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terça-feira, 21 de abril de 2020

LIBERALISMO, CONSERVADORISMO E SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO


Caracterizarei, neste artigo, a mentalidade conservadora, no seio da sociologia do conhecimento, colocando-a diante da mentalidade liberal. O pensamento conservador age, sempre, como resposta a uma ideologia que ele pretende combater e que se comporta como utopia. No caso da explanação que será feita, a ideologia que se opõe ao conservadorismo, é o liberalismo. Quatro itens serão desenvolvidos: I– Ateorização e anti-economismo. II – Reação. III – Morfofania[1] da verdade. IV - Cronontaxiologia.[2]
Como acertadamente afirma João Camillo de Oliveira Torres (1915-1973), “não é fácil definir o que é o conservadorismo, antes um estado de espírito do que um sistema racionalmente fundado, se podendo dizer o mesmo das posições que lhe são contrárias. Muitos autores já o estudaram e o trataram de fixar em vários pontos descritivos da situação conservadora, mas que dificilmente destacam a devida posição”.[3]
Em que pese essa dificuldade, proveniente da índole não sistemática da mentalidade conservadora, intentarei uma caracterização dos aspectos que, a meu ver, tornam sui generis a atitude conservadora, preferencialmente no campo político. Agruparei em quatro itens esses aspectos: ateorização e anti-economismo, reação, morfofania da verdade, e cronontaxiologia.
I – Ateorização e anti-economismo. O conservadorismo tem desconfiança em face do papel teórico atribuído pelo liberalismo à razão e menospreza as atividades do homo oeconomicus. Essas atitudes encarnam-se, de forma clara, naquilo que poderíamos denominar de “concepção nobiliárquica da vida”, que aparece nas civilizações ibérica e ibero-americana.
Em face da inserção do indivíduo no mundo, o liberalismo destaca dois ideais básicos, notadamente a partir da síntese efetivada por John Locke (1632-1704) nas suas obras fundamentais, intituladas: Ensaio sobre o entendimento humano e Dois tratados sobre o governo civil, publicadas, respectivamente, em 1689 e 1690.[4] A razão humana joga um papel de primeira ordem na orientação do indivíduo, para cumprir com a sua missão de conquistar o mundo, transformando-o mediante o trabalho. A presença do homem no mundo possui uma finalidade básica: se apropriar da natureza, mediante o trabalho, transformá-la e, assim,  fazer uma obra digna da glória de Deus. Essa missão, no contexto calvinista que a inspira, é um indício da predestinação de quem a cumpre.
A razão é, para a tradição liberal, uma luz natural que guia o indivíduo, sem necessidade de recorrer a uma iluminação sobrenatural, como tinha sido destacado nas grandes sínteses teológico-filosóficas da Idade Média. A razão é, também, uma faculdade não meramente especulativa, mas, também, prática. No estado de natureza,[5] ela corresponde à faculdade ou ao poder de legislar do Estado de Sociedade, e é a lei que orienta o indivíduo na salvaguarda dos seus direitos inalienáveis que, segundo Locke, identificam-se com a vida, a liberdade e as posses. A razão natural é, portanto, um bom senso inato que guia o indivíduo durante a sua passagem pelo mundo e lhe assinala a forma de defender os seus direitos inalienáveis. Quando o indivíduo entra em sociedade, mediante o pacto social, o bom senso original que repousa nele, essa luz natural que a todos assistia no estado de natureza, converte-se em faculdade de legislar, que se realiza mediante a sujeição da sociedade à vontade da maioria. É, pois, a maioria dos indivíduos que se fazem representar, aquela que encarna a racionalidade social, de tal forma que resulta irracional se opor a ela.
A racionalidade social, que Thomas Hobbes (1588-1679) tinha concentrado no poder do Estado absoluto ou Leviatã,[6] Locke a faz repousar na maioria dos que se fazem representar no Parlamento. A razão do indivíduo alargou-se deste ao poder que dá unidade à sociedade. Esta concepção que privilegia a razão individual, na concepção hobbesiana ou lockeana, é adotada, integralmente, nas versões americana e francesa do liberalismo político.
Fazendo eco ao primado da razão individual na filosofia cartesiana, os filósofos franceses dos séculos XVII e XVIII, Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784), Montesquieu (1689-1755), Rousseau (1712-1788) e todos aqueles sob cuja inspiração se gestou e se desenvolveu o complexo fenômeno econômico-político e cultural que recebeu o nome de Revolução Francesa, destacam o papel norteador da razão que é interpretada – como em Descartes (1596-1650) – não como simples razão especulativa, mas, basicamente, como razão prática que ilumina o homem no processo de se apoderar do mundo. Segundo Descartes, no plano da temporalidade, ao homem corresponde uma missão fundamental: se apoderar da natureza, seguindo as leis que são próprias dela, ou seja, as leis do movimento. E é a razão prática a encarregada de orientar o homem nessa tarefa.
Dentro desse contexto se movimentavam, também, os pensadores da época da Revolução Americana, embora sem a profundidade filosófica dos autores europeus. Thomas Jefferson (1743-1826), James Madison (1751-1836), John Jay (1745-1829), Alexander Hamilton (1755-1804), etc.[7] foram enfáticos ao reivindicar o lugar que corresponde à razão individual, na vida do homem em sociedade. Nos anos que seguiram à Convenção de Filadélfia (1786) e por causa da necessidade política de que o texto constitucional fosse ratificado pelos diferentes Estados, mediante a sua aprovação pelas Assembleias Provinciais, desenvolveu-se uma intensa atividade jornalística que divulgou as ideias fundamentais que inspiraram os constituintes americanos. Na série de artigos de imprensa compilados na obra O Federalista, foi sintetizada a discussão levada a cabo na área de Nova Iorque. Ali encontramos, novamente, as ideias de Locke acerca do papel orientador da razão na organização da sociedade. Foi formulado, ali, o princípio da maioria, como norma reitora da racionalidade social.
