A
tresloucada marcha do Estado brasileiro como gestor da economia, ao longo das
últimas décadas, notadamente durante os governos petistas, colocou sobre o
tapete a atualidade do pensamento de Eugênio Gudin (1886-1986), que muita gente
achava item de museu. As ideias liberais passaram a ser alcunhadas de
“Neoliberalismo” tout-court, abusando
de um termo que virou xingamento por parte da esquerda patrimonialista.
Gudin
renasce, nesta quadra confusa da história brasileira. E renasce, justamente, ao
ensejo das desgraças protagonizadas pela esquerda que tentou censurá-lo. Este
ensaio visa a destacar algumas das teses do grande professor, mostrando como
elas iluminam a atual quadra da nossa vida política.
Serão
desenvolvidos os seguintes itens: 1 - O Capitalismo Naturalista. 2 – A
racionalidade social e o livre mercado. 3 – A irracionalidade social decorrente
da interferência do fator político na economia. A guerra. 4 – A irracionalidade
social e o planejamento estatal no Brasil. 5 – Capitalismo e democracia no
Brasil: perspectivas.
1 - O Capitalismo
Naturalista
O
surgimento do Capitalismo, para Gudin, não tem nada de abstrato nem de
acidental. É tão verificável quanto o aparecimento da máquina a vapor da era
Industrial. O nascimento desta era da economia, bem como seus passos, são realidades
perfeitamente cognoscíveis. Constituem fatos concretos da História humana.
O
“Capitalismo Naturalista” estudado por Gudin se caracteriza porque é a etapa da
História da economia em que o Capital, aliado ao Trabalho e à Criatividade dos
agentes econômicos, dá ensejo à era da industrialização, que produz a
satisfação das necessidades humanas básicas numa escala planetária, fazendo com
que todas as Nações se inter-relacionem, com equilíbrio, e constituam, assim, a
máxima manifestação da racionalidade humana.
O
começo da sua etapa decisiva, segundo o economista, “(...) pode ser referido ao
ano de 1772 em que, pela primeira vez, se operou a redução do minério de ferro
pelo coque metalúrgico. As suas grandes etapas foram a da navegação a vapor, no
princípio do século, a da locomotiva, de 1827, a do Conversor Bassemer, em
1856, a da eletricidade industrial e da hulha branca no último quartel do
século, a do motor de explosão, do automóvel e da indústria do petróleo em seu
último decênio e, por fim, a do cinematógrafo e da aviação no limiar do século
XX”.[1]
Poderíamos
adicionar um fato relevante, na área da educação e da pesquisa, que acompanha,
de forma precursora, a Revolução Industrial: a criação, na França, em 1794, após
a Revolução Francesa, da Escola Politécnica, que passou a tratar, ao lado da
tradicional Universidade nascida na Idade Média, do ensino das ciências e da
tecnologia.[2]
Ora, esse ensino, até finais do século XVIII, tinha ficado relegado às
Academias, que surgiram fora das instituições universitárias na Europa, como
ocorreu na Itália de Galileu Galilei (1564-1642) e de Leonardo da Vinci
(1542-1519), na Inglaterra de Robert Boyle (1627-1691) e de Isaac Newton
(1643-1727) e na França dos marqueses Pierre Simon de Laplace (1749-1827) e Nicolas
de Condorcet (1743-1794).
Immanuel
Kant (1724-1804) saudou o novo momento econômico da industrialização, nos
estudos dedicados à Antropologia (entendida como saber pragmático acerca do
homem), caracterizando-o como uma Criação Cosmopolita.[3]
A respeito dessa característica globalizante e integradora da nova economia,
frisava Gudin: “As estradas de ferro, os motores de explosão, a navegação a
vapor arrancaram os povos do isolamento em que viviam, ligando-os pelos laços
de uma sociedade econômica em que a produção do planeta se espalha e distribui
pelo mundo inteiro. O transporte industrial, permitindo a organização de
socorros em grande escala, acabou com os quadros tétricos, que tanto registra a
história, de populações dizimadas pela fome, pela seca e pelas epidemias”.[4]
Essa
etapa de evolução da economia mundial, sob a égide da industrialização, já
vinha sendo preparada desde o período renascentista, que sacudiu a pesada
estrutura do saber medieval, centrado na Teologia Escolástica, a fim de abri-lo
às ciências e às técnicas. A respeito, escreve Gudin: “A evolução social e
econômica retoma o seu curso com o Renascimento, em ritmo de progresso
acentuado desde o século XVI até o último quartel do século XVIII, que registra
o maior acontecimento da história econômica da humanidade: o advento da
civilização industrial”.[5]
O
equilíbrio “estático” medieval é sacudido, após o Renascimento, pelo
florescimento da economia, das técnicas e da cultura nas cidades italianas. “A
história –frisa Gudin - nos revela períodos, por vezes longos, como o da fase
negra da Idade Média, em que o mundo se apresentava em estado de estagnação
econômica e social correspondente a um equilíbrio estático. São períodos de
exceção”.[6]
Ao
ensejo das mudanças ocorridas na economia com o surgimento do Capitalismo e da
Revolução Industrial, frisa Gudin: “Puderam ser montados, no mundo inteiro, os
laboratórios de pesquisas científicas, com que a humanidade, há quase um
século, perscruta os segredos da Natureza. Graças ao microscópio, produto da
indústria, pôde Pasteur realizar a imensa obra de benefício humano que o imortalizou.
Graças ao aparelhamento industrial atingimos um ‘standard’ de vida, que faz com
que simples operários de hoje tenham mais conforto do que príncipes de outros
tempos ou do que Marx e Engels há menos de um século. Não são sequer
comparáveis os instrumentos com que a humanidade de hoje se defende do frio, da
fome, das intempéries, das infecções e de todas as adversidades que a Natureza
pôs no caminho penoso do ‘homo sapiens’. Ninguém de boa-fé negará esses
truísmos”.[7]
O
economista elenca os grandes avanços que, na área técnica e no progresso
econômico, a Humanidade experimentou com o surto do capitalismo na era
industrial, ao longo do século XIX. Não deixa de registrar o fato, apontado por
Ortega y Gasset (1883-1955) em A rebelião das massas (1928),[8]
do significativo aumento da população na Europa, em decorrência da melhora das
condições de higiene, saúde e produção de alimentos. Eis as palavras de Gudin: “À
redução do minério de ferro pelo coque metalúrgico e à máquina a vapor, seguem-se,
em rápida sucessão, na primeira metade do século XIX, a navegação a vapor, a
locomotiva e as estradas de ferro. A segunda metade desse século é como uma
feira de mágicas em que, juntamente com as descobertas de Pasteur (1822-1895),
aparecem o motor elétrico, o telefone, as turbinas hidráulicas e a vapor, a
lâmpada incandescente, o transporte de energia a distância. O último decênio do
século, ainda, assiste ao advento do motor a explosão, do veículo automóvel e à
infância da aviação. Foi um período de verdadeira exaltação do progresso, cujo
ritmo vertiginoso absorvia todas as energias humanas. Era como que uma fronteira, no sentido de progresso de
civilização que a essa palavra dão os americanos. O século XIX assistiu a um
crescimento da população da Europa, superior ao do conjunto dos quatro séculos
que o precederam. Mas toda essa população era, rapidamente, absorvida na febril
atividade da fronteira na própria
Europa ou na América. Não havia tempo para cuidar dos problemas de justiça
social, nem de uma mais equitativa distribuição da riqueza entre os homens.
