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domingo, 31 de maio de 2020

Pensadores Portugueses - ANTÔNIO BRAZ TEIXEIRA (1936-)



I - BREVE SINOPSE BIO-BIBLIOGRÁFICA
António Braz Teixeira nasceu em Lisboa em 1936, cidade onde cursou a Faculdade de Direito e deu início à carreira como docente universitário, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa e, depois, nas Universidades Autônoma e Internacional. Paralelamente à vida acadêmica, Braz Teixeira tem ocupado importantes cargos na administração pública do seu país. Foi Secretário de Estado da presidência do Conselho de Ministros, em 1980, no governo de Francisco de Sá Carneiro (1934-1980), bem como Secretário de Estado da Cultura no governo seguinte. Desempenhou, também, os cargos de Diretor do Teatro Dona Maria II, em Lisboa, e de Vice-presidente do Conselho de Gerência da Radiotelevisão Portuguesa (RTP), tendo sido nomeado, em 1992, Presidente da Imprensa Nacional Casa da Moeda, onde desenvolveu amplo programa de edições de obras de pensadores portugueses; nesse mesmo cargo. criou uma coleção destinada a divulgar obras significativas da cultura brasileira.
A obra de Braz Teixeira é muito fecunda, no que tange à historiografia das idéias filosóficas e jurídicas em Portugal, sendo considerado como um dos mais respeitados historiadores portugueses das idéias, na atualidade. Foi iniciativa sua, quando Secretário do Estado da Cultura do governo português, a criação da revista Cultura Portuguesa. Também foi de sua lavra a fundação de Nomos - Revista Portuguesa de Filosofia do Direito e do Estado.
Braz Teixeira tem tido importante destaque no que tange à efetivação do diálogo intercultural entre Portugal e o Brasil. Foi um dos principais inspiradores para a criação, em 1991, em Lisboa, do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, que conta com a representação de pensadores portugueses e brasileiros. A partir dessa entidade, Braz Teixeira impulsionou, decididamente, a realização bianual, em Portugal, dos colóquios "Tobias Barreto", com a finalidade de estudar os principais pensadores brasileiros e as suas relações com a cultura portuguesa. Braz Teixeira pertence à Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa, à Sociedade Portuguesa de Filosofia, à Academia das Ciências de Lisboa, bem como à Academia Brasileira de Filosofia, como membro correspondente. Acha-se vinculado, de forma muito atuante, ao Instituto Brasileiro de Filosofia, fundado e presidido em São Paulo por Miguel Reale (1910-2006), tendo colaborado com numerosos ensaios filosóficos e no terreno da historiografia das idéias na Revista Brasileira de Filosofia, órgão do mencionado Instituto. Colabora regularmente em outras publicações periódicas, de Portugal e do Brasil, como a Revista Portuguesa de Filosofia, Espiral, Nova Renascença, Análise, Revista Jurídica, Didaskalia, Reflexão, Ciências Humanas, Presença Filosófica, etc.
A obra de António Braz Teixeira foi objeto de detalhado estudo, no Brasil, no 7º Encontro dos Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira, realizado por Leonardo Prota (1930-2016) no Centro de Estudos Filosóficos de Londrina, em setembro de 2001. Relacionam-se, a seguir, os trabalhos que foram apresentados nesse evento:
1 - Trajetória de António Braz Teixeira (comunicação de Antônio Paim, do Instituto Brasileiro de Filosofia e do Instituto de Humanidades). 2 - António Braz Teixeira e o movimento da Filosofia Portuguesa, (comunicação de Ricardo Vélez Rodríguez, da Universidade Federal de Juiz de Fora e do Instituto Brasileiro de Filosofia. Comentário de Constança Marcondes Cesar (1945-) da Universidade Católica de Campinas. 3  - Filosofia da literatura na obra de António Braz Teixeira (comunicação de Mariluze Ferreira de Andrade e Silva, da Universidade Federal de São João del Rei). 4 - Como António Braz Teixeira entende a denominada Filosofia Luso-Brasileira (comunicação de José Maurício de Carvalho, da Universidade Federal de São João del Rei). 5 - Presença da idéia de Deus na meditação de António Braz Teixeira e que lugar atribui à Teologia (comunicação de Tiago Adão Lara, da Universidade Federal de Juiz de Fora. Comentário a esta apresentação de Manuel Cândido, da Universidade de Lisboa). 6 -  António Braz Teixeira, filósofo da saudade (comunicação de Anna Maria Moog Rodrigues, da Universidade Gama Filho). 7 - António Braz Teixeira, uma filosofia do espírito (comunicação de Paulo Alexandre Esteves Borges, da Universidade de Lisboa). 8 - O pensamento jus-filosófico de António Braz Teixeira (comunicação de Aquiles Côrtes Guimarães, da Universidade Federal do Rio de Janeiro). 9 - Posicionamento crítico de António Braz Teixeira diante das principais teorias do direito (comunicação de Selvino Antônio Malfatti, do Centro Universitário Franciscano de Santa Maria).  10 -  O problema da justiça em António Braz Teixeira  (comunicação de Ubiratan Borges de Macedo, da Universidade Gama Filho). 11 - António Braz Teixeira e o pensamento krausista em Portugal (comunicação de José Esteves Pereira, da Universidade Nova de Lisboa e do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira). 12 - Braz Teixeira por ele mesmo (António Braz Teixeira, do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira).
No boletim do Centro de Estudos Filosóficos de Londrina intitulado 7º Encontro Nacional de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira, Leonardo Prota caracteriza, da seguinte forma,  a obra do nosso pensador: "A trajetória filosófica de António Braz Teixeira pode ser resumida como se segue. Sendo docente de disciplinas jurídicas (Direito Fiscal e Direito Financeiro, inicialmente, passando depois para Filosofia do Direito e do Estado) e, ao mesmo tempo, pertencendo ao chamado movimento da Filosofia Portuguesa, acabou voltando-se para o  que ele mesmo denomina de pensamento filosófico-jurídico português. Mais tarde, por suas ligações com o professor Miguel Reale e, também, devido à presença no Brasil, desde a segunda metade dos anos setenta a meados da década seguinte, de Eduardo Soveral (1927-2003), Francisco da Gama Caeiro (1928-1994) e Affonso Botelho (1919-1996) - pessoas de seu círculo de relações -,  interessou-se pelo que tem sido denominado de filosofia luso-brasileira. Assim, sua volumosa obra abrange tanto a filosofia do direito como o estudo das filosofias portuguesa e brasileira. Acha-se caracterizada em Logos - Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia, editorial Verbo, vol. V, 1992), num verbete do professor Paulo Borges (Da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa)" [Prota,  2001: 2].
II - O MOVIMENTO DA FILOSOFIA PORTUGUESA SEGUNDO BRAZ TEIXEIRA.
Mais do que tratar, de forma exaustiva, acerca do lugar que António Braz Teixeira ocupa no movimento da Filosofia Portuguesa, farei, na minha exposição, um balanço acerca de como ele entende a meditação filosófica, se louvando de conceitos desenvolvidos no seio da mencionada corrente. A fim de ilustrar o tema central da minha exposição, desenvolverei quatro itens: 1) Conceito de filosofia e de filosofias nacionais; 2) Caráter mediador da antropologia filosófica; 3) A experiência religiosa e a corrente da Filosofia Portuguesa e 4) A experiência jurídica e a filosofia do direito. Concluirei destacando os aspectos mais marcantes do legado filosófico do nosso pensador.
1 - Conceito de Filosofia e de Filosofias Nacionais
A filosofia não é, para Braz Teixeira, um discurso puramente abstrato, sem nenhuma relação com o homem concreto. Para ele, o existencialismo e a fenomenologia deixaram claro que a meditação filosófica abarca o homem na sua concreção histórica. A filosofia é, assim, lógos que surge no seio de uma nação, fala uma linguagem, debruça-se sobre problemas específicos que desvelam o ser humano. Essa contribuição dada pela filosofia contemporânea abriu as portas para que o homem português, a quem se tinha negado, num contexto racionalista, a vocação de pensar, descobrisse a sua identidade filosófica, traduzindo o viver numa meditação projetada sobre a vida.
A respeito, o nosso autor afirmava, já em 1959, numa das suas primeiras obras: "Cabe ao pensamento desenvolvido sob o signo existencial o mérito de ter afirmado e demonstrado, contra as tendências excessivamente racionalistas de certo falso universalismo, pretensamente utópico e ucrónico, a idéia da não existência de uma Filosofia universal, desinserida de qualquer complexo espácio-temporal, mas antes da existência de Filosofias nacionais, já que cada povo, enquanto especial concepção do mundo e da vida, é já Filosofia viva, expressão do seu particular modo de ser nacional, a que os pensadores, intérpretes da situação histórico-cultural concreta do seu povo e do seu tempo, dão superior forma racional. O português, a quem sucessivas gerações, ligadas a um conceito excessivamente racionalista, abstracto e formal de Filosofia, tinham negado um pensamento nacional, por congênita incapacidade filosófica, começa a ser reabilitado, agora que a Filosofia procura concentrar novamente sobre o real e a vida todas as suas atenções, valorizando-os em todos os seus aspectos e, abandonando todas as pretensões de explicação sistemática e total, por compreender, como Gustav Radbruch (1878-1949), que o mundo não é divisível pela razão sem deixar resto, está interessada, acima de tudo, pelo homem de carne e osso, pela vida, pelo concreto, pela existência humana, pelo estar-no-mundo, pretendendo atingir, não  a pseudo-lógica das idéias claras, mas a lógica verdadeira, a da estrutura do vivente e da geometria íntima da natureza, de que fala Jacques Maritain (1882-1973). A esta luz ressalta, com notável nitidez, o caráter eminentemente existencial da nossa Filosofia, dispersa na nossa poesia, na nossa mística, na nossa teologia, na nossa literatura novelística e de viagens e nas obras de intenção propriamente filosófica" [Teixeira, 1959: 9-10].
No epígrafe colocado no início da obra de que foi extraída a anterior citação, A filosofia jurídica portuguesa actual, Braz Teixeira cita as seguintes palavras do pensador espanhol Angel Ganivet (1865-1898): "La filosofía más importante de cada nación es la suya propia, aunque sea muy inferior a las imitaciones de extrañas filosofías" [Teixeira, 1959: 9].
