Caracterizarei, neste
artigo, a mentalidade conservadora, no seio da sociologia do conhecimento,
colocando-a diante da mentalidade liberal. O pensamento conservador age,
sempre, como resposta a uma ideologia que ele pretende combater e que se
comporta como utopia. No caso da explanação que será feita, a ideologia que se
opõe ao conservadorismo, é o liberalismo. Quatro itens serão desenvolvidos: I–
Ateorização e anti-economismo. II – Reação. III – Morfofania[1]
da verdade. IV - Cronontaxiologia.[2]
Como acertadamente
afirma João Camillo de Oliveira Torres (1915-1973), “não é fácil definir o que
é o conservadorismo, antes um estado de espírito do que um sistema
racionalmente fundado, se podendo dizer o mesmo das posições que lhe são
contrárias. Muitos autores já o estudaram e o trataram de fixar em vários
pontos descritivos da situação conservadora, mas que dificilmente destacam a
devida posição”.[3]
Em que pese essa
dificuldade, proveniente da índole não sistemática da mentalidade conservadora,
intentarei uma caracterização dos aspectos que, a meu ver, tornam sui
generis a atitude conservadora, preferencialmente no campo político.
Agruparei em quatro itens esses aspectos: ateorização e anti-economismo,
reação, morfofania da verdade, e cronontaxiologia.
I – Ateorização e
anti-economismo. O
conservadorismo tem desconfiança em face do papel teórico atribuído pelo
liberalismo à razão e menospreza as atividades do homo oeconomicus. Essas
atitudes encarnam-se, de forma clara, naquilo que poderíamos denominar de
“concepção nobiliárquica da vida”, que aparece nas civilizações ibérica e
ibero-americana.
Em face da inserção
do indivíduo no mundo, o liberalismo destaca dois ideais básicos, notadamente a
partir da síntese efetivada por John Locke (1632-1704) nas suas obras
fundamentais, intituladas: Ensaio sobre o entendimento humano e Dois
tratados sobre o governo civil, publicadas, respectivamente, em 1689 e
1690.[4]
A razão humana joga um papel de primeira ordem na orientação do indivíduo, para
cumprir com a sua missão de conquistar o mundo, transformando-o mediante o
trabalho. A presença do homem no mundo possui uma finalidade básica: se
apropriar da natureza, mediante o trabalho, transformá-la e, assim, fazer uma obra digna da glória de Deus. Essa
missão, no contexto calvinista que a inspira, é um indício da predestinação de
quem a cumpre.
A razão é, para a
tradição liberal, uma luz natural que guia o indivíduo, sem necessidade de
recorrer a uma iluminação sobrenatural, como tinha sido destacado nas grandes
sínteses teológico-filosóficas da Idade Média. A razão é, também, uma faculdade
não meramente especulativa, mas, também, prática. No estado de natureza,[5]
ela corresponde à faculdade ou ao poder de legislar do Estado de Sociedade, e é
a lei que orienta o indivíduo na salvaguarda dos seus direitos inalienáveis
que, segundo Locke, identificam-se com a vida, a liberdade e as posses. A razão
natural é, portanto, um bom senso inato que guia o indivíduo durante a sua
passagem pelo mundo e lhe assinala a forma de defender os seus direitos
inalienáveis. Quando o indivíduo entra em sociedade, mediante o pacto social, o
bom senso original que repousa nele, essa luz natural que a todos assistia no
estado de natureza, converte-se em faculdade de legislar, que se realiza
mediante a sujeição da sociedade à vontade da maioria. É, pois, a maioria dos
indivíduos que se fazem representar, aquela que encarna a racionalidade social,
de tal forma que resulta irracional se opor a ela.
A racionalidade
social, que Thomas Hobbes (1588-1679) tinha concentrado no poder do Estado
absoluto ou Leviatã,[6]
Locke a faz repousar na maioria dos que se fazem representar no Parlamento. A
razão do indivíduo alargou-se deste ao poder que dá unidade à sociedade. Esta
concepção que privilegia a razão individual, na concepção hobbesiana ou
lockeana, é adotada, integralmente, nas versões americana e francesa do
liberalismo político.
Fazendo eco ao
primado da razão individual na filosofia cartesiana, os filósofos franceses dos
séculos XVII e XVIII, Voltaire (1694-1778), Diderot (1713-1784), Montesquieu
(1689-1755), Rousseau (1712-1788) e todos aqueles sob cuja inspiração se gestou
e se desenvolveu o complexo fenômeno econômico-político e cultural que recebeu
o nome de Revolução Francesa, destacam o papel norteador da razão que é
interpretada – como em Descartes (1596-1650) – não como simples razão
especulativa, mas, basicamente, como razão prática que ilumina o homem no
processo de se apoderar do mundo. Segundo Descartes, no plano da temporalidade,
ao homem corresponde uma missão fundamental: se apoderar da natureza, seguindo
as leis que são próprias dela, ou seja, as leis do movimento. E é a razão
prática a encarregada de orientar o homem nessa tarefa.
Dentro desse contexto
se movimentavam, também, os pensadores da época da Revolução Americana, embora
sem a profundidade filosófica dos autores europeus. Thomas Jefferson
(1743-1826), James Madison (1751-1836), John Jay (1745-1829), Alexander Hamilton
(1755-1804), etc.[7]
foram enfáticos ao reivindicar o lugar que corresponde à razão individual, na
vida do homem em sociedade. Nos anos que seguiram à Convenção de Filadélfia
(1786) e por causa da necessidade política de que o texto constitucional fosse
ratificado pelos diferentes Estados, mediante a sua aprovação pelas Assembleias
Provinciais, desenvolveu-se uma intensa atividade jornalística que divulgou as
ideias fundamentais que inspiraram os constituintes americanos. Na série de
artigos de imprensa compilados na obra O Federalista, foi sintetizada a
discussão levada a cabo na área de Nova Iorque. Ali encontramos, novamente, as
ideias de Locke acerca do papel orientador da razão na organização da sociedade.
Foi formulado, ali, o princípio da maioria, como norma reitora da racionalidade
social.
