Um dos
grandes problemas enfrentados pela Humanidade, no limiar do século XXI, é o da
violência. Em face dessa realidade, são fortes as tentativas de equacionar o
problema à luz da velha fórmula absolutista: porquanto o bem mais prezado é a
segurança, vamos garanti-la sacrificando outros bens, inclusive a liberdade.
Esse é o cerne da questão que coloca a Democracia Deliberativa no centro do debate. Esta proposta teórica inspira-se diretamente em Rousseau, embora tenha também herdado elementos conceituais dos teóricos do absolutismo, iniciando com Maquiavel e seguindo com Bodin e o próprio Hobbes. A Democracia Deliberativa é, hoje, proposta por grupos politicamente corretos, alinhados à esquerda do panorama ideológico. Pretendo discutir os elementos essenciais que formam parte dessa proposta, ao redor da formulação feita pelo jurista e filósofo argentino Carlos Santiago Nino (1943-1993). Poderíamos aplicar, à proposta em apreço, a sentença da fabula esopiana: Peior medicina malo. Ou seja, o remédio resultou pior do que a enfermidade.
Esse é o cerne da questão que coloca a Democracia Deliberativa no centro do debate. Esta proposta teórica inspira-se diretamente em Rousseau, embora tenha também herdado elementos conceituais dos teóricos do absolutismo, iniciando com Maquiavel e seguindo com Bodin e o próprio Hobbes. A Democracia Deliberativa é, hoje, proposta por grupos politicamente corretos, alinhados à esquerda do panorama ideológico. Pretendo discutir os elementos essenciais que formam parte dessa proposta, ao redor da formulação feita pelo jurista e filósofo argentino Carlos Santiago Nino (1943-1993). Poderíamos aplicar, à proposta em apreço, a sentença da fabula esopiana: Peior medicina malo. Ou seja, o remédio resultou pior do que a enfermidade.
Na segunda parte, destacarei
a forma em que a violência constitui um dos traços marcantes das sociedades
latino-americanas, em decorrência, fundamentalmente, de uma variável cultural: a
tradição patrimonialista. E mostrarei de que forma a adoção de mecanismos
rousseaunianos (como a Democracia
Deliberativa) contribui fortemente para um agravamento da situação, só
sendo viável uma saída inspirada no liberalismo democrático.
Algumas considerações
críticas acerca do conceito de Democracia Deliberativa
A problemática da democracia
conheceu, na modernidade, duas versões: a unanimista e a consensual. A primeira
foi sistematizada por Jean-Jacques Rousseau e repousa sobre os seguintes
princípios: 1) a finalidade da vida em sociedade consiste em garantir a
felicidade dos indivíduos; 2) somente será possível atingir a felicidade dos
indivíduos em sociedade, se estes renunciarem à defesa dos seus interesses
individuais; 3) como os indivíduos foram tornados egoístas pela sociedade, é necessário
que uma minoria de puros, identificados com o bem público, os submeta a um banho catártico que os limpe das
impurezas do individualismo; 4) a comunidade dos indivíduos despidos dos seus
interesses individuais constitui a vontade
geral; 5) nessa comunidade de homens puros vigora a unanimidade, sendo a
dissidência considerada como um atentado à felicidade geral, devendo ser
rigorosamente eliminada; 6) na organização do Estado deve ser levada em
consideração a busca daquele modelo que melhor garanta a unanimidade.
Sabemos, pela experiência
histórica, que o modelo rousseauniano terminou privilegiando regimes
ditatoriais e, no século XX, totalitários. Esse seria o reino da paz perpétua, não no sentido liberal que
Kant lhe deu, mas na acepção literal que o gênio de Könisberg viu inscrita na
porta do cemitério da sua cidade, circunstância que o inspirou, aliás, na
pergunta de se não haveria outra paz a que os seres humanos pudéssemos aspirar,
diferente da dos túmulos.