Mas se a Filosofia caracteriza-se pela sua inserção na história, no entanto, também devemos reconhecer o seu compromisso com a verdade. O nosso pensador faz suas as palavras de José Marinho (1904-1975), quando afirma: “A Filosofia é desenvolvimento de uma visão autêntica do ser e da verdade, numa situação concreta do homem e do pensar do homem, no espaço e no tempo" [apud Teixeira, 2000a: 32]. Em relação ao compromisso com a verdade que caracteriza ao filosofar, escreve Braz Teixeira: "A Filosofia não é, como os outros tipos de saber, um corpo de doutrina, um acervo de conhecimentos ou um conjunto articulado de soluções ou de respostas, mas um processo, uma actividade permanente de interrogação sobre o próprio saber, seu valor e seus fundamentos. O que constitui a sua essência é a busca constante e sempre recomeçada da verdade e não a sua posse. Não é um saber feito, que possa transmitir-se e se vá adicionando, mas um conjunto permanente de interrogações, nunca definitivamente respondidas, em que cada resposta que o filosofar a si próprio se dá é sempre uma resposta provisória, que se converte em nova interrogação. Com efeito, enquanto a solução resolve, dissolve, elimina ou suprime o problema, a resposta filosófica não é solucionante, deixando irresoluto o problema e viva a interrogação. Daí que, diversamente do que acontece com os restantes tipos de saber humano, a Filosofia seja, essencial e radicalmente, interrogativa, problemática e não solucionante" [Teixeira, 2000a: 15-16].
A filosofia, segundo Braz Teixeira, possui esse caráter de irresolubilidade, em virtude da sua dimensão aporética, que decorre da inadequação essencial entre o ser e o pensar. Justamente porque a realidade transcende ao pensar, aquela constitui-se, para o homem, em algo de misterioso, inesgotável pelo Lógos. Em relação a esse ponto, frisa o nosso pensador: "A Filosofia é, assim, fundamentalmente, aporética, já que a sua actividade interrogativa do real e do próprio pensamento a conduz à identificação e ao tratamento das aporias, à verificação de que o pensamento e a realidade se não identificam e de que nem tudo é pensável ou abarcável pela razão humana. É precisamente daqui que surge a noção de incognoscível ou de mistério, não como o que contraria a razão ou o pensamento humano, mas como o que o excede, ultrapassando a sua capacidade ou possibilidade de conhecimento ou compreensão. Trata-se, pois, do domínio, não do irracional por defeito, por contrário à razão, mas do irracional por excesso (Leonardo Coimbra, 1883-1936), do que, ultrapassando a razão, só é acessível por via mística, por inspiração angélica ou por revelação divina" [Teixeira, 2000a: 27].
O caráter aporético do filosofar não invalida, antes pressupõe a capacidade da razão de apreender o real numa primeira visão intuitiva, denominada por José Marinho de visão unívoca. Firma-se, a partir desta, a dimensão teórica da filosofia. Assim caracteriza o nosso autor essa dimensão: "Sendo a Filosofia pensamento reflexivo ou especulativo, e sendo este actividade própria da razão, que se exerce, discursivamente, através do raciocínio, não pode esquecer-se, no entanto, que não só a razão humana se não garante a si própria enquanto órgão de conhecimento ou de pensamento, pressupondo sempre a sua actividade um prévio acto de crença, por um lado na racionalidade do real e, por outro, na capacidade da razão para se apreender a si e para compreender a realidade, como ainda, que o raciocínio ou a actividade cognoscente da razão tem sempre como condição ou pressuposto uma intuição ou uma primordial visão, assim como se nutre do outro da razão, seja sensação, imaginação ou crença e das múltiplas formas de experiência, sendo, nessa medida, razão experimental, razão aberta ao outro de si, ao não racional, tantas vezes erradamente confundido ou identificado com o irracional. Assim, em sua radicalidade ou como saber radical, a Filosofia é sempre teoria, no seu originário e tradicional sentido, isto é, intuição intelectual, contemplação de idéias,  visão espiritual do invisível ou teoria do ser e da verdade. De igual modo, a compreensão da realidade ou do ser e da sua verdade que todo o pensamento filosófico procura alcançar depende sempre de uma prévia apreensão intuitiva, sensível ou trans-sensível, daquilo a que José Marinho chamou visão unívoca" [Teixeira, 2000a: 27-28].
O caráter situado do filosofar, que o nosso autor já tinha apontado na sua obra de 1959, A filosofia jurídica portuguesa actual, é destacado de forma mais completa num dos seus últimos escritos, na segunda edição de Sentido e valor do direito. Repitamos as suas palavras, que constituem decantada expressão do pensamento de Braz Teixeira, nos últimos anos: "Actividade humana, a Filosofia é, como o próprio homem, ser do tempo, radicada e dinâmica, interrogação permanente a partir de uma situação concreta, de uma circunstância definida, está indissoluvelmente ligada a uma língua, a uma tradição, é um movimento espiritual num espaço-tempo que não é homogéneo e uniforme mas múltiplo e diverso, como o ser individual de cada filósofo. Daí que, sendo embora una na busca da verdade, a Filosofia seja múltipla e diversa na variedade dos seus caminhos, pois, se são imutáveis os enigmas com que se defronta, é sempre outro o movimento do pensamento que pensa e interroga, pensando-se e interrogando-se também a si. Por outro lado, se a Filosofia é actividade ou processo da razão que se interroga a partir de uma intuição ou visão a que sempre regressa ou a que sempre se refere, está também sempre condicionada pela língua em que o filósofo pensa, já que não há pensamento sem palavra nem linguagem, ainda que este não se pretenda comunicar pela fala ou pela escrita. (...). Deste modo, não pode haver verdadeiro pensamento filosófico, enquanto discurso racional, sem palavras nem linguagem" [Teixeira, 2000a: 30-31].
Na trilha desta reflexão, a filosofia reveste-se, no sentir de Braz Teixeira, das caraterísticas culturais da língua em que está expressa, ganhando, assim, o colorido nacional em que se encontra situada. Todo discurso filosófico refere-se, na modernidade, a esse contexto, fora do qual sairia da história. A respeito, o nosso autor escreve: "Ora, as palavras de cada língua contêm virtualidades especulativas próprias, que não só permitem, por vezes, dilucidar ou esclarecer melhor certos problemas a que outras só dificilmente acedem (como acontece, por exemplo, com a distinção entre ser e estar ou ser e ente que o português, o castelhano e o italiano fazem, mas que não existem em francês ou em inglês), ou penetrar mais fundamente em certos sentimentos mais complexos ou mais intensamente vividos ou experimentados (por exemplo, a saudade luso-galaica, a ilusión castelhana, a dor romena, a Sehnsucht germânica ou a morriña galega). Assim, se o pensamento filosófico autêntico é sempre universal, porque demanda o uno essencial do ser e da verdade, nas suas formas e nas suas expressões é, também, sempre, individual e nacional, dado o carácter radicado e situado de todo o pensar e agir humanos" [Teixeira, 2000a: 31-32].
Posto que expressa em língua nacional, a filosofia reveste-se, em cada uma delas, de gêneros literários diversos. O pensador português lembra, a respeito, que Julián Marías (1914-2005)  na obra intitulada: Ensayos de teoría [Madrid, 1954, apud Teixeira, 2000a: 33] identificou catorze formas literárias válidas do discurso filosófico ocidental. Isso testemunha a riqueza da meditação filosófica, que é suscetível de ser vertida em múltiplas formas de expressão, dependendo da personalidade e dos pendores literários de cada pensador. Em relação a essa variedade, frisa Braz Teixeira: "Diferentemente do que, muitas vezes, se diz ou do que uma análise superficial poderia levar a concluir, a Filosofia não só não constitui um género literário, como não tem uma forma própria e única de exprimir o seu discurso, quando adopta a forma escrita para comunicar o pensamento pensado pelos filósofos. Na verdade, basta atentar, com mediana atenção, na história da Filosofia ocidental, para concluir, de imediato, que esta tanto se tem expressado através do poema ou da forma poética (Parménides, Lucrécio, Nietzsche, Teixeira de Pascoaes), como do diálogo, de estrutura teatral ou não (Platão, Cícero, Leão Hebreu, Berkeley, Leibniz, Leonardo Coimbra), do aforismo (Heráclito, Pascal, José Marinho), como da máxima ou reflexão, geralmente de índole ou intenção moral (Epicteto, Marco Aurélio, La Rochefoucauld, Matias Aires), da autobiografia (Santo Agostinho, Dom Duarte, Descartes), como do ensaio (Bacon, Locke, Maine de Biran, António Sérgio), do tratado (Aristóteles, Espinosa, Hume, Wittgenstein) como do comentário (Averróis, São Tomás de Aquino, Pedro da Fonseca), da suma (São Tomás, Pedro Hispano, Ockam), como do sistema (Hegel, Comte, Cunha Seixas, Leonardo Coimbra)" [Teixeira, 2000a: 32-33].
2 - Caráter mediador da Antropologia Filosófica
A antropologia filosófica, no sentir do nosso pensador, ganhou um lugar de destaque na hodierna meditação ocidental. Isso em decorrência da evolução das próprias ciências, que conseguiram se ver livres do estreito cientificismo do século XIX, bem como do fato de a meditação filosófica ter superado os limites do racionalismo, por força da crítica vivificante ensejada pela fenomenologia, a filosofia dos valores e o existencialismo. "Para esta nova situação especulativa contribuiu, em não pequena medida  - frisa Braz Teixeira - a crise ou a derrocada do sistema de idéias, valores e crenças filosóficas e científicas que havia constituído o substrato cultural em que assentou a vida espiritual da segunda metade do século XIX. Desencadeada pelos novos caminhos da microfísica, da biologia e da psicologia e pelas correntes de pensamento que, em oposição ao positivismo, ao evolucionismo e ao monismo materialista que àqueles, em geral, andou associado, essa crise veio não só demonstrar as insuficiências e as contradições dos modelos epistemológicos fundados nas ciências do mundo sensível e do minorado conceito de razão de que partiam ou que nelas estava pressuposto, como chamar a atenção para a especificidade e a irreductibilidade do mundo da vida e da psique à matéria e ao mundo inorgânico, para a autônoma e superior realidade do espírito, para o valor gnósico da intuição, da imaginação e do sentimento, para as fecundas e essenciais relações entre a razão e o impropriamente chamado irracional, para o indivíduo singular e concreto, o homem de carne e osso, de que falava Unamuno (1864-1936)" [Teixeira, 1993: 79].
A antropologia centro-europeia, no entanto, percorreu caminho diferente do trilhado pela meditação antropológica em Portugal. Naqueles países ficou restrita à análise fenomenológica e terminou dando ensejo à formulação de ontologias regionais. Em Portugal, no entanto, graças especialmente à corrente da Filosofia Portuguesa, a antropologia filosófica abriu-se a uma visão metafísica projetada sobre um pano de fundo cósmico e escatológico, de que a meditação de José Marinho, Álvaro Ribeiro (1905-1991), António Quadros (1923-1993), Afonso Botelho (1919-1998) e Leonardo Coimbra são exemplos vivos.