Como destacou
Tocqueville (1805-1859), na América foi ampliado o espaço da representação em
relação à Europa.[8]
Enquanto que, para John Locke, só podia se fazer representar aquele que tivesse
posses (pois, segundo a convicção calvinista, ao adquiri-las tinha dado prova
de que fez, na terra, uma obra digna da glória de Deus), para os americanos era
válida uma ampliação do conceito de representação, de acordo com a tendência
que terminou desaguando, nos Estados Unidos e na Europa, nas reformas
efetivadas, no século XIX, que conduziram ao sufrágio universal. Nessa
ampliação do conceito de representação foi muito importante, além de
Tocqueville, o conjunto de obras dos utilitaristas ingleses, notadamente as de John
Stuart Mill (1806-1873).
Para John Locke,
somente os proprietários eram autênticos detentores do bom senso, que deveria
reger a organização da sociedade. Para os liberais posteriores ao século XVIII,
no entanto, todo indivíduo era, potencialmente, suscetível de encarnar o bom
senso, sendo necessário, apenas, um reto processo educacional. Para os
ideólogos liberais, passou a ser aceita a ideia de que a racionalidade social
se concretiza na vontade da maioria. A razão da maioria é a única fonte da
organização social.
Os ideólogos
conservadores contrapuseram-se ao papel preponderante que a filosofia liberal
atribuiu ao indivíduo, como reação contra a evolução tortuosa do liberalismo,
ao longo do século XVIII, que culminou com a Revolução Francesa (1789). Os
pensadores conservadores foram unânimes em manifestar a sua profunda
desconfiança para com a razão individual, geradora de tantos males. Essa foi a tônica
dos que criticaram a Revolução Francesa como Edmund Burke (1729-1797), Augusto
Comte (1798-1857), Joseph de Maistre (1753-1821) e o visconde Luís de Bonald
(1754-1840). Eles destacaram a necessidade de uma tutela para a razão
individual que, deixada livre, sem controles, tinha produzido tantas
aberrações. Essa tutela foi identificada com uma volta à tradição mediante a
imposição de uma elite, que seria a fiel intérprete daquela. Em alguns casos,
foi exigida a presença da fé, como elemento de controle sobre a razão. É o
fenômeno visível no tradicionalismo francês de inspiração católica, presente na
obra de Joseph de Maistre e Luís de Bonald. Um exemplo de tradicionalismo não
religioso, mas de cunho filosófico, é encontrado, na América espanhola, na
influência do krausismo, que destacou a necessidade de um controle, para a
razão individual, a partir da tradição espiritualista contrária ao homo
oeconomicus e que se fez presente numa rígida hierarquia social, de inspiração
platônica, em cujo cume deveriam estar os educadores e os artistas.[9]
Uma posição mais
equilibrada, entre razão individual e tradição, foi defendida, na França, pelos
doutrinários, cujas figuras mais importantes foram Henri-Benjamin Constant de
Rebecque (1767-1830), François Guizot (1787-1874) e Pierre-Paul Royer Collard
(1763-1845), sendo Tocqueville, com a sua teoria do “interesse bem
compreendido”, o representante dessa tendência no seio do liberalismo
democrático. Nesse núcleo deita raízes o liberalismo conservador que, na França,
teve, em Raymond Aron (1905-1983), o seu grande ícone no século XX.
À margem do
liberalismo, a posição conservadora foi representada, no seio da filosofia
francesa, por Augusto Comte, que defendia a tese de que os males sociais seriam
superados mediante o combate à desordem individual, no terreno da razão
disciplinada pela tradição e, também, no plano dos costumes, regenerados pelo
combate ao individualismo e pelo esclarecimento científico nas organizações
sociais, graças a um conveniente processo educacional. “Os vivos devem ser
governados pelos mortos”, apregoava o filósofo de Montpellier. Tal convicção
conduziu, no Brasil, à instauração de uma ditadura cientificista e
moralizadora, implantada por Júlio de Castilhos (1860-1903) no Rio Grande do
Sul, entre 1891 e 1930 e alargada, no plano nacional, por Getúlio Vargas
(1882-1954), com o denominado “Estado Novo” (1937-1945).
Karl Mannheim
(1893-1947)[10]
realizou uma detalhada análise da desconfiança da mentalidade conservadora em
relação à razão individual. Segundo os conservadores, pensa este autor, a razão
não tem nenhuma predisposição para teorizar. Isso se fundamenta no fato de que
o homem não é induzido a pensar pelas situações reais em que vive, enquanto se
encontrar perfeitamente ajustado a elas. Em tais condições, o ser humano tende
a considerar aquilo que o rodeia como parte de uma ordem mundial natural, que
não lhe coloca nenhum problema. É por essa razão que Mannheim afirma que a
mentalidade conservadora não possui nenhuma utopia, entendida como uma
construção ideal que vai além daquilo que é dado imediatamente, na concreção do
momento histórico. A respeito, Mannheim frisa: “Idealmente (essa concreção)
está, na sua mesma estrutura, em completa harmonia com a realidade que, por
enquanto, dominou. Carece de todas aquelas reflexões e iluminações do processo
histórico que provêm de um impulso progressivo”. Por esse motivo, Mannheim
destaca que o tipo conservador de conhecimento é, originariamente, de um tipo
que garante o domínio prático. Trata-se de uma série de orientações habituais
e, algumas vezes, reflexivas, acerca dos fatores que são imanentes à situação.