Tratava-se de conquistar a riqueza e haveria, sempre, tempo de cuidar, mais
tarde, de uma melhor repartição. Foi essa a conjuntura econômica e social que
Marx (1818-1883) conheceu e profligou na incandescência de seu espírito
revoltado”.[9]
O
rápido crescimento da produção industrial levou à expansão da fronteira
econômica da Europa. Novos mercados iam-se, assim, abrindo. A propósito, frisa
o nosso autor: “Tão acelerado foi o ritmo de progresso da produção industrial
nos países do Ocidente europeu, que eles se acharam, ao cabo de alguns
decênios, na contingência de procurar, fora de suas fronteiras, novos
escoadouros para essa produção”.[10]
A
ampliação da fronteira econômica levou a que os países industrializados
buscassem novos mercados para os seus produtos, nas nações ainda circunscritas
à economia agrícola. Os novos impérios coloniais tinham como finalidade
garantir matérias primas, mas, também, alargar o mercado consumidor para os
produtos das grandes indústrias. Sobre este ponto, o economista frisa: “À
medida que se ampliava o âmbito da civilização industrial e que as demais
nações da Europa e, já, também, dos Estados Unidos da América do Norte,
iniciavam, a seu turno, a construção de seus parques industriais, a Inglaterra,
a França e a Holanda tinham que procurar novos escoadouros para sua exportação,
nas nações que ainda viviam em regime de economia agrícola, como nos impérios
coloniais que construíram com o duplo objetivo de angariar matérias-primas e de
assegurar consumidores para suas grandes indústrias”.[11]
Gudin
faz referência ao papel de dinamizadoras da produção, que passaram a exercer,
na Europa, as Instituições de Crédito, bem como as Sociedades Anônimas. De
outro lado, fixa a atenção no equilíbrio a que chegaram as economias europeias
com aquelas dos países que recebiam os seus produtos industrializados, em troca
pelas commodities que os menos desenvolvidos exportavam. A respeito
escreve: “O vulto crescente da produção, o aumento considerável da riqueza e da
capacidade de consumo excederam, em breve tempo, as possibilidades dos sistemas
monetários e financeiros então existentes, dando lugar à criação dos dois
grandes fatores de propulsão da civilização industrial, que foram o Crédito e
as Sociedades Anônimas, um e outras tornados já, então, possíveis de se
organizar, sobre a base do acúmulo das economias privadas nas instituições
bancárias. Em dado momento, a Economia mundial parecia ter chegado a um estado
de equilíbrio estável, tendo, de um lado, as nações que dispunham do capital
acumulado, da técnica industrial, do combustível carvão e da navegação a vapor
e que constituíam o grupo das nações industriais e, de outro lado, aquelas
nações que não dispunham desses elementos, mas que podiam oferecer seus
produtos agrícolas e suas matérias primas em troca dos artigos manufaturados”.[12]
O
aumento da venda de produtos industrializados, por parte dos países
desenvolvidos, se traduzia numa forma de equilíbrio, resultante do incremento
de commodities compradas dos menos desenvolvidos. Em relação a esse
aspecto, frisa Gudin: “Quanto mais o grupo de nações industriais vendia seus
produtos ao outro grupo, mais lhe compravam produtos agrícolas e matérias
primas, e vice-versa”.[13]
A
economia dos países submetidos a esse regime de trocas gozava de um equilíbrio
induzido pelo “gênio da civilização industrial”. Esse harmônico processo é
assim descrito pelo economista: “Se de um lado o progresso industrial de alguns
países novos fazia diminuir a importação de determinados artigos, esta redução
era logo compensada pelo aumento geral da capacidade de consumo, como pela
importação dos produtos de novas indústrias criadas pelo gênio da civilização
industrial. Se baixava a exportação de tecidos, aumentava a de automóveis ou de
novos produtos químicos”.[14]
Um
desequilíbrio é apontado por Gudin nessa evolução histórica do Capitalismo
Naturalista: os trabalhadores terminaram sofrendo as consequências das
variações do mercado, ainda não suficientemente debeladas pela nova legislação
trabalhista. No entanto, com o correr do tempo, um novo equilíbrio se
anunciava, na trilha do aumento real da capacidade de compra por parte dos
trabalhadores, já no final do século XIX.
Eis
a forma em que Gudin resume todo esse processo: “Do ponto de vista social (...),
é verdade que a liberdade de movimentos de que carecia o capitalismo
naturalista para sua plena expansão custou não poucos sacrifícios às classes
trabalhadoras, ainda desamparadas de legislação social adequada e de união
sindical .(...). Não é menos verdade que, ao findar o século XIX, os salários
reais dos trabalhadores, isto é o seu poder de compra, tinham aumentado
consideravelmente”.[15]
2 – A racionalidade social e
o livre mercado.
Eugênio
Gudin é tributário dos teóricos escoceses, que encararam a racionalidade social
como proveniente da empresa econômica. Para ele, onde se instalou o Capitalismo
Naturalista terminou vingando a racionalidade, no plano mais largo das relações
sociais. Como a prática do livre mercado é que dá ensejo a essa modalidade de
Capitalismo, ali onde tal liberdade é suprimida, simplesmente desaparece a
racionalidade social.