A versão consensual da
democracia foi sistematizada pelos pensadores liberais, notadamente Baruch
Espinosa, John Locke, Immanuel Kant, Benjamin Constant de Rebecque, François
Guizot e Alexis de Tocqueville. Os seus princípios são os seguintes: 1) a
finalidade da vida em sociedade consiste em garantir aos indivíduos o gozo dos
seus direitos inalienáveis à vida, à liberdade e às posses; 2) a partir do gozo
desses direitos os indivíduos podem construir, cada um segundo as suas
tendências, o seu projeto de felicidade, não havendo, para esta, uma fórmula
única; 3) o exercício dos direitos inalienáveis dos indivíduos em sociedade
traduz-se num aspecto material concreto: a legitimidade da luta em prol dos
seus interesses materiais, que são essencialmente diferenciados, exigindo o pluralismo e
a tolerância em face dos interesses dos outros; 4) não há, na sociedade, interesses individuais espúrios, sendo o único limite, na defesa dos próprios
interesses, aquele exigido pelo respeito aos interesses dos outros; 5) na organização do Estado
deve ser privilegiado aquele modelo que melhor se ajustar à representação dos
interesses dos indivíduos, visto que, no mundo moderno, tornou-se praticamente
impossível gerir os negócios públicos mediante a prática da democracia direta
em assembleias; 6) nas sociedades modernas, de massas, a diferenciação de
interesses conduziu à luta de classes, que passou a ser civilizada mediante a
prática da representação e a institucionalização dos partidos políticos; as
decisões são tomadas, no seio da sociedade pluralista, de forma consensual. Nos
últimos dois séculos aperfeiçoaram-se os mecanismos eleitorais e a técnica
parlamentar, visando a alargar a representação a todos os indivíduos da
sociedade e a garantir a defesa dos interesses das minorias.
O mundo no qual Kant
enxergava a possibilidade da paz perpétua era o da sociedade consensual, que
possibilitasse a defesa dos interesses de todos. Somente haveria, para o
pensador alemão, paz perpétua, quando
imperasse, nos diferentes países, a República, ou seja, o governo representativo
que respeitasse a liberdade e os interesses de todos os indivíduos, sem
exclusão de ninguém e pondo em prática o imperativo categórico da
transparência.
É por todos conhecido o
desfecho que tiveram esses dois modelos no último século: consolidou-se no
leste europeu, no oriente, na África e em alguns países da América Latina, um
modelo de democracia totalitária, de tipo unanimista, com todas as
caraterísticas avassaladoras sobre a liberdade individual, assinaladas pelo filósofo de Genebra.
Diríamos que a humanidade viveu, entre 1917 e 1989, o século do totalitarismo,
com os milhões de vítimas que causou a intolerância da vontade geral posta em mãos de minorias fanáticas. Mas, felizmente, o
modelo consensual sobreviveu à loucura totalitária, constituindo, hoje, o ideal
que atrai as atenções em boa parte do mundo. A onda liberal, que se espraiou pelo globo afora, foi uma das
caraterísticas marcantes na virada do milênio.
Paralelamente ao
desenvolvimento das idéias políticas, a filosofia experimentou, ao longo dos
dois últimos séculos, uma peculiar evolução. Contrariamente à valorização da
ontologia pelos grandes sistemas formulados ao longo dos séculos XVII, XVIII e
XIX, (tanto no terreno das tradicionais metafísicas espinosana e leibniziana,
quanto no que tange à formulação do idealismo transcendental kantiano e
hegeliano), os pensadores dos séculos XIX e XX passaram a valorizar o culto ao
rigor científico e a análise do discurso. No caso particular do neo-kantismo,
evoluiu-se na Alemanha esfacelada pelo totalitarismo nazista, do idealismo
transcendental à pragmática transcendental, que confunde os planos do real e do
discurso, partindo do pressuposto de que todo ato de pensamento é ato de fala e
de que este ultimo, tranquilamente, pode substituir a variável ontológica. Esse
processo consolidou-se e virou moda filosófica sob o patrocínio do Círculo de
Viena e da Escola de Frankfurt. Trata-se de uma modalidade muito curiosa de nominalismo, em que o discurso sobre o
homem sobrepõe-se à apreensão da liberdade e dos interesses dos indivíduos. O
clima que passou a ser cultuado em inúmeros centros de estudo é o da análise
lógico-linguística, tendo perdido a meditação filosófica o sentido do real. Na contemporaneidade digital, os algoritmos identificados pelos manipuladores de big data, graças à inteligência artificial, identificariam os "interesses" prevalecentes no linguajar dos indivíduos, possibilitando aos gestores públicos a realização da devida faxina dos interesses impróprios, porquanto não formulados nos termos abarcados pelos sistemas binários.