Fazendo uma síntese do espírito que anima hoje à antropologia filosófica da corrente em apreço, escreve Braz Teixeira: "No que à filosofia portuguesa respeita, a sua indagação no domínio da antropologia filosófica ou metafísica tem dado preferência aos problemas da origem, liberdade e destino do homem, do mal, da morte e da imortalidade, a uma teoria dos sentimentos que não se detém na sua fenomenologia ou na sua dimensão psicológica ou meramente afectiva, mas atende às suas conexões cósmicas e ao seu significado unitivo e resgatante, e em que ocupam lugar primordial o amor e a saudade, a alegria e a dor e que a graça divina coroa e enleva, às questões relativas à formação e à educação do homem, não descurando nem esquecendo o carácter sexuado do ser humano. Deste modo, se a antropologia filosófica contemporânea tende, noutros países e noutros povos do nosso continente, a circunscrever-se a uma dimensão humanista e fechar-se numa finitude temporal e mundana, a filosofia portuguesa tem revelado uma dupla abertura e um duplo horizonte, simultaneamente cósmico e escatológico, pois sabe, como o lembrou Leonardo Coimbra, que o homem é um ser criado em natureza para se fazer em liberdade, pelo que não é uma inutilidade num mundo feito, mas o obreiro de um mundo a fazer" [Teixeira, 1993: 81].
A filosofia, para Braz Teixeira, está situada historicamente, em virtude do caráter temporal do homem. A dimensão ôntica deste condiciona a sua meditação sobre o real. Ora, como o ser humano pensa fundamentalmente em base aos problemas com que se defronta, a meditação filosófica está condicionada por essa perspectiva problemática. A Antropologia Filosófica é, destarte, a perspectiva mediadora entre a teoria, a prática e a dimensão estética, estabelecendo, de outro lado, o nexo entre a natureza e o espírito. A respeito, escreve o pensador português: "Quem interroga ou defronta os problemas é, porém, sempre o homem, que é a si mesmo e por si mesmo que interroga, pelo que a questão antropológica, a pergunta sobre o que é o homem, qual a sua origem e destino, sobre o valor e sentido da sua vida e do seu agir, se lhe impõe como tão essencial e radical, como a interrogação sobre o ser em que o próprio homem está imerso e de que participa. Sendo essencialmente metafísica, a Antropologia Filosófica é mediadora entre a razão teórica, a razão prática e a razão estética, estabelece a necessária articulação entre o mundo da natureza e o mundo do espírito, liga-se, por um lado, à Teodicéia ou à Ontoteologia e à Cosmologia e, por outro, à Ética, à Filosofia da Religião, à Filosofia da História, à Filosofia da Arte e à Filosofia do Direito, enquanto interrogação filosófica sobre a essência, o sentido e o valor do existir e do agir do homem no mundo e das suas criações espirituais" [Teixeira, 2000a: 30].
Decorrente do valor especial conferido à Antropologia Filosófica, a experiência constitui a porta através da qual podemos penetrar no interior da razão humana. Haverá tantas áreas em que possamos nós, humanos, plasmar a nossa concepção de mundo, quantas forem as possibilidades da experiência do mundo. O nosso pensador considera que a revalorização do conceito de experiência constitui um dos grandes achados do pensamento contemporâneo. Ela é, basicamente, dos seguintes tipos: estética, ética, religiosa, científica e jurídica. Em relação a este ponto, escreve Braz Teixeira no seu belo ensaio intitulado Experiência jurídica e ontologia do direito [Teixeira, 1987: 24]: "O conceito de experiência, limitado pela filosofia moderna, em especial a partir dos séculos XVII e XVIII ao domínio sensorial e empírico, ao campo das chamadas ciências naturais ou experimentais, viu-se restituído, no nosso tempo, à sua dimensão própria, pelo reconhecimento da existência de outras formas igualmente válidas e legítimas de experiência que o pensamento medieval conhecera e adequadamente valorizara, como a experiência estética, a experiência ética e a experiência religiosa, tal como a experiência científica, modos e expressões da actividade una e indivisível do espírito. Nesta linha de pensamento, natural seria que viesse também a reconhecer-se a existência e a especificidade da experiência jurídica, entendida como conhecimento de algo dado no mundo jurídico, de um objecto que se apresenta à nossa mente sem qualquer intervenção dela na sua constituição ou interpretação".
3 - A experiência religiosa e a corrente da Filosofia Portuguesa
O nosso autor dedica especial atenção ao estudo de dois tipos de experiência, entre os mencionados: a religiosa e a jurídica. Quanto à primeira, Braz Teixeira considera que relaciona-se com a vivência do mistério, da apreensão intuitiva do fato de que há mais mundos do que este apreendido pela experiência sensível. A religiosa constitui a experiência fundamental, já que ela permite superar o estreito racionalismo, aderindo a uma concepção elevada de razão, aberta à realidade na sua mais numinosa plenitude.
Dessa experiência, por outro lado, parte toda a concepção da denominada Filosofia Portuguesa. Eis a forma em que o pensador explicita o seu ponto de vista a respeito: "Importa, antes de mais, partir de um conceito de razão que exceda os limites de um racionalismo fechado e formalista, apoiado unicamente nas ciências do mundo sensível e numa noção redutoramente empírica de experiência, e se abra ao essencial e irrecusável valor e significado gnósico da sensação, da intuição, do sentimento, da imaginação e da crença, reconheça que há mais mundos para além daquele que os sensos nos revelam e admita que a experiência humana assume múltiplas formas, desde aquela em que se fundam as ciências, até à experiência estética, que as figuras e formas simbólicas propiciam, à experiência ética, que transcende a lei, norma e mandamento, para encontrar nos valores e nos princípios o seu centro ou o seu objecto, e à experiência religiosa, que, partindo do numinoso dos mitos, ascende à sublimidade do sagrado e do divino ou se eleva à união mística. Necessário é, também, atender a que a mais autêntica origem da interrogação filosófica se não encontra no espanto ou na admiração perante a multiplicidade dos seres e a imensidão cósmica, pois que ambos são ainda do domínio meramente psicológico e limitadamente humano, mas sim no plano ontológico mais radical do enigma ou do mistério, no qual e pelo qual todo o ser e toda a verdade, em instantânea visão, simultaneamente, se ocultam e patenteiam ao espírito do homem" [Teixeira, 1993: 11]. De outro lado, convém destacar que a preocupação com o problema da dor insere-se no contexto teodiceico da meditação portuguesa contemporânea [Cf. Teixeira, 2000b: 7-15].
A partir do conhecimento do enigma ou do mistério forma-se em nós a idéia de Deus, que passa a se constituir no núcleo que dá sentido a tudo quanto existe e deita os alicerces do filosofar. A respeito escreve Braz Teixeira: "A idéia de Deus é o primeiro princípio e fonte de todo o princípio que confere sentido e valor a tudo quanto existe e possibilita o próprio filosofar, como amoroso e interminável esforço pela sabedoria que é, em si, o mesmo espírito divino que, sendo a eterna e absoluta plenitude, só por analogia pode ser pensado pela razão humana. Singularidade do pensamento português tem sido o descobrir e revelar a profunda relação que une Deus, o mal e a saudade e, ao mesmo tempo, mostrar que foram outorgados à liberdade humana, assistida pela graça divina, os meios para minorar ou vencer o mal e contribuir para restaurar aquela original e fraterna harmonia entre todos os seres, para que está ordenada toda a criação" [Teixeira, 1993: 12].
A busca incondicional do absoluto constitui, no sentir de Braz Teixeira, não apenas um tema de indagação teórica mas é, como já foi salientado, a causa originante do filosofar. Diríamos mais: que a problemática teodiceica é o leitmotiv das preocupações existenciais do homem comum, bem como o ponto de partida para a indagação filosófica. Isso constitui marca caraterística da cultura em Portugal. "No português, escreve Braz Teixeira no seu ensaio intitulado: O problema do mal na filosofia portuguesa contemporânea, a ânsia desmedida de absoluto, causa tão frequente de seus sucessos e fracassos, a apetência de regresso a uma perdida harmonia e perfeição, de que emerge a saudade, como já D. Francisco Manuel (1608-1666) o vira, choca-se dramaticamente com a realidade brutal e agressiva do mal nos homens e no mundo. A possibilidade de existência de Deus, suma Bondade e sumo Bem, e a realidade insofismável do mal, eis o que, desde o plano do mais desatento viver quotidiano até ao da mais séria e responsável especulação, é para ele causa de inquietação e perplexidade. De tal atitude e problema dá sinal o seu pensamento, com tão funda ressonância, desde a heresia priscilianista aos nossos dias, que por eles acentuadamente se singulariza no quadro do filosofar europeu, como tem já sido notado por alguns dos seus mais esclarecidos intérpretes" [Teixeira, 1964: 16].
O nosso pensador faz referência específica, neste ponto, a Álvaro Ribeiro e José Marinho. Embora estes pensadores, bem como outros importantes representantes da corrente da Filosofia Portuguesa (como Leonardo Coimbra, Sant'Anna Dionísio, Antônio Quadros e Afonso Botelho) tenham salientado o caráter religioso-metafísico do povo, inspirador da meditação filosófica em Portugal, estudiosos de outras latitudes, em épocas passadas, salientaram também essas caraterísticas, referindo-as ao homem peninsular. Madame de Staël (1766-1817), por exemplo, na sua obra Dix années d'exil tinha dito acerca da Rússia que "os laços da nação consistem na religião e no patriotismo" [Staël, 1996: 304], tendo encontrado profundas semelhanças entre esse povo e os ibéricos (em decorrência do valor atribuído em ambas as culturas ao fator religioso). A escritora francesa chegava ao ponto de dizer que os russos eram os "castelhanos do norte" [Staël, 1996: 258].
A primeira conseqüência da adoção, por parte da Filosofia Portuguesa, do mencionado ponto de partida teológico, é a crítica à razão que pretendeu, sob a inspiração do racionalismo iluminista, se constituir em juíza e senhora da verdade. A propósito, frisa Braz Teixeira: "Como, porém, o problema de Deus é indissociável do problema do Logos, a crítica filosófica à idéia tradicional da divindade é acompanhada por uma paralela dissolução do conceito iluminista de uma razão clara e segura de si, que recusa todo o negativo e todo o irracional, primeiro através da interrogação sobre os limites da própria razão e sobre o seu saber de si, e, depois, pela admissão progressiva do irracional que recusara, tanto do irracional entitativo, como do irracional cognitivo, e, por fim, pela sua abertura a outras formas gnósicas, como a intuição, a imaginação ou a crença" [Teixeira, 1993: 16].