Tal
tendência passou a ser caracterizada como da “Economia Política” e se desenvolveu
na trilha da moral escocesa do senso comum que, com David Hume (1711-1776),
Adam Smith (1723-1790) e outros autores, oferecia uma alternativa racional às
teorias contratualistas. Seria possível, como pensava Hume, reduzir a política
a uma ciência referida à economia e aos negócios públicos.[16]
Essa temática foi retomada por ideólogos como Jean-Baptiste Say (1767-1832), que
no seu Tratado de economia política, publicado em 1803, identificava
a nova ciência por ele proposta com um saber racional alicerçado na
experiência, irredutível à matemática, mas passível de ser resumido em poucos
princípios evidentes para todos.
A
respeito escreve Say: "Assim como as ciências exatas, a Economia Política
se compõe de um número reduzido de princípios fundamentais e de um grande
número de corolários ou deduções desses princípios. O importante, para os
progressos da ciência, é que os princípios decorram, naturalmente, da
observação; em seguida, cada autor multiplica ou reduz, de acordo com sua
vontade, o número e consequências, conforme o objetivo que se propõe. Aquele
que desejasse mostrar todas as consequências e fornecer todas as explicações,
construiria uma obra colossal e necessariamente incompleta. Inclusive, quanto
mais essa ciência for aperfeiçoada e difundida, menos consequências teremos de
extrair, pois elas saltarão aos olhos; todo mundo estará em condições de
encontrá-las por si mesmo e de aplicá-las.
Um Tratado de Economia Política reduzir-se-á, então, a um pequeno
número de princípios que sequer precisaremos basear em provas, pois eles serão,
apenas, o enunciado daquilo que todo mundo já saberá, disposto numa ordem
apropriada, a fim de se poder apreender o seu conjunto e as suas
relações".[17]
O
conde Antoine Destutt de Tracy (1754-1836), no seu Tratado de Economia Política
(que constituía a quarta parte da obra intitulada: Elementos de Ideologia),
definia mais claramente o fundamento da ciência em apreço, ao afirmar que: "o
comércio é toda a sociedade".[18]
O conde Pierre-Louis Roederer (1754-1835), por sua vez, considerava que
"as artes mecânicas, o fato de serem partilhadas por diferentes mãos, o
comércio e o intercâmbio de produtos por elas produzidos, são os únicos que
estabelecem, entre os homens, comunicações intimas, constantes e duráveis".[19]
A política tenderia, destarte, a se confundir com a economia e a ciência das
riquezas seria a chave para encontrar a harmonia social. Para Gudin, como fica
claro do que levamos exposto, o equilíbrio social se estabelece pelo próprio
jogo das forças econômicas submetidas à lei do livre mercado.
Gudin,
no entanto, não acreditava que a Economia pudesse encampar a Política. Para
ele, essas duas variáveis eram complementares, não podendo ser reduzidas a uma
delas. Seria uma simplificação inaceitável. Considerava que ambas as variáveis eram
essenciais, assim como a relativa à Cultura. Embora admirasse a obra de Augusto
Comte (1798-1857), à maneira dos nossos positivistas ilustrados, pelo fato de o
pensador francês ter sistematizado a ideia de uma ciência social que
possibilitasse o estudo rigoroso dos fenômenos socioeconômicos, longe estava
Gudin, no entanto, de encampar a visão antidemocrática do comtismo, com a sua
“ditadura científica”. A crítica que fazia ao “despotismo ilustrado” getuliano,
de raízes castilhistas, era clara. A sua vinculação à UDN acompanhou,
certamente, esse viés de antiestatismo.
Nessa
concepção da sociedade como uma realidade a ser abordada a partir de múltiplas
variáveis, Gudin se inspirava no sociólogo alemão Werner Sombart (1863-1941).
Considerava que foi ele quem primeiro chamou a atenção para o caráter magnífico
e complexo da empresa capitalista e se refere a ele da seguinte forma, no ensaio,
já citado, Aspecto econômico do corporatismo brasileiro: “Foi dessa economia que o seu maior
comentador (...) dizia: ‘Estrutura tanto mais digna de admiração quanto ela é o
produto, não de uma vontade consciente e de uma deliberação refletida, mas do
funcionamento autônomo e, por assim dizer, automático de uma multidão
incomensurável de economias individuais, procurando cada uma o seu próprio
interesse’”.
Gudin
adotava o ponto de vista de Sombart de que são múltiplas as variáveis que, além
da economia, dão conta da complexidade da vida social. É bem verdade que
Sombart, ao lado de sua admiração pela empresa capitalista, nutria
desconfianças em relação à predominância do espírito de lucro sobre a
componente racional, que garantiria a perpetuação do processo, numa espécie de
busca da “paz perpétua” almejada por Kant (1724-1804). Os momentos de “guerra”
(e, notadamente, as Guerras do século XX) poriam à prova a subsistência do
sistema. No entanto, Gudin era otimista quanto à possibilidade de serem
sorteadas as dificuldades. A “Guerra” é fruto da predominância dos fatores
políticos sobre os econômicos. O anseio de dominação pode sufocar a
produtividade.
A
respeito da forma como Gudin interpretava a obra do sociólogo alemão, Maria
Angélica Borges frisa: “No comentário à obra de Sombart, aparece o
desdobramento dos pressupostos da noção de equilíbrio econômico presente na
concepção econômica que Gudin abraça”.[20]
O Capitalismo autorregulador era, para Gudin, “a maior obra civilizadora que o
espírito humano já concebeu e criou”.[21]
O
Capitalismo, acreditava o mestre carioca, saberia se sobrepor às crises,
retomando o processo de criação de riquezas, mediante a incorporação de novos
avanços tecnológicos como a automação, por exemplo, e preservando a livre
iniciativa, para fazer frente aos reptos de uma produção massiva, atendendo – de outro lado - às novas
exigências sociais. Diríamos que Gudin retomava o otimismo que inspirava à
primeira geração dos pensadores da economia política, nos tempos de Adam Smith,
mas ampliando o leque epistemológico para o estudo de várias variáveis.
3 – A irracionalidade social
decorrente da interferência do fator político na economia. A guerra.
Para
Gudin, a Primeira Guerra Mundial veio quebrar o desenvolvimento equilibrado do
Capitalismo Naturalista, devido à interferência irracional do fator político,
que destruiu o equilíbrio do sistema. Maria Angélica Borges frisa a respeito:
“Este paraíso durou, para nosso economista, até 1914, quando se deflagrou a Primeira
Grande Guerra. Para ele, esse fato sinaliza o fim de uma época. O mundo
capitalista, no plano do fator econômico, caminhava de forma positiva. Mas, em
virtude de acontecimentos decorrentes do fator político, envolvendo paixões e
ambições humanas, o equilíbrio econômico foi interrompido. Deixado à mercê de
sua própria lógica, o tecido social não conhecia a crise. Porém, tal não
ocorreu, porque o fator político quebrou a dinâmica do fator econômico. Para o
autor, o equilíbrio natural é da lógica interna do fator econômico, assim como
a possibilidade de quebra do equilíbrio é exterior a ele”.[22]
A Primeira Guerra Mundial explica, assim, o caos econômico que se seguiu ao
processo de desenvolvimento harmonioso do Capitalismo na “Belle Époque” (entre
1875 e 1914).