Nesse contexto, associado ao
da concepção unanimista de sociedade inspirada em Rousseau, situa-se, a meu
ver, a proposta da democracia
deliberativa proposta por Carlos Santiago Nino na sua obra intitulada The
Constitution of Deliberative Democracy [Nino, 1996]. O pensador argentino parte do desconhecimento de
dois pontos capitais do modelo liberal, como são a legitimidade da defesa dos
interesses individuais e o valor insubstituível da democracia representativa
como primeiro mecanismo político para defesa daqueles. O clima em que se
movimenta o mencionado filósofo é o de uma substituição dos interesses
individuais pelo arrazoado moral, de acordo com uma vaporosa vontade geral. Prevalece, ali, o desconhecimento da democracia representativa, que deveria ser substituída
por assembleias deliberativas norteadas pelo esquisito imperativo categórico da
busca da unanimidade.
O pensador argentino, aliás,
faz depender a sua opção rousseauniana da escolha de dois princípios, um que
ele denomina de ontológico e outro
que é caracterizado de epistêmico. O
primeiro seria o seguinte: "A verdade moral é constituída pela satisfação
de pressupostos formais ou processuais de uma prática discursiva encaminhada à
obtenção da cooperação e à supressão de conflitos" [Nino, 1996: 112-113].
Observe-se, aliás, como o pensador argentino substitui a dimensão ontológica
pelo expediente linguístico da "satisfação de pressupostos formais ou
processuais de uma prática discursiva" programada para conseguir a
unanimidade. De outro lado, permeia o arrazoado a seguinte pressuposição
infantil: os seres humanos devem viver sem conflitos, o que equivale a negar a
validade da pluralidade de interesses.
O segundo princípio, epistêmico, reza assim: "A
discussão e a decisão intersubjetivas constituem o procedimento mais confiável
para permitir o acesso à verdade moral, pois o intercâmbio de idéias e a
necessidade de oferecer justificações perante os demais não somente aumenta o
conhecimento que se possui e detecta falhas de raciocínio, mas também ajuda na
satisfação da exigência de atenção imparcial aos interesses de todos os
afetados. Não obstante, isto não exclui a possibilidade de que, através da
reflexão individual, alguém possa ter acesso ao conhecimento de soluções
corretas, ainda que deve-se levar em conta que esse método individual é muito
menos confiável que o coletivo, devido à dificuldade de se permanecer fiel à
representação dos interesses dos outros e de ser imparcial" [Nino, 1996:
113]. Trocado em miúdos, o anterior arrazoado poder-se-ia resumir da seguinte
forma: a descoberta da verdade não é um atributo da razão individual, mas do
discurso coletivo, quando este é proferido em função da busca da unanimidade.
Fica aberta, assim, a porta para o assembleísmo e o totalitarismo da novilíngua
socialista, garantida pelos puros (sejam eles o Big Brother imaginado por Orwell, ou a liderança bolchevique
tornada omnipresente nos comitês de defesa da revolução, ou o carisma do
caudilho barbudo, ou a liderança do partido único, etc.).
