O
pensamento sociológico de Oliveira Vianna constituiu, junto com as propostas
estratégicas de Lindolfo Boeckel Collor (1890-1942), o referencial teórico que
serviu a Getúlio Vargas (1883-1954) para elaborar a sua proposta modernizadora
do Estado e da sociedade brasileira, ao longo da década de 30 do século XX. A
sociologia de O. Vianna constituiu o marco conceitual que abriu as perspectivas
ao jovem deputado Getúlio Vargas, para compreender o alcance nacional da
problemática social, superando o vezo provinciano que o jovem castilhista tinha
herdado da sua formação no Rio Grande do Sul. Lindolfo Boeckel Collor
(1890-1942) e Oliveira Vianna representaram, também, o aspecto liberalizante
das reformas de Vargas, que encontraram, de outro lado, elementos definidamente
autoritários, que influíram de forma marcante nos rumos absolutistas do Estado
Novo, proclamado em 1937. Dois desses inspiradores autoritários foram, sem
dúvida, Francisco Campos (1891-1968) e o general Pedro Aurélio de Góes Monteiro
(1889-1956), o primeiro admirador do corporativismo de Mussolini e o segundo um
castilhista linha dura, que pretendia ver implantada no Brasil,
indefinidamente, a ditadura científica comteana.
Oliveira
Vianna não foi um observador abstrato da sociedade em que vivia. Participou,
como acaba de ser mencionado, do amplo esforço modernizador e centralizador
empreendido pelo Estado getuliano. Mas seria injusto reduzir a obra do pensador
fluminense a um simples comentário tecido ao redor do élan autoritário da
década de trinta. Oliveira Vianna pensou, de maneira criativa, o autoritarismo
e a modernidade do Brasil e fez uma crítica sistemática aos extremos
liberal-oitocentista e patriarcal-clânico em que naufragaram as nossas reformas
desde o Império. Não se pode captar, de forma adequada, o alcance dos conceitos
do sociólogo fluminense, sem atender para a sua metodologia de trabalho e para
a sua idéia de cultura. Por isso, deter-me-ei nesses aspectos da sua magna
obra, após ter feito a exposição dos principais traços biobibliográficos.
I
- ASPECTOS BIO-BIBLIOGRÁFICOS DE OLIVEIRA VIANNA.
Francisco
José de Oliveira Vianna nasceu em Saquarema, na antiga Província Fluminense, em
20 de julho de 1883, na Fazenda do Rio Seco, e faleceu em Niterói, no Estado do
Rio de Janeiro, em 27 de março de 1951. O seu pai, Francisco José de Castro
Viana, fazendeiro do norte fluminense e coronel da Guarda Nacional, era a
encarnação do paterfamílias. A propósito, frisa o biógrafo de Oliveira Vianna, João
Batista de Vasconcellos Torres (1920-1982): "A incontrastável autoridade
do paterfamílias dava tons sublimes ao patriarcado. O núcleo larário tinha
muito de templo: um ambiente doméstico para melhor sobressair a solidariedade. A
sociedade era a fazenda, a família e os agregados, cujos interesses, fora do
círculo parental, eram ardorosa e fraternalmente defendidos pelo patrão".[1]
Em
que pese a sua natural inclinação pelo estudo da matemática, o jovem Oliveira
Vianna viu frustrados os seus planos de ingressar na Escola Politécnica do Rio
de Janeiro. Cursou, então, a Faculdade de Direito, tendo-se bacharelado em
1905. Integrou, a seguir, o corpo docente do Colégio Abílio, de Niterói, como
professor de matemática. Já desde os últimos anos de estudos universitários,
colaborou ativamente no jornalismo: escrevia no Diário Fluminense, no
jornal A Capital, e logo em outros como A Imprensa, O Paiz
e a Revista do Brasil, de São Paulo. Praticamente não exerceu a
profissão de advogado, tendo preferido se dedicar ao estudo dos problemas
nacionais.
Através
da atividade jornalística entrou em contato com Alberto Torres (1865-1917), de
cuja amizade recebeu forte impulso e influência intelectual para escrever o seu
primeiro livro, Populações meridionais do Brasil - volume I: Populações do
Centro-Sul, que terminou em 1918 e publicou em 1920. Em 1916 iniciou o seu
trabalho como professor de Teoria e prática do Processo penal, na Faculdade de
Direito do Estado do Rio de Janeiro (depois denominada de Faculdade de Direito
de Niterói). Por esse tempo, era forte a influência de Enrico Ferri (1856-1929),
cuja obra admirava o jovem professor, mais do ponto de vista sociológico do que
puramente criminalístico. A partir da publicação do seu primeiro livro em São
Paulo, sob os auspícios de José Bento Monteiro Lobato(1882-1948), com quem o
nosso autor teve grande amizade, tornou-se conhecido a nível nacional e
internacional. Sobre o primeiro volume de Populações meridionais do Brasil
escreveu o argentino José Ingenieros (1877-1925): "Pelo seu método, pelas
suas idéias, pela sua erudição, tem-me parecido uma das obras mais notáveis no
gênero que até agora foi escrita na América do Sul".
A
intuição em que se baseia Populações meridionais consiste em identificar,
no latifúndio vicentista, as remotas origens patriarcais da organização social
brasileira. Esta evoluiria, consoante o nosso autor, no decorrer dos séculos
XVIII e XIX, até a consolidação do Estado Nacional no Império e o
fortalecimento político das oligarquias regionais na República Velha. Oliveira
Vianna dedicou as suas obras sociológicas ao estudo monográfico de aspectos
essenciais dessa complexa realidade, nos seguintes livros: O idealismo da
Constituição (1920), Pequenos estudos de psicologia social (1921), Evolução
do povo brasileiro (1923), O ocaso do Império (1925), Problemas
de política objetiva (1930), Formation ethnique du Brésil colonial
(1932), Raça e assimilação (1932). Depois da Revolução de 1930, que
levou Getúlio Vargas ao poder, Oliveira Vianna tornou-se consultor da Justiça
do Trabalho. Graças a essa posição, o nosso autor influiu, decisivamente, na
elaboração da nova legislação sindical e trabalhista. Assinale-se, desde logo,
que a sua influência não foi apenas técnico-jurídica, abrangendo também o campo
dos princípios. Como terei oportunidade de destacar mais adiante, Oliveira
Vianna considerava o insolidarismo como o traço mais caraterístico dos
indivíduos e dos grupos na sociedade brasileira, razão pela qual defendia o
papel coactivo e educador do Estado, na formação do que ele chamava de um
comportamento culturológico, capaz de se sobrepor ao espírito insolidário.