Em decorrência desta avaliação crítica da razão, as questões antropológicas deságuam em questões teológicas, sendo o problema do mal a indagação central da antropologia na Filosofia Portuguesa. Em relação a esse ponto, escreve o nosso pensador, sintetizando a evolução da meditação filosófica em Portugal nos séculos XIX e XX: "No pensamento português contemporâneo, a análise filosófica da idéia de Deus foi acompanhada por uma paralela revisão do conceito de uma razão clara e segura de si, que repele todo o irracional, seja mal seja erro  - como é ainda a de Amorim Viana (1822-1901) -, primeiro, pela interrogação sobre os limites da mesma razão - Antero de Quental (1842-1891) - e, depois, pela admissão do próprio irracional, quer como racional entitativo - com Sampaio Bruno (1857-1915) e a admissão do mal como o positivo e o plenamente real -, quer com a consideração do erro como irracional cognitivo - Leonardo Coimbra -, quer,  por fim, com o fazer depender todo o pensamento do enigma e com o considerar recíproca e complementarmente implicadas as noções de visão unívoca e de cisão -José Marinho -. Este processo de paralelo desenvolvimento do debate filosófico sobre a idéia de Deus e o conceito de razão não poderia, naturalmente, deixar de projectar-se também sobre o modo de defrontar a grande aporia que o mal suscita: como conciliar, no plano especulativo, a sua existência com a omnipotência e a bondade divinas? Daí que, no pensamento português dos séculos XIX e XX, se assista a uma radical alteração na atitude filosófica perante o mal, que depois de haver sido longamente pensado como problema, passou a ser visto como enigma que leva o homem a interrogar-se sobre si próprio e sobre a cisão em que o mal se dá ou manifesta, quando não já como mistério. Ou seja, de algo exclusivamente humano, que poderia ser resolvido ou superado pelo pensamento ou pela razão do homem, negando a sua essencial realidade e convertendo-o em ilusória aparência ou privação, o mal ascendeu ao reino divino e converteu-se em algo inegavelmente real que, no entanto, por exceder a capacidade da razão humana, é incognoscível, tornando-se, por isso,  inviável toda a ontologia do mal e limitando-se à sua fenomenologia, ao conhecimento dos modos como se manifesta na vida e no agir dos homens o saber que sobre ele é possível" [Teixeira, 1993: 62].
No contexto da crítica à tendência racionalista atrás apontada, a meditação portuguesa, no sentir de Braz Teixeira, passa a se polarizar ao redor das seguintes questões: a idéia de Deus, o problema do mal, o conceito de razão e as relações entre razão e fé, filosofia e religião e filosofia e ciência [cf. Teixeira, 1971: 355-373]. Se a meditação filosófica se polarizou, em Portugal, em torno às questões teológicas, isso não significa, contudo, que esteja fechada a porta para um diálogo criativo com a meditação brasileira, claramente formulada numa perspectiva fenomenológica e crítica. Valha aqui o alerta de tolerância e abertura intelectual dado pelo nosso pensador no prefácio à sua obra O pensamento filosófico de Gonçalves de Magalhães [Teixeira, 1994: 15]: "Cabe ter presente (...) que a historiografia filosófica, no caso vertente, a do pensamento luso-brasileiro, só terá a ganhar com os contributos, por modestos que sejam, dos diversos pontos de vista, já que não se trata aqui de estabelecer ou definir qualquer ortodoxia interpretativa ou uma visão dogmática, monolítica e definitiva, mas sim daquele diálogo especulativo sempre em aberto e sempre sujeito a revisão em que consiste toda a actividade hermenêutica".
4 - A experiência jurídica e a filosofia do direito.
A experiência jurídica constitui o outro tipo de experiência que, junto com a religiosa, merece especial atenção do nosso autor. Diferentemente desta, que se abre à escatologia e à transcendência, como acabamos de ver, a experiência jurídica projeta-se sobre o mundo e sobre os conflitos entre as pessoas. É definida por Braz Teixeira, no seu ensaio intitulado: Experiência jurídica e ontologia do direito [Teixeira, 1987: 27], no qual o pensador português sintetiza os aspectos essenciais da sua filosofia do direito, que expôs de maneira sistemática na obra, já citada, Sentido e valor do direito. Introdução à filosofia jurídica [cf. Teixeira, 2000a]. Eis a definição de experiência jurídica, no primeiro dos escritos mencionados: "A experiência jurídica aparece-nos constituída por um conjunto, complexo mas unitário, de dados, de que se destaca, em primeiro lugar, a sua estrutura antinómica, a natureza ou dimensão conflitual das relações jurídicas, o envolver uma questão prática, um problema referente à conduta, em que existe um conflito entre diversos sujeitos, que carece de ser resolvido ou composto, de ser satisfeito, de modo a obter a paz social. Este tipo particular de experiência (...) revela-se constituído por dados que se referem não só a pessoas e a realidades da vida ou coisas do mundo, como também a valorações, a necessidades e pretensões, envolvendo questões concretas que é necessário resolver ou decidir. É por isso que constituem dados imediatos da experiência jurídica, por um lado, os conflitos de interesses e, por outro, o critério de valor - o sentido do justo e do injusto - a que se recorre para a respectiva solução. E também aqui a sua estrutura antinómica se revela, agora no confronto entre o sentimendo de justiça, que fornece o critério de valor em que se baseia a solução dos conflitos e a necessidade de fundamentar racionalmente essa mesma solução, de encontrar razões ou argumentos que a justifiquem" [Teixeira, 1987: 27-28].
O nosso autor destaca o caráter cultural da realidade jurídica, criação humana referida a valores, princípios ou ideais, inserida no contexto da historicidade em que se desenvolve a vida do homem. Eis a maneira em que Braz Teixeira sintetiza esse aspecto do direito, de forma muito próxima, aliás, a como Miguel Reale (1910-2006) interpreta essa realidade, no contexto do seu conhecido culturalismo, que constitui o marco da teoria tridimensional do direito. "Como realidade cultural, - frisa Braz Teixeira - o Direito não pertence ao mundo físico nem biológico, em que impera a causalidade e o determinismo, nem ao domínio psíquico, nem sequer ao dos seres ideais, em que se situam as realidades lógicas e matemáticas, pois enquanto estas são intemporais e abstractas, o direito é concreto, variável no tempo e no espaço e, como realidade humana, é profundamente marcado pela temporalidade e pela historicidade essenciais ao próprio homem. Como criação cultural, o Direito não é um dado, uma realidade pré-existente que o homem encontre no mundo ou na natureza, nem uma realidade estática, mas sim espírito objectivado, projecção espiritual do homem, algo que está aí para ser pensado, conhecido e vivido e cuja existência depende, por isso, da relação cognitiva e vivencial que o homem com ele estabelece e mantém, a qual lhe dá vida e conteúdo e actualiza, dinâmica e criadoramente, o sentido que nele está latente e lhe é conferido pela referência a valores, princípios ou ideais" [Teixeira, 1987: 29].
Braz Teixeira considera que o Direito, enquanto realidade cultural, objetiva-se em normas, "constituindo uma ordem reguladora da conduta ou do agir humano na sua interferência inter-subjectiva, na sua convivência ou na sua vida social"; refere-se, assim, à atividade prática do homem e não à atividade teorética e pressupõe, fundamentalmente, a liberdade, "porquanto só enquanto o homem é livre no seu agir, quando pode escolher o seu comportamento e optar entre diversas condutas possíveis, tem sentido que se lhe ordene que aja de certo modo e se responsabilize e puna pelo desrespeito pela ordem recebida ou imposta. Assim, o seu domínio próprio é o da liberdade de agir, cujo exercício e manifestação exterior regula e disciplina, visando estabelecer uma ordem nessa mesma conduta, definida a partir de princípios, valores ou ideais que se entende ou pretende deverem conformar o agir humano. Ao Direito, como realidade cultural, é, pois, inerente um sentido ou um conteúdo axiológico, uma relação entre a liberdade e determinados valores, princípios ou ideais" [Teixeira, 1987: 29-30].
 Importante contribuição dá Braz Teixeira à reflexão acerca da forma em que são atualizados os valores no contexto da experiência jurídica. Nesse particular, atribui grande importância ao papel do magistrado, aquele que tem a missão de tornar vivo o valor da justiça. A respeito, escreve o nosso pensador: "Deve notar-se que, do ponto de vista da Justiça, é mais decisiva a aplicação da lei, porquanto é então que, em concreto, o Direito se realiza e o próprio de cada um se afirma e define, o que, obviamente, não impede um juízo sobre a justiça ou a injustiça da lei em si. Desta conclusão uma outra deriva: a de que é mais decisivo o papel do juiz do que o do legislador, da jurisprudência do que da lei. De igual modo, o costume, como mediador mais direto do que a lei entre o sujeito e a norma, pela sua menor abstração e generalidade, pela sua origem mais vivencial do que racional-voluntária, mais coletiva do que individual, poderá garantir melhor do que aquela uma solução justa. Por outro lado, esta visão da Justiça vem pôr a claro a inadequação do modo de entender a sentença como mero processo lógico-formal, como um raciocínio silogístico e chamar a atenção para que o dizer o Direito - a jurisdição - do caso concreto, o juízo de legalidade que o juiz profere é condicionado, precedido e,  em larga medida, determinado por um juízo de justiça, de natureza intuitivo-emocional, ditado pelo sentimento da justiça" [Teixeira, 1986: 128].
O Direito, de outro lado, considera nosso autor, tenta regular ou ordenar a conduta relacionada à condição social do homem,  às relações com os outros homens e com as coisas, "na medida em que estas últimas relações possam interessar ou afectar os outros". O Direito possui, portanto, o caráter de realidade social e de bilateralidade, ao envolver as relações interpessoais, "implicando direitos e deveres de uns perante os outros". O Direito é, além disso, uma realidade social heterónoma, "uma vez que a regulamentação ou a ordenação da conduta que se propõe estabelecer é imposta do exterior aos sujeitos, por um outro sujeito dotado do poder de estabelecer e impor critérios, regras ou normas de conduta ou de comportamento" [1987: 30].
Na análise que o nosso autor realiza do Direito como ordem normativa ressaltam, de um lado, a sua extensa e profunda cultura jurídica e, de outro, o sábio equilíbrio de quem muito refletiu sobre a problemática humana do ângulo da solução dos conflitos à luz do ideal de justiça. Além dos seus clássicos estudos no terreno da filosofia do direito, é conhecida, também, a importantíssima contribuição dada por Braz Teixeira no terreno do direito fiscal e tributário [Cf. Teixeira, 1967; 1969], ou no da teoria do Estado [cf. Teixeira, 1955; 1956], especificamente no que diz relação à guerra e ao papel das corporações. Não vou me alargar mais na análise deste aspecto do pensamento de Braz Teixeira. Gostaria de destacar apenas que, no terreno da historiografia das idéias sociais e jurídicas, espelha-se de modo claro a sensatez e o equilíbrio que animam a reflexão do nosso pensador [cf. Teixeira, 2001a: 177-191], bem como a sua indiscutível atualidade, segundo transparece no seu ensaio intitulado: A justiça no pensamento contemporâneo [cf. Teixeira, 2001b].