Quão longe está o arrazoado
de Nino da defesa que a tradição liberal sempre fez da democracia
representativa, a única consentânea, no mundo moderno, com a defesa da
liberdade e dos interesses dos indivíduos. A posição esboçada pelo pensador
argentino é duplamente falaciosa: em primeiro lugar, porque pretende garantir
os direitos básicos do cidadão mediante a sua eliminação como indivíduo capaz
de descobrir a verdade e lutar pelos seus interesses. Em segundo lugar, porque
pretende estabelecer uma oposição radical entre defesa dos interesses
individuais e vontade geral. Esta última, no sentido liberal, consiste, unicamente, na defesa dos interesses dos indivíduos, seja a nível comunal ou
municipal, seja a nível regional ou nacional. A representação é que deve ser
apoiada e aperfeiçoada, de forma que cada vez mais responda aos interesses dos
indivíduos. Mas, sem ela, não haverá, no mundo de hoje, autêntica defesa dos interesses
individuais, não podendo, portanto, ser substituída por procedimentos epistêmicos
que reduzam estes a uma vaporosa abstração pretensamente lógica.
A tradição liberal, aliás,
já discutiu, com clareza, acerca das estreitas relações entre defesa dos interesses
individuais a nível comunal e no plano da representação regional ou nacional.
Não há interesses gerais que se sobreponham aos interesses individuais. É deles
e somente deles que emergem a representação, o Estado e a União, como no caso
dos Estados Unidos da América. Lembremos a forma em que Alexis de Tocqueville
destaca essa hierarquia, na sua clássica obra A Democracia na América
[Tocqueville, 1977: 126-127]: "Não seria possível imaginar-se a que ponto
essa divisão da soberania serve ao bem estar de cada um dos Estados de que se
compõe a União. Nessas pequenas sociedades, onde em nada preocupa o cuidado de
defender-se ou de crescer, todo o poder público e toda a energia individual
acham-se voltados para melhoramentos interiores. Por ser o governo central de
cada Estado situado inteiramente nas mãos dos governados, é ele diariamente
informado das necessidades que se fazem sentir; ademais, vêem-se apresentar
todo ano novos planos que, discutidos nas assembléias comunais ou perante a
legislatura do Estado, e em seguida reproduzidos pela imprensa, excitam o
interesse universal e o zelo dos cidadãos. Essa necessidade de melhorar agita
constantemente as repúblicas americanas e não as perturba; nelas, a ambição do
poder cede lugar ao amor ao bem-estar, paixão mais vulgar, porém menos
perigosa. É opinião geralmente difundida na América que a existência e a
duração das formas republicanas do Novo Mundo dependem da existência e da
duração do sistema federativo. Atribui-se grande parte das misérias em que se
acham mergulhados os novos Estados da América do Sul ao fato de se terem
querido implantar grandes repúblicas, em lugar de fracionar a soberania. É
incontestável, na realidade, que nos Estados Unidos o gosto e o costume do
governo republicano nasceram nas comunas e no seio das assembléias provinciais.
Numa pequena nação, como Connecticut, por exemplo, onde a grande questão
política é a abertura de um canal ou o traçado de uma estrada, onde o Estado
não tem nenhum exército, nem guerra a manter, e não poderia dar àqueles que o
dirigem nem muita riqueza nem muita glória, nada de mais natural se pode
imaginar, nem de mais apropriado à natureza das coisas, que a república. Ora, é
esse mesmo espírito republicano, são esses costumes e hábitos de um povo livre
que, depois de haver nascido e se ter desenvolvido nos diversos Estados,
aplicam-se em seguida, sem dificuldade, ao conjunto do país. O espírito público
da União não passa de ser, ele próprio, de certa forma, uma síntese do
patriotismo provinciano. Cada cidadão dos Estados Unidos transporta, por assim
dizer, o interesse que lhe inspira sua pequena república ao amor da pátria
comum. Defendendo a União, ele defende a prosperidade crescente do seu cantão,
o direito de dirigir os seus negócios, a esperança de fazer prevalecer ali
planos de melhoramentos que devem fazer com que ele próprio enriqueça; coisas,
todas essas, que, de ordinário, tocam mais os homens que os interesses gerais
do país e a glória da nação".