Assim
se refere Gudin a esses fatos: “O enriquecimento geral prosseguia seu ritmo
natural e benéfico, a difusão de capitais se processava com regularidade, o
comércio internacional aumentava todos os anos. E se guerra houve inteiramente
gerada pela explosão de paixões e ambições políticas e militares e em que os
fatores econômicos menor papel representaram, essa foi a guerra de 1914, que
desencadeou sobre o mundo uma das maiores crises econômicas da história”.[23]
Como
consequência do desarranjo produzido na economia mundial pela Primeira Guerra,
a Inglaterra terminou perdendo o controle sobre as finanças internacionais e os
Estados Unidos, onde tinha se desenvolvido o processo capitalista sem
obstáculos, terminaram assumindo o controle das finanças mundiais.
Gudin
sintetiza da seguinte forma os aspectos fundamentais dessa profunda mudança do
Capitalismo Naturalista, destacando o papel que os Estados Unidos passaram a
desempenhar na economia: “Quando os Estados Unidos da América do Norte, que já
representavam, antes da guerra, função de relevo na Economia Mundial
[intervieram], a transformação foi ainda mais profunda. Com um parque
industrial que já era capaz de suprir os aliados de munições, canhões, material
de guerra e de transporte, o seu enriquecimento, de 1914 a 1917, foi
vertiginoso, de sorte que, ao término das hostilidades, esse grande país havia-se
transformado de país devedor da Europa, que era até 1914, no maior país credor
do mundo, sem que, entretanto, tivesse a experiência e a sabedoria exigidas por
essa nova função. Aí está como se processou a desorganização da Economia
Mundial. O equilíbrio que se havia gradativamente formado até 1914, sob o
regime do Capitalismo apoiado na Economia Liberal, e que consistia na
conjugação harmônica das funções econômicas dos vários países que o
constituíam, foi gravemente perturbado pela inversão de valores de suas
unidades componentes. As peças do sistema, que d´antes se entrosavam
harmonicamente, já não mais se engrenavam, umas às outras”.[24]
Esse
desarranjo revelou que, no ciclo anterior à guerra, havia uma lacuna que não
tinha sido preenchida: a ausência de policiamento sobre o sistema de trocas,
que terminou produzindo a falência do mesmo. Gudin reconhece que, no seio do Sistema
Capitalista, encontram-se elementos que podem, em determinado momento, colocar
em risco a saúde econômica. No caso concreto do desarranjo produzido pela
Guerra no contexto do sistema econômico mundial, esses elementos negativos
situavam-se do lado do surgimento de monopólios e de outras práticas
irracionais.
A
propósito, frisava Gudin: “A mais elementar lacuna do sistema capitalista, tal
como funcionava no primeiro decênio [do século XX] era a ausência de
policiamento. A livre disposição, pelos bancos, de depósitos das economias
privadas, sem a fiscalização do Estado, a ilimitada liberdade de apelar para a
Economia privada e para a subscrição de empréstimos de Estados, de empresas de
negócios de toda espécie, sem que primeiramente o Estado certificasse que tais
operações tinham, de fato, o destino e as possibilidades de êxito anunciadas,
estavam a exigir, com urgência, o policiamento do sistema. (...). Este simples
policiamento, se adotado a tempo, teria poupado, ao Capitalismo, algumas das
mais violentas críticas que lhe foram assacadas”.[25]
O
nosso autor lembrava que essa crise do Capitalismo já tinha sido prevista por
um teórico da talha de David Ricardo (1772-1823). Eis a apreciação do nosso
autor a respeito: “Já Ricardo, talvez o maior economista do seu século, dizia,
referindo-se ao Sistema Capitalista, que o seu automatismo exige um grande
número de empresas de dimensões tais, que nenhuma delas possa agir diretamente
sobre os preços. É que na luta da concorrência, quando levada a seus limites
extremos, chega o momento em que os contendores compreendem que o seu
prosseguimento importaria na ruína final de todos, como na perda e destruição
final do capital social invertido na indústria ou serviço em causa. (...).
Nesta hipótese, dá-se, inevitavelmente, o entendimento entre os produtores ou o
amálgama e unificação de empresas, com a supressão da concorrência, que era o
próprio princípio vital do Capitalismo naturalista. Outra modalidade do
resultado final da luta é a do esmagamento sucessivo do mais fraco pelo mais
forte, ficando este só em campo, sem mais concorrentes e, portanto, no regime
de monopólio, que é justamente o oposto da essência do Capitalismo”.[26]
Gudin
estudou com atenção a crise do laissez-ferismo de início do século XX. Conhecia
em detalhe a obra dos economistas de Cambridge que, nas primeiras décadas do
século, tinham-se debruçado sobre esse tema. Conhecia bem o pensamento de John
Maynard Keynes (1883-1946) e concordava com a sua crítica ao capitalismo de
final de século, que tinha deixado aberta a porta para os desequilíbrios. Como
o economista britânico, reconhecia a necessidade de uma correção de rumo,
mediante intervenções indiretas do Estado para restabelecer o equilíbrio, sem
que se chegasse ao extremo do Estado-empresário tão do gosto do despotismo
ilustrado. Mas considerava necessárias intervenções pontuais e passageiras, que
evitassem o risco de paralisia do Capitalismo Naturalista.
Em
relação à proximidade de Gudin face ao pensamento keynesiano, escreve José Luis
Oreiro: “Gudin (...) considerava corretas as ideias de John Keynes (1883-1946)
para analisar períodos de depressão econômica. Foi, inclusive, um dos primeiros
a divulga-las em português, em seu livro: Princípios de economia monetária, lançado originalmente em 1943. A
obra foi a primeira sobre monetarismo publicada no País e se tornou chave para
as gerações de economistas. Sua trajetória foi, também, marcada pela autoria de
artigos para jornais e publicações técnicas e participação em importantes
conferências no Brasil e no exterior”.[27]
Afinava-se
Gudin com a proposta de intervenção moderada do Estado na economia formulada
por Keynes, para sanar os desequilíbrios causados pelo laissez-ferismo. Tomou
conhecimento da política intervencionista do New Deal, posta em marcha pelo presidente Franklin Delano Roosevelt
(entre 1933 e 1937), mas criticou, no entanto, o que lhe parecia uma
intervenção forte demais que seria repetida, no Brasil, pelo presidente Getúlio
Vargas (1883-1954). A criação de inúmeras agências federais por Roosevelt
parecia, ao nosso autor, uma indevida concessão dos americanos ao estatismo.