Os elementos ideais que, na nossa vida diária, se contrapõem ao concretamente
dado, são restos da tensão dos períodos primitivos, quando ainda não havia uma
completa estabilização no mundo; mas, sua atuação, no presente, é apenas
ideológica, como crenças, mitos e religiões, que devem ser situados no campo
que lhes corresponde: além da história. “Nessa etapa – frisa Mannheim – o
pensamento se inclina a aceitar o contorno total na concreção acidental em que
ocorre, como se esta fosse a ordem exata do mundo e tivesse que se dar como
pressuposição e sem apresentar nenhum problema (...)”.[11]
Em tal perspectiva, a
razão individual não tem nenhuma possibilidade de realizar uma construção,
segundo as suas próprias inclinações. Está encadeada à concreção do momento e
daí não pode sair. É uma tutela exercida pelo ôntico. O caráter débil da razão
liberal, para os conservadores, é expresso assim por Mannheim: “Os
conservadores consideraram a ideia liberal que caracterizou o período da
Ilustração, como algo vaporoso e carente de concreção. E foi, a partir desse
ângulo, por onde empreenderam o seu ataque contra ela e a desprezaram. Hegel (1770-1831)
via nela nada mais do que uma simples ‘opinião’ – uma pura imagem – uma
possibilidade pura, por trás da qual a gente se refugia, se salva a si mesmo e
elude as exigências do momento”.[12]
A sujeição da razão
humana à concreção histórica foi caracterizada pelo sociólogo americano Charles
Wright Mills (1916-1962) da seguinte forma, ao analisar o modo como se dava, no
meio estadunidense, ao longo do século XX: “Aquilo que descobriram [os
intelectuais conservadores norte-americanos] é a falta de inteligência e de
moralidade na vida pública do nosso tempo, e o que conseguiram criar é uma
simples elaboração do seu próprio estado de ânimo conservador. É um estado de
ânimo muito adequado para homens que vivem num vazio político. No fundo dessa
atitude, há um sentimento de importância sem angústia e uma sensação de pseudo-poder,
baseada, unicamente, numa falsa segurança. Quebrando a vontade política, esse
estado de ânimo ou humor permite que os homens aceitem a depravação pública,
sem nenhum sentido íntimo de ultraje, e que renunciem à meta essencial do
humanismo ocidental, tão fortemente sentida na experiência norte-americana do
século XIX: o presuntuoso domínio do destino do homem pela razão”.[13]
Anteriormente, ao
fazermos referência ao papel da razão para o pensamento liberal, tinha sido
analisado, conjuntamente, o relativo à segunda grande ideia que o liberalismo
apresenta, em relação à inserção do indivíduo no mundo, a ideia de que a
finalidade única consiste em se apoderar o homem da natureza, mediante o
trabalho, a fim de fazer uma obra digna da glória de Deus. Esse pensamento
ajuda a configurar, nos países anglo-saxões, o ideal do homo oeconomicus,
que, mediante o seu trabalho, se converte em proprietário, se tornando o único
que deve gozar dos direitos na sociedade e a quem compete governar, com o
auxílio da representação. Ora, a filosofia conservadora reage contra essa visão
econômica do homem, tentando reivindicar uma concepção espiritualista e
desinteressada. Trata-se de uma nova “epoché”, na qual o conservadorismo
submerge o ser humano, desta vez, do ponto de vista de sua liberdade e do seu
agir. Onde apareceu mais nítida essa reação foi na Espanha, país em que não
houve influência do puritanismo calvinista e, ao contrário, se consolidou um
espiritualismo de inspiração medieval.
O historiador
colombiano Jaime Jaramillo Uribe (1917-2015) analisou de maneira bastante
completa esse fenômeno, na obra intitulada: El pensamiento colombiano en el
siglo XIX.[14]
Segundo este autor, na Espanha surge, desde o final da Idade Média, um tipo
cultural diametralmente oposto ao homo oeconomicus, que desde o
surgimento da Idade Moderna foi se firmando na Europa, acompanhando o fenômeno
do nascimento e expansão das cidades, origem da nascente burguesia. As
características do tipo castelhano, do cavaleiro cristão que Manuel García
Morente (1886-1942) define como abandeirado de uma causa e possuidor de
virtudes nobiliárquicas, como o anseio de grandeza, o arrojo, a altivez, o palpite
e não o cálculo, o personalismo e o culto à morte, modelaram-se ao longo de
toda a história da Espanha, sobretudo durante o episódio que foi tão decisivo
na vida do povo espanhol: a luta de vários séculos contra os muçulmanos, em
defesa da sua própria existência e da cristandade. Essa defesa da cultura
hispânica diante do invasor, foi apreendida, desde o início, como a defesa de
si próprio.
A respeito, escreve
Jaramillo Uribe: “Ao terminar essa contenda e ao se iniciar a Época Moderna,
que já vinha amadurecendo e se gestando no Continente e nas Ilhas Britânicas,
tinha se constituído na planície castelhana um tipo de homens cujas virtudes
não eram as do homo oeconomicus. A descoberta da América e a luta pelo
Império que, inesperadamente, lhes dava a história, firmaram o seu caráter
cavaleiresco e heroico e terminaram por frustrar, definitivamente, a formação,
em Castela, do tipo que construiu a economia moderna do capitalismo e, com
isso, a possibilidade de que Espanha assimilasse o espírito das novas formas de
vida, sobretudo o moderno ethos do trabalho”.[15]
Analisemos, com mais
detalhe, as duas notas que Jaramillo Uribe destaca, em relação ao caráter
espanhol, no texto que acaba de ser citado: a afirmação sobre o invasor árabe e
sobre a conquista do Novo Mundo. Ao submeter o elemento estranho depois da Reconquista,
o espanhol encontrou dois grupos sociais, mouros e judeus, que o supriram nas
tarefas econômicas. O judeu, nas ocupações comerciais, bancárias e financeiras
e o mouro nos trabalhos agrícolas e artesanais. A respeito, escreve Jaramillo
Uribe: “O trabalho, praticado, assim, por grupos considerados inferiores
religiosa e politicamente, recebeu os mesmos estigmas que naquelas sociedades
onde o exerciam escravos. Foi uma ocupação de párias e não de senhores”. Entre
os historiadores tem havido muita discussão sobre a abrangência que teve a
expulsão de árabes e judeus sobre a economia da Espanha; tem havido
controvérsias acerca da importância que alguns reconheceram ao elemento árabe e
judeu, e sobre o número de elementos que abandonaram a península quando se
produziram os editos de estranhamento. No entanto, todos os historiadores estão
de acordo em afirmar que ambos, mouros e judeus, eram pilares da atividade
econômica espanhola.