Chamarei a atenção, finalizando este item, para a concepção de Braz Teixeira acerca da sociedade como pluralidade de interesses em conflito, regulados pelo Direito na busca do bem comum, preservando a liberdade e à luz do valor justiça. Eis, a seguir, uma bela síntese feita pelo nosso autor, acerca da sua concepção (que poderíamos chamar de culturalista e liberal) da realidade e da experiência jurídicas: "As normas em que se objectiva o Direito constituem uma ordem, num duplo sentido: por um lado, formam um conjunto ordenado a partir dos princípios, valores ou ideais de cuja visualização ou interpretação são objectivada expressão; por outro, procuram ordenar, rectificar ou tornar direita ou recta a vida social, a convivência entre os homens, as suas relações, substituindo por uma ordem o caos a que a desordenada conduta individual inevitavelmente conduziria, no seu jogo de egoísmos e na luta em que o mais fraco sucumbiria ao arbítrio do mais forte. A ordem que o Direito visa instituir, porque referida a valores, princípios ou ideais, não é uma ordem neutra ou indiferente, mas sim uma ordem justa, uma ordem concreta definida a partir do princípio ou valor justiça, que é, precisamente, aquele que dá sentido e conteúdo ao Direito na sua essencial dimensão axiológico-cultural. Partindo da justiça, como princípio, valor ou ideal, o Direito é, pois, o meio de que o homem se serve para alcançar uma adequada ordenação da sua conduta social, com o fim de coordenar o exercício da liberdade de cada um com a liberdade dos restantes, realizando, deste modo, o bem comum da sociedade política" [Teixeira, 1987: 34-35].
Conclusão
A meditação de António Braz Teixeira apresenta-nos, sobre o pano de fundo de uma concepção da Filosofia entendida na sua dupla dimensão de contemplação diuturna da verdade a partir do horizonte histórico do homem, um amplo painel da realidade humana estudada sob o ângulo da experiência. Se, do ponto de vista metafísico em que se projeta a experiência religiosa, o nosso autor faz verter a sua reflexão na temática da que passou a ser conhecida como corrente da Filosofia Portuguesa, polarizada pela idéia de Deus e de mistério insondável (na trilha da revelação cristã), do ponto de vista da sua reflexão sobre a experiência jurídica, pelo contrário, a meditação do nosso autor passa a se projetar sobre o horizonte humano do agir no mundo e das relações inter-pessoais, com os conflitos a que dá lugar essa realidade (apreendida no contexto da experiência fenomenal).
Aparece, assim, no pensamento de Braz Teixeira, a meu modo de ver, uma dupla vertente: mística e fenomenológica. A primeira, que é condicionada por uma retomada da idéia medieval de experiência, como decorrência da vivência de uma realidade transcendente que nos é revelada numa manifestação que vem de cima, a partir de uma tradição escatológica preexistente e com predomínio do argumento de autoridade. É a dinâmica dos mitos fundadores da meditação filosófica, que tanto seduziu o pensamento de autores como Adolpho Crippa (1929-2000), Eudoro de Souza (1911-1987) ou Vicente Ferreira da Silva (1916-1963), no panorama cultural brasileiro. A "teologia filosófica" destes, como aliás destaca Braz Teixeira, aproxima-se da meditação portuguesa [cf. Teixeira, 1998b: 390-401].
A segunda vertente é condicionada pelo conceito hodierno de experiência, aberta ao mundo dos fenômenos e pressupondo a função crítica da razão como "faculdade ordenadora do real", para repetir as palavras do filósofo de Königsberg. O mundo do direito, para o mestre português, é fundamentalmente o que nos é dado pela nossa experiência fenomenal do mundo e das lutas entre os interesses contrapostos das pessoas, apreendido tudo isso à luz ordenadora do valor justiça, de que a razão jurídica é portadora, a fim de garantir a civilização e o convívio pacífico entre os homens.
Dupla perspectiva que, inserida no pensamento do mesmo autor, torna-se paradoxal, do ângulo da busca de um princípio unificador na sua obra. A primeira perspectiva, ao inspirar a historiografia das idéias empreendida, com dedicação e grande espírito de sistema, pelo nosso autor, terminou dando ensejo a uma versão do pensamento brasileiro que se contrapõe à nossa tradicional forma de abordarmos as questões da história das idéias no contexto da perspectiva transcendental kantiana, aliada à temática da filosofia como problema herdada de Nicolai Hartmann (1882-1950), Rodolfo Mondolfo (1877-1976) e dos nossos mestres culturalistas, Miguel Reale e Antônio Paim. A escolha da perspectiva transcendente não impediu ao nosso autor, no entanto, de elaborar uma ampla e objetiva caracterização de outras correntes da meditação portuguesa, diferentes da vertente em que ele se situa, como é o caso da fenomenologia [cf. Teixeira, 1998a: 5-20].
A segunda perspectiva, ao se aproximar da realidade social do ângulo pluralista da diversidade de interesses em conflito, e ao tentar uma solução à luz do Direito como criação cultural, aproxima-se muito da nossa metodologia culturalista de análise filosófica. A meditação antropológica seria, talvez, o elo que uniria, no pensador português, ambas as perspectivas apontadas, a julgar pela oportuna observação de Paulo Borges (1959-): "(Braz Teixeira) constata assim, nos vários rumos do pensamento português, a profunda relação entre a reflexão sobre o direito e a justiça e as concepções antropológico-metafísicas dos autores, nos quais denota uma razão que não se presume de uma suposta autonomia antes comprometida com a situação singular e concreta do sujeito humano, na abertura à experiência intuitiva, afectiva e crente" [Borges, 1992: 42].
Resta-nos realizar uma análise desassombrada da obra de Braz Teixeira, a fim de, sine ira ac studio, melhor compreendermos a sua posição no mundo da meditação luso-brasileira, obedecendo sempre ao critério de rigor crítico e de modéstia epistemológica expresso pelo mestre português, no prefácio da sua obra Espelho da razão [Teixeira, 1997: 10]: "Cabe agora aos investigadores e historiadores da filosofia brasileira avaliar em que medida é adequado o caminho que segui e são pertinentes as hipóteses interpretativas aqui propostas, com aquela serena simpatia intelectual que é condição de toda verídica compreensão filosófica".

 BIBLIOGRAFIA
 
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Pensadores Portugueses - EDUARDO ABRANCHES DE SOVERAL (1927-2003)



I - BREVE SINOPSE BIO-BIBLIOGRÁFICA
Eduardo Abranches de Soveral nasceu em Mangualde (Viseu, Beira Alta - Portugal), em 1927. Desde muito cedo o nosso autor manifestou propensão para os estudos filosóficos. Em Viseu, foi discípulo de Augusto Saraiva (1900-1975) e, em Coimbra, de Arnaldo Miranda Barbosa (1916-1973). Pertenceu ao corpo diplomático do seu país na década de cinqüenta, tendo se decidido pela docência universitária no decênio seguinte. Doutorou-se em filosofia no ano de 1965, com a tese intitulada: O método fenomenológico [Soveral, 1965], na Faculdade de Letras da Universidade do Porto. Durante vários anos foi coordenador do Curso de filosofia nessa Faculdade, tendo chegado a professor catedrático e organizador da pós-graduação em filosofia, ao redor do estudo sistemático dos filósofos portugueses. Destaquemos a oportunidade dessa iniciativa, num momento em que Portugal acordava para a necessidade de reviver os seus fundamentos culturais, ao ensejo da inserção na Comunidade Européia.
A mencionada tese com que obteve o seu doutorado em filosofia, constitui a base teórica sobre a qual se desenvolverão, posteriormente, os seus trabalhos nos terrenos da filosofia da educação, da filosofia política, da filosofia da cultura, da história das idéias e da ética. Em relação ao núcleo teórico da mesma, escreveu Gustavo de Fraga (1922-2003): "Na esteira de Miranda Barbosa, todavia, E. Soveral tende a considerar o método da fenomenologia separadamente da filosofia fenomenológica, marcando uma posição crítica relativamente à Fenomenologia e considerando o que nela se oferece de mais consistente e valioso para a filosofia - o seu método" [Fraga, 1992: 1273]. O nosso autor alicerçou-se, na sua tese doutoral, além de Edmund Husserl (1859-1938), em Nicolai Hartmann (1882-1950), Maurice Merleau-Ponty (1908-1961), Max Scheler (1874-1928), Martin Heidegger (1889-1976) e Emanuel Levinas (1906-1995), "o que diz alguma coisa da vigorosa decisão com que pretende determinar em definitivo o valor filosófico do método fenomenológico" [Fraga, 1992: 1273].
Eduardo Soveral elaborou uma antropologia filosófica com rigorosa base metafísica, mas levando em consideração a vivência humana (graças à utilização que faz do método fenomenológico). A partir dessa concepção passou a discutir os problemas mais radicais que afetam ao homem contemporâneo. Gustavo de Fraga destacou a fecundidade da reflexão filosófica do nosso autor, com as seguintes palavras: "o autor revela o que tem sido o núcleo do seu projecto filosófico: a instituição de uma teologia filosófica capaz de fundamentar e de orientar as ciências humanas (em particular a ética, a política e a economia), facultando deste modo soluções para os grandes problemas da sociedade" [Fraga, 1992: 1274]. Por teologia filosófica entendemos uma antropologia aberta à transcendência.
O nosso autor estava destinado, segundo a praxe da universidade européia, a especializar-se em filosofia moderna e contemporânea. Para se preparar nesse terreno, Soveral elaborou magnífica síntese sobre a filosofia de Blaise Pascal (1623-1662), intitulada: Pascal, filósofo cristão [Soveral, 1968] e traduziu o Ensaio sobre o entendimento humano de John Locke (1632-1704) [Cf. Paim, 1994: 33]. Ao ensejo dos episódios da Revolução dos Cravos, o nosso autor sofreu as agruras motivadas pela intolerância no meio acadêmico. Antônio Paim (1927-) sintetizou da seguinte forma esses episódios: "nessa altura desabou sobre Portugal a revolução anti-salazarista, logo submetida à hegemonia dos comunistas, cujo ressentimento manifestou-se abertamente em ódio à cultura e ao saber. Mesmo sendo apenas docente de filosofia, sem militância política, Soveral não suportou o clima de intolerância e perseguição mesquinha, emigrando para o Brasil" [Paim, 1994: 15-16].
Soveral permaneceu no Brasil por espaço de dez anos, tendo sido docente de filosofia na Universidade Católica de Petrópolis (onde também coordenou o curso de mestrado em educação) e na Universidade Gama Filho, do Rio de Janeiro (onde criou o curso de doutorado em pensamento luso-brasileiro, juntamente com Antônio Paim, em 1979). Colaborou, de forma eficiente, para a formação de uma geração de pesquisadores da filosofia luso-brasileira (cerca de trinta teses de doutorado foram defendidas na Universidade Gama Filho, na área apontada, entre 1979 e 1989). A sua influência foi definitiva para a consolidação do rigor acadêmico no estudo dos pensadores luso-brasileiros. É memorável o método monográfico que o nosso pensador desenvolveu, consistente em identificar os problemas (chamados por Soveral de filosofemas), objeto da meditação de cada pensador. Referir-nos-emos logo mais a esse aspecto da sua doutrina filosófica.
Eduardo Soveral foi professor catedrático de Filosofia da Universidade do Porto. Foi, também, membro da Academia de Ciências de Lisboa, da Academia Brasileira de Filosofia, do Instituto Brasileiro de Filosofia, do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, da Sociedade Científica da Universidade Católica e do Instituto de Filosofia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, de que foi fundador e primeiro presidente.