Desfrutando
de uma situação em que poderia atuar nessa direção, não deixou de fazê-lo, como
se vê da parcela subsequente da sua obra, integrada pelos seguintes livros, que
materializam o seu pensamento acerca desse segmento da atuação culturológica: Problemas
de direito corporativo (1938), Problemas de direito sindical (1943)
e a coletânea de ensaios intitulada: Direito do trabalho e democracia social
(publicada em 1951). Teve a formação católica de Oliveira Vianna algum peso
na elaboração da sua obra no campo do direito do trabalho, como sugere
Vasconcellos Torres? Provavelmente sim, embora de forma mitigada. Amigo de
Getúlio Vargas, recebeu dele a indicação para ser ministro do Supremo Tribunal
Federal; mas declinou o oferecimento. Alegara razões de idade para se dedicar
ao estudo do direito civil e, além disso, manifestara a vontade de voltar aos
seus estudos sociológicos. Foi-lhe oferecido, então, outro importante cargo, o
de ministro do Tribunal de Contas da União, em 1940, que o nosso autor
aceitou, movido, em parte, pelo fato de o novo cargo não lhe impedir a
dedicação às suas pesquisas sociológicas. De fato, a circunstância permitiu-lhe
dar forma acabada à sua meditação, notadamente, mediante a complementação de Populações
meridionais do Brasil, com a publicação do segundo volume, dedicado ao
estudo intitulado: Populações meridionais do Brasil: O campeador
rio-grandense. Esta obra foi publicada, postumamente, em 1952. Outros
escritos do período foram: Instituições políticas brasileiras (1949), Problemas
de organização e problemas de direção (1952), Introdução à história
social da economia pré-capitalista no Brasil (livro publicado, postumamente,
em 1958), História social da economia capitalista no Brasil (1987), História
da formação racial do Brasil (obra ainda inédita) e Ensaios inéditos
(reunião de trabalhos esparsos do autor, como opúsculos e publicações em
revistas especializadas, obra publicada em 1991).
De
índole pessoal tímida e pouco inclinada às manifestações públicas, o nosso
autor, praticamente, não saiu da sua terra natal. Além de curtas viagens a São
Paulo, a São José dos Campos e às Estâncias hidrominerais de Minas Gerais, para
tratamento de saúde, não se afastou do Rio e do cenário fluminense. Declinou,
atenciosamente, os convites que lhe foram feitos em várias ocasiões; por
Getúlio Vargas, em 1928, para pronunciar uma conferência em Porto Alegre; pelo
governador gaúcho Flores da Cunha, alguns anos mais tarde; pelo amigo Afrânio
Peixoto, radicado em São Paulo. Igualmente, recusou o convite que lhe fez o
chanceler Oswaldo Aranha, em 1944, para chefiar uma missão de estudos do
Itamaraty ao Paraguai. Oliveira Vianna integrou a Academia Brasileira de Letras,
tendo sido eleito em 1937. Pertenceu, também, como membro correspondente, às
seguintes entidades culturais: Instituto Internacional de Antropologia,
Sociedade dos Americanistas de Paris, Sociedade Portuguesa de Antropologia e
Etnologia, Academia Portuguesa de História, União Cultural Universal de
Sevilha, Academia de Ciências sociais de Havana, Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, etc.
II
- BASES GNOSEOLÓGICAS PARA O ESTUDO DA REALIDADE BRASILEIRA.
Embora
sempre tivesse observado rigorosa fidelidade, em face dos conceitos relacionados
ao papel e abrangência da sociologia e do direito, muito tardiamente, porém, o ensaísta
fluminense preocupou-se com uma explicitação sistemática dos mesmos. Apenas em
1949, com a primeira edição de Instituições políticas brasileiras, Oliveira
Vianna expôs, sistematicamente, as que podemos considerar como suas bases gnosiológicas
para o estudo da realidade brasileira. Para que o leitor possa apreender, de
modo pleno, esse aspecto de sua meditação, cumpre desdobrá-lo deste modo: 1) o
primado da objetividade científica na obra de Oliveira Vianna; 2) a presença
dessa objetividade na própria atividade intelectual do escritor; 3) a
perspectiva gnosiológica de Oliveira Vianna: a culturologia do Estado num
contexto pluridimensional; 4) os complexos culturais e a morfologia do Estado,
segundo o ensaísta fluminense.
1)
A questão da objetividade científica.
No
prefácio à quarta edição da obra: Evolução do povo brasileiro, (cuja
primeira edição foi de 1937), Oliveira Vianna reage contra a forma unilinear de
entender a evolução das sociedades, como se houvesse leis gerais que as
comandassem. Acolhendo os conceitos do sociólogo francês Gabriel Tarde
(1843-1904), o nosso autor considera que existem múltiplas tendências na
evolução das sociedades, e que é impossível reduzi-las a um único esquema. “Existe,
hoje, à luz das ciências sociais, o heterogêneo social de que falava Gabriel
Tarde, contraposto ao homogêneo social de Herbert Spencer (1820-1903)”.[2]
No
estudo das sociedades podemos encontrar, segundo Oliveira Vianna,
multiplicidade de linhas de evolução e de fatores que intervêm nessas linhas.
Para essa multiplicidade de tipos, - frisa o nosso autor -para essa variedade
de linhas de evolução, para este heterogenismo inicial “contribui um formidável
complexo de fatores de toda ordem, vindos da Terra, vindos do Homem, vindos da
Sociedade, vindos da História: fatores étnicos, fatores econômicos, fatores
geográficos, fatores históricos, fatores climáticos, que a ciência cada vez
mais apura e discrimina, isola e classifica. Estes predominam mais na evolução
de tal agregado; aqueles, mais na evolução de outro; mas, qualquer grupo humano
é, sempre, conseqüência da colaboração de todos eles; nenhum há que não seja a
resultante da ação de infinitos fatores, vindos, a um tempo, da Terra, do
Homem, da sociedade e da História. Todas as teorias, que faziam depender a
evolução das sociedades da ação de uma causa única, são, hoje, teorias
abandonadas e peremptas: não há, atualmente, monocausalismos em ciências
sociais".
Entre
todos esses fatores e sem pretender ensejar uma explicação monocausalista,
Oliveira Vianna considerava de alta importância o elemento por ele chamado de
ambiente cósmico, ligado, basicamente, às condições do solo. Achava que, em seu
tempo, prevaleciam, em ciências sociais, os trabalhos monográficos, que tentavam
identificar os elementos específicos que intervinham em determinado meio cósmico.