Gudin
criticava, de outro lado, a versão estatizante que, das reformas keynesianas,
foi elaborada pelo economista argentino Raul Prebisch (1901-1986) e que
terminou inspirando o pensamento da CEPAL, tendo-se disseminado pela América
Latina afora, dando ensejo a reformas estatizantes que terminaram sendo postas
a serviço dos diversos populismos que floresceram no nosso continente ao longo
do século XX e – como observamos na atual quadra - que se manifestam, também,
nos diversos modelos neopopulistas que azucrinam a vida dos cidadãos desta
parte do mundo.
A
Segunda Guerra Mundial ensejou nova crise no seio do Capitalismo, em
decorrência do fato de que não foram solucionados a contento os problemas que
deram lugar à Primeira Grande Guerra. Os mecanismos para uma economia
internacional policiada ainda não tinham sido plenamente desenvolvidos, em que
pese a efetivação da política do New Deal
nos Estados Unidos para superar a crise de 29. O resultado de tudo isso, na
década de 30, foi o acirramento dos problemas e o surgimento de uma proposta de
economia planificada na Alemanha hitlerista, como decorrência da bancarrota
econômica que fez surgir a hiperinflação, em boa medida como efeito das
absurdas exigências do plano de paz ensejado pelo Tratado de Versalhes
(1919), que deixou abertas as feridas que conduziram à Segunda Guerra Mundial.
Um clima de estatismo semelhante acompanhou a ascensão de Joseph Stalin
(1878-1953) ao comando da União Soviética. Keynes, em As consequências econômicas da
Paz,[28]
deixou claras essas contradições (que ficaram explícitas na negociação do Tratado
de Versalhes) e que foram, também, registradas por Max Weber (1864-1920).
Gudin
participou da Conferência de Bretton
Woods (agosto de 1944),[29]
que reorganizou a economia mundial. O nosso autor, conhecedor das propostas
feitas por Keynes nessa Conferência, saiu fortalecido como um economista
afinado com os novos tempos. Antes de regressar ao Brasil visitou, em companhia
de Otávio Gouveia de Bulhões (1917-2001), a prestigiosa Faculdade de Economia
da Universidade de Harvard. Ali teve oportunidade de discutir com os scholars
americanos “o projeto da Faculdade de Economia do Rio de Janeiro (que se
transformaria na Universidade do Brasil, hoje Universidade Federal do Rio de
Janeiro). O resultado da visita é relatado em carta ao ministro, enviada de
Chicago: ‘Escrevi na pedra o programa e o
projeto de currículo que lhe recomendamos, para submetê-lo à crítica de todos e
para receber sugestões dos mestres. Tenho a satisfação de comunicar-lhe que
depois de fazerem várias perguntas e de pedirem esclarecimentos, todos os
professores de Harvard acharam o programa excelente dizendo que nada havia a
modificar’”.[30]
4 – A irracionalidade social
e o planejamento estatal no Brasil.
Para
Gudin, Getúlio Vargas pôs em funcionamento um sistema econômico de intervenção
direta e prolongada do Estado na economia. A adoção das políticas
intervencionistas, no Brasil, foi além do recomendado por Keynes para sanear
economias em depressão. Vargas avançou no terreno da estatização, ao ensejo da
adoção da ideia de planejamento. Na longa polêmica sustentada com Roberto
Simonsen (1889-1948) a respeito, Gudin deixou claro que o planejamento deita
raízes no intervencionismo monopolista do ciclo mercantilista. O Plano
contrapõe-se à livre iniciativa.
A
respeito, o nosso autor frisava: “No regime mercantilista do século XVIII, os
fatores de produção eram dirigidos para as atividades econômicas ditadas pela
política nacionalista do Estado; a formação do artesanato orientada de acordo
com o plano de produção formulado pelo Estado; o comércio exterior controlado
para assegurar o acúmulo do maior stock possível de metais preciosos,
velando-se por que o balanço de comércio fosse sempre ‘favorável’; o comércio
com as colônias arregimentado pelo princípio exclusivo da troca de produtos
manufaturados por matérias-primas, etc.
Esse tipo de economia exigia, evidentemente, uma planificação detalhada
da vida econômica do país e uma ininterrupta vigilância do Estado sobre as
atividades individuais”.[31]
Segundo
Gudin, com a adoção do planejamento, o governo passou a privilegiar aquilo que
os burocratas achavam importante, passando por cima das leis do mercado.
Aconteceu isso no Estado Novo, no ciclo desenvolvimentista marcado pela volta
de Getúlio ao poder (1951-1954), na aceleração das obras dirigidas pelo Estado
ou por ele estimuladas, ao ensejo do “plano de metas” de Juscelino Kubitscheck (1902-1976),
e nos rumos estatistas que inspiraram as iniciativas das “grandes obras” dos governos
militares, após 1964. Em todos esses estágios, a meta foi a introdução de uma
visão industrialista, com descuido para a modernização das atividades
agrícolas, que teriam permitido um desenvolvimento equilibrado e não
inflacionário. O regime militar, pelo menos, acordou para a importância da
modernização da produção agrícola, tentando resolver, em primeiro lugar, a
espinhosa questão fundiária, com a formulação do Estatuto da Terra em 1964.
O
que houve no Brasil foi um indevido crescimento do Estado, à sombra da ideia de
planejamento, socavando a liberdade de iniciativa e enterrando a produtividade
na defesa de interesses cartoriais. Gudin criticava essa feição estatizante. A
respeito frisava: “No Brasil, o Estado, sem qualquer programação socialista de
nacionalização, assenhoreou-se de muitos setores econômicos, que nas outras
democracias incumbem à iniciativa e direção privadas. Fica-se alarmado ao
verificar como se tem estendido o domínio do Estado sobre tantos setores da
economia brasileira. (...). O Estado tem, no Brasil, o controle da enorme
maioria da rede ferroviária e de quase toda a navegação mercante. Estradas de
ferro, navegação, portos, siderurgia, minério de ferro, petróleo, fábrica de
motores, são atividades, hoje, quase integralmente açambarcadas pelo Estado.
