Amigos, tomo a liberdade, nestes tempos bicudos de quarentena, de divulgar artigo publicado no jornal Observador, de Lisboa, acerca de tema que diz muita relação com o que se discute, no Brasil, nos dias que correm, sobre as perspectivas possíveis para o nosso país, nesta confusa quadra da história mundial.
Penso, com Tocqueville, que, em momentos de crise profunda - e está é uma dessas, que põe a flor da pele os nervos dos cidadãos brasileiros e dos 900 milhões de seres humanos confinados em quarentena, nos vários países, pelo mundo afora - nestes momentos, é necessário que façamos, com coragem, aquilo que devemos fazer, a fim de defendermos o bem mais valioso que temos: a nossa liberdade.
Um intelectual tem, como dever, estimular o livre debate de ideias acerca dos problemas que enfrenta. Eis aqui, no artigo do professor Espada, uma dessas contribuições valiosas. É o corajoso pensamento de alguém que, em face das incertezas presentes, apresenta, como válida, a saída liberal-conservadora. Subscrevo, inteiramente, as teses defendidas pelo professor Espada neste seu texto.
João Carlos
Espada, Diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa - Lisboa
“Leituras para Casa”: Repensando as famílias políticas ocidentais
Nick Timothy propõe-se refundar o conservadorismo britânico na oposição
crucial ao que chama “ultra-liberalismo”. O argumento merece atenção leal, mas
receio que não seja adequado.
23 mar
2020 - Diário Observador, Lisboa
Quando decorre entre nós, com assinalável civismo, o estado de
emergência, talvez seja oportuno sugerir algumas novas “Leituras para Casa”.
Permito-me por isso não escrever sobre o famigerado Covid-19, mas sobre um
livro que acaba de sair e que promete reavivar com elevação o debate de ideias
políticas. Trata-se de Remaking One Nation: Conservatism in an Age of Crisis (London:
Polity, 2020) de Nick Timothy.
O livro estava ainda apenas anunciado para a próxima sexta-feira, 27 de
Março, mas a revista The Economist já lhe dedicava uma página
inteira na edição de 14 de Março (p. 24). E o Telegraph, onde o
autor é cronista semanal, disponibilizou-lhe também uma página inteira (p. 20,
no clássico formato broad sheet), também na edição de sábado 14 de
Março.
Nick Timothy apresenta o seu livro como uma proposta para renovar o
pensamento conservador (sobretudo, mas não apenas, britânico). Curiosamente, no
centro dessa renovação, ele vê o combate intelectual contra o que designa
por “ultra-liberalismo”:
“Precisamos de contrariar o ultra-liberalismo e desenvolver uma nova
agenda conservadora que respeite a liberdade pessoal mas exija solidariedade,
reforme o capitalismo, reconstrua a comunidade e rejeite o individualismo
egoísta, abraçando as nossas obrigações de uns para com os outros.”
O autor argumenta a seguir que há várias modalidades de
“ultra-liberalismo” e que elas devem ser distinguidas.
Cita, em primeiro lugar, o que chama “liberalismo das elites” (onde
inclui o Trabalhista Tony Blair, o Conservador George Osborne e o Liberal Nick
Clegg). Critica neste grupo o “ultra-liberalismo” que favorece políticas de
imigração indiscriminada, multiculturalismo, desregulação do mercado de
trabalho e débeis políticas de apoio à família.
Em segundo lugar, Nick Timothy cita o “ultra-liberalismo da extrema
esquerda”, que inclui as chamadas “políticas de identidade”, promovendo a “luta
de classes” entre as “identidades” de grupos alegadamente oprimidos contra as
culturas nacionais ocidentais que os recebem. E que agora promove a censura
militante contra o pluralismo e a liberdade de expressão, sobretudo nas
Universidades.
Em terceiro lugar, o autor cita o “ultra-liberalismo de direita ou dos
fundamentalistas do mercado” (onde o único autor citado é F. A. Hayek). Aqui
inclui a defesa da desregulação do mercado de trabalho e a mercantilização de
bens públicos (como seria o caso da prestação de serviços de saúde).
Perante esta breve resenha, talvez possa parecer surpreendente que a
revista liberal The Economist tenha elogiado a obra. Mas o
elogio começa por dirigir-se ao facto de que alguém com responsabilidades
governativas na última década — primeiro como assessor de Theresa May no
Ministério do Interior, depois em Downing Street — tenha contribuído para elevar
o debate político-partidário com um livro de indubitável seriedade intelectual.
Subscrevo inteiramente este elogio de The Economist à
seriedade intelectual de Nick Timothy. Tive aliás ocasião de elogiar aqui
no Observador o civismo da sua participação num debate em
Oxford sobre o Brexit, após o referendo de 2016.
Mas receio ter de exprimir sérias reservas ao argumento central de Nick
Timothy, ou, pelo menos, à terminologia que utiliza. Parece-me algo deslocado
escolher o termo “ultra-liberalismo” para designar o adversário principal de um
“conservadorismo renovado” — sobretudo nos tempos que correm, mas também em
geral.
Em primeiro lugar, parece-me largamente contra-intuitivo. O que tem
crescido no panorama intelectual e político britânico (bem como no norte-americano)
são novas formas de colectivismo estatista, bem patentes na hostilidade contra
as economias de mercado ocidentais — expressa por Jeremy Corbyn, por Bernie
Sanders e pelas patrulhas ideológicas dos estudantes “woke”. Esse coletivismo
estatista foi aliás retumbantemente derrotado nas urnas no Reino Unido e parece
ir no mesmo caminho nos EUA.
Em segundo lugar, e mais fundamentalmente, não é seguro que Nick Timothy
tenha captado com exactidão a natureza e a história distintivas do
conservadorismo britânico. Diz ele que “desde a Revolução Francesa, o papel do
conservadorismo tem sido o de actuar como correctivo contra os extremos do
liberalismo.” A ser assim, teríamos de caracterizar Robespierre e Napoleão, por
exemplo, como expressões de “extremos do liberalismo”. Talvez a expressão mais
adequada fosse aqui de novo “colectivismo estatista” (à semelhança,
curiosamente, dos acima citados Jeremy Corbyn, Bernie Sanders e dos estudantes
“woke”).
Em contrapartida, devo exprimir a minha simpatia para com a defesa por
Nick Timothy do estado-nação e dos Parlamentos nacionais, bem como daquilo que
designa por “capitalismo cívico” (isto é, com interiorizado sentido pessoal de
dever, que Karl Popper me ensinou a designar por “gentlemanship”). Ambos estão
de facto associados à tradição do conservadorismo britânico moderno, desde pelo
menos Edmund Burke (que aliás foi toda a vida um deputado liberal).
Mas isso em parte deve-se a que essa tradição conservadora britânica
nunca colocou como principal adversário o liberalismo — ao contrário, aliás, de
boa parte da tradição conservadora continental que fez do liberalismo o
seu principal adversário (e por isso gerou autoritarismos estatistas de sinal
contrários). Sobre isto escreveu Alexis de Tocqueville — um católico francês,
aristocrata e liberal — páginas inesquecíveis. Que talvez possamos revisitar
numa próxima proposta de “Leituras para Casa”.
Até lá, “Stay Safe; Keep Calm and Carry On”.
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