Esses trabalhos deveriam ter, como ponto de partida, uma única preocupação:
conhecermo-nos a nós mesmos, deixando de lado as tentativas de acomodar a nossa
realidade a modelos preexistentes. A respeito, Oliveira Vianna era taxativo, em
Evolução do povo brasileiro: "Desde o momento em que a ciência
confessava a sua ilusão e reconhecia que as leis gerais, a que havia chegado,
não correspondiam à realidade das formas infinitas da vida, compreendi que a
melhor coisa a fazer não era insistir por encerrar a nossa evolução nacional,
dentro dessas fórmulas vãs ou querer subordinar nosso ritmo evolutivo a um
suposto ritmo geral da evolução humana - ao evolucionismo spenceriano, como fez
Sílvio Romero (1851-1914), à teoria filogenética de Ernst Haeckel (1834-1919),
como fez Fausto Cardoso (1864-1906), ou à lei dos três estados de Comte
(1798-1857), como têm feito os positivistas sistemáticos. Pareceu-me trabalho
inútil esforçar-me por descobrir, nos acontecimentos da nossa história, a
revelação dessas leis gerais, de que a própria ciência acabava de instaurar o
processo de falência. O mais sábio caminho seria tomar, para ponto de partida,
o nosso povo e estudar-lhe a gênese e as leis da própria evolução. Se estas
coincidissem com as supostas leis gerais, tanto melhor para a ciência e para
nós; se não, ficaríamos, pelo menos, conhecendo-nos a nós mesmos - o que já
seria alguma coisa, porque valeria o consolo de estarmos com a sabedoria dos
antigos".[3]
Só
assim, renunciando, de início, a qualquer esquematismo preestabelecido, é
possível contribuir para a ciência social e para a materialização de uma
política orgânica. Unicamente a história, e Oliveira Vianna segue, aqui, o
pensamento de Leopold von Ranke (1795-1886) e de Theodor Mommsen (1817-1903), é
capaz de nos ajudar a reconstruir as diversas fases evolutivas de um povo
determinado, chegando, assim, a desvendar o seu modo de ser próprio. A
preservação dos valores da Civilização do Ocidente, no nosso meio, dependeria
desse trabalho de pesquisa histórica. Referindo-se aos nossos velhos
historiadores, Oliveira Vianna salienta que lhes faltam dois elementos
essenciais: o povo, que ele chama de massa humana e o meio cósmico. Eis as suas
palavras a respeito: "Duas coisas, realmente, não aparecem nas obras dos
nossos velhos historiadores, senão furtivamente e a medo, duas coisas sem as
quais a história se torna defectiva e parcial. A primeira é o povo, a massa
humana sobre que atuam os criadores aparentes da história: vice-reis,
governadores gerais, tenentes-generais, funcionários de graduação, diretamente
despachados da metrópole. A segunda é o meio cósmico, o ambiente físico em que
todos se movem, o povo e os seus dirigentes, e onde um e outros haurem o ar que
respiram e o alento que lhes nutre as células, e que age como o seu relevo, a
sua estrutura, o seu subsolo, a sua hidrografia, a sua flora, a sua fauna, o
seu clima, as suas correntes atmosféricas e as suas intempéries. Tudo isto
influi, tudo isto atua, tudo isto determina as ações dos homens na vida
cotidiana - e, entretanto, nada disto parece se refletir na explicação da nossa
gente".[4]
Oliveira
Vianna afirma que nesse trabalho de pesquisa sobre a nossa gente, inspira-se no
mesmo espírito de objetividade e imparcialidade com que os técnicos agrícolas
estudam, por exemplo, os problemas do café. A respeito, escreve:
"Estudando as nossas realidades históricas e sociais, o nosso povo, a sua
estrutura, a sua psicologia, e a vida, a estrutura e a psicologia dos grupos
regionais, que o compõem, faço-o com o mesmo espírito de objetividade e a mesma
imparcialidade com que os técnicos do Serviço de Defesa Agrícola estão, agora,
estudando a praga vermelha dos cafezais da Paraíba ou os sábios de Manguinhos
estudaram, entre as populações do planalto e da costa, a função patogênica do necator
americanus (...). O meu grande, o meu principal empenho é surpreender o Homem,
criador da história, no seu meio social e no seu meio físico, movendo-se e
vivendo neles, como o peixe no seu meio líquido".[5]
Essa
preocupação com a objetividade científica, comprometida com a observação
paciente de todos os detalhes do fenômeno social, tentando chegar a categorias
que expressem aquela realidade, faz-se presente em todas as obras de Oliveira
Vianna. Mesmo em pontos altamente discutidos e discutíveis - como na questão da
superioridade organizacional da raça ariana - não podemos deixar de reconhecer
um grande esforço de observação da realidade social. Ao expor, por exemplo, a
progressiva arianização da população brasileira, o autor procura alicerçar
todas as suas afirmações em dados estatísticos, hauridos dos recenseamentos
oficiais.[6]
E não deixa de reconhecer, com inegável sensibilidade de cientista, o caráter
hipotético das suas afirmações, abertas, sempre, à discussão pela comunidade
científica e ao confronto com a realidade.[7]
2)
Testemunhos biográficos.
Essa
preocupação pela objetividade condicionou, aliás, a metodologia de trabalho do
nosso autor. Segundo testemunho de seu biógrafo, Vasconcellos Torres, o
sociólogo fluminense tinha uma definida disciplina intelectual: "Quem
visse as pequeninas folhas de seu fichário, fichário no sentido de coleção
porque as suas notas eram apenas amarradas num barbante e separadas por
assunto, não suspeitaria que, na aparente desorganização com que se
apresentava, possuíam extraordinária unidade. Ele sabia encontrá-las no
instante preciso. De ver o carinho que nutria por esses papagaios, como os
denominava. Quando começava a escrever o livro, a atividade era febricitante e
ininterrupta. Na segunda leitura dos originais, incluía ou retirava trechos e,
digno de referência, era a papelada, um pedaço menos para outro duas vezes
maior que uma folha de almaço, colada e com tiras laterais que mais pareciam
serpentinas. A datilografia não representava o fim. O processo continuava.
(...) De quando em quando examinava recortes de jornais que lhe interessavam,
beneditinamente conservados numa pasta".[8]
O
autor de Populações meridionais não escrevia por escrever. Amadurecia,
pausadamente, uma idéia, até que a encontrava suficientemente clara para
divulgá-la. A carta que endereçou ao chanceler Oswaldo Aranha (1894-1960), em
1944, recusando o convite que lhe formulara para chefiar uma missão do
Itamaraty no Paraguai é bem significativa, porque revela, numa confissão
autobiográfica, a medida do seu compromisso como intelectual: "O apelo de
V. Exa. me encontra no momento justo, exato de um verdadeiro demarage
literário: o do recomeço da elaboração de uma obra, cuja conclusão há pouco
mais de dez anos fui forçado a interromper e que, por sua vez, representa o
labor de vinte anos de intensas leituras e penosas pesquisas arquivais sobre o
Brasil. São nada menos que quatro volumes, já compostos, embora em escorço
grosseiro e despolido. (...). Estes quatro volumes eu os havia composto no
período que vai de 1924 a 1932, depois de ter concluído o primeiro das Populações
meridionais e a Evolução do povo brasileiro. (...). Não se admire,
meu caro chanceler, de ter eu tantos livros no estaleiro, elaborados, mas
inéditos. É isto conseqüência do meu método um tanto extravagante de trabalho:
planejando o livro, escrevo-o logo (...), sem lavor literário (...); feito isto,
guardo-o; e só depois de vários anos é que o retomo para os trabalhos
definitivos de refusão, atualização e polimento".[9]
Hélio
Palmier, o último secretário particular de Oliveira Vianna, deu o seguinte
testemunho acerca da rigorosa disciplina científica do mestre: "Seu método
de trabalho era uma prova da sua probidade intelectual. Confessou-me, certa
vez, jamais ter idéia preconcebida de escrever um livro. Anotava fatos ou
observações em pequenos pedaços de papel - papagaios chamava-os - reunia-os,
depois de certo tempo, e, verificando a interrelação dos fenômenos observados,
deduzia fatos, estabelecia leis, e só então ia procurar os livros dos
estudiosos - dos sabidos, como dizia. Ditava-me, então, os originais.