Como destacou Tocqueville (1805-1859), na América foi ampliado o espaço da representação em relação à Europa.[8] Enquanto que, para John Locke, só podia se fazer representar aquele que tivesse posses (pois, segundo a convicção calvinista, ao adquiri-las tinha dado prova de que fez, na terra, uma obra digna da glória de Deus), para os americanos era válida uma ampliação do conceito de representação, de acordo com a tendência que terminou desaguando, nos Estados Unidos e na Europa, nas reformas efetivadas, no século XIX, que conduziram ao sufrágio universal. Nessa ampliação do conceito de representação foi muito importante, além de Tocqueville, o conjunto de obras dos utilitaristas ingleses, notadamente as de John Stuart Mill (1806-1873).
Para John Locke, somente os proprietários eram autênticos detentores do bom senso, que deveria reger a organização da sociedade. Para os liberais posteriores ao século XVIII, no entanto, todo indivíduo era, potencialmente, suscetível de encarnar o bom senso, sendo necessário, apenas, um reto processo educacional. Para os ideólogos liberais, passou a ser aceita a ideia de que a racionalidade social se concretiza na vontade da maioria. A razão da maioria é a única fonte da organização social.
Os ideólogos conservadores contrapuseram-se ao papel preponderante que a filosofia liberal atribuiu ao indivíduo, como reação contra a evolução tortuosa do liberalismo, ao longo do século XVIII, que culminou com a Revolução Francesa (1789). Os pensadores conservadores foram unânimes em manifestar a sua profunda desconfiança para com a razão individual, geradora de tantos males. Essa foi a tônica dos que criticaram a Revolução Francesa como Edmund Burke (1729-1797), Augusto Comte (1798-1857), Joseph de Maistre (1753-1821) e o visconde Luís de Bonald (1754-1840). Eles destacaram a necessidade de uma tutela para a razão individual que, deixada livre, sem controles, tinha produzido tantas aberrações. Essa tutela foi identificada com uma volta à tradição mediante a imposição de uma elite, que seria a fiel intérprete daquela. Em alguns casos, foi exigida a presença da fé, como elemento de controle sobre a razão. É o fenômeno visível no tradicionalismo francês de inspiração católica, presente na obra de Joseph de Maistre e Luís de Bonald. Um exemplo de tradicionalismo não religioso, mas de cunho filosófico, é encontrado, na América espanhola, na influência do krausismo, que destacou a necessidade de um controle, para a razão individual, a partir da tradição espiritualista contrária ao homo oeconomicus e que se fez presente numa rígida hierarquia social, de inspiração platônica, em cujo cume deveriam estar os educadores e os artistas.[9]
Uma posição mais equilibrada, entre razão individual e tradição, foi defendida, na França, pelos doutrinários, cujas figuras mais importantes foram Henri-Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830), François Guizot (1787-1874) e Pierre-Paul Royer Collard (1763-1845), sendo Tocqueville, com a sua teoria do “interesse bem compreendido”, o representante dessa tendência no seio do liberalismo democrático. Nesse núcleo deita raízes o liberalismo conservador que, na França, teve, em Raymond Aron (1905-1983), o seu grande ícone no século XX.
À margem do liberalismo, a posição conservadora foi representada, no seio da filosofia francesa, por Augusto Comte, que defendia a tese de que os males sociais seriam superados mediante o combate à desordem individual, no terreno da razão disciplinada pela tradição e, também, no plano dos costumes, regenerados pelo combate ao individualismo e pelo esclarecimento científico nas organizações sociais, graças a um conveniente processo educacional. “Os vivos devem ser governados pelos mortos”, apregoava o filósofo de Montpellier. Tal convicção conduziu, no Brasil, à instauração de uma ditadura cientificista e moralizadora, implantada por Júlio de Castilhos (1860-1903) no Rio Grande do Sul, entre 1891 e 1930 e alargada, no plano nacional, por Getúlio Vargas (1882-1954), com o denominado “Estado Novo” (1937-1945).
Karl Mannheim (1893-1947)[10] realizou uma detalhada análise da desconfiança da mentalidade conservadora em relação à razão individual. Segundo os conservadores, pensa este autor, a razão não tem nenhuma predisposição para teorizar. Isso se fundamenta no fato de que o homem não é induzido a pensar pelas situações reais em que vive, enquanto se encontrar perfeitamente ajustado a elas. Em tais condições, o ser humano tende a considerar aquilo que o rodeia como parte de uma ordem mundial natural, que não lhe coloca nenhum problema. É por essa razão que Mannheim afirma que a mentalidade conservadora não possui nenhuma utopia, entendida como uma construção ideal que vai além daquilo que é dado imediatamente, na concreção do momento histórico. A respeito, Mannheim frisa: “Idealmente (essa concreção) está, na sua mesma estrutura, em completa harmonia com a realidade que, por enquanto, dominou. Carece de todas aquelas reflexões e iluminações do processo histórico que provêm de um impulso progressivo”. Por esse motivo, Mannheim destaca que o tipo conservador de conhecimento é, originariamente, de um tipo que garante o domínio prático. Trata-se de uma série de orientações habituais e, algumas vezes, reflexivas, acerca dos fatores que são imanentes à situação. Os elementos ideais que, na nossa vida diária, se contrapõem ao concretamente dado, são restos da tensão dos períodos primitivos, quando ainda não havia uma completa estabilização no mundo; mas, sua atuação, no presente, é apenas ideológica, como crenças, mitos e religiões, que devem ser situados no campo que lhes corresponde: além da história. “Nessa etapa – frisa Mannheim – o pensamento se inclina a aceitar o contorno total na concreção acidental em que ocorre, como se esta fosse a ordem exata do mundo e tivesse que se dar como pressuposição e sem apresentar nenhum problema (...)”.[11]