Dada a importância da obra de Soveral no contexto da meditação filosófica brasileira, foi dedicado ao estudo do seu pensamento o 3º Encontro Nacional de Professores e Pesquisadores da Filosofia Brasileira, que teve lugar em Londrina (Paraná), de 23 a 25 de setembro de 1993. Ao ensejo desse evento, foram estudados os seguintes aspectos do pensamento do nosso autor: introdução à obra filosófica, a concepção metafísica, a epistemologia, a filosofia da história, bem como o estatuto ético-jurídico da sociedade. Os trabalhos apresentados no evento foram publicados nos respectivos Anais, organizados por Leonardo Prota [Prota, 1994].
O traço mais marcante da criação intelectual de Soveral, talvez seja o seu esforço em prol de um ordenamento da temática moderna na meditação filosófica. Antônio Paim traçou, da seguinte forma, o quadro do seu pensamento a respeito: "Soveral procedeu a certo ordenamento da temática moderna e tem se detido na análise de cada um de seus aspectos. Resumidamente, a temática em apreço seria: gnoseológica, abrangendo a inquirição sobre a natureza humana e seus limites, que suscita a questão da sobrevivência ou não da metafísica e, também, do desinteresse ontológico da parte da ciência ou do encontro de fundamentos para esta última, aparecendo, também, de forma renovada, o problema das relações entre fé e razão; metafísica, dizendo respeito notadamente ao Absoluto mas, também, à fundamentação da moral e da fixação de suas relações com a religião; e, finalmente, ético-jurídica, abrangendo o problema da liberdade, o comportamento individual e coletivo e, ainda, a filosofia da história ou da cultura, a par do estudo que vem realizando dos principais filósofos portugueses, a partir do século XIX" [Paim, 1994: 16].
Nesse esforço de ordenamento temático da meditação filosófica, ressalta a contribuição de Soveral no terreno da filosofia da cultura aplicada à educação, se destacando a obra do nosso autor a respeito, intitulada: Pedagogia para a era tecnológica [Soveral, 2001]. Em ensaio anterior, Soveral já tinha destacado que a pedagogia para a era tecnológica deveria estar animada pela filosofia, entendida no seu sentido socrático. A respeito, escreve: "Para que, na ação docente, se não verifiquem um dogmatismo pedagógico nem a imposição de uma determinada ordem de valores, é necessário que o mestre comece por criar, socraticamente, um saudável e estimulante clima de liberdade crítica, que desmistifique os falsos mitos e problematize os preconceitos mais arraigados, e as mais respeitáveis convicções; isso, tendo o cuidado de afastar desde o início a suspeita de uma oculta intenção apologética; será necessário, para tanto, que o professor comece por se apresentar, identificando-se criticamente, ou seja, expondo, com lealdade e isenção, as suas mais profundas e autênticas opções valorativas; só tal exemplo despertará ou fomentará, nos alunos, uma paralela e interior necessidade de autoconhecimento, que está no início também de um processo educativo que enriqueça e aperfeiçoe a sua personalidade. Depois disso, é fácil desenvolver o amor da verdade, com todas as suas indispensáveis exigências éticas, e interessar os alunos no exercício rigoroso das próprias faculdades cognitivas; e, possível até, que optem, criticamente, por esta ou aquela posição metafísica ou religiosa. (...). Na verdade, só o espírito filosófico é capaz de dissolver os bloqueios ideológicos e libertar as inteligências" [Soveral, 1983: 91].
Para os que tivemos o privilégio de sermos os seus discípulos, fica claro que as anteriores palavras não são apenas teoria, mas que se tornaram vida, no apostolado docente de Eduardo Soveral. Ele soube colocar em ponto alto o ideal ético do educador e do filósofo, num mundo que certamente não prima pela valoração da cultura desinteressada. O nosso autor faleceu em 2003, em Vila Real.

II - MARCO EPISTEMOLÓGICO PARA O ESTUDO DA CULTURA LUSO-BRASILEIRA, SEGUNDO EDUARDO ABRANCHES DE SOVERAL.
Tratar acerca da epistemologia na obra de Eduardo Abranches de Soveral não é tarefa fácil. Isso porque, no pensamento do autor, há uma íntima relação entre epistemologia, metafísica, ontologia, antropologia e ética. Por isso, mesmo correndo o risco de ser parcial e levando em consideração as outras abordagens que da sua obra tem sido feitas, limitar-me-ei à exposição dos tópicos mais significativos, presentes em dois ensaios seus: "Notas históricas e filosóficas sobre o conhecimento" (1985) e "Sobre a racionalidade, a ética e o ser" (1988-1989), ambos recolhidos na coletânea feita por Antônio Paim e por ele apresentada sob o título de: Eduardo Abranches de Soveral, Ensaios filosóficos (1978-1992), Vitória, 1992.
Cinco aspectos destacarei na epistemologia para o estudo da cultura luso-brasileira segundo Eduardo Abranches de Soveral: 1) Características básicas da filosofia; 2) subjetividade, intersubjetividade e verdade; 3) questões metafísicas relacionadas com a teoria do conhecimento; 4) questões metodológicas relacionadas com a teoria do conhecimento e 5) mediação epistémica da cultura luso-brasileira e metodologia para o estudo da história das idéias filosóficas. 

1 - Características básicas da filosofia.
Coerente com a sua formação epistemológica, Soveral caracteriza a filosofia, basicamente, como método, ao mesmo tempo crítico e hermenêutico. Quanto ao aspecto crítico, o autor escreve: "Em nosso entender, o que caracteriza uma obra filosófica não são os temas nem o conteúdo doutrinário, mas a exigência crítica problematizadora e a fundamentação das soluções propostas; além disso (e depois disso) a integração sistemática dos conhecimentos, orientada no sentido de uma unificação de todo o saber possível. Assim, a filosofia começa por ser, expressa e deliberadamente, metódica" [Soveral, 1992: 20].
Quanto ao aspecto hermenêutico, Soveral frisa que, pelo fato de a filosofia dever ser expressão da dualidade sujeito-objeto, "(...) em termos que expressem todas as variantes das relações inter-subjectivas, embora partindo e regressando à relação fundamental", também "a revelação e a linguagem passariam a ser o terreno fenomenológico por excelência, os místicos e os poetas os interlocutores privilegiados, e a filosofia, fundamentalmente, uma hermenêutica" [Soveral, 1992: 26].
Do ponto de vista de sua feição crítica, a filosofia é, para Soveral, "sempre, por essência, autônoma, ou seja, irredutível ao seu passado e a todo o contexto contemporâneo a que esteja ligada" [Soveral, 1992: 4]. Já do ponto de vista da sua dimensão hermenêutica, a filosofia é basicamente histórica. "É que a filosofia - escreve Soveral- tem uma dimensão antropológica e existencial que a liga sempre ao homem concreto, sob a forma de sabedoria, ou, se preferirmos, preludiando o tema central do pensamento de Leonardo Coimbra (1883-1936), a razão filosófica é, por natureza, prática e metafísica. E esta nuclear ligação da ética e da metafísica, valorizando, máxima e simultaneamente, a liberdade humana e o ser, exige, ao contrário do que poderia julgar-se, um especial recurso ao conhecimento histórico" [Soveral, 1992: 5].
Ambas as dimensões da filosofia, a hermenêutica e a crítica, estão, no sentir de Soveral, intimamente ligadas. No seio desta última torna-se possível inventariar o conteúdo axiológico da tradição. Ora, "só quando é inventariado o conteúdo axiológico da tradição - frisa o nosso autor - é possível recuperá-la, positiva ou negativamente, em termos críticos instituindo um itinerário ético que verdadeiramente seja novo, mas nos inscreva no real" [Soveral, 1992: 5].
2 - Subjetividade, intersubjetividade e verdade.
A reflexão filosófica desenvolveu, nos períodos moderno e contemporâneo, segundo Soveral, quatro formas de fundamentação do conhecimento: a cartesiana, a espinosana, a kantiana e a husserliana. Quanto à primeira, frisa o nosso autor: "Partindo do acto cognitivo por excelência que é o juízo, constitui-se uma das formas radicais de fundamentar o conhecimento: a evidência racional; é ela que confere ao enunciado judicativo uma veracidade necessária; não é possível negá-la, nem conceber, sequer, a sua negação" [Soveral, 1992: 47]. A forma espinosana de fundamentação do conhecimento é assim caracterizada: "Como variante imediata desta fundamentação pela evidência racional, que é, por essência, dedutiva, temos a fundamentação típica dos geômetras que partem da afirmação ou proposição de teses que depois demonstram, algumas vezes de maneira negativa, reduzindo ao absurdo as teses opostas" [Soveral, 1992: 47]. A forma kantiana, por sua vez, é assim caracterizada por Soveral: "Uma (...) variante, menos radical, (que foi usada por Kant na segunda edição da Crítica da razão pura) consiste em partir dos problemas gnosiológicos imanentes a determinada zona, ou nível, do conhecimento, ou de determinada área da vida cultural, e considerar que a hipótese explicativa que os soluciona conferirá fundamento a tais conhecimentos, desde que se demonstre ser ela a única possível, ou a mais segura e directa, no caso de haver várias. Naturalmente que esta fundamentação, de tipo hierárquico e indutivo, terá tanto maior valor filosófico quanto mais, na escala ascendente e dialética dos problemas e das soluções, se aproximar da radicalidade da evidência, que marca o termo de toda a problematização" [Soveral, 1992: 47-48].
A forma husserliana de fundamentação do conhecimento é caracterizada, por último, assim: "Partindo da sensibilidade (em sentido kantiano), ou seja, da abertura do sujeito ao aparecimento de dados, de fenômenos, de algo de exterior que tem o poder e a iniciativa de uma presença irrecusável, configura-se uma outra forma radical de fundamentação cognitiva. Trata-se agora de constituir toda a experiência, a partir da zona originária em que não há obstáculos nem intermediários entre o sujeito que experimenta e aquilo que é experimentado; trata-se de captar o fenômeno puro" [Soveral, 1992: 48].
O nosso autor considera que, das quatro formas de fundamentação do conhecimento apresentadas, a espinosana apresenta um risco de desvio consistente em "supor-se que a refutação polêmica das teses divergentes servirá de fundamento, para além do caso bem preciso - e único legítimo - em que se demonstra o absurdo da tese contraditória" [Soveral, 1992: 47]. As outras três formas de fundamentação apresentam-se, para Soveral, como perfeitamente compatíveis, sendo que a forma transcendental - "onde terão de situar-se as análises gnosiológicas mais radicais" [Soveral, 1992: 48] - constitui o chão epistémico onde elas acontecem. Importa destacar que o nosso autor - seguramente influenciado pela sua formação fenomenológica - confere à forma transcendental apenas um valor metodológico e transitório, o que lhe permite concluir ser possível uma abertura metafísica em direção a uma primordial subjectividade inteligente, ou a uma objetividade irracional. Parece-me que Soveral se inclina pela primeira alternativa, ao afirmar que, após as investigações gnosiológicas "é possível e legítima uma segunda navegação de sentido inverso, que aprofunde dialecticamente as exigências críticas do conhecimento, até que se considere fundada uma conclusão quanto ao estatuto ôntico do cogito e dos fenômenos" [Soveral, 1992: 49].