Recebendo-os de volta, datilografados, na ânsia da perfeição recortava-os, emendava-os
ou inutilizava-os, mandando-me fazê-los de novo; e repetia essa operação várias
vezes. Elaborado o livro, guardava-o, para, mais tarde, anos depois, verificar
se os fatos estavam a confirmar as suas teses. Caso contrário, eliminava,
sumariamente, os pontos falhos. Na revisão das provas tipográficas, ainda não
satisfeito, fazia alterações, acrescentava frases, suprimia parágrafos".[10]
3)
Perspectiva gnosiológica: a culturologia do Estado num contexto poliédrico ou
pluridimensional.
Em
Instituições políticas brasileiras, Oliveira Vianna firma o que pode ser
chamado de bases gnosiológicas para o estudo da sociedade brasileira. O autor
salienta, em primeiro lugar, a presença do direito costumeiro do povo-massa.
direito que é, geralmente, desconhecido pelos legisladores. A respeito, frisa:
"Há, por exemplo, um largo setor do nosso direito privado que é
inteiramente costumeiro, de pura criação popular, mas que é obedecido como se
fosse um direito codificado e sancionado pelo Estado. Quero me referir ao
direito que chamo esportivo e que, só agora, começa a ser anexado pelo Estado e
reconhecido por lei. Este direito (...) organizou instituições suas,
peculiares, que velam pela regularidade e exação dos seus preceitos. Tem uma
organização, também própria, de Clubes, Sindicatos, Federações, Confederações,
cada qual com administração regular (...) e um Código Penal seu (...). Direito
vivo, pois. Dominados pela preocupação do direito escrito e não vendo nada mais
além da lei, os nossos juristas esquecem este vasto submundo do direito
costumeiro do nosso povo (...)".[11]
Logo
a seguir, na mesma obra, o nosso autor aponta uma outra manifestação desse
direito costumeiro. Trata-se do que ele chama de direito social operário,
que é caracterizado nos seguintes termos: "Todo um complexo de normas e
regras (...), objetivado em usos, tradições, praxes, costumes, mesmo
instituições administrativas oficiosas. Era todo um vasto sistema, que regulava
as atividades (...), a vida produtiva de milhões de brasileiros, mas cuja
existência os nossos legisladores não haviam sequer pressuposto. Sistema
orgânico de normas fluidas, ainda não cristalizadas ou ossificadas em códigos;
mas, todas provindas da capacidade criadora e da espontaneidade organizadora do
nosso próprio povo-massa, na sua mais autêntica expressão".[12]
Exemplo
desse direito social operário costumeiro seria o conjunto de normas práticas
que nortearam, ao longo de quatro séculos, o trabalho marítimo e da estiva.
Indicava que os técnicos do Ministério do Trabalho, respeitando as tendências
do povo massa, com muito bom senso, simplesmente incorporaram esse direito ao
texto legal. Achava, ainda, que preocupação idêntica orientou os técnicos do
Ministério na elaboração da legislação sindical, embora não pretendesse negar a
inspiração forânea. Tema predileto do pensador fluminense foi, justamente, a
afirmativa de que direito semelhante do nosso povo-massa vingou no campo
constitucional. Ignorando que o nosso povo sempre teve o seu direito público
próprio, costumeiro, a elite intelectual elaborou outro direito, teórico, que
sempre entrou em atrito com o primeiro. Oliveira Vianna sintetizava, assim, os
traços fundamentais desse direito público do povo-massa: "1) Na vida
política do nosso povo, há um direito público elaborado pelas elites e que se
acha concretizado na Constituição. 2) Este direito público elaborado
pelas elites, está em divergência com o direito público elaborado pelo
povo-massa e, no conflito aberto por esta divergência, é o direito do
povo-massa que tem prevalecido praticamente. 3) Toda a dramaticidade da nossa
história política está no esforço improfícuo das elites para obrigar o
povo-massa a praticar este direito por elas elaborado, mas que o povo-massa
desconhece e que se recusa a obedecer".[13]
E
conclui assim, ligando a problemática política à mais ampla problemática do
comportamento humano e da cultura, e assinalando o papel que corresponde a ele,
como cientista social, nesse contexto: "O meu objetivo será, pois, (...)
estudar o nosso direito público e constitucional, exclusivamente à luz dos
modernos critérios da ciência jurídica e da ciência política: isto é, como um
fato de comportamento humano. Dentro desse critério, os problemas de reformas
de regime, convertem-se em problemas de mudança de comportamento coletivo,
imposto ao povo-massa; portanto, em problemas de cultura e de culturologia
aplicada".
Na
linha de Ralph Linton (1893-1953), Donald Pierson (1900-1995), Herbert Baldus
(1899-1970) e Edgar Willems (1890-1978), Oliveira Vianna entende o termo
cultura no sentido originário da palavra alemã Kultur, que os ingleses
traduziram como culture e que a escola sociológica francesa entendeu
como ethnographie. Esse termo refere-se ao meio social ou à formação
social. O ensaísta fluminense esclarece que só passou a utilizar esse termo na
última parte da sua obra (a partir de Instituições políticas brasileiras,
que data de 1949) e explica assim a razão desse atraso: "É que, dominado,
literariamente, pela preocupação do lucidus ordo cartesiano, sempre
fugi, por sistema, nos meus escritos, às expressões demasiadamente técnicas, só
acessíveis a mestres, a profissionais ou a iniciados, ou ainda não incorporadas
àquela língua franca da ciência, de que nos fala Linton". Mas esclarece
que passa a usar o termo cultura na acepção acima indicada, levando em
consideração que, em língua portuguesa, já se encontra uma bibliografia
suficiente para a correta interpretação sociológica do mesmo. Oliveira Vianna
menciona a Introdução à Antropologia social de Ralph Linton, bem como o Dicionário
de etnologia e sociologia de Baldus e Willems, a revista paulista
Sociologia e a obra Teoria e pesquisa em sociologia de Donald Pierson.
(Convém esclarecer que o livro de Ralph Linton foi traduzido por Lavínia Vilela
em São Paulo, em 1934, ao passo que a obra de Baldus e Willems foi publicado na
mesma cidade em 1939, ano em que apareceu, também em São Paulo, a obra de Pierson).