O historiador espanhol
Américo Castro (1885-1972) faz um balanço das palavras relativas às atividades
urbanas e rurais provenientes do árabe, o que indica que mouros e judeus foram
os fatores mais importantes nesses campos, dos que, aliás, estiveram ausentes
os espanhóis. Eis alguns dos casos mencionados pelo citado autor: “(...) Essas
importações de léxico referem-se a muito diversas zonas da vida: agricultura,
construção de prédios, artes e ofícios, comércio, administração pública,
ciências, guerra. Já é significativo que tarefa (tarea, em espanhol),
seja árabe. Os alarifes planejavam as casas e os albañiles (pedreiros,
em português) as construíam; e, por isso, são arabismos alcácer, alcova,
azulejo, açoteia, baldosa, saguão, aldrava, alfeiçar; a grande técnica no
manejo da água aparece em acequia, açude (...), alverca e em multidão de outras
palavras. Porque os costureiros eram mouros chamavam-se alfaiates (alfayates,
em espanhol); os barbeiros eram alfazemes; as mercadorias eram transportadas
por tropeiros e recoveiros; eram vendidas em socos ou açougues, em armazéns,
(...), se pagavam os direitos em alfândegas, (as mercadorias) eram medidas em
arrobas, (...), quintais, etc. (...). Eram inspecionadas pelo almotacem; o
almoxarife recebia os impostos (...). Cidades e castelos eram regidos por
alcaides (...). As contas eram feitas com cifras e algoritmos, ou com álgebra;
os alquimistas destilavam o álcool nos seus alambiques (...), ou preparavam
álcalis, elixires ou xaropes, que eram despejados em redomas. As cidades
constavam de bairros e arrabaldes e as pessoas comiam açúcar, arroz, laranjas,
limões, toronjas, beringelas, cenouras, (...), sandias, alcachofras, (...),
almondegas, escabeche, alfajores e
muitas outras coisas. As plantas mencionadas anteriormente eram cultivadas em
terras de regadio, e como na Espanha chove pouco (exceto na região Norte), a
irrigação requeria muito trabalho e arte para canalizar e distribuir a água, (atividade)
na qual sobressaíram os mouros, pois precisavam de água para lavar o corpo e
para fertilizar a terra. Citei, antes, alverca, acequia, mas o vocabulário
relativo à irrigação do campo é muito amplo: eis uma amostra: açude (...)”.[16]
Paralelamente à sua
afirmação nobiliárquica sobre judeus e mouros, o caráter ibérico firmou-se,
sobre o Novo Mundo, de uma forma que nega as virtudes do homo oeconomicus.
A conquista predatória do solo americano, impulsionada pela mentalidade
aventureira e a lenda de El Dorado, foi o marco econômico que presidiu a
obra de Espanha e Portugal no Novo Mundo. O ouro e a prata que chegaram em
torrentes do Novo Mundo produziram, para Espanha, inflação crescente e uma
economia onde a produção de bens de consumo simplesmente inexistia. Por isso, é
lícito concluir, com Jaramillo Uribe, que longe de ter sido a derrota de mouros
e judeus, a oportunidade para que espanhóis e portugueses mudassem a sua
atitude em face do trabalho, “nessa conjuntura, a história (lhes) ofereceu o
Novo Mundo, que continuou exigindo virtudes heroicas e colocou à sua disposição
uma nova classe pária: as populações indígenas, que continuaram gerando
riquezas para o povo senhorial, conferindo à atividade econômica, um caráter
ignóbil”.[17]
O espiritualismo de
inspiração medieval, que faz do nobre espanhol ou português um conservador das
tradições nobiliárquicas sobre o ethos do trabalho e que desconfia da
razão individual, foi muito bem caracterizado por Américo Castro, no seguinte
trecho: “O cavaleiro espanhol (...) precisava se rodear de um ambiente de
transcendência, de um prestígio religioso, régio ou de honra. Tinha de se
sentir num além mágico, e como suspenso sobre a superfície da terra. Daí o
desdém pelas atividades mecânicas, comerciais ou de pura razão”.[18]
II – Reação. A estruturação da
ideologia conservadora ocorre como anti-utopia que serve para a auto orientação
e a defesa e como reação contra a hierarquização – baseada na riqueza – da
sociedade burguesa, numa tentativa para revalorizar um espiritualismo de inspiração
medieval, reconhecendo uma hierarquização de ordem espiritual. Analisemos cada
um dos aspectos subjacentes a essa caracterização.
Para Mannheim,[19]
a mentalidade conservadora é obrigada a colocar em tela de juízo as bases do
seu próprio domínio e a elaborar as suas reflexões histórico-filosóficas,
somente em virtude do contra-ataque das classes opostas, que pretendem derrubar
a ordem existente. Isso é tão certo que, se não se tivesse dado o agressivo
avanço das classes progressistas, os conservadores teriam permanecido
inconscientes da sua própria ideologia “e a concepção conservadora continuaria
no nível da conduta inconsciente”. Portanto, a mentalidade conservadora
descobre a sua própria identidade, somente “ex post facto”. As
ideologias conservadoras se organizam, na Europa, como reação contra a
progressiva ascensão de agressivos grupos liberais, que já desde o início da
Idade Moderna vão se reforçando, mediante o desenvolvimento do comércio, contra
as classes dominantes tradicionais, o clero e a nobreza. Assim, o
conservadorismo é uma reação contra a ascensão do liberalismo. Dessa forma, o
encontramos na França e na Alemanha, e assim o encontraremos em Iberoamérica.
Não é casual que, na Nova Granada, a primeira plataforma conservadora tenha
aparecido em 1849, um ano depois de a burguesia comerciante exportadora ter
iniciado, em 1848, uma época de profundos câmbios econômicos e sociais, que
afetavam às classes tradicionais: o clero e a aristocracia latifundiária, de
origem colonial.
