve ser objeto de estudo da história da filosofia, no sentir de Hegel, a inquirição, contudo, não pára aí. Momento fundamental da dialética da razão é constituído, também, pela busca da identidade dela consigo mesma, ao que só se pode chegar mediante a integração das várias filosofias nacionais e dos sistemas, numa visão de conjunto que, revelando as diferenças históricas, explicite, também, o fundo comum que as une: a força e a lógica do espírito humano na busca da sua identidade [cf. Hegel, 1981: 41 seg.]. Para utilizar o belo símil colocado pelo ilustre pensador português António Braz Teixeira (1936), o fato de ter pernas que repousam sobre a terra, não tira à ave a capacidade de voar até os céus.
Ora, o nosso pensador tem realizado ambas as tarefas com indiscutível originalidade. Como lembra, com propriedade, Roque Spencer Maciel de Barros (1927-1999), “Miguel Reale desempenhou e desempenha entre nós, e creio que também hoje, em Portugal, um papel semelhante ao que Ortega y Gasset (1883-1955) desempenhou em Espanha e no mundo ibérico em geral. Diríamos que Reale se põe diante de cada autor estudado compreendendo que cada um há de ser examinado não segundo padrões abstratos, mas com as ‘suas circunstâncias’. ‘Tu es tu e a tua circunstância’, parece dizer a cada um o filósofo brasileiro, disposto a situar-se diante dos problemas que o autor em exame enfrentou, com as ferramentas de que dispunha e, se critica as suas obras, fá-lo ‘de dentro’, da perspectiva do pensador estudado, com generosa serenidade e simpatia, que combina com o rigor crítico” [Barros, 1994].
No seu trabalho de diálogo filosófico com os autores, o nosso autor faz da tolerância e do pluralismo o clima de trabalho, que soube comunicar ao Instituto Brasileiro de Filosofia criado por ele em 1949 e ao seu órgão, a Revista Brasileira de Filosofia. Os que “amam a verdade alimentada pelo livre sopro das idéias, - frisa Reale [1994: 23] - mister é que fortaleçam a sua posição pela seriedade das pesquisas, pela meditação serena que é o âmago, a ‘intimidade’ da filosofia .(...). É claro que do diálogo filosófico não se exclui a veemência, nem a paixão pela verdade, mas os caminhos da filosofia são os das convicções livremente elaboradas e transmitidas, não se justificando a polêmica convertida em razão do filosofar”.
Ao enxergar a magna obra de Miguel Reale no terreno da filosofia e da história das idéias, à luz da qual se formaram as várias gerações que, nos últimos cinquenta anos, desenvolveram, de forma sistemática, o estudo do pensamento filosófico no Brasil, posso concluir que o nosso autor foi o maior pensador brasileiro, ao longo do século XX.
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