Em tal perspectiva, a razão individual não tem nenhuma possibilidade de realizar uma construção, segundo as suas próprias inclinações. Está encadeada à concreção do momento e daí não pode sair. É uma tutela exercida pelo ôntico. O caráter débil da razão liberal, para os conservadores, é expresso assim por Mannheim: “Os conservadores consideraram a ideia liberal que caracterizou o período da Ilustração, como algo vaporoso e carente de concreção. E foi, a partir desse ângulo, por onde empreenderam o seu ataque contra ela e a desprezaram. Hegel (1770-1831) via nela nada mais do que uma simples ‘opinião’ – uma pura imagem – uma possibilidade pura, por trás da qual a gente se refugia, se salva a si mesmo e elude as exigências do momento”.[12]
A sujeição da razão humana à concreção histórica foi caracterizada pelo sociólogo americano Charles Wright Mills (1916-1962) da seguinte forma, ao analisar o modo como se dava, no meio estadunidense, ao longo do século XX: “Aquilo que descobriram [os intelectuais conservadores norte-americanos] é a falta de inteligência e de moralidade na vida pública do nosso tempo, e o que conseguiram criar é uma simples elaboração do seu próprio estado de ânimo conservador. É um estado de ânimo muito adequado para homens que vivem num vazio político. No fundo dessa atitude, há um sentimento de importância sem angústia e uma sensação de pseudo-poder, baseada, unicamente, numa falsa segurança. Quebrando a vontade política, esse estado de ânimo ou humor permite que os homens aceitem a depravação pública, sem nenhum sentido íntimo de ultraje, e que renunciem à meta essencial do humanismo ocidental, tão fortemente sentida na experiência norte-americana do século XIX: o presuntuoso domínio do destino do homem pela razão”.[13]
Anteriormente, ao fazermos referência ao papel da razão para o pensamento liberal, tinha sido analisado, conjuntamente, o relativo à segunda grande ideia que o liberalismo apresenta, em relação à inserção do indivíduo no mundo, a ideia de que a finalidade única consiste em se apoderar o homem da natureza, mediante o trabalho, a fim de fazer uma obra digna da glória de Deus. Esse pensamento ajuda a configurar, nos países anglo-saxões, o ideal do homo oeconomicus, que, mediante o seu trabalho, se converte em proprietário, se tornando o único que deve gozar dos direitos na sociedade e a quem compete governar, com o auxílio da representação. Ora, a filosofia conservadora reage contra essa visão econômica do homem, tentando reivindicar uma concepção espiritualista e desinteressada. Trata-se de uma nova “epoché”, na qual o conservadorismo submerge o ser humano, desta vez, do ponto de vista de sua liberdade e do seu agir. Onde apareceu mais nítida essa reação foi na Espanha, país em que não houve influência do puritanismo calvinista e, ao contrário, se consolidou um espiritualismo de inspiração medieval.
O historiador colombiano Jaime Jaramillo Uribe (1917-2015) analisou de maneira bastante completa esse fenômeno, na obra intitulada: El pensamiento colombiano en el siglo XIX.[14] Segundo este autor, na Espanha surge, desde o final da Idade Média, um tipo cultural diametralmente oposto ao homo oeconomicus, que desde o surgimento da Idade Moderna foi se firmando na Europa, acompanhando o fenômeno do nascimento e expansão das cidades, origem da nascente burguesia. As características do tipo castelhano, do cavaleiro cristão que Manuel García Morente (1886-1942) define como abandeirado de uma causa e possuidor de virtudes nobiliárquicas, como o anseio de grandeza, o arrojo, a altivez, o palpite e não o cálculo, o personalismo e o culto à morte, modelaram-se ao longo de toda a história da Espanha, sobretudo durante o episódio que foi tão decisivo na vida do povo espanhol: a luta de vários séculos contra os muçulmanos, em defesa da sua própria existência e da cristandade. Essa defesa da cultura hispânica diante do invasor, foi apreendida, desde o início, como a defesa de si próprio.
A respeito, escreve Jaramillo Uribe: “Ao terminar essa contenda e ao se iniciar a Época Moderna, que já vinha amadurecendo e se gestando no Continente e nas Ilhas Britânicas, tinha se constituído na planície castelhana um tipo de homens cujas virtudes não eram as do homo oeconomicus. A descoberta da América e a luta pelo Império que, inesperadamente, lhes dava a história, firmaram o seu caráter cavaleiresco e heroico e terminaram por frustrar, definitivamente, a formação, em Castela, do tipo que construiu a economia moderna do capitalismo e, com isso, a possibilidade de que Espanha assimilasse o espírito das novas formas de vida, sobretudo o moderno ethos do trabalho”.[15]
Analisemos, com mais detalhe, as duas notas que Jaramillo Uribe destaca, em relação ao caráter espanhol, no texto que acaba de ser citado: a afirmação sobre o invasor árabe e sobre a conquista do Novo Mundo. Ao submeter o elemento estranho depois da Reconquista, o espanhol encontrou dois grupos sociais, mouros e judeus, que o supriram nas tarefas econômicas. O judeu, nas ocupações comerciais, bancárias e financeiras e o mouro nos trabalhos agrícolas e artesanais. A respeito, escreve Jaramillo Uribe: “O trabalho, praticado, assim, por grupos considerados inferiores religiosa e politicamente, recebeu os mesmos estigmas que naquelas sociedades onde o exerciam escravos. Foi uma ocupação de párias e não de senhores”. Entre os historiadores tem havido muita discussão sobre a abrangência que teve a expulsão de árabes e judeus sobre a economia da Espanha; tem havido controvérsias acerca da importância que alguns reconheceram ao elemento árabe e judeu, e sobre o número de elementos que abandonaram a península quando se produziram os editos de estranhamento. No entanto, todos os historiadores estão de acordo em afirmar que ambos, mouros e judeus, eram pilares da atividade econômica espanhola.