Mannheim destaca de
que forma, na Alemanha,[20]
a classe social conservadora que conquistou a estabilidade mediante a posse da
terra, não conseguiu estruturar uma interpretação teórica de sua própria
existência, e como a descoberta da ideia conservadora ocorreu devido a um grupo
de ideólogos que apoiaram os conservadores. Esse foi o trabalho dos românticos
conservadores, especialmente de Hegel, que ofereceu, às antigas classes
latifundiárias, uma interpretação coerente acerca do sentido da existência
conservadora. Por tal motivo, frisa Mannheim que “foi a grande realização de
Hegel edificar, contra a ideia liberal, outra oposta conservadora, não no
sentido de purificar, artificialmente, certa atitude e certo modo de conduta,
mas, melhor, no sentido de elevar uma forma de experiência, já existente, até
um nível intelectual, a fim de sublinhar as caraterísticas distintivas que a
contrapunham à atitude liberal diante do mundo”.[21]
O próprio Hegel
testemunha a sua valorização do conservadorismo, ao afirmar que a ideia de uma
realidade histórica consegue se tornar visível só num segundo estágio, quando o
mundo conseguiu adotar uma forma interna fixa e determinada. No famoso parágrafo
final do prefácio de Hegel à Filosofia do Direito, frisa o filósofo
alemão: “Somente mais uma palavra relativa ao desejo de ensinar ao mundo o que
deveria ser. Para semelhante propósito, a filosofia, pelo menos, chega, sempre,
tarde demais. A filosofia, como pensamento do mundo, não aparece até que a
realidade tenha completado o seu processo formativo e se tenha preparado a si
mesma. Desse modo, a história corrobora aquilo que ensina a concepção de que o
ideal, somente, aparece na maturidade da realidade, como o oposto ao real;
apreende o mundo real, na sua substância, e o configura num reino intelectual.
Quando a filosofia pinta, com cores cinzas, uma forma de vida, se tornou velha
e não pode ser rejuvenescida por esse cinza, senão somente conhecida. A coruja
de Minerva levanta o voo quando as sombras da noite se aproximam”.[22]
Mannheim destaca, também, que, enquanto a ideia liberal, traduzida em termos
racionalistas, insiste mais no normativo e no dever ser, “o conservadorismo
translada a ênfase à realidade existente, àquilo que é. O fato da simples
existência de uma coisa, outorga-lhe o mais alto valor”.[23]
No tocante ao segundo
aspecto da reação, como característica da mentalidade conservadora, considero
que esta nega a estratificação da sociedade burguesa, baseada no poder
econômico, e pretende erguer a bandeira de um igualitarismo de inspiração
medieval, que não se contrapõe ao reconhecimento de uma hierarquização
espiritual da sociedade. Jaramillo Uribe[24]
destacou de que forma a nobreza europeia foi reagindo, nos países do
continente, contra o avanço da burguesia. É claro que isso não aconteceu em
meios como as Ilhas Britânicas, onde a própria nobreza assumiu a escala de
valores burgueses, se tornando comerciante.
Mas o romantismo
alemão, por exemplo, que aglutinava tantas figuras nobres, manifesta a sua
desadaptação em face da concepção burguesa do mundo. O protesto dos nobres
franceses manifestou-se no nobre aventureiro, no emigrado mercenário e no pensador
arcaizante e antidemocrático, como o combativo Joseph de Maistre. Mas, onde
mais claro se manifesta esse protesto, é na Espanha, o país nobre por
excelência, digno das tradições heroicas de Dom Quixote. Jaramillo Uribe não
duvida em afirmar que este “foi o extremo desse protesto nobiliárquico contra o
mundo que começava a configurar o homem burguês. Com uma circunstância
especial, que constitui a clave de toda a evolução posterior da nação espanhola
e de sua dificuldade para se adaptar às formas do viver moderno (...). Na
Espanha, o povo mesmo adquiriu a concepção nobiliárquica da vida, e, situada
fora desta, somente ficou uma burguesia minoritária que não conseguiu, nunca,
ter considerável influência política ou espiritual e que, aliás, esteve
circunscrita aos contornos regionais da Catalunha e do País Basco. A fidalguia
espanhola, presente até nos seus vagabundos e mendigos, é inspirada por ideais
nobiliárquicos da vida, particularmente aqueles que, em reação contra a
economia e o trabalho, possuem um acentuado caráter anticapitalista e
antiburguês: a hospitalidade, a prodigalidade no gasto, a ausência de previsão
para o amanhã, o menosprezo pelo dinheiro e o amor ao ócio”.[25]
Mas, em contraste com
esta concepção nobiliárquica que abarca um igualitarismo da sociedade, é
importante destacar que o “anarquismo” social hispânico reconhece hierarquias
espirituais. Se bem é certo que, como frisava Ramiro de Maeztu (1874-1936),[26]
“aos olhos do espanhol, todo homem, qualquer que for a sua posição social, o
seu saber, o seu caráter, a sua nação ou a sua raça, é, sempre, um homem: mesmo
que pareça muito baixo, é rei da criação; mesmo que se encontre muito alto, é
uma criatura pecadora e débil”. O espanhol reconhece as categorias espirituais
que regem a sociedade: a Igreja e a Monarquia, como expressões máximas da alma
espanhola. Para não falar das características hierarquizantes e
espiritualistas, como as desenvolvidas pelos krausistas,[27]
por exemplo, cuja concepção da sociedade descansa na chamada por eles de “selectocracia”,
que reconhece a superioridade das minorias de intelectuais e artistas, os
únicos que se elevaram por cima da animalidade e que têm, como missão, educar
as massas incultas no cultivo dos valores espirituais, que são os únicos
capazes de humanizar o homem.
III - Morfofania da verdade. No conservadorismo, é
caraterística a identificação da verdade com “a ideia enraizada na realidade
viva do aqui e do agora e exprimindo-se, de forma concreta, nela”.[28]
Essa manifestação concreta da verdade tem a sua expressão, por exemplo, no tema
do agrarismo como leitmotiv da literatura e da filosofia (na Espanha e em
Iberoamérica) e na morfologia goethiana, que insiste na utilização da percepção
intuitiva como instrumento científico, método que também utiliza a escola
histórica (na Alemanha). Centrarei a atenção nessas duas expressões da
morfofania da verdade que acabam de ser enunciadas.
O agrarismo, ou seja,
a expressão da problemática da vida humana não em termos abstratos, mas em
formas plásticas tiradas da natureza, é uma tendência nitidamente conservadora.
Em primeiro lugar, porque é uma tentativa de encadear a razão ao dado imediato,
num intento de concreção da mesma ao meio circundante. Em segundo lugar, pelo
caráter não utilitarista de valorização da terra, fundamento da vida agrária. A
terra goza, aqui, de uma caraterística de mistério, é considerada como guardando
em si, oculta, uma realidade insuspeita e inesgotável, em termos de apreciação
humana. A morfofania caracteriza-se, assim, como nota típica do
conservadorismo, graças a uma espécie de redução à primeira caraterística da
mentalidade conservadora, já analisada.