Essa ampliação da atividade do Estado não foi, como em outros países, o
resultado de um propósito, ou de um plano político. Foi, geralmente, o produto
da incapacidade política e administrativa do Estado, que acabou por tornar
inviável a direção privada das respectivas empresas e a força-las a entregar-se
ao Estado. A par dessas atividades, erradamente transferidas do campo da
economia privada para o Estado, é de alarmar a manutenção, em tempo de paz, dos
controles estabelecidos pelo Estado durante a guerra mundial”.[32]
Gudin
era intransigente na crítica ao planejamento. Castigava fortemente esse
conceito. Um exemplo, em que o economista grifou todas as palavras do texto: “A
mística da planificação é, portanto, uma derivada genética da experiência
fracassada e abandonada do ‘New Deal’ americano, das ditaduras italiana e alemã
que levaram o mundo à catástrofe, e dos planos quinquenais da Rússia, que
nenhuma aplicação podem ter a outros países”.[33]
5 – Capitalismo e democracia
no Brasil: perspectivas.
A
posição de Gudin em face do movimento de 64 era clara: a deposição de João Goulart
(1919-1976) pelos militares tinha plena justificação, pois a República Sindical
pretendida, irresponsavelmente, desaguaria na bolchevização do País.
Tratava-se, também, de reagir contra a corrupção generalizada e a quebra de
hierarquia nas Forças Armadas, estimulada pelos apelos populistas do
presidente.
Toda
essa movimentação contra as instituições republicanas estava escondida sob o
manto de uma série de “reformas” que visavam à instauração do “poder popular”.
A respeito dos motivos que inspiraram o pronunciamento militar, frisava Gudin:
“O que a revolução visava não era a reforma da Constituição, nem a reforma
agrária, nem a reforma bancária, nem a reforma eleitoral e ‘tutti quanti’. O
objetivo da revolução era enxotar do governo os maus brasileiros que estavam
destruindo a civilização cristã, a civilização ‘tout-court’, a cultura, o
caráter e a prosperidade econômica do País; era declarar guerra de morte à
corrupção, à demagogia, à bolchevização e ao primarismo. E tratar de restaurar
o que se havia demolido”.[34]
Gudin
saudou, com alegria, as primeiras medidas econômicas do novo governo, que
visavam a controlar a inflação e a pôr a casa em ordem, no terreno da contenção
do gasto público. No entanto, para o nosso pensador, a ação saneadora dos
governos militares, ao abrir a porta para o desenvolvimento capitalista
libertando-o dos entraves socialistas, não conseguiu chegar à finalidade
almejada, pela presença perniciosa, na gestão econômica, da prática do
planejamento, concretizada no correspondente ministério. Para Gudin, o
planejamento pode ser entendido em sentido lato ou em sentido estrito. Em
sentido lato, entende-se como programação de despesas e é válido. Em sentido
estrito, entende-se como meta definida politicamente e não é aceitável do
ângulo liberal.[35]
O
nosso autor, referindo-se à prática histórica do “planejamento” como rotineira
programação de despesas, ao longo da história republicana, frisava: “O
planejamento ou programação dos investimentos
governamentais é diferente; sempre foi feito na República Velha como na
segunda. As ‘plataformas’ do governo eram estabelecidas pela cúpula política,
especialmente pelo candidato (de eleição assegurada) à Presidência da
República, e os respectivos projetos passavam a ser estudados e organizados.
Esse ‘programa’ de governo obedecia às necessidades consideradas mais prementes
da Nação. O caso do governo Rodrigues Alves (de 1902 a 1906) e Afonso Pena (de
1906 a 1909) é típico a esse respeito. Mas esse ‘programa’ ou ‘plano’ ou
‘planejamento’, como se queira chamar, limitava-se ao setor governamental, sem
prejuízo das medidas de estímulo que o governo adotasse para a expansão das atividades privadas. O que se receia do
planejamento econômico global, como agora se pretende consolidar, é que ele se
torne um instrumento que ainda mais venha a agravar o açambarcamento da
economia do País pelo governo, diretamente ou através de autarquias, empresas
públicas ou empresas mistas”.[36]
A
importância crescente que o Ministério de Planejamento ganhou nos governos
militares, essa foi a causa fundamental que levou a que se perdesse a dinâmica
econômica encetada pelo movimento de 64. Comentando as reformas feitas em 1966
no terreno da política econômica, que colocavam o Ministério do Planejamento
como canal de intervenção política direta do Poder Executivo na Economia,
frisava o nosso autor: “(...) Não é aceitável que o ministro da Fazenda se
limite a dizer que ‘no seu setor’ a política certa está sendo executada,
lavando as mãos como Pilatos quanto aos demais (...). No projeto essa falta é
sugerida, em parte, pelo Ministério do Planejamento e Coordenação Econômica
(...). [O artigo 6º do decreto] confere ao ministro do Planejamento a
incumbência de ‘auxiliar diretamente o presidente da República’ na coordenação,
revisão e consideração dos programas setoriais. Mas isso é uma forma indireta,
imprecisa e um tanto sub-reptícia, inadmissível em matéria de capital
importância como é o da execução da política econômica do governo. (...) O
ministério do Planejamento deixa de ser um ‘ministério extraordinário’, como
até agora, para ser um ministério permanente encarregado de formular e
coordenar os planos e programas de ação governamental”.[37]
Para Gudin ficava claro que as leis do mercado estavam sendo substituídas pelas
prioridades fixadas, do ângulo político, pelo General-Presidente da República.
Quais
as perspectivas que, no sentir do velho economista liberal, restariam ao
Brasil, no decorrer do século que, com ele, se extinguia? Para o nosso autor
restaria, apenas, o programa de “voo de besouro” ou “de galinha”, com
decolagens mirabolantes e quedas crônicas, em decorrência dessa presença
tutelar do poder político sobre as leis do mercado que, de forma errada, fixava
metas parciais de desenvolvimento econômico no terreno da indústria,
sacrificando setores essenciais como o agrário.