O sociólogo fluminense alerta, contudo, para o perigo de utilizar o termo cultura
fora do sentido sociológico, como cultura intelectual, salientando que essa foi
a dificuldade enfrentada por Fernando de Azevedo (1894-1974) na sua obra
intitulada: A cultura brasileira.
Quanto
à culturologia do Estado, especificamente, Oliveira Vianna frisa que esse é o
aspecto que mais lhe interessa e que pretende ter desenvolvido na maior parte
da suas obras, desde Populações meridionais do Brasil (1920) até Instituições
políticas brasileiras (1949); trata-se, portanto, do que poderíamos chamar
de objeto formal da sua sociologia, o aspecto específico sob o qual o
pesquisador fluminense estuda a realidade brasileira.
A
culturologia do Estado, salienta Oliveira Vianna, é especialidade assaz
descuidada por parte dos etnólogos. Confessa ter encontrado alguma coisa sobre
esse tema na Social anthropology de Paul Radin (1883-1959), nos Principles
of Anthropology de Carleton Coon (1904-1981) e Eliot Dismore Chapple
(1909-2003) e na obra clássica de Alexander Alexandrovich Goldenweiser
(1880-1940).[14] Contudo, frisa o nosso
autor, "foram os franceses e não os americanos que me deram as melhores
sugestões sobre este ponto, e o livro de Alexandre Moret (1868-1938) e Georges Davy
(1883-1976), Des clans aux empires (Paris, 1932) é o mais sugestivo
trabalho que conheço sobre a genética do Estado". Em que pese o fato de
Oliveira Vianna ter lido a obra de Max Weber[15]
(1864-1920), não chega a se interessar, contudo, pelo estudo que o sociólogo
alemão faz do Patrimonialismo, (tipologia que teria, aliás, encaixado
perfeitamente nas categorias telúricas do nosso autor). Weber interessa a
Oliveira Vianna sob dois aspectos especificamente: no estudo das comunidades de
aldeia na Europa feudal, e na análise do oikós do faraó, que o ensaísta
fluminense achava muito semelhante à autarquia econômica materializada no engenho
real descrito por Giovanni Antonio Andreoni (1649-1716), o célebre cronista
Antonil. Talvez o nosso autor achasse a categoria do Patrimonialismo weberiano
alheia ao contexto americano, levando em consideração o fato de o sociólogo
alemão ilustrar esse tipo ideal a partir das sociedades antigas, como a chinesa
ou a egípcia. A aplicação mais larga do conceito de Patrimonialismo, de modo a
situar nele o absolutismo ibérico pós-feudal seria feita posteriormente, na
análise de August Karl Wittfogel (1896-1988) no clássico livro intitulado: Oriental
despotism (1957).[16]
Analisando
as relações entre direito, cultura e comportamento social, Oliveira Vianna
lembra que dos métodos enumerados por Jacobsen como utilizáveis no estudo da
ciência política, do direito público e das instituições do Estado (histórico,
comparativo, filosófico, experimental, biológico, psicológico e legístico), só
apenas um tem sido aplicado no Brasil: o legístico, que "vê a sociedade
política apenas como uma coleção de direitos e obrigações expressos em lei e
tende a não levar em conta as forças sociais e extralegais, sem as quais,
entretanto, não seria possível nenhuma explicação que corresponda aos fatos da
vida do Estado".[17]
Quanto ao moderno método científico ou sociológico, que se caracteriza pela
objetividade dos seus critérios, Oliveira Vianna supõe que, em geral, os nossos
juristas o consideraram sempre como uma impertinência, continuando fiéis à
metodologia de Rui Barbosa (1849-1923). O pioneirismo nesse campo é
representado por Alberto Torres (1865-1917), Sílvio Romero (1851-1914),
Euclides da Cunha (1866-1909) e por ele mesmo. A respeito, o nosso autor
escreve: "O segundo tipo de estudos - do direito como costume ou cultura -
tem o seu primeiro padrão nos ensaios de Torres, começando com a pioneiragem de
Sílvio e Euclides. Depois, no estudo sistemático e rigorosamente científico
que, nos meus livros, venho fazendo da história e da sociologia das nossas
instituições políticas e partidárias". Informa ter sido Sílvio Romero quem
primeiro o influenciou desde 1900, quando ainda era estudante. O elemento mais
importante dessa influência foi a revelação da escola lepleyana, cujo critério
monográfico Oliveira Vianna achou, então, o mais apropriado para o estudo do
povo brasileiro. O ulterior encontro com Alberto Torres (em 1914), quando o
nosso autor já era bacharel em Direito, bem como o estudo dos sociólogos
americanos e franceses, vieram aprofundar a herança recebida de Sílvio Romero e
Euclides da Cunha.
Para
Oliveira Vianna é um fato que o método sociológico aplica-se, cada vez com
maior intensidade, ao campo do direito. A grande preocupação é com a objetividade,
que ele entende assim: "Objetividade - eis o caráter que distingue esta
fase moderna da ciência do direito, esta nova metodologia, esta nova atitude
dos espíritos em face do fenômeno jurídico. Estudar a vida do direito criminal,
do direito internacional com a mesma objetividade com que Lévy-Bruhl
(1857-1926) estudou as funções mentais nas sociedades primitivas, ou
Radcliffe-Brown (1881-1955) os ritos mágicos dos indígenas das Ilhas Adaman, ou
Malinowski (1884-1942) a vida dos insulares da Melanésia - eis o ideal do
moderno estudo do direito como ciência social, seja o Direito Privado, seja o
Direito Público".[18]
A
seu ver, nesse esforço de aplicação do método sociológico ao direito, têm sido
de grande valor os trabalhos da Escola de Direito Comparado de Lyon, sob a
direção de Édouard Lambert (1866-1947), bem como a contribuição da Nova Escola
Americana de Jurisprudência – Oliver Wendell Holmes (1809-1894), Roscoe Pound (1870-1964), Benjamin Nathan
Cardozo (1870-1938), Louis Brandeis (1856-1941), Karl Llewellyn (1893-1962),
Felix Frankfurter (1882-1965), Huntington Cairns (1904-1985), Max Radin
(1880-1950), Jerôme Frank (1889-1957), etc. - . Considera que a influência das
ciências sociais (principalmente da psicologia social, da etnografia, da
economia política, da antropogeografia, da culturologia) sobre o direito, tem
contribuído para que esta disciplina se liberte, progressivamente, dos seus
elementos apriorísticos e se torne uma autêntica ciência social, cada vez mais
objetiva.
Como
fazer - pergunta o nosso autor - um estudo do direito que possa ter peso
científico? A resposta é simples: referindo-o aos comportamentos sociais. Isso
porque (e aqui Oliveira Vianna segue o pensamento de Huntington Cairns na obra The
Theory of legal science, publicada em 1941), as ciências sociais podem ser
definidas como um tipo de conhecimento que tem como objetivo "o estudo do
comportamento humano, tal como se manifesta em ações na sociedade". Se a
base da cientificidade do direito é o comportamento social, conclui que ela
será constituída não pelo direito escrito - como se considerou no Brasil - mas
pelo direito costumeiro. A conseqüência que Oliveira Vianna tira dessa premissa
é clara: no povo-massa reside a base objetiva da cientificidade do direito, por
ser ele a fonte do direito público costumeiro. E conclui: "Em vez de um
problema de hermenêutica constitucional, torna-se, assim, o estudo do nosso
direito público e constitucional um problema de culturologia aplicada".