Para Espanha e
Portugal, a terra possui um valor sacro porque é dela de onde provém e onde se
dissolve toda forma biológica. Aquele que possui a terra, em termos ibéricos,
possui a vida. E é a terra a única que nos garante segurança. Para John Locke,
também, a terra joga um papel essencial na vida humana: é a fonte da segurança
e da liberdade. No entanto, há uma diferença abissal na forma como Locke e a
mentalidade ibérica interpretam a relação do homem com a terra. O primeiro a
entende como a posse por excelência, à qual o homem acede, mediante o trabalho,
que projeta o próprio corpo sobre a natureza e, assim, torna-a algo próprio.
A mentalidade ibérica,
diferentemente, se extasia na posse da terra, fazendo dela algo representativo.
É como se o homem se relacionasse com ela não através do trabalho, somente, mas
mediante a contemplação. Para os ibéricos, a terra é a mãe que garante o seu
sustento e que os acolhe, desde o nascimento até a morte. Para o inglês, a
terra é meio de sustento e base da comercialização. O ibérico não apreende a
terra em termos comerciais, mas vitais. A respeito, frisa Américo Castro: “As
trocas comerciais (...) desenraizam o homem da própria terra, o desintegram, o
afastam da natureza e o fazem incorrer na fraude. Em tais sulcos caem as
sementes das quais brotarão, mais tarde, os sonhos da Idade de Ouro, o
menosprezo pela corte e o louvor à vida rústica, o romance pastoril e o horror
de Dom Quixote às armas de fogo. Aqueles que não obtêm a sua substância da
terra em que vivem, esses deixam, finalmente, de serem eles mesmos, se
desintegram”.[29]
Por essa razão Gaspar Melchor de Jovellanos (1744-1811) escreve que a posse da
terra, na Espanha, ocorre “somente como uma especulação de orgulho e vaidade”.[30]
O agrarismo ibérico
transladou-se a Iberoamérica. O elogio do rústico é um dos Leitmotivs da poesia
e da literatura colombianas do século XIX. O sentimento rural enaltece a
literatura virgiliana, entre as classes cultas da Colônia e da República. Em
relação a este ponto, Jaime Jaramillo Uribe escreve: “O sentimento a que
fazemos referência é o sentimento específico da terra, como aquilo que é
imortal, autêntico. Não é o sentimento da natureza à maneira renascentista ou
ao estilo exótico, de certa variedade da alma romântica”.[31]
A essa morfofania do
espírito ibérico, que se exprime mediante a posse nobiliárquica da terra,
acompanham outras formas concretas de representar um papel social. Assim as
descreve Jaramillo Uribe: “A burocracia, o serviço eclesiástico e o exército –
as armas e as letras – eram as formas de vida preferidas pelo espanhol. A
superabundância de empregados, séquito nobiliárquico e funcionários
eclesiásticos, quer dizer, de classes
improdutivas, era, desde a Idade Média, um traço característico da vida
peninsular”.[32]
A morfofania como
expressão do espírito racional aparece, também, no Brasil, onde o espírito
conservador se manifestou, durante o século XIX, numa valorização muito forte
da vida camponesa e da vinculação à terra, e no culto à figura do Imperador,
como personificação vivente da Nação. Eis as palavras com que João Camillo de
Oliveira Torres caracteriza esse fenômeno: “(Os conservadores brasileiros) não
negavam a liberdade, nem a amavam menos do que outros. Somente sabiam que a
liberdade não se mantém, unicamente, com palavras, gestos e hinos, mas que
requer condições efetivas e bem fundadas na realidade (...). Pelas suas
relações mais íntimas com as bases rurais da vida nacional, pelo seu realismo e
a sua objetividade, que os tornavam imunes ao lado perigoso do liberalismo, que
é a retórica, os ‘Saquaremas’[33],
no fundo, defendiam uma política mais consistente, mais autêntica. Lendo um
(visconde) de Uruguai, sentimos, literalmente, o cheiro da terra. Eram homens
que viviam a realidade concreta do país em que estavam, não do país em que
gostariam de estar (...). Nada prova melhor a disposição mais fiel dos
conservadores em relação à realidade nacional, do que a sua defesa do Poder
Moderador, quer dizer, da autoridade do Imperador. Os liberais queriam um
parlamentarismo de tipo inglês, que reduzisse o Imperador à posição de meio
juiz do jogo, que governasse de acordo às maiorias parlamentárias. Mas acontece
que, por força das condições puramente sociais do país (densidade demográfica,
população praticamente rural, etc.), a via eleitoral era impraticável. Faltava
o que havia na Inglaterra: uma população urbana densa, uma classe média sólida.
Ora, o Imperador (além de ser um tipo de autoridade sensível à imaginação
popular, e respeitada) podia substituir, como
primeiro representante da nação, o corpo eleitoral, que de fato não tínhamos.
E que tampouco poderíamos ter (...).[34]
Na Alemanha, a busca
pela morfofania como meio de expressão do espírito nacional, foi realizada por Johan
Wolfgang von Goethe (1749-1832) e a Escola Histórica. Em contraste com a
pretensão liberal de identificar a ideia com uma construção abstrata da mente e
de buscar, ali, a racionalidade do mundo, os conservadores alemães do século
XVIII buscavam a racionalidade, ou melhor, o sentido da realidade em dois tipos
de concreção morfológica: o espírito subjetivo e as criações culturais. A
primeira tendência é representada, por exemplo, por Adam Müller (1779-1829),[35]
que afirmava que nada pode substituir o espírito de um povo, como fonte de toda
a vida social e cultural: “A constituição dos Estados não pode ser inventada. O
cálculo mais lúcido, neste assunto, é tão fútil quanto a ignorância total. Não
existe nenhum substituto do espírito de um povo, e nada pode substituir a força
e a ordem que dele procedem, e não pode se encontrar nada parecido, nem sequer
nos espíritos mais brilhantes, nem nos maiores gênios”. Essa ideia é
expressada, em termos mais amplos, por Friedrich Carl von Savigny (1779-1861),
para quem o sentido da realidade humana provém do espírito, que está em nós,
como uma força que trabalha silenciosamente e que age, através de nós, para
realizar as nossas obras.