O historiador espanhol Américo Castro (1885-1972) faz um balanço das palavras relativas às atividades urbanas e rurais provenientes do árabe, o que indica que mouros e judeus foram os fatores mais importantes nesses campos, dos que, aliás, estiveram ausentes os espanhóis. Eis alguns dos casos mencionados pelo citado autor: “(...) Essas importações de léxico referem-se a muito diversas zonas da vida: agricultura, construção de prédios, artes e ofícios, comércio, administração pública, ciências, guerra. Já é significativo que tarefa (tarea, em espanhol), seja árabe. Os alarifes planejavam as casas e os albañiles (pedreiros, em português) as construíam; e, por isso, são arabismos alcácer, alcova, azulejo, açoteia, baldosa, saguão, aldrava, alfeiçar; a grande técnica no manejo da água aparece em acequia, açude (...), alverca e em multidão de outras palavras. Porque os costureiros eram mouros chamavam-se alfaiates (alfayates, em espanhol); os barbeiros eram alfazemes; as mercadorias eram transportadas por tropeiros e recoveiros; eram vendidas em socos ou açougues, em armazéns, (...), se pagavam os direitos em alfândegas, (as mercadorias) eram medidas em arrobas, (...), quintais, etc. (...). Eram inspecionadas pelo almotacem; o almoxarife recebia os impostos (...). Cidades e castelos eram regidos por alcaides (...). As contas eram feitas com cifras e algoritmos, ou com álgebra; os alquimistas destilavam o álcool nos seus alambiques (...), ou preparavam álcalis, elixires ou xaropes, que eram despejados em redomas. As cidades constavam de bairros e arrabaldes e as pessoas comiam açúcar, arroz, laranjas, limões, toronjas, beringelas, cenouras, (...), sandias, alcachofras, (...), almondegas, escabeche,  alfajores e muitas outras coisas. As plantas mencionadas anteriormente eram cultivadas em terras de regadio, e como na Espanha chove pouco (exceto na região Norte), a irrigação requeria muito trabalho e arte para canalizar e distribuir a água, (atividade) na qual sobressaíram os mouros, pois precisavam de água para lavar o corpo e para fertilizar a terra. Citei, antes, alverca, acequia, mas o vocabulário relativo à irrigação do campo é muito amplo: eis uma amostra: açude (...)”.[16]
Paralelamente à sua afirmação nobiliárquica sobre judeus e mouros, o caráter ibérico firmou-se, sobre o Novo Mundo, de uma forma que nega as virtudes do homo oeconomicus. A conquista predatória do solo americano, impulsionada pela mentalidade aventureira e a lenda de El Dorado, foi o marco econômico que presidiu a obra de Espanha e Portugal no Novo Mundo. O ouro e a prata que chegaram em torrentes do Novo Mundo produziram, para Espanha, inflação crescente e uma economia onde a produção de bens de consumo simplesmente inexistia. Por isso, é lícito concluir, com Jaramillo Uribe, que longe de ter sido a derrota de mouros e judeus, a oportunidade para que espanhóis e portugueses mudassem a sua atitude em face do trabalho, “nessa conjuntura, a história (lhes) ofereceu o Novo Mundo, que continuou exigindo virtudes heroicas e colocou à sua disposição uma nova classe pária: as populações indígenas, que continuaram gerando riquezas para o povo senhorial, conferindo à atividade econômica, um caráter ignóbil”.[17]    
O espiritualismo de inspiração medieval, que faz do nobre espanhol ou português um conservador das tradições nobiliárquicas sobre o ethos do trabalho e que desconfia da razão individual, foi muito bem caracterizado por Américo Castro, no seguinte trecho: “O cavaleiro espanhol (...) precisava se rodear de um ambiente de transcendência, de um prestígio religioso, régio ou de honra. Tinha de se sentir num além mágico, e como suspenso sobre a superfície da terra. Daí o desdém pelas atividades mecânicas, comerciais ou de pura razão”.[18]      
II – Reação. A estruturação da ideologia conservadora ocorre como anti-utopia que serve para a auto orientação e a defesa e como reação contra a hierarquização – baseada na riqueza – da sociedade burguesa, numa tentativa para revalorizar um espiritualismo de inspiração medieval, reconhecendo uma hierarquização de ordem espiritual. Analisemos cada um dos aspectos subjacentes a essa caracterização.
Para Mannheim,[19] a mentalidade conservadora é obrigada a colocar em tela de juízo as bases do seu próprio domínio e a elaborar as suas reflexões histórico-filosóficas, somente em virtude do contra-ataque das classes opostas, que pretendem derrubar a ordem existente. Isso é tão certo que, se não se tivesse dado o agressivo avanço das classes progressistas, os conservadores teriam permanecido inconscientes da sua própria ideologia “e a concepção conservadora continuaria no nível da conduta inconsciente”. Portanto, a mentalidade conservadora descobre a sua própria identidade, somente “ex post facto”. As ideologias conservadoras se organizam, na Europa, como reação contra a progressiva ascensão de agressivos grupos liberais, que já desde o início da Idade Moderna vão se reforçando, mediante o desenvolvimento do comércio, contra as classes dominantes tradicionais, o clero e a nobreza. Assim, o conservadorismo é uma reação contra a ascensão do liberalismo. Dessa forma, o encontramos na França e na Alemanha, e assim o encontraremos em Iberoamérica. Não é casual que, na Nova Granada, a primeira plataforma conservadora tenha aparecido em 1849, um ano depois de a burguesia comerciante exportadora ter iniciado, em 1848, uma época de profundos câmbios econômicos e sociais, que afetavam às classes tradicionais: o clero e a aristocracia latifundiária, de origem colonial.