Esta
conclusão implica na realização de um aprofundamento no sentido da cultura e da
sua influência, como força determinante dos comportamentos individuais. A
respeito deste ponto, o nosso autor critica, em primeiro lugar, o
panculturalismo de Spengler (1880-1936), Schmitt (1888-1985) e Frobenius (1849-1917), por se tratar de uma
reação extremada contra o biologismo unilateralista, que reduzia a sociedade a
um agregado de indivíduos. Oliveira Vianna critica a concepção panculturalista,
em decorrência da concepção determinística do homem que a empolga. A respeito,
frisa: "Para os culturalistas há então, na Cultura, uma virtualidade
própria - mística ou mágica, como quer que seja - que anula qualquer ação em
contrário do Homem, reduzido, assim, à condição de homúnculo ou menos do que
isto. Mesmo que este homem seja um grande homem".[19]
Esse
vício determinístico do panculturalismo provém do fato de considerar a cultura
como exterior ao homem. Esse extremo corresponde, no entanto, a uma primeira
fase da teoria culturalista. Entende que essa concepção, fundada na suposição
de que a cultura transcende ao homem, teria sido substituída por uma visão que
o nosso autor chama de imanência da cultura. Em relação a este ponto escreve:
"É que (as ciências sociais) acabaram encontrando a cultura dentro do
próprio homem e, portanto, imanente ao homem".
Oliveira
Vianna cita a este respeito, um texto de Abram Kardiner (1891-1981), que
exprime, claramente, a idéia de imanência: "Temos que reconhecer, porém,
que o indivíduo é o portador das instituições e o meio através do qual elas se
perpetuam. A cultura, que não é mais do que uma abstração do observador, existe,
unicamente, nas psiques dos indivíduos que compõem a sociedade. As
características do homem, que tornam possível a cultura, constituem os objetos
supremos do estudo". Assim, as ciências têm mostrado que toda cultura se
dá num contexto de reflexos condicionados por vários fatores, de forma tal que
ela, também, está dentro de nós. A conclusão seria que a cultura, entendida
desta forma ampliada, reconhecendo a existência independente da psique e da
estrutura física dos indivíduos, não os aniquila, mas preserva, pelo contrário,
a sua criatividade. As modernas pesquisas de cientistas como Malinowski, Mac
Iver (1844-1922) e outros, teriam demonstrado, claramente, as falhas do
panculturalismo: estudando sociedades primitivas, tais pesquisas chegaram à
conclusão de que as normas culturais vigentes em determinado meio têm um valor
relativo, quanto ao modo de sua execução. O qual demonstra a insuficiência do
contexto dado pela cultura, para explicar, de forma exclusiva e sem recorrer a
fatores diferentes, as variações de comportamento em relação à norma
preestabelecida (culturalmente).
Oliveira
Vianna expressa, deste modo, a sua divergência face aos os seguidores
americanos do panculturalismo: "O meu ponto de divergência com os
antropologistas da escola culturalista, Franz Boas (1858-1942) e seus
seguidores, é que eles consideram a cultura como um sistema social que encontra
explicação em si mesmo, ao passo que eu, embora aceite a concepção central da
etnologia americana - do regionalismo das áreas de cultura - contudo, não
aceito o panculturalismo desta escola, que quer tudo explicar em termos de
cultura, até os fenômenos fisiológicos, e se recusa a fazer intervir, na
formação e evolução das sociedades e da civilização, os fatores biológicos,
negando qualquer influência ao indivíduo ou à raça e à sua poderosa
hereditariedade". Na base da crítica do nosso autor está a firme
convicção, repetidas vezes afirmada, acerca "da importância que, na
elaboração das culturas e dos seus destinos, tem o homem, o seu temperamento,
as suas idiossincrasias pessoais - o poliedrismo da sua personalidade".[20]
Em
que pese as críticas feitas ao panculturalismo, Oliveira Vianna não deixa de
reconhecer um alto valor heurístico à escola culturalista, quando desprovida
dessa metafísica sócio-vitalista, que faz da cultura entelechia
responsável por tudo quanto acontece nas sociedades. Justamente na medida em
que um cientista como Ralph Linton consegue relativizar, em alguma medida, a
função cultural, nos seus estudos sobre as relações entre personalidade e
cultura, é dada a esta variável a sua adequada dimensão, apesar da originária inspiração
desse autor na escola culturalista. As possibilidades desta escola, aliás,
estão chegando aos seus limites, afirma Oliveira Vianna. Pode-se fazer, hoje, a
previsão de que "não está muito longe o dia em que a sociologia terá de
reconhecer - na gênese das culturas e nas transformações das sociedades - não
apenas o papel da hereditariedade individual e do grande homem, mas mesmo o
papel da raça. Na verdade, tudo parece afluir para uma grande síntese
conciliadora. (...). O certo, porém, é que passou, definitivamente, a época dos
exclusivismos monocausalistas".[21]
Em
que termos se efetivaria essa síntese conciliadora? O nosso autor assim explica
esse processo: "Em suma, o quadro clássico dos fatores da Civilização e da
História se está restaurando. Em vez de uma causa única - meio só (Buckle), ou
raça só (Lapouge), ou cultura só (Spengler, Frobenius, Boas) - a ciência
confessa que tudo se encaminha para uma explicação múltipla, eclética,
conciliadora: Raça + Meio + Cultura. Com estes elementos é que ela está
recompondo o quadro moderno dos fatores de Civilização". Quanto ao tipo em
que se inspira esta posição, Oliveira Vianna frisa: "É o que esperamos do
trabalho científico feito sob a inspiração daquela integralist sociology,
de que nos fala Pitirim Sorokin (1889-1968) e que concebe a realidade social
como um complexo multifário (a complex manifold)".
À
luz dessa perspectiva conciliadora, ou melhor, segundo os termos usados pelo
próprio autor, poliédrica, Oliveira Vianna entende a totalidade da sua obra
como um esforço para aproximar-se desse grupo de fatores (Raça, Meio, Cultura),
fazendo recair a ênfase em algum deles. Daí o caráter monográfico da sua obra.