A busca alemã pelo
sentido da realidade, na concreção morfológica das criações culturais, se
realiza com Hegel, mas, principalmente, é Goethe quem melhor se situa nessa
perspectiva e a desenvolve. Segundo Mannheim, para a tendência que estamos
comentando, o espírito humano está em nós, como uma enteléquia “que se
desenvolveu a si própria nas criações coletivas da comunidade, do povo, da
Nação e do Estado, como uma forma interna que, na maioria das vezes, se pode
perceber morfologicamente. A perspectiva morfológica, aberta à linguagem, à
arte e ao Estado, se desenvolve a partir desse momento. E, aproximadamente,
quando a ideia liberal traduzia a ordem existente em movimento e estimulava a
especulação filosófica, Goethe renunciava a esse método ativista, para se
dedicar à contemplação, à morfologia”.[36]
É com tal método como se dá a utilização da percepção intuitiva enquanto
instrumento científico. Em alguns aspectos, o método seguido pela escola
histórica, na Alemanha, é semelhante ao de Goethe. Ambos rastreiam a emanação
das “ideias”, mediante a observação de diversas manifestações culturais, como a
linguagem, o costume, o direito, o folclore, etc., não através de
generalizações abstratas, “mas pela intuição simpática e a descrição
morfológica”.
IV - Cronontaxiologia. No conservadorismo
ocorre a descoberta do tempo como criador de valor ôntico e de ordem. Uma frase
do historiador do Direito Giuseppe Salvioli, escrita no seu livro: Acerca da
distribuição da propriedade fundiária na Itália no tempo do Império Romano
(1899), exprime muito bem essa ideia: “O presente, mesmo depois das mais
profundas revoluções morais e sociais, liga-se ao passado por vínculos tais que
não se poderiam quebrar sem torna-lo um enigma”.[37]
A ideia do tempo, como gerador de valor ôntico e de ordem, é explicada por João
Camillo de Oliveira Torres desta forma: “Poderíamos definir o conservadorismo
da seguinte forma: é uma posição política que reconhece que a existência das
comunidades está sujeita a determinadas condições e que os câmbios sociais,
para serem justos e válidos, não podem quebrar a continuidade entre o passado e
o futuro. Podemos dizer que o traço mais característico da psicologia conservadora
consiste, exatamente, no fato de que não considera viáveis as transformações e
câmbios feitos sem o sentido da continuidade histórica. Mais ainda: o
conservador considera impraticáveis e condenadas ao suicídio, todas as reformas
fundadas, unicamente, na vontade humana, sem respeito pelas condições
preexistentes. Podemos reformar por meio de um processo de cautelosa adaptação
do existente às novas condições, mas não poderemos conseguir, nunca, o
estabelecimento de algo radicalmente novo”.[38]
“O que pretende uma
posição autenticamente conservadora?” – Indaga Oliveira Torres. – E responde: “Uma
política autenticamente conservadora não pretende senão exigir que a história
seja respeitada; não tomando a iniciativa de reformas, a menos que isso seja
uma condição de conservação, uma reforma para evitar uma revolução, o
conservadorismo busca acompanhar as transformações, de forma que defende o
princípio de que, como diz justamente Augusto Comte, o progresso seja o
desenvolvimento da ordem. O conservadorismo se justifica pela convicção,
perfeitamente legítima, de que há valores estáveis na vida social e que certos
bens precisam ser preservados”.[39]
Karl Mannheim faz
ênfase em que o sentido do tempo, para a mentalidade conservadora, é
completamente oposto ao do liberalismo. Ao passo que, para este, o futuro é
tudo, “a forma conservadora de experimentar o tempo encontrou a melhor
corroboração do seu sentido da determinação, na descoberta da importância do
passado, na descoberta do tempo como criador de valor (...). Para o
conservadorismo, tudo quanto existe possui um valor nominal e positivo, simplesmente
porque chegou a existir, lenta e gradualmente. Consequentemente, além do fato
de que a atenção se volta em direção ao passado e ao esforço para resgatá-lo do
esquecimento, o que há de presente e de imediato, no conjunto do passado,
converte-se numa experiência real”.[40]
A valorização do
passado como criador de valor ôntico e de ordem conduz a uma conclusão, no
plano da exigência de uma ordem hierárquica na sociedade: “se não destruirmos a
ordem natural das classes e a hierarquia dos poderes, teremos superiores e
caudilhos” que nos orientem, frisa C. Wright Mills,[41]
ao comentar esse aspecto da mentalidade conservadora. O anterior equivale a
afirmar que, para a mentalidade conservadora, um princípio indiscutivelmente
válido é: “aceitar, agradecido, a direção de uma série de homens que são
considerados como minoria consagrada”, segundo frisa Russell Kirk (1918-1994) na
sua obra: The Conservative Mind.[42]
Consoante o sociólogo
americano Robert Nisbet (1913-1996), o fato de o conservadorismo se referir ao
passado como a um arquétipo do conhecimento, não é um argumento sério para exorcizá-lo
dos estudos sociais. A respeito, frisa: “O significado deste conceito, na nossa época, é muito claro
e completamente útil, se deixarmos de lado os significados históricos que teve,
tais como a referência pejorativa a certo tipo de ideias na época de Napoleão,
ou a utilização que da mesma fez Marx como consciência coletiva de uma classe
social. (...). A ideologia é um conjunto, razoavelmente coerente, de ideias
morais, econômicas, sociais e culturais, que possui uma relação consistente e
bem conhecida com a política e o poder político; mais especificamente, [constitui]
uma base de poder que torna possível a vitória desse conjunto de ideias. Uma
ideologia, em contraste com uma simples configuração passageira de opinião,
permanece viva durante um considerável período de tempo, tem defensores e porta-vozes
importantes, assim como um grau respeitável de institucionalização. É provável
que, na sua história, haja figuras carismáticas, como Burke (1729-1797),
Disraeli (1804-1881), Churchill (1874-1965), etc., entre os conservadores, ou
os seus equivalentes entre liberais e socialistas”.[43]
BIBLIOGRAFIA
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NOTAS
[1]
O termo Morfofania provém das palavras gregas morfé (=forma) e fainein
(=aparecer).