Mannheim destaca de que forma, na Alemanha,[20] a classe social conservadora que conquistou a estabilidade mediante a posse da terra, não conseguiu estruturar uma interpretação teórica de sua própria existência, e como a descoberta da ideia conservadora ocorreu devido a um grupo de ideólogos que apoiaram os conservadores. Esse foi o trabalho dos românticos conservadores, especialmente de Hegel, que ofereceu, às antigas classes latifundiárias, uma interpretação coerente acerca do sentido da existência conservadora. Por tal motivo, frisa Mannheim que “foi a grande realização de Hegel edificar, contra a ideia liberal, outra oposta conservadora, não no sentido de purificar, artificialmente, certa atitude e certo modo de conduta, mas, melhor, no sentido de elevar uma forma de experiência, já existente, até um nível intelectual, a fim de sublinhar as caraterísticas distintivas que a contrapunham à atitude liberal diante do mundo”.[21]
O próprio Hegel testemunha a sua valorização do conservadorismo, ao afirmar que a ideia de uma realidade histórica consegue se tornar visível só num segundo estágio, quando o mundo conseguiu adotar uma forma interna fixa e determinada. No famoso parágrafo final do prefácio de Hegel à Filosofia do Direito, frisa o filósofo alemão: “Somente mais uma palavra relativa ao desejo de ensinar ao mundo o que deveria ser. Para semelhante propósito, a filosofia, pelo menos, chega, sempre, tarde demais. A filosofia, como pensamento do mundo, não aparece até que a realidade tenha completado o seu processo formativo e se tenha preparado a si mesma. Desse modo, a história corrobora aquilo que ensina a concepção de que o ideal, somente, aparece na maturidade da realidade, como o oposto ao real; apreende o mundo real, na sua substância, e o configura num reino intelectual. Quando a filosofia pinta, com cores cinzas, uma forma de vida, se tornou velha e não pode ser rejuvenescida por esse cinza, senão somente conhecida. A coruja de Minerva levanta o voo quando as sombras da noite se aproximam”.[22] Mannheim destaca, também, que, enquanto a ideia liberal, traduzida em termos racionalistas, insiste mais no normativo e no dever ser, “o conservadorismo translada a ênfase à realidade existente, àquilo que é. O fato da simples existência de uma coisa, outorga-lhe o mais alto valor”.[23]
No tocante ao segundo aspecto da reação, como característica da mentalidade conservadora, considero que esta nega a estratificação da sociedade burguesa, baseada no poder econômico, e pretende erguer a bandeira de um igualitarismo de inspiração medieval, que não se contrapõe ao reconhecimento de uma hierarquização espiritual da sociedade. Jaramillo Uribe[24] destacou de que forma a nobreza europeia foi reagindo, nos países do continente, contra o avanço da burguesia. É claro que isso não aconteceu em meios como as Ilhas Britânicas, onde a própria nobreza assumiu a escala de valores burgueses, se tornando comerciante.
Mas o romantismo alemão, por exemplo, que aglutinava tantas figuras nobres, manifesta a sua desadaptação em face da concepção burguesa do mundo. O protesto dos nobres franceses manifestou-se no nobre aventureiro, no emigrado mercenário e no pensador arcaizante e antidemocrático, como o combativo Joseph de Maistre. Mas, onde mais claro se manifesta esse protesto, é na Espanha, o país nobre por excelência, digno das tradições heroicas de Dom Quixote. Jaramillo Uribe não duvida em afirmar que este “foi o extremo desse protesto nobiliárquico contra o mundo que começava a configurar o homem burguês. Com uma circunstância especial, que constitui a clave de toda a evolução posterior da nação espanhola e de sua dificuldade para se adaptar às formas do viver moderno (...). Na Espanha, o povo mesmo adquiriu a concepção nobiliárquica da vida, e, situada fora desta, somente ficou uma burguesia minoritária que não conseguiu, nunca, ter considerável influência política ou espiritual e que, aliás, esteve circunscrita aos contornos regionais da Catalunha e do País Basco. A fidalguia espanhola, presente até nos seus vagabundos e mendigos, é inspirada por ideais nobiliárquicos da vida, particularmente aqueles que, em reação contra a economia e o trabalho, possuem um acentuado caráter anticapitalista e antiburguês: a hospitalidade, a prodigalidade no gasto, a ausência de previsão para o amanhã, o menosprezo pelo dinheiro e o amor ao ócio”.[25]
Mas, em contraste com esta concepção nobiliárquica que abarca um igualitarismo da sociedade, é importante destacar que o “anarquismo” social hispânico reconhece hierarquias espirituais. Se bem é certo que, como frisava Ramiro de Maeztu (1874-1936),[26] “aos olhos do espanhol, todo homem, qualquer que for a sua posição social, o seu saber, o seu caráter, a sua nação ou a sua raça, é, sempre, um homem: mesmo que pareça muito baixo, é rei da criação; mesmo que se encontre muito alto, é uma criatura pecadora e débil”. O espanhol reconhece as categorias espirituais que regem a sociedade: a Igreja e a Monarquia, como expressões máximas da alma espanhola. Para não falar das características hierarquizantes e espiritualistas, como as desenvolvidas pelos krausistas,[27] por exemplo, cuja concepção da sociedade descansa na chamada por eles de “selectocracia”, que reconhece a superioridade das minorias de intelectuais e artistas, os únicos que se elevaram por cima da animalidade e que têm, como missão, educar as massas incultas no cultivo dos valores espirituais, que são os únicos capazes de humanizar o homem.
III - Morfofania da verdade. No conservadorismo, é caraterística a identificação da verdade com “a ideia enraizada na realidade viva do aqui e do agora e exprimindo-se, de forma concreta, nela”.[28] Essa manifestação concreta da verdade tem a sua expressão, por exemplo, no tema do agrarismo como leitmotiv da literatura e da filosofia (na Espanha e em Iberoamérica) e na morfologia goethiana, que insiste na utilização da percepção intuitiva como instrumento científico, método que também utiliza a escola histórica (na Alemanha). Centrarei a atenção nessas duas expressões da morfofania da verdade que acabam de ser enunciadas.
O agrarismo, ou seja, a expressão da problemática da vida humana não em termos abstratos, mas em formas plásticas tiradas da natureza, é uma tendência nitidamente conservadora. Em primeiro lugar, porque é uma tentativa de encadear a razão ao dado imediato, num intento de concreção da mesma ao meio circundante. Em segundo lugar, pelo caráter não utilitarista de valorização da terra, fundamento da vida agrária. A terra goza, aqui, de uma caraterística de mistério, é considerada como guardando em si, oculta, uma realidade insuspeita e inesgotável, em termos de apreciação humana. A morfofania caracteriza-se, assim, como nota típica do conservadorismo, graças a uma espécie de redução à primeira caraterística da mentalidade conservadora, já analisada.