Fiel
ao seu liberalismo econômico ortodoxo, escrevia Gudin: “Tanto quanto eu tenha
podido investigar, o homem comum só conseguiu uma melhoria persistente em seu
padrão de vida, nos países que adotaram as técnicas do mercado livre, como meio
de organização de sua atividade econômica (...). Não conheço um só exemplo de
uma sociedade, predominantemente coletivista ou de planejamento central, em que
o cidadão comum tenha conseguido uma melhoria substancial e persistente nas
suas condições de vida (...). A sedução do ‘Plano’ está em que ele trata de
investir e de gastar, o que é sumamente agradável, muito mais do que administrar
e consertar o que está errado. As energias, a capacidade e o prestígio do
governo não são ilimitados”.[38]
Conclusão.
Diante
do quadro atual de crise profunda em que se encontra a nossa economia, em
decorrência da “contabilidade criativa” petista que ensejou inúmeros rombos nas
contas públicas, além das práticas de corrupção que afetam a nossa
credibilidade perante o mundo e a saúde das empresas, as palavras de Gudin em
prol da transparência na gestão da economia e da transferência, para o setor
privado, da tarefa de geração da riqueza sem espera-lo tudo do Estado, soam
tremendamente atuais. O Estatismo não é culpa dos marcianos, mas de todos nós, inclusive
das expectativas dos próprios empresários de encontrar, nas benesses do poder,
refúgio tranquilo para os riscos que enfrentam. Falando da discussão que se
travou em torno à presença tutelar do Estado na economia, lembrava Gudin em
1979, no depoimento dado ao pesquisador da Fundação Getúlio Vargas: “Se você me
perguntar de onde brotou esse debate, qual foi o espírito que o inspirou, eu
lhe responderei sinteticamente: o protecionismo excessivo que a indústria
paulista exigia”.[39]
Como
lembrava com propriedade Roberto Campos (1917-2001), “Na grande controvérsia
brasileira, (Roberto) Simonsen triunfou no curto prazo. O Brasil embarcou num
processo de industrialização fechada, extremamente protecionista e ineficiente.
O resultado foram, como previra Gudin, inflação e crises cambiais crônicas. No
longo prazo, foi Gudin que tinha razão. O atual movimento mundial de abertura
econômica, integração de mercados e liberalização comercial na América Latina
teve nele um grande precursor”.[40]
Talvez
a melhor lembrança deixada por Eugênio Gudin foi a que burilou no espírito dos
seus alunos, ao longo das décadas dedicadas pelo mestre ao ensino dos
fundamentos da Economia, como espaço para o exercício da liberdade. Poderia
concluir com as palavras de Julian Chacel (1928): “Gudin como professor fez
escola. Escola que acredita na liberdade do homem, como condição essencial para
o processo de escolha e da decisão econômica. Que é reticente diante da
proposta híbrida de uma economia de mercado compatível com um planejamento
fortemente centralizado na ação do Estado. Nem todos, obviamente, seguem a sua
doutrina e dão ao fenômeno monetário o poder explicativo que Gudin lhe confere.
Mas todos, sem exceção, que conviveram e convivem com Gudin, dentro e fora de
uma sala de aula, retiraram e retiram do seu convívio uma grande lição. Lição
de vida”. [41]
Gudin,
enquanto pensador econômico e mestre,[42]
se definia a si mesmo como aquele que deita alicerces, repetindo as palavras de
João Neves da Fontoura (1887-1963), como aquele que “bate estacas”. Eis as
palavras do nosso autor a respeito: “Roberto Campos, economista provecto,
analista percuciente, escritor primoroso, tem uma especial vocação para o
pensamento categorizado. Dizia-me João Neves da Fontoura, de uma feita, que o
meu raciocínio se parecia com uma construção sobre estacas; uma estaca batida e
bem firmada, depois uma segunda, enfim um conjunto de sólidas estacas sobre as
quais – dizia o grande escritor – eu assentava o edifício do meu raciocínio e
das minhas conclusões. Roberto Campos não é, como eu, um batedor de estacas. É
um criador de categorias (...). Campos considera impossível conceber-se o
Universo senão sob as categorias da inteligência”.[43]
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NOTAS
[1] GUDIN, “Aspecto econômico do corporatismo brasileiro”, Almanak
Laemmer, Rio de Janeiro, 1938, pg. 7.
[2] A Escola
Politécnica foi criada em 1794, dentro do espírito do Iluminismo, como
órgão educacional do Estado para formar os engenheiros e técnicos de que este
carecia. O nome inicial da instituição era: École
Centrale des Travaux Publics e ficava sob o controle do Ministério da
Defesa. Napoleão Bonaparte (1769-1821), já coroado Imperador, a transformou, em
1805, em instituição de formação técnica e militar, dando-lhe o nome com que
passou à posteridade. Em 1970, o Estado francês reformou a Escola
(conservando-a no âmbito do Ministério da Defesa), a fim de abrigar, também,
estudantes civis, da França e do estrangeiro. Militares brasileiros frequentam
regularmente a Escola, nos dias de hoje, desenvolvendo, nela, estudos de
pós-graduação em engenharia e áreas afins, de interesse das Forças Armadas. A
reforma educacional efetivada por Napoleão compartilhava do espírito iluminista
que inspirava ao cristão novo Antônio Nunes Ribeiro Sanches (1699-1783), médico
e pedagogo português, que vivia em Paris. Ribeiro Sanches foi o inspirador para
a criação do Colégio dos Nobres de Lisboa, ao ensejo das orientações dadas por
ele ao Marquês de Pombal (1699-1782) e à Imperatriz da Rússia Anna Ivanovna
(1693-1740). Por influência de Ribeiro Sanches, foram criados, na Rússia e no
Brasil, respectivamente, o Colégio dos Nobres de São Petersburgo e o Colégio
dos Nobres de Lisboa. Sobre a estrutura deste, dom Rodrigo de Sousa Coutinho
(1745-1812), conde de Linhares, criou, no Rio de Janeiro, a Real Academia
Militar, em 1810, transformada, na Reforma Paranhos, em 1870, em Escola
Politécnica.
[3] Cf. KANT,
Immanuel. Antropología en sentido pragmático (2ª edição em espanhol,
tradução de José Gaos, Madrid: Alianza Editorial, 1991, pg. 290-291). Para o
pensador alemão, o novo momento econômico deveria dar ensejo a uma convivência
pacífica da humanidade, ao ensejo da construção da Paz Perpétua, uma criação
que Kant denominava de “Cosmopolita”, assim como a Industrialização.
[4]
GUDIN, Eugênio. “Capitalismo e sua evolução”. Conferência
realizada na Liga de Defesa Nacional. Almanak Laemmer, Rio de Janeiro,
1936, pg. 27.