[2]
O termo Cronontaxiologia provém das palavras gregas: chronos (=tempo),
on (=ser, ente), taxis (=ordem), axis (=eixo, centro,
fonte de valor), lógos (=razão).
[3]
TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império – Ideias e
lutas do Partido Conservador brasileiro. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1968, p. 1.
[4]
Cf. LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. (Tradução de
A. Aiex). São Paulo: Nova Cultural, 1988, coleção “Os Pensadores”. LOCKE, John.
Two Treatises of Government. (Introdução e notas de P. Laslett).
New York: Cambridge University Press, 1965.
[5]
“Estado de Natureza”: ficção utilizada pelos jusnaturalistas dos séculos XVII e
XVIII, para destacar os direitos fundamentais que o indivíduo, enquanto tal,
possui, mesmo antes do seu ingresso em sociedade.
[7]
Cf. HAMILTON, Alexander; MADISON, James; JAY, John. O Federalista.
(Textos selecionados de F. Beffort; tradução brasileira de A. dela Nina). 1ª edição. São Paulo: Abril
Cultural, 1973. Coleção “Os Pensadores”. Cf. JEFFERSON, Thomas. Escritos
políticos. (Tradução brasileira de L. Gontijo de Carvalho). 1ª edição.
São Paulo: Abril Cultural, 1973. Coleção “Os Pensadores”.
[8]
Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. A democracia na América. 2ª edição
brasileira. (Tradução, prefácio e notas de Neil Ribeiro da Silva). Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977, p. 135-151.
[9]
Desse teor é o pensamento dos liberais da década de 1890, na Espanha, um de
cujos principais expositores foi Francisco Giner de los Ríos, fundador da
Instituição Livre de Ensino. A obra dos krausistas espanhóis foi divulgada, na
América espanhola, por José Enrique Rodó (Uruguai). Já os krausistas
portugueses tomaram o caminho da formulação de uma filosofia conservadora do
direito, na trilha do pensador belga Tiberghien, que influiu em filósofos do
direito portugueses como Vicente Ferrer Neto Paiva, que inspirou juristas do
Largo de São Francisco, em são Paulo, como Galvão Bueno, que insistiu na
necessidade de uma filosofia do direito vinculada aos ideais conservadores.
[10]
Cf. MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía. (Introducción a la
Sociología del Conocimiento). 2ª Edición en español. Madrid: Aguilar, 1966, p.
302-303.
[11]
MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía, ob. cit., p. 303.
[12]
MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía, ob. cit., p. 306.
[13]
MILLS, C. Wright. La élite del
poder. 1ª edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1973,
p. 303.
[14]
JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX.
2ª edição. Bogotá: Editorial Temis, 1974, pgs. 9-14.
[15]
JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX.
Ob. cit., p. 13.
[17] JARAMILLO
Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX. Ob.
cit., p. 15.
[18]
CASTRO, Américo. España en su historia. Ob. cit., p. 63.
[19]
Cf. MANNHEIM, Karl. Ideología y utopía. Ob. cit., p. 303-305.
[20]
Cf. MANNHEIM, Karl. Ideología y utopía. Ob. cit., p. 305.
[21]
MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía, ob. cit., p. 307.
[22]
Citado por MANNHEIM, Karl, ob. cit., p. 304.
[23]
MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía, ob. cit., p. 308.
[24]
JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX.
Ob. cit., p. 3-7.
[25]
JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el siglo XIX.
Ob. cit., p. 15.
[26]
MAEZTU, Ramiro de. La defensa de la hispanidad. 5ª edição Madri,
1946. Citado por JARAMILLO Uribe, Jaime. El pensamiento colombiano en el
siglo XIX, ob. cit., p. 8-9.
[27]
Cf., a respeito: LÓPEZ Morillas, Juan. El krausismo español. 1ª
edição. México: Fondo de Cultura Económica, 1956. GINER DE LOS RÍOS, Francisco.
Ensayos. Madrid: Alianza Editorial, 1969. PIKE, Frederik B.,
“Making the Spanish World safe from Democracy: Spanish Liberals and
Hispanismo”. The Review of Politics, julho 1971, p. 307-322.
[28]
MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Ob. cit., p. 306.
[29]
CASTRO, Américo. España en su historia. Ob. cit., p. 35.
[30]
JOVELLANOS, Gaspar Melchor de. “Informe sobre la Ley Agraria”. Obras,
Madri: 1935, t. I, p. 149, cit. por JARAMILLO Uribe, Jaime. El
pensamiento colombiano en el siglo XIX, ob. cit., p. 15.
[33]
Nome dado, durante o Império, aos integrantes do Partido Conservador.
[34]
TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império. (Ideias e
lutas do Partido Conservador Brasileiro). São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1968, p. XIV-XV.
[35]
MÜLLER, A. Über König Friedrich II, und die Natur, Würde, und Bestimmung
der preussischen Monarchie. Berlim, 1910, p. 49. Apud MANNHEIM, Karl.
Ideología y Utopía, ob. cit., p. 307-308.
[36]
MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía. Ob. cit., p. 306-308.
[37]
Apud MERCADANTE, Paulo. A consciência conservadora no Brasil. 1ª
edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, 2ª edição, epígrafe. A
principal obra de Giusepe SALVIOLI foi: Sulla distribuzione dela proprietà
fundiaria in Italia al tempo dell´Impero Romano - Studi di Storia Economica.
Salerno: Archivio Giuridico, 1899.
[38]
TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império. Ob.
cit., p. 1-2.
[39]
TORRES, João Camillo de Oliveira. Os construtores do Império. Ob.
cit., p. 5.
[40]
MANNHEIM, Karl. Ideología y Utopía. Ob. cit., p. 308.
[41]
MILLS, C. Wright., citado por MANNHEIM, Ideología y Utopía, ob.
cit., p. 305.
[42]
KIRK, Russell. The Conservative Mind. Chicago, 1953. Cit. por
Oliveira TORRES, in: Os construtores do Império, ob. cit., p. 1.
[43]
NISBET, Robert. Conservadurismo. (Tradução espanhola de Diana
Goldberg Mayo). Madrid: Alianza Editorial,
1995, p. 7-8.
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