A respeito, afirma: "Nos meus livros anteriores, (...) tenho investigado
todos esses grupos de fatores da nossa formação e da nossa evolução histórica e
social: o meio antropogeográfico (clima e solo), os fatores biológicos e
heredológicos (linhagem e raça) e os fatores sociais (cultura), embora com
outra tecnologia. Retomo, agora, (em Instituições políticas brasileiras),
depois de dez anos de forçada interrupção, estes meus estudos sobre a nossa
formação social. (...). Por agora, irei investigar, neste volume, e de forma
monográfica e especializada, unicamente o papel da cultura na formação da nossa
sociedade política e na evolução e funcionamento do Estado no Brasil".[22]
O
nosso autor conclui assim, salientando o caráter multidimensional da sua
pesquisa: "É claro que, estudando a cultura, não irei estudá-la apenas no
seu aspecto puramente geográfico, como é dos estilos; mas também (enquanto é)
um complicado e delicado mecanismo que as sociedades humanas constroem, sob o
condicionamento do Meio e da História, para selecionar, distribuir e
classificar os valores humanos, gerados em seu seio pelas matrizes biológicas
da Linhagem e da Raça".
4)
Complexos culturais e morfologia do Estado.
Estes
dois elementos formam parte, também, do quadro gnosiológico de Oliveira Vianna.
Sem caracterizarmos o conteúdo de ambos os conceitos, não poderíamos proceder a
uma interpretação do pensamento do sociólogo fluminense. Quanto ao conceito de
complexo cultural, Oliveira Vianna frisa: "O complexo representa um
conjunto objetivo de fatos, signos ou objetos, que, encadeados num sistema, se
correlacionam a idéias, sentimentos, crenças e atos correspondentes. (...). É
toda uma multidão de fatos, objetos, signos, utensílios, etc., que se prendem a
usos, costumes, tradições, crenças, artes, técnicas, que, por sua vez, se
prendem, igualmente, a idéias, sentimentos, condutas, tudo correlacionado com
estes tópicos peculiares da atividade econômica: - e cada um destes tópicos
forma um complexo".[23]
Em
todo complexo cultural encontramos dois tipos de elementos: externos ou
objetivos (fatos, coisas, signos, tradições), e internos ou subjetivos
(sentimentos, idéias, emoções, julgamentos de valor, etc.). Os primeiros
constituem os chamados elementos transcendentes da cultura, ao passo que os
segundos são os seus elementos imanentes. A interrelação desses dois grupos de
elementos é complexa. Oliveira Vianna a explica assim: "Estes elementos
conjugados ou associados formam um sistema articulado, onde vemos objetos ou
fatos de ordem material, associados a reflexos condicionados, com os
correspondentes sentimentos e idéias. Estes elementos penetram o homem,
instalam-se mesmo dentro da sua fisiologia: e fazem-se enervação,
sensibilidade, emoção, memória, volição, motricidade. Os quadros mentais do
indivíduo se constituem de acordo com estes complexos: estes lhes dão das
coisas e do mundo uma representação coletiva, como dizia Émile Durkheim
(1858-1917). Tanto que já se começa a lançar os fundamentos de uma nova
especialização científica: a sociologia do conhecimento, de que a obra de Karl Mannheim
(1893-1947) é, decerto, um belo exemplo". Do ponto de vista psicológico,
portanto, um complexo cultural é um sistema ideio-afetivo, do qual se derivam
atitudes ou comportamentos com projeção social, numa sincronia de
sensibilidades, emoções, sentimentos, preconceitos, preferências, repulsões,
julgamentos de valor, deliberações, atos omissivos ou comissivos de conduta. O
nosso autor chama a atenção para um fato importante: quando se pretende mudar
um determinado complexo cultural a nível exclusivamente objetivo ou
transcendente, (promulgando, por exemplo, uma nova constituição em nome de Deus
ou do povo), as possibilidades de sucesso de tal mudança são mínimas, pois a
ela opor-se-á o elemento subjetivo ou imanente (sentimentos, crenças,
preconceitos, praxes seculares dessa comunidade humana). Por isso, salienta
Oliveira Vianna, têm fracassado tantas reformas no nosso meio latino-americano:
porque os reformadores, imbuídos de espírito legalista, acham que mudando as
leis vão mudar os hábitos da população, que permanece sempre alheia ao
formalismo externo. Oliveira Vianna endossa a afirmação de Karl-Gustav Jung
(1875-1961) de que os traços culturais imanentes se transmitem pelo
inconsciente coletivo, e "tudo é como se eles se imprimissem ou se
contivessem nos genes das próprias raças formadoras".
Quanto
à morfologia do Estado, Oliveira Vianna identifica quatro tipos: Estado-aldeia,
Estado-cidade, Estado-império e Estado-nação. Faz uma detalhada análise do
primeiro tipo, ilustrando, especialmente, o funcionamento das aldeias
hidráulicas da Península Ibérica, seguindo a terminologia de Maurice Aymard),
de acordo à exposição feita por Joaquim Costa na obra: Colectivismo agrario
en España. O nosso autor, contudo, considera isoladamente estas comunidades
reduzidas, supondo-as verdadeiras democracias telúricas, sem enxergar o
contexto mais largo do despotismo hidráulico que vingou na Península Ibérica
durante a ocupação sarracena. Registra, é certo, as dificuldades enfrentadas
por essas comunidades de aldeia, quando se defrontaram com o absolutismo
pós-feudal, não só na Península Ibérica, mas, também, no resto da Europa. A
impressão que se tem, ao ler a morfologia do Estado elaborada por Oliveira
Vianna, é que ele desconhece o fenômeno do feudalismo em toda a sua
profundidade, especialmente no relacionado à passagem da organização feudal à
moderna realidade do Estado. Não estabelece - ao contrário de Weber - uma
diferenciação de tendências, nesse surgimento do Estado moderno. Por isso,
junta, sem maior preocupação, os Estados em que vingou a formação de tipo
patrimonial aos Estados em que o poder patrimonial do monarca foi controlado,
tendo surgido instituições de governo representativo.
O
seguinte trecho de Oliveira Vianna, referido indistintamente a todos os países
da Europa, exprime de forma clara essa confusão: "Estes grandes Estados
imperiais não se assentavam, porém, sobre bases democráticas - ao modo dos
Estados-aldeias ou dos Estados-cidades das épocas anteriores. Neles, o soberano
não era o povo, como havia sido antes e como veio a ser depois; mas, o Rei.
Este Rei tinha um caráter místico ou religioso nos predicamentos da sua
investidura: era um soberano carismático; quer dizer: por sua graça divina.
Deus o havendo escolhido e consagrado para esta missão, era em nome de Deus que
ele, Rei, governava os povos. Por força desta designação divina é que ele
exercia os poderes do Estado: o Poder Executivo, o Poder Judiciário e o Poder
Legislativo. (...). Em síntese: O Estado-império que governou e administrou a
Europa até a Revolução Francesa, era uma organização de estrutura nitidamente
aristocrática. O Rei, soberano por graça de Deus, dirigia a Nação e a
administrava, rodeado de uma casta nobre e privilegiada, com direito de
exclusividade ao exercício do governo e de todos os cargos públicos. Esta
nobreza irradiava das Cortes e dos bastidores palacianos, para todos os postos
administrativos das Províncias e dos Municípios, bem como para as longínquas
colônias d'além-mar, integrantes do Império. E foi o que ocorreu aqui durante o
período colonial (1500-1822)".[24]
O
nosso autor ignora, aqui, a Revolução Gloriosa (1688) que ensejou, na
Inglaterra, o primeiro ensaio sistemático de governo representativo e deu
origem à monarquia constitucional. Esta experiência, e não a Revolução
Francesa, foi, certamente, o núcleo de inspiração da filosofia política liberal.