Para Espanha e Portugal, a terra possui um valor sacro porque é dela de onde provém e onde se dissolve toda forma biológica. Aquele que possui a terra, em termos ibéricos, possui a vida. E é a terra a única que nos garante segurança. Para John Locke, também, a terra joga um papel essencial na vida humana: é a fonte da segurança e da liberdade. No entanto, há uma diferença abissal na forma como Locke e a mentalidade ibérica interpretam a relação do homem com a terra. O primeiro a entende como a posse por excelência, à qual o homem acede, mediante o trabalho, que projeta o próprio corpo sobre a natureza e, assim, torna-a algo próprio.
A mentalidade ibérica, diferentemente, se extasia na posse da terra, fazendo dela algo representativo. É como se o homem se relacionasse com ela não através do trabalho, somente, mas mediante a contemplação. Para os ibéricos, a terra é a mãe que garante o seu sustento e que os acolhe, desde o nascimento até a morte. Para o inglês, a terra é meio de sustento e base da comercialização. O ibérico não apreende a terra em termos comerciais, mas vitais. A respeito, frisa Américo Castro: “As trocas comerciais (...) desenraizam o homem da própria terra, o desintegram, o afastam da natureza e o fazem incorrer na fraude. Em tais sulcos caem as sementes das quais brotarão, mais tarde, os sonhos da Idade de Ouro, o menosprezo pela corte e o louvor à vida rústica, o romance pastoril e o horror de Dom Quixote às armas de fogo. Aqueles que não obtêm a sua substância da terra em que vivem, esses deixam, finalmente, de serem eles mesmos, se desintegram”.[29] Por essa razão Gaspar Melchor de Jovellanos (1744-1811) escreve que a posse da terra, na Espanha, ocorre “somente como uma especulação de orgulho e vaidade”.[30]
O agrarismo ibérico transladou-se a Iberoamérica. O elogio do rústico é um dos Leitmotivs da poesia e da literatura colombianas do século XIX. O sentimento rural enaltece a literatura virgiliana, entre as classes cultas da Colônia e da República. Em relação a este ponto, Jaime Jaramillo Uribe escreve: “O sentimento a que fazemos referência é o sentimento específico da terra, como aquilo que é imortal, autêntico. Não é o sentimento da natureza à maneira renascentista ou ao estilo exótico, de certa variedade da alma romântica”.[31]
A essa morfofania do espírito ibérico, que se exprime mediante a posse nobiliárquica da terra, acompanham outras formas concretas de representar um papel social. Assim as descreve Jaramillo Uribe: “A burocracia, o serviço eclesiástico e o exército – as armas e as letras – eram as formas de vida preferidas pelo espanhol. A superabundância de empregados, séquito nobiliárquico e funcionários eclesiásticos, quer  dizer, de classes improdutivas, era, desde a Idade Média, um traço característico da vida peninsular”.[32]
A morfofania como expressão do espírito racional aparece, também, no Brasil, onde o espírito conservador se manifestou, durante o século XIX, numa valorização muito forte da vida camponesa e da vinculação à terra, e no culto à figura do Imperador, como personificação vivente da Nação. Eis as palavras com que João Camillo de Oliveira Torres caracteriza esse fenômeno: “(Os conservadores brasileiros) não negavam a liberdade, nem a amavam menos do que outros. Somente sabiam que a liberdade não se mantém, unicamente, com palavras, gestos e hinos, mas que requer condições efetivas e bem fundadas na realidade (...). Pelas suas relações mais íntimas com as bases rurais da vida nacional, pelo seu realismo e a sua objetividade, que os tornavam imunes ao lado perigoso do liberalismo, que é a retórica, os ‘Saquaremas’[33], no fundo, defendiam uma política mais consistente, mais autêntica. Lendo um (visconde) de Uruguai, sentimos, literalmente, o cheiro da terra. Eram homens que viviam a realidade concreta do país em que estavam, não do país em que gostariam de estar (...). Nada prova melhor a disposição mais fiel dos conservadores em relação à realidade nacional, do que a sua defesa do Poder Moderador, quer dizer, da autoridade do Imperador. Os liberais queriam um parlamentarismo de tipo inglês, que reduzisse o Imperador à posição de meio juiz do jogo, que governasse de acordo às maiorias parlamentárias. Mas acontece que, por força das condições puramente sociais do país (densidade demográfica, população praticamente rural, etc.), a via eleitoral era impraticável. Faltava o que havia na Inglaterra: uma população urbana densa, uma classe média sólida. Ora, o Imperador (além de ser um tipo de autoridade sensível à imaginação popular, e respeitada) podia substituir, como  primeiro representante da nação, o corpo eleitoral, que de fato não tínhamos. E que tampouco poderíamos ter (...).[34]
Na Alemanha, a busca pela morfofania como meio de expressão do espírito nacional, foi realizada por Johan Wolfgang von Goethe (1749-1832) e a Escola Histórica. Em contraste com a pretensão liberal de identificar a ideia com uma construção abstrata da mente e de buscar, ali, a racionalidade do mundo, os conservadores alemães do século XVIII buscavam a racionalidade, ou melhor, o sentido da realidade em dois tipos de concreção morfológica: o espírito subjetivo e as criações culturais. A primeira tendência é representada, por exemplo, por Adam Müller (1779-1829),[35] que afirmava que nada pode substituir o espírito de um povo, como fonte de toda a vida social e cultural: “A constituição dos Estados não pode ser inventada. O cálculo mais lúcido, neste assunto, é tão fútil quanto a ignorância total. Não existe nenhum substituto do espírito de um povo, e nada pode substituir a força e a ordem que dele procedem, e não pode se encontrar nada parecido, nem sequer nos espíritos mais brilhantes, nem nos maiores gênios”. Essa ideia é expressada, em termos mais amplos, por Friedrich Carl von Savigny (1779-1861), para quem o sentido da realidade humana provém do espírito, que está em nós, como uma força que trabalha silenciosamente e que age, através de nós, para realizar as nossas obras.