O método filosófico, inserido nesse centripetismo ôntico, "não se limitará mais - considera Soveral - a fundamentar o conhecimento científico, nem a proceder a investigações transcendentais. Mas passará a ter como objectivo o conhecimento das realidades metafísicas, devendo adequar-se, consequentemente, a esse novo propósito" [Soveral, 1992: 49]. Neste ponto, a meu ver, Soveral situa-se além da perspectiva transcendental kantiana, não só pelo fato de tê-la reduzido a simples recurso metodológico na fundamentação do conhecimento, mas também - e primordialmente - ao postular a possibilidade da sua superação, no conhecimento de realidades metafísicas.
Analisemos rapidamente as noções de subjectividade, intersubjectividade e verdade, na forma em que são entendidas por Soveral. Há, para ele, dois traços fundamentais da intersubjetividade: a racionalidade e a consciência. A primeira apresenta-se como "comum a todos os sujeitos", e exprime uma universalidade "directa, límpida e irrecusável". Já a segunda possui uma característica paradoxal, pois ao passo que é a raiz da unicidade de cada sujeito, deve também ser atribuída, de forma análoga, a todos os outros; em decorrência disso, a consciência é problemática. A coactividade do juízo evidente revela a cada um a dimensão universal da racionalidade. "É a partir deste ponto fulcral - escreve Soveral - da ligação entre razão e consciência, que o homem se sente inserido num plano cuja universalidade é indiscutível e aberto a todos os seus horizontes" [Soveral, 1992: 76].
O primeiro momento da epifania da verdade é constituído pelo juízo evidente, o qual nos permite "a verificação de que a racionalidade tem como acto instaurador e última finalidade o princípio ontológico da identidade" [Soveral, 1992: 78]. A racionalidade constitui, também, um sistema objetivo de relações e é, ainda, "a regra de ouro para uma vida melhor" [Soveral, 1992: 78]. Se adentrando na análise do juízo evidente, Soveral considera insuficiente o argumento em que se alicerça o repúdio à lógica do conceito e que conduz à lógica proposicional. Esse argumento parte da pressuposição de que é a proposição a unidade semiótica elementar, capaz, portanto, de receber os valores gnosiológicos da veracidade, da falsidade e da maior ou menor probabilidade.
O nosso autor firma dois aspectos que lhe parecem decisivos: em primeiro lugar, há distinção entre o valor gnosiológico verdade e o valor lógico validade; em segundo lugar, o conceito possui um sentido ou, em outras palavras, "uma dimensão semântica que não pode se alheada do apuramento do valor gnósico da proposição" [Soveral, 1992: 81]. Todo conceito tem um sentido (simples ou complexo) e deve contar com uma determinação precisa e com uma expressão unívoca. O conceito, de outro lado, é incorporado num nome (ou numa expressão nominal provisória), pertencente a uma língua materna e portador de uma pluralidade aberta de sentido.
Na definição, no sentir de Soveral, "culmina todo o processo determinador do conteúdo enunciável do conceito" [Soveral, 1992: 83]. Em decorrência disso, os juízos evidentes são juízos analíticos, ou seja, juízos nos quais tudo aquilo que se afirma no conceito já estava contido "no seu potencial conteúdo enunciativo", podendo ser explicitados pela simples análise lógica. É necessário, aqui, colocar a questão do valor cognitivo dos juízos analíticos. Esse ponto, para Soveral, deve ser colocado nestes termos: "se um juízo tautológico terá algum valor para o conhecimento?" [Soveral, 1992: 84]. O princípio ontológico da identidade exprime a essência do "supremo acto gnósico", graças ao qual o Sujeito Absoluto torna-se consciente. Esse ato gnósico, em sentido estrito, não é um juízo, mas "uma intuição translúcida em que Lógos e Ser coincidem" [Soveral, 1992: 84].
Em nós, seres humanos, ocorre a dolorosa separação entre Lógos e Ser. Aí radica, para o nosso pensador, toda a dramaticidade da existência humana. A respeito, escreve: "É no indigente e violentado Ser-para-Si (que nós, os humanos, somos) que a separação entre o Lógos e o Ôntico atinge a dimensão máxima. Abertos a um infinito inatingível e sujeitos a condições, circunstâncias e dados que simultaneamente nos revelam e nos ocultam o Ser, o nosso itinerário existencial é particularmente difícil: balançamos entre a ameaça do sofrimento - que resulta, sempre, da experiência forçada de valores negativos - e a ameaça do Nada, existencialmente configurada como perda definitiva da consciência: como nos balouçamos entre um visceral desejo de segurança, de sobrevivência, de conservação, e um visceral desejo de mudança, de aventura, de risco, de partida para o desconhecido que se pressente para lá dos nossos horizontes, de sermos fiéis à nossa constitutiva vocação de infinitamente crescermos na posse do Ser e de definitivamente nos libertarmos da vivência de todo o Mal" [Soveral, 1992: 85].
No contexto da nossa dolorosa finitude existencial, o juízo tautológico é, também - no sentir de Soveral - o supremo acto gnósico. Quando afirmo eu sou eu, "afirmo a-priori a minha unicidade e a unificação tendencial de mim comigo mesmo: como são tautológicos os juízos em que cada um de nós, a cada momento, se reconhece e afirma" [Soveral, 1992: 86]. O juízo tautológico é, assim, o paradigma de todo o conhecimento.
O nosso autor reconhece a existência de três tipos de juízos tautológicos: 1) os que exprimem "o vínculo que liga as essências dependentes às independentes (como o que se verifica entre as noções de corpo e de extensão)"; 2) os que "partem de uma identidade tautológica mediante um processo de substituição dos termos dessa identidade por outros equivalentes (3x7=18+3)"; trata-se, aqui, de juízos evidentes; 3) os sintéticos ou prospectivos que, embora não evidentes, "visam intencionalmente uma evidência e (ou), no limite, uma intuição autorreflexiva". Estes últimos juízos, no sentir de Soveral, "nos permitem aumentar transfinitamente o conteúdo significativo e representativo dos conceitos individuais mantendo a sua unicidade, garantindo, a-priori e a cada momento, a identidade consigo próprios". Esses juízos, considera o nosso autor, "nos possibilitam a entificação de conceitos genéricos típicos, ou de conceitos coletivos, ou de conceitos individuais cuja existência é suposta, ou imaginada, ou produzida, no plano da empiria ou da cultura" [Soveral, 1992: 87]. Ora, essa entificação, considera Soveral, enseja uma concepção atualista e criacionista, graças à qual é possível chegar à produção de objetos técnicos, de bens materiais, ou de obras de arte [cf. Soveral, 1993: 21-26], dando-se o enfraquecimento da densidade ôntica do dado como puro ser-em-si.
Mas se no contexto da nossa dolorosa finitude existencial o juízo tautológico é o supremo ato gnósico, como ficou demonstrado, Soveral destaca que esses racionais projetos não são a condição suficiente para a apropriação do Ser pelos sujeitos. O que lhes garantirá superar definitivamente a tendência para o Nada, será a abertura aos valores e ao Bem. A ética encontra, assim, para o nosso autor, a sua dimensão ontológica. Eis as palavras do pensador português a respeito: "Os juízos evidentes nos revelam (ou) possibilitam a construção da racionalidade, ou seja, de todo um conjunto condicionante de formas que balizam a nossa ativa apropriação do Ser, mediante uma actualização progressivamente mais rica; que, nessa actualização, a Razão, entendida como dinamismo entificador, relacionador e unificador do ser-para-si que é todo o sujeito, - joga com esse universo condicionador de formas, que é a Racionalidade, no sentido de obter um máximo de evidências. Esses racionais e razoáveis projectos de acção são a condição necessária para uma apropriação do Ser pelos sujeitos. Mas não são a condição suficiente. O que lhes irá garantir, em última instância, um sentido positivo, evitando que apontem para o Nada, será o facto de visarem os valores ou o Bem. Esta a indispensável função ontológica da Ética" [Soveral, 1992: 24].
A gnosiologia de Eduardo Soveral caracteriza-se, assim, pelo fato de ser uma ontognosiologia axiológica, fato que o aproxima dos culturalistas brasileiros, notadamente da feição assumida pela concepção ontognosiológica de Miguel Reale. Tanto para o autor português como para os culturalistas brasileiros - destacando-se, além de Reale as figuras de Antônio Paim e Nelson Saldanha (1933-2015) - as questões epistemológicas repousam no contexto aberto por Immanuel Kant (1724-1804), que, a partir da rigorosa delimitação da perspectiva transcendental, abriu a filosofia ocidental à denominada metafísica do sujeito, ou da tematização do espaço humano, que já tinha sido postulado por Samuel Pufendorf (1632-1694) no século XVII. Em Soveral acontece a ontologização do formalismo kantiano, de modo análogo a como em Reale se perfaz essa mesma variável, a partir da crítica axiológica e histórica ao legado do pensador de Königsberg. A posição adotada pelo filósofo português não implica em uma volta pura e simples à metafísica dogmática criticada por Kant. "Ao contrário disto - frisa com propriedade Antônio Paim - Soveral está longe de encampar tudo quanto se fez em nome da preservação do realismo antigo no ciclo de predominância da escolástica" [Paim, 1992: 37].
3 - Questões metafísicas relacionadas com a teoria do conhecimento.
Soveral destaca que a metafísica tradicional "articulada com a antiga física, verbalista e qualitativa" [Soveral, 1992: 12], perdeu legitimidade. Mas as ciências contemporâneas, carentes de base metafísica, pendem no abismo do niilismo. "Agora - frisa o pensador português - com o desaparecimento de uma substantiva matéria-energia, escancara-se o vórtice de um definitivo Niilismo que ameaça sorver e nadificar todas as esperanças humanas. Daí que os cientistas contemporâneos tendem a assumir, no plano existencial, a posição dos mágicos, seus ancestrais" [Soveral, 1992: 93].
A quebra da metafísica ocorreu, nos dias que correm, como decorrência da atomização da ciência moderna e do seu fechamento na positividade. Esses fatos não só separaram a ciência da metafísica "autonomizando-a, como esvaziaram a própria metafísica de um autêntico conteúdo gnosiológico. Que lhe competia saber? Como poderia conhecer-se algo para além do que fosse positivo e observável?" [Soveral, 1992: 13].
No sentir do pensador português, duas alternativas metafísicas se descortinam na meditação contemporânea. "Em última instância - frisa Soveral - haverá que concluir, em termos metafísicos, ou por uma primordial subjectividade inteligente, ou por uma objectividade irracional [Soveral, 1992: 29]. O nosso pensador opta claramente pela primeira alternativa, recolhendo a rica tradição que, partindo na modernidade de Descartes (1596-1650), tentou, com Leibniz (1646-1716) e Espinosa (1632-1677), formular uma metafísica condizente com as exigências da ciência moderna. Os metafísicos portugueses teriam dado continuidade a esse esforço teórico, num contexto anti-positivista e tendo inclusive incorporado o legado kantiano - bem que de forma parcial, “sem levar em consideração nenhum fundamento gnosiológico antimetafísico da Crítica da Razão Pura" ou restringindo-se, quase sempre, "aos argumentos da dialética transcendental, que isolam do conjunto da obra" [Soveral, 1992: 14].