O sentido que, para a
tradição liberal, sempre teve a representação, é o da preservação dos interesses
dos cidadãos. A longa noite do autoritarismo republicano certamente escamoteou, no Brasil, a questão, deixando no ar o preconceito contra a representação de
interesses e abrindo a porta para a prática da cooptação, tão do agrado dos
espíritos totalitários. Todos sabemos a que conduziu esse preconceito,
alimentado pelo castilhismo-getulismo: uma elite de burocratas passou a se
considerar representante dos interesses dos cidadãos, dando ensejo a esse
verdadeiro mostrengo que consiste no estatismo patrimonial, segundo o qual a nomenclatura tupiniquim sente-se dona do
país e dirige os destinos da República ao seu bel-prazer, sem prestar contas a
ninguém. O conhecido episódio, ocorrido nos anos 90, da impune contaminação da baia da Guanabara pela Petrobrás,
dá uma medida da desfaçatez e da força dessa tradição estatizante. Os episódios mais recentes de saqueio aos cofres das estatais e da União, ao ensejo dos episódios de mega-corrupção do Mensalão e do Petrolão - este último objeto da Operação Lava Jato - ampliaram de forma bastante visível o alcance desse desconhecimento do interesse dos cidadãos por parte de um conluio de burocratas e empresários corruptos. São práticas que achincalham a democracia representativa e que propõem a
substituição dela pelo assembleísmo unanimista praticado pelos burocratas corruptos, que ajudam a reforçar,
no país, a tradição patrimonialista de gestão do público como propriedade privada.
O debate acerca da melhor forma de revigorar
entre nós a prática da representação é necessário. Torna-se inadiável uma reforma política que leve à superação da
prática antidemocrática dos partidos de aluguel, estimulando o fortalecimento
das agremiações com programas consistentes, implantando uma fidelidade
partidária que evite a prática do estelionato político, etc. Mas para que
continuemos a progredir por esse caminho, é necessário que lembremos a tradição
liberal e esqueçamos o discurso dos que propõem essa confusa democracia deliberativa.
O ethos da
violência no contexto latino-americano
Falar em
perspectivas da violência para o século XXI não é fazer predições proféticas.
Na história humana não há rupturas radicais. Os processos de mudança, mesmo os
mais extremos, anunciam-se nas tendências do presente. Assim aconteceu, por
exemplo, com a Revolução Francesa, que pretendia ser uma ruptura definitiva com
o fio da história, tendo dado ensejo, ao contrário, como todos sabemos após as
críticas análises de Tocqueville em O Antigo Regime e a Revolução, a
mais um capítulo da longa história do absolutismo, que constitui a nota
caraterística das instituições da França desde o início da modernidade. Algo de
muito semelhante aconteceu, no início do século XX, com a Revolução Bolchevique
na Rússia, que ensejou uma reedição do velho czarismo, o mais acabado modelo de
patrimonialismo conhecido na Europa, como foi ilustrado detalhadamente por Karl
Wittfogel na sua clássica obra O Despotismo Oriental e por Milovan
Djilas em A Nova
Classe.
Tratarei de desenhar um mapa das tendências que estão
vigentes na América Latina e que herdamos do século passado. Partindo do
pressuposto formulado em meados do século XIX pelos Doutrinários franceses
(Royer Collard, Constant de Rebecque, Guizot) e retomado por Tocqueville, no
sentido de que a tendência à democracia constitui, desde o século XIX, o pano
de fundo da história de longo curso da Humanidade, colocarei a questão nos
seguintes termos: quais são as perspectivas que a violência coloca para as
sociedades latino-americanas em face da realização do ideal democrático, neste
início de século?