A busca alemã pelo sentido da realidade, na concreção morfológica das criações culturais, se realiza com Hegel, mas, principalmente, é Goethe quem melhor se situa nessa perspectiva e a desenvolve. Segundo Mannheim, para a tendência que estamos comentando, o espírito humano está em nós, como uma enteléquia “que se desenvolveu a si própria nas criações coletivas da comunidade, do povo, da Nação e do Estado, como uma forma interna que, na maioria das vezes, se pode perceber morfologicamente. A perspectiva morfológica, aberta à linguagem, à arte e ao Estado, se desenvolve a partir desse momento. E, aproximadamente, quando a ideia liberal traduzia a ordem existente em movimento e estimulava a especulação filosófica, Goethe renunciava a esse método ativista, para se dedicar à contemplação, à morfologia”.[36] É com tal método como se dá a utilização da percepção intuitiva enquanto instrumento científico. Em alguns aspectos, o método seguido pela escola histórica, na Alemanha, é semelhante ao de Goethe. Ambos rastreiam a emanação das “ideias”, mediante a observação de diversas manifestações culturais, como a linguagem, o costume, o direito, o folclore, etc., não através de generalizações abstratas, “mas pela intuição simpática e a descrição morfológica”.
IV - Cronontaxiologia. No conservadorismo ocorre a descoberta do tempo como criador de valor ôntico e de ordem. Uma frase do historiador do Direito Giuseppe Salvioli, escrita no seu livro: Acerca da distribuição da propriedade fundiária na Itália no tempo do Império Romano (1899), exprime muito bem essa ideia: “O presente, mesmo depois das mais profundas revoluções morais e sociais, liga-se ao passado por vínculos tais que não se poderiam quebrar sem torna-lo um enigma”.[37] A ideia do tempo, como gerador de valor ôntico e de ordem, é explicada por João Camillo de Oliveira Torres desta forma: “Poderíamos definir o conservadorismo da seguinte forma: é uma posição política que reconhece que a existência das comunidades está sujeita a determinadas condições e que os câmbios sociais, para serem justos e válidos, não podem quebrar a continuidade entre o passado e o futuro. Podemos dizer que o traço mais característico da psicologia conservadora consiste, exatamente, no fato de que não considera viáveis as transformações e câmbios feitos sem o sentido da continuidade histórica. Mais ainda: o conservador considera impraticáveis e condenadas ao suicídio, todas as reformas fundadas, unicamente, na vontade humana, sem respeito pelas condições preexistentes. Podemos reformar por meio de um processo de cautelosa adaptação do existente às novas condições, mas não poderemos conseguir, nunca, o estabelecimento de algo radicalmente novo”.[38]
“O que pretende uma posição autenticamente conservadora?” – Indaga Oliveira Torres. – E responde: “Uma política autenticamente conservadora não pretende senão exigir que a história seja respeitada; não tomando a iniciativa de reformas, a menos que isso seja uma condição de conservação, uma reforma para evitar uma revolução, o conservadorismo busca acompanhar as transformações, de forma que defende o princípio de que, como diz justamente Augusto Comte, o progresso seja o desenvolvimento da ordem. O conservadorismo se justifica pela convicção, perfeitamente legítima, de que há valores estáveis na vida social e que certos bens precisam ser preservados”.[39]
Karl Mannheim faz ênfase em que o sentido do tempo, para a mentalidade conservadora, é completamente oposto ao do liberalismo. Ao passo que, para este, o futuro é tudo, “a forma conservadora de experimentar o tempo encontrou a melhor corroboração do seu sentido da determinação, na descoberta da importância do passado, na descoberta do tempo como criador de valor (...). Para o conservadorismo, tudo quanto existe possui um valor nominal e positivo, simplesmente porque chegou a existir, lenta e gradualmente. Consequentemente, além do fato de que a atenção se volta em direção ao passado e ao esforço para resgatá-lo do esquecimento, o que há de presente e de imediato, no conjunto do passado, converte-se numa experiência real”.[40]
A valorização do passado como criador de valor ôntico e de ordem conduz a uma conclusão, no plano da exigência de uma ordem hierárquica na sociedade: “se não destruirmos a ordem natural das classes e a hierarquia dos poderes, teremos superiores e caudilhos” que nos orientem, frisa C. Wright Mills,[41] ao comentar esse aspecto da mentalidade conservadora. O anterior equivale a afirmar que, para a mentalidade conservadora, um princípio indiscutivelmente válido é: “aceitar, agradecido, a direção de uma série de homens que são considerados como minoria consagrada”, segundo frisa Russell Kirk (1918-1994) na sua obra: The Conservative Mind.[42]
Consoante o sociólogo americano Robert Nisbet (1913-1996), o fato de o conservadorismo se referir ao passado como a um arquétipo do conhecimento, não é um argumento sério para exorcizá-lo dos estudos sociais. A respeito, frisa: “O significado  deste conceito, na nossa época, é muito claro e completamente útil, se deixarmos de lado os significados históricos que teve, tais como a referência pejorativa a certo tipo de ideias na época de Napoleão, ou a utilização que da mesma fez Marx como consciência coletiva de uma classe social. (...). A ideologia é um conjunto, razoavelmente coerente, de ideias morais, econômicas, sociais e culturais, que possui uma relação consistente e bem conhecida com a política e o poder político; mais especificamente, [constitui] uma base de poder que torna possível a vitória desse conjunto de ideias. Uma ideologia, em contraste com uma simples configuração passageira de opinião, permanece viva durante um considerável período de tempo, tem defensores e porta-vozes importantes, assim como um grau respeitável de institucionalização. É provável que, na sua história, haja figuras carismáticas, como Burke (1729-1797), Disraeli (1804-1881), Churchill (1874-1965), etc., entre os conservadores, ou os seus equivalentes entre liberais e socialistas”.[43]

BIBLIOGRAFIA

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NOTAS


[1] O termo Morfofania provém das palavras gregas morfé (=forma) e fainein (=aparecer).