Parece-me que, ao recolher a tradição dos metafísicos portugueses, Eduardo Soveral se situa numa posição próxima à adotada por Leonardo Coimbra, em cujo pensamento "houve (...) a expressa preocupação de libertar a ciência do construtivismo, do pragmatismo e do humanismo com que Galileo (1564-1642) a tinha potencialmente marcado, e lhe cortavam o acesso à metafísica; e de retirá-la de um quadro epistemológico que aceitava a irracionalidade última do real dado na experiência empírica" [Soveral, 1992: 14].
A posição de Soveral no terreno da teoria do conhecimento ancora, pois, numa base definidamente metafísica. Mas não se trata, de forma alguma, da retomada das antigas metafísicas dogmáticas. A posição do nosso autor é assim definida por ele mesmo: a supremacia dada pelo positivismo à sociologia sobre as demais ciências, só pode ser criticada e superada no seio de uma "metafísica criacionista baseada no sujeito absoluto (é esta a nossa posição)" [Soveral, 1992: 93]. Trata-se, a meu ver, de posição que se aproxima bastante da adotada pelos culturalistas, como já foi apontado, sobre tudo se se leva em consideração que o ponto de partida é uma ontognosiologia intersubjetiva. A respeito, escreve Soveral: "Esta (...) incursão nas zonas mais radicais da gnose permite-nos, pois, concluir que a solução para as aporias nela detectadas aponta para uma ontognosiologia, onde o conhecimento consista numa comunicação intersubjetiva" [Soveral, 1992: 25].
4 - Questões metodológicas relacionadas com a teoria do conhecimento.
O nosso pensador destaca que seria ideal, no terreno das ciências humanas, poder realizar investigações sobre os problemas essenciais, deixando de lado questões acessórias. "Seria bom - frisa Soveral - poderem imitar-se aqui as aves de rapina, que vêm largo e só mergulham quando vale a pena" [Soveral, 1992: 3]. No entanto, a falta de apoio cartográfico de parte de universidades e centros de pesquisa, obriga os estudiosos - particularmente os que cultivam a história das idéias filosóficas - a se limitarem a "hipóteses sempre provisórias, descrições sempre incompletas, perspectivas sempre incipientes, explicações sempre insatisfatórias" [Soveral, 1992: 4].
Como avaliar, do ângulo filosófico, o que há de original e próprio numa obra? Três critérios, no sentir do nosso autor, devem pautar essa indagação: em primeiro lugar, a "avaliação interna de sua coerência e fecundidade"; em segundo lugar, "o exame dos seus fundamentos e princípios, feito, necessariamente, a partir de perspectivas que lhes sejam exteriores, o que implica explicitar e justificar os parâmetros críticos em que o próprio estudioso se situa; em terceiro lugar, "repor (...) os problemas da (...) relação (da obra) com a história, com os condicionamentos sociais da época e com a personalidade do Autor" [Soveral, 1992: 5].
Conseqüente com a dimensão ontognosiológica, de tipo intersubjetivo, que Soveral atribui à sua teoria do conhecimento, o método filosófico deverá partir da análise da estrutura cognitiva do sujeito para indagar a questão da verdade e do erro, à luz de um critério gnósico radical, ligado ao conhecimento do estatuto ôntico do cogito e dos fenômenos. A respeito, o nosso autor escreve: "efectivamente há, em princípio, entre todo o método cognitivo e o objeto a conhecer, uma mútua relação de conveniência. Ora, sendo o método da filosofia, por essência, indeterminado, segue-se que as características do seu método haverão de procurar-se, apenas, no sujeito do conhecimento. Por outras palavras: enquanto as ciências se definem pelos seus objectos particulares (ou por uma epistemologia genérica e por um objecto também globalmente determinável no seu amplo conjunto), a filosofia só irá definir-se pelo seu método; e este terá que decorrer das estruturas cognitivas do sujeito do conhecimento e visar uma distinção genérica da verdade e do erro ou, se preferirmos, a fixação e a fidelidade a um critério gnósico radical" [Soveral, 1992: 21].
O critério gnósico radical ao qual o nosso autor faz referência é a dimensão ôntica do conhecer, que Soveral vincula a uma segunda navegação, complementar da primeira navegação, introspectiva, de inspiração cartesiana ou husserliana. A respeito, afirma: "o fato de termos iniciado as investigações gnósicas pela via cartesiana da razão, ou pela via husserliana da experiência, não nos obrigará, respectivamente, ao primeiro ou ao segundo termo daquela opção metafísica. Desde que o itinerário metódico escolhido seja levado ao limite, é possível e legítima uma segunda navegação de sentido inverso, que aprofunda dialeticamente as exigências críticas do conhecimento, até que se considere fundada uma conclusão quanto ao estatuto ôntico do cogito e dos fenômenos" [Soveral, 1992: 29].
O nosso pensador, como foi destacado no início, reconhece a validade das quatro formas que a filosofia moderna desenvolveu, no intuito de explicar o conhecimento: a cartesiana, a espinosana, a kantiana e a husserliana. No entanto, ele considera que estas vias, metódicas por excelência, precisam de um ponto de chegada: a formulação do estatuto ôntico do cogito e dos fenômenos. Chegado a este ponto, o método filosófico projetar-se-á no conhecimento das realidades metafísicas. Eis as suas palavras a respeito: "Uma vez atingida esta conclusão, o método filosófico sofrerá significativas mudanças. Não se limitará mais a fundamentar o conhecimento científico, nem a proceder a investigações transcendentais. Mas passará a ter como objectivo o conhecimento das realidades metafísicas, devendo adequar-se, consequentemente, a esse novo propósito" [Soveral, 1992: 29].
5 - Mediação epistémica da cultura luso-brasileira e metodologia para o estudo da história das idéias filosóficas.
O nosso autor confere grande valor epistémico à tarefa do historiador das idéias. A sua contribuição é fundamental, segundo Soveral, tanto no terreno da docência, quanto no da informação. Cabe a ele revelar, aos homens da sua época, as descobertas dos filósofos no plano do desvelamento do ser, colocando-as no contexto da cultura onde historicamente está situado. Essa observação é endereçada pelo nosso autor, de forma especial, aos "portugueses e os brasileiros que tardam a convencer-se que só a través da mediação da sua cultura terão acesso e poderão participar positivamente no saber universal. Infelizmente para a nossa inapetência por trabalhos programados e feitos em colaboração, e para uma insegurança provinciana que predispõe à subalternização relativamente às grandes culturas estrangeiras, não basta importar, traduzir e imitar. (Assim como, para evitar essa dependência, não basta ignorar)" [Soveral, 1992: 4].
É difícil, no sentir do nosso autor, definir o estatuto epistemológico desse viabilizador de mediações culturais, o historiador das idéias. A sua função deve ser criativa, como a do filósofo. A propósito, afirma: "Qualquer obra cultural autêntica manifesta sempre algo de novo, que é afinal aquilo que verdadeiramente interessa captar a sublinhar. Para isso é necessário que o intérprete assuma a posição do filósofo, quando se tratar da obra filosófica, tal como a do pintor, quando se tratar de pintura, etc. E a dificuldade consiste precisamente em determinar as características próprias desse filosofar marginal, de circunstância e por obra alheia, que é próprio do crítico, desse filosofar de quem não se apresenta como filósofo. Da mesma forma que será difícil, mais ainda, caracterizar a posição e a actividade, quase paradoxais, de um pintor que não pinta" [Soveral, 1992: 4].
Se é difícil definir o estatuto epistemológico do historiador das idéias, é fácil, contudo, identificar o vício que pode comprometer, de vez, o seu trabalho: a má-fé, o preconceito e a paixão ideológica. A respeito, escreve o nosso autor: "Nada mais ingênuo do que supor que a ingerência grosseiramente repressiva das censuras oficiais esgota as formas de atentar, no plano da vida social da cultura, contra a liberdade de espírito; mais graves serão a má-fé, o preconceito e a paixão ideológica que, além de inquietarem, como é óbvio, a acção dos intérpretes, comentadores e divulgadores, contribuem, conscientemente ou não, para manter em estado generalizado de ignorância, único que permite, impunemente, tais violências" [Soveral, 1992: 4-5].
Vale a pena destacar a originalidade da teoria do conhecimento de Eduardo Soveral, que partindo da assimilação crítica das formas de fundamentação do conhecimento legadas pela filosofia moderna, soube aproveitar delas (inspirando-se numa abordagem fenomenológica) os aspectos metodológicos condizentes com a afirmação dos conhecimentos metafísicos, num contexto que supera qualquer dogmatismo e que se insere plenamente na modernidade, ao abarcar a idéia de experiência (à luz da filosofia lockeana) e projetando, de outro lado, o conhecimento no mundo da vida, ao assinalar-lhe o necessário fundamento ôntico-antropológico que o caracteriza radicalmente e ao abri-lo (sob a inspiração de Leonardo Coimbra) à concepção criacionista da moral. De singular acuidade é a revalorização, por Soveral, do juízo tautológico como paradigma do conhecimento (porquanto explicitador da base ôntica apontada), retomando, nesse ponto, a posição do autor do Ensaio sobre o entendimento humano [Cf. Locke, 1956: 523-524], obra da qual Soveral realizou, aliás, impecável tradução na língua portuguesa.
Concluamos destacando os pontos essenciais da metodologia que Soveral indica para o estudo da história das idéias filosóficas, no contexto das filosofias nacionais. Sete itens são por ele assinalados: a) a determinação de problemas ou filosofemas; b) o estudo das formações históricas desses filosofemas; c) a análise do desenvolvimento lógico historicamente dado às soluções desses filosofemas; d) a consideração do desenvolvimento histórico dado à vigência dessas soluções nos vários contextos sociais; e) a explicitação das novidades que implicou a formulação de novos filosofemas e / ou a reformulação de filosofemas já existentes; f) a explicação das articulações lógicas que determinaram os novos filosofemas ou a sua reformulação; g) a determinação da vigência dos novos filosofemas e / ou suas modificações. Referindo-se ao primeiro item, frisa Soveral: "a determinação de filosofemas, ou seja, de problemas que, equacionados a partir das interrogações mais amplas e radicais que se abrem ao espírito do homem, exige soluções inteligíveis e exaustivamente fundamentadas" [Soveral, 1979: 63].
O ponto de partida da metodologia apresentada pelo pensador português coincide, em essência, com o método assinalado pelos culturalistas brasileiros (Reale e Paim) para o estudo da história das idéias filosóficas. Trata-se de não pré-julgar acerca da filosofia de determinado autor, mas de ouvi-lo, tratando de entender a problemática que pretendia resolver.

BIBLIOGRAFIA

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