E constituiu a primeira tentativa bem sucedida de pôr um freio ao
fortalecimento do Estado Patrimonial. Oliveira Vianna identifica como primeiro
Estado-nação a França. Tal Estado, para ele, é de origem muito recente. A
respeito, frisa: "O mundo civilizado só o viu aparecer depois da Revolução
Francesa, com o reconhecimento do princípio da soberania do povo e o advento
das democracias europeias". A limitação da perspectiva escolhida por
Oliveira Vianna na sua análise do Estado moderno, condicionou o seu estudo
sobre a realidade brasileira. Ao passo que valoriza a democracia como um desejo
da Nação, no momento da escolha de alternativas concretas para materializar
esse ideal, o sociólogo fluminense voltar-se-á para os exemplos em que, no seu
sentir, materializou-se realmente a democracia: O Estado-aldeia e o
Estado-cidade da Antigüidade. A sua visão do Estado moderno terminou sendo
polarizada por uma das formas que este assumiu historicamente: o Estado
Patrimonial.
Conclusão.- Apesar das deficiências teóricas que
afetam a análise de Oliveira Vianna sobre o Estado Moderno, uma coisa é certa:
o pensador fluminense rejeita e supera definitivamente o monocausalismo
sociológico, que vingou nas diversas teorias de inspiração cientificista acerca
da formação social brasileira, ao longo do século XIX e ainda no século XX. Um
outro mérito inegável é a rica tipologia sociológica com que soube ilustrar a
organização política do Brasil, desde a Colônia até o século XX. Ninguém que
pretenda fazer um estudo sério sobre a evolução sócio-política brasileira,
poderá se dar ao luxo de ignorar conceitos básicos da sociologia de Oliveira
Vianna, tais como os de povo-massa, homens de mil, clã parental, clã político,
clã eleitoral, solidariedade de família senhorial, responsabilidade coletiva
familiar, sinecurismo parlamentar, burocratismo orçamentívoro, etc. Justamente
o espírito científico do pensador fluminense se revela no rigor metodológico
por ele seguido no processo de formulação dos conceitos sociológicos,
extraídos, como vimos, de uma rigorosa observação dos fatos sociais e do
confronto com os dados da experiência. Tendência salutar, hoje mais do que
nunca extremamente necessária, em face da perniciosa ideologização das ciências
sociais. Por todos esses motivos, mas principalmente pelo fato de ter inserido
a sociologia brasileira na rica corrente do culturalismo sociológico,
prolongando a tendência ensejada por Sílvio Romero e continuada por Alcides
Bezerra (1891-1938), a figura de Oliveira Vianna é, sem dúvida, pioneira no
hodierno pensamento social e político brasileiro.
BIBLIOGRAFIA
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VIANNA,
Francisco José de Oliveira [1987]. História social da economia capitalista no
Brasil. (Apresentação e organização de Antônio Paim). Belo Horizonte: Itatiaia;
Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2 volumes.
VIANNA,
Francisco José de Oliveira [1987]. Populações meridionais do Brasil. - 1º
volume: Populações rurais do Centro-Sul; 2º volume: O campeador Rio-Grandense.
3ª edição. Belo Horizonte: Itatiaia; Niterói: Universidade Federal Fluminense.
VIANNA,
Francisco José de Oliveira [1991]. Ensaios Inéditos: reunião de trabalhos
esparsos, opúsculos e publicações em jornais e revistas especializadas.
(Apresentação de Marcos Almir Madeira). Campinas: Editora da Universidade
Estadual de Campinas - UNICAMP.
[A
primera parte desta apresentação fué preparada, especialmente, para o Proyecto
Ensayo, da Universidade de Georgia (USA), divulgado no Portal www.ensayistas.org . A segunda parte, atualizada
para esta versão eletrônica, foi publicada, inicialmente, na revista Convivium,
São Paulo, vol. 31, no. 6, novembro-dezembro 1983: pg. 395-414, com o siguiente
título: "A idéia de cultura em Oliveira Vianna"]. Abril 2003.
NOTAS
[1]TORRES, João Batista de Vasconcellos. Oliveira Vianna, sua vida e sua posição nos estudos brasileiros de sociologia. Rio de Janeiro / São Paulo: Freitas Bastos, 1956, p. 19.
[1]TORRES, João Batista de Vasconcellos. Oliveira Vianna, sua vida e sua posição nos estudos brasileiros de sociologia. Rio de Janeiro / São Paulo: Freitas Bastos, 1956, p. 19.
[2] VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Evolução do povo brasileiro. 4ª
edição, Rio de Janeiro: José Olympio, 1956, p. 26-27.
[6]
VIANNA, Francisco José de Oliveira. Raça e
assimilação. 3ª edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938, p.
127-165. VIANNA, Francisco José de Oliveira. Evolução do povo brasileiro.
Ob. cit., p. 186-191.
[8] TORRES, João Batista de Vasconcellos. Oliveira
Vianna, sua vida e sua posição nos estudos brasileiros de sociologia. Rio de
Janeiro / São Paulo: Freitas Bastos, p. 79-80.
[9] Apud TORRES,
João Batista de Vasconcellos. Oliveira Vianna, sua vida e sua posição nos
estudos brasileiros de sociologia.
Ob. cit., p. 80.
[10]
TORRES,
João Batista de Vasconcellos. Oliveira Vianna, sua vida e sua posição nos
estudos brasileiros de sociologia. Ob. cit., ibid.
[12] VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras.
3ª edição. Ob. cit., p. 27.
[14]
Deste importante autor de origem ucraniana, duas obras sobressaem: Totemismo
(1910) e Antropologia, uma introdução à cultura primitiva (1937).
[15]
Cf. VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras.
3ª edição, já citada, vol. I, pgs. 93, 95, 114-115, 123-124, 291.
[16]
Cf. WITTFOGEL, Karl August. Oriental despotism. Yale University
Press, 1957.
[17]
Cf. VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras.
3ª edição, já citada, vol. I, pgs. 33-34.
[18]
VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Ob.
cit., I vol. P. 35.
[19]
VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Ob.
cit., I vol. P. 44.
[20] VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Ob.
cit., I vol. P. 57.
[21] VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Ob.
cit., I vol. P. 70-71.
[22] VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Ob.
cit., I vol. P. 71-72.
[23] VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Ob.
cit., I vol. P. 74.
[24] VIANNA,
Francisco José de Oliveira. Instituições políticas brasileiras. Ob.
cit., I vol. P. 104-106.
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