[2] O termo Cronontaxiologia provém das palavras gregas: chronos (=tempo), on (=ser, ente), taxis (=ordem), axis (=eixo, centro, fonte de valor), lógos (=razão).
[3] TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império – Ideias e lutas do Partido Conservador brasileiro. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968, p. 1.
[4] Cf. LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. (Tradução de A. Aiex). São Paulo: Nova Cultural, 1988, coleção “Os Pensadores”. LOCKE, John. Two Treatises of Government. (Introdução e notas de P. Laslett). New York: Cambridge University Press, 1965.
[5] “Estado de Natureza”: ficção utilizada pelos jusnaturalistas dos séculos XVII e XVIII, para destacar os direitos fundamentais que o indivíduo, enquanto tal, possui, mesmo antes do seu ingresso em sociedade.
[7] Cf. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista. (Textos selecionados de F. Beffort; tradução brasileira de  A. dela Nina). 1ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção “Os Pensadores”. Cf. JEFFERSON, Thomas. Escritos políticos. (Tradução brasileira de L. Gontijo de Carvalho). 1ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção “Os Pensadores”.
[8] Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 2ª edição brasileira. (Tradução, prefácio e notas de Neil Ribeiro da Silva). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977, p. 135-151.
[9] Desse teor é o pensamento dos liberais da década de 1890, na Espanha, um de cujos principais expositores foi Francisco Giner de los Ríos, fundador da Instituição Livre de Ensino. A obra dos krausistas espanhóis foi divulgada, na América espanhola, por José Enrique Rodó (Uruguai). Já os krausistas portugueses tomaram o caminho da formulação de uma filosofia conservadora do direito, na trilha do pensador belga Tiberghien, que influiu em filósofos do direito portugueses como Vicente Ferrer Neto Paiva, que inspirou juristas do Largo de São Francisco, em são Paulo, como Galvão Bueno, que insistiu na necessidade de uma filosofia do direito vinculada aos ideais conservadores.
[10] Cf. MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía. (Introducción a la Sociología del Conocimiento). 2ª Edición en español. Madrid: Aguilar, 1966, p. 302-303.
[11] MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía, ob. cit., p. 303.
[12] MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía, ob. cit., p. 306.
[13] MILLS, C. Wright.  La élite del poder. 1ª edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1973, p. 303.
[14] JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX. 2ª edição. Bogotá: Editorial Temis, 1974, pgs. 9-14.
[15] JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX. Ob. cit., p. 13.
[16] CASTRO, Américo.  España en su historia. Buenos Aires, Eudeba, 1950, p.  62-63.
[17] JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX. Ob. cit., p. 15.
[18] CASTRO, Américo. España en su historia. Ob. cit., p. 63.
[19] Cf. MANNHEIM, Karl. Ideología y utopía. Ob. cit., p. 303-305.
[20] Cf. MANNHEIM, Karl. Ideología y utopía. Ob. cit., p. 305.
[21] MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía, ob. cit., p. 307.
[22] Citado por MANNHEIM, Karl, ob. cit., p. 304.
[23] MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía, ob. cit., p. 308.
[24] JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX. Ob. cit., p. 3-7.
[25] JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX. Ob. cit., p. 15.
[26] MAEZTU, Ramiro de. La defensa de la hispanidad. 5ª edição Madri, 1946. Citado por JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX, ob. cit., p. 8-9.
[27] Cf., a respeito: LÓPEZ Morillas, Juan. El krausismo español. 1ª edição. México: Fondo de Cultura Económica, 1956. GINER DE LOS RÍOS, Francisco. Ensayos. Madrid: Alianza Editorial, 1969. PIKE, Frederik B., “Making the Spanish World safe from Democracy: Spanish Liberals and Hispanismo”. The Review of Politics, julho 1971, p. 307-322.
[28] MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Ob. cit., p. 306.
[29] CASTRO, Américo. España en su historia. Ob. cit., p. 35.
[30] JOVELLANOS, Gaspar Melchor de. “Informe sobre la Ley Agraria”. Obras, Madri: 1935, t. I, p. 149, cit. por JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX, ob. cit., p.  15.
[31] JARAMILLO Uribe, Jaime.  El pensamiento colombiano en el siglo XIX. Ob. cit., p.  19.
[32] JARAMILLO Uribe, Jaime, Ob. cit., p.  14-15.
[33] Nome dado, durante o Império, aos integrantes do Partido Conservador.
[34] TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império. (Ideias e lutas do Partido Conservador Brasileiro). São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1968, p. XIV-XV.
[35] MÜLLER, A. Über König Friedrich II, und die Natur, Würde, und Bestimmung der preussischen Monarchie. Berlim, 1910, p. 49. Apud MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía, ob. cit., p. 307-308.
[36] MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía. Ob. cit., p. 306-308.
[37] Apud MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. 1ª edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, 2ª edição, epígrafe. A principal obra de Giusepe SALVIOLI foi: Sulla distribuzione dela proprietà fundiaria in Italia al tempo dell´Impero Romano - Studi di Storia Economica. Salerno: Archivio Giuridico, 1899.
[38] TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império. Ob. cit., p. 1-2.
[39] TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império. Ob. cit., p. 5.
[40] MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía. Ob. cit., p. 308.
[41] MILLS, C. Wright., citado por MANNHEIM, Ideología y Utopía, ob. cit., p. 305.
[42] KIRK, Russell. The Conservative Mind. Chicago, 1953. Cit. por Oliveira TORRES, in: Os construtores do Império, ob. cit., p. 1.
[43] NISBET, Robert. Conservadurismo. (Tradução espanhola de Diana Goldberg Mayo). Madrid: Alianza Editorial,  1995, p. 7-8.

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