[5]
GUDIN, Eugênio. Para um mundo melhor. Ensaios sobre
problemas de após-guerra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1943,pg. 99-100.
[7]
GUDIN, Eugênio. “Capitalismo e sua evolução”. Conferência realizada na Liga de
Defesa Nacional. Almanak Laemmer, Rio de Janeiro, 1936, pg. 27-28.
[8] Cf. ORTEGA Y GASSET, José. A rebelião
das massas. 2ª edição. (Tradução de Marylene Pinto Michael). São Paulo:
Martins Fontes, 2002.
[9]
GUDIN,
Eugênio. Para um mundo melhor. Ensaios sobre problemas de após-guerra. Ob. cit.,
pg. 100-101.
[16] HUME, David. Essays - Moral, Political and
Literary. (Introdução de E. F. Miller). Indianapolis: Liberty Fund, 1987, pg. 14-31. Cf. ROSANVALLON, Pierre. Le
moment Guizot. Paris: Gallimard,
1985, pg. 24-25.
[17]
SAY, Jean-Baptiste. Tratado de economia política. (Prefácio de G. Tapinos; tradução
de C. Barbosa Filho; tradução do prefácio de R. Valente Correia Guedes). São Paulo: Abril Cultural, 1983, pg. 45.
[18] Apud ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Ob.
Cit., pg. 24.
[19] Apud ROSANVALLON, Pierre. Le moment Guizot. Ob.
Cit., ibid.
[20] BORGES, Maria Angélica, Eugênio Gudin, Capitalismo e
Neoliberalismo, (Prefácio de Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo). São Paulo:
EDUC, 1996, pg. 52.
[22] BORGES,
Maria Angélica, Eugênio Gudin, Capitalismo e Neoliberalismo, ob.
cit., pg. 52.
[23]
GUDIN, Eugênio. “Capitalismo e sua evolução”. Conferência realizada na Liga de
Defesa Nacional. Almanak Laemmer, Rio de Janeiro, 1936. pg. 9.
[25]
GUDIN,
Eugênio. Aspecto econômico do corporatismo brasileiro, art. Cit., pg. 15.
[27] OREIRO,
José Luis. “Tributo a Eugênio Gudin”. Revista Desafios do Desenvolvimento.
Brasília, Março de 2009.
[28] KEYNES, John Maynard. The Economic Consequences of the
Peace. New York: Harcourt, Brace & Howe, 1920.
[29] A
delegação brasileira à Conferência de Bretton Woods foi integrada por: Arthur
de Souza Costa (1893-1957), ministro da Fazenda; Euvaldo Lodi (1896-1956),
líder empresarial, primeiro presidente da Confederação Nacional da Indústria e
fundador do SESI e do SENAI; Eugênio Gudin; Octávio Gouveia de Bulhões
(1906-1990) e Roberto Campos (1917-2001).
[30] Apud SCHWARTZMAN,
Simon (organizador). Tempos de Capanema. Rio de Janeiro:
Paz e Terra; São Paulo: EDUSP, 1984, pg. 224.
[31] GUDIN, Eugênio e SIMONSEN, Roberto. A
controvérsia do planejamento na economia brasileira. (Coletânea
da polêmica Simonsen versus Gudin, desencadeada com as primeiras propostas
formais de planejamento da economia brasileira, no final do Estado Novo.
Introdução de Carlos von Doellinger). Rio de Janeiro: IPEA / INPES, 1977, pg.
61.
[32]
GUDIN, Eugênio.
“Planejamento econômico”. Digesto Econômico. São Paulo, vol.
7, (77): pg. 30, abril de 1951.
[33] GUDIN,
Eugênio e SIMONSEN, Roberto. A controvérsia do planejamento na economia
brasileira, ob. cit., 1977, pg. 73.
[34]
GUDIN, Eugênio. “A
ilusão gráfica”. Digesto Econômico, São Paulo, 21 (178): p. 96-97, julho/agosto
1964.
[35]
GUDIN, Eugênio. “Ministério do planejamento ou Ministério da economia?” Digesto
Econômico, São Paulo, 22 (192): pg. 124, novembro/dezembro 1966.
[36]
GUDIN, Eugênio. “Ministério do planejamento ou Ministério da economia?” Digesto
Econômico, São Paulo, 22 (192): pg. 124, novembro/dezembro 1966.
[37]
GUDIN, Eugênio. “Ministério do planejamento ou Ministério da economia?” Digesto
Econômico, São Paulo, 22 (192): pg. 122-123, novembro/dezembro 1966.
[38]
GUDIN, Eugênio. “Ministério do planejamento ou
Ministério da economia?” Digesto Econômico, São Paulo, 22 (192):
pg. 125, novembro/dezembro 1966.
[39] GUDIN, Depoimento.
CPDOC/História Oral. Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 1979, pg. 145.
[40] CAMPOS,
Roberto. Lanterna na popa – Memórias, Rio de Janeiro, 1995: pg. 240.
[41] CHACEL,
J. Apud KAFKA, A. (Organizador). Gudin visto por seus contemporâneos.
Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1979, pg. 35.
[42] Eugênio
Gudin teve um papel de destaque como educador, na formação de várias gerações
no estudo e na pesquisa da Ciência Econômica no Brasil. Em 1938 participou, no
Rio de Janeiro, da fundação da Faculdade de Ciências Econômicas e
Administrativas, posteriormente incorporada à Universidade do Brasil, hoje
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Nessa oportunidade, formulou o primeiro
programa de ensino superior de Ciências Econômicas no país. Por esse motivo,
foi designado, em 1944, pelo ministro de Educação Gustavo Capanema (1900-1985),
para redigir o projeto de lei que institucionalizou o Curso de Economia no
Brasil. Pelos seus esforços em prol da divulgação dos cursos de Economia, é
considerado o patrono dos economistas brasileiros. Em 1948, Gudin e Octávio
Gouvêa de Bulhões (1906-1990) lideraram o grupo de economistas que criou a Revista
Brasileira de Economia. Em 1951, esse mesmo grupo criou o Instituto
Brasileiro de Economia e em 1952 assumiu o controle da revista Conjuntura
Econômica. Gudin lecionou Economia na Universidade do Brasil até 1957,
quando se aposentou. Posteriormente, foi Vice-Presidente da Fundação Getúlio
Vargas, entre 1960 e 1976.
[43] GUDIN,
Eugênio. Apud Maria Angélica BORGES, Gudin, Capitalismo e Neoliberalismo,
ob. cit., pg. 263.
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