Antes, porém,
destacarei um dado antropológico fundamental: a violência não é apenas uma
variável social. É, antes disso e basicamente, uma tendência ontologicamente
enraizada no intimo do ser humano. O velho filósofo pre-socrático Parmênides já
lembrava, no século VI a. C., que o ser humano é, na sua essência, como aliás
os outros entes no mundo, ser e nada
(dokounta), porquanto não possui o
monopólio da existência. Pode ser e não ser. Pode, como no caso do feto que é
eliminado após algumas semanas de vida, apenas ter uma precária existência uterina. A certeza da nossa
finitude, apreendida pela razão e não aceita, constitui, no ser humano
individual, a raiz ontológica da violência. “Sereis como deuses”, teria dito a
astuta serpente a Adão e Eva no paraíso. O cerne do pecado original seria essa
não aceitação da finitude humana. Pecado prometeico de soberba ou de hybris.
É evidente
que a filosofia ocidental mostrou um caminho construtivo para emergir da
angústia da própria finitude: já desde Platão a meditação filosófica
apresenta-se como sofia libertadora
das angustiantes cadeias da nossa precariedade existencial. A Religião, desde
as mais remotas épocas da história humana, já tinha aberto uma porta para dar vazão, no plano da crença, a essa
problemática. A solução religiosa continua a ter plena validade e é interessante
observar o renascer das diversas religiões. Mas a
Filosofia constituiu sempre a resposta, do ângulo racional, para a finitude. Na
modernidade, os filósofos da cultura, após Pufendorf, tentaram definir os
contornos desse espaço humano que nos
abre caminho à perspectiva da imortalidade nas grandes criações do espírito, na
aventura intelectual. Estão aí os imorredouros trabalhos de Platão,
Aristóteles, Averróis, S. Tomás de Aquino, Ockham, Descartes, Hume, Kant,
Hegel, Scheler, Tobias Barreto, Ferreira da Silva, Miguel Reale e tantos
outros. Somos pó, mas podemos aspirar às estrelas mediante o nosso conhecimento
e a nossa grandeza moral. Sempre que a humanidade se distanciou dessa forma
construtiva de lidar com a sua finitude, mergulhou no sem-sentido de uma
violência niilista. Não é por acaso que no curto
século vinte, para lembrar a expressão cunhada por Eric Hobsbawm, após ter
renunciado à transcendência religiosa e à transcendentalidade da criação
cultural, o pensamento europeu entrou em parafuso existencial e proclamou, alto
e bom som, a morte de Deus e do homem.
Foi o filósofo
inglês Thomas Hobbes quem realizou, na modernidade, a primeira sistematização
filosófica acerca da violência como caraterística do homem em sociedade. Hobbes
considerava que a discórdia provinha da natureza do homem, sendo que as três
causas principais da mesma seriam a competição, a desconfiança e a glória.
"A primeira -- frisa o filósofo
[Hobbes, 1974: 79] -- leva os homens a
atacar os outros tendo em vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira,
a reputação. Os primeiros usam a violência para se tornarem senhores das
pessoas, mulheres, filhos e rebanhos dos outros homens; os segundos, para
defendê-los; e os terceiros por ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma
diferença de opinião, e qualquer outro sinal de desprezo, quer seja diretamente
dirigido às suas pessoas, quer indiretamente aos seus parentes, seus amigos,
sua profissão e seu nome".
A violência política ocorre,
segundo o filósofo inglês, em dois momentos: antes do surgimento do Estado e
quando este se corrompe. Hobbes denomina de guerra
de todos contra todos à situação de violência social anterior à criação do
Estado. Nela, a vida humana não vale nada e todos somos reféns do temor da
morte violenta. Hobbes retratava assim essa situação, com sombrias cores que
traduziriam perfeitamente o clima de violência, impunidade e insegurança que
vivemos, hoje, nas nossas sociedades latino-americanas: "(...) tudo aquilo
que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo
homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem
outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua
própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu
fruto é incerto; conseqüentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem
uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções
confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de
grande força, não há conhecimento da face da terra, nem cômputo do tempo, nem
artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, (prevalece) um
constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida,
embrutecida e curta" [Hobbes, 1974: 80].
Nesse estado de violência
generalizada não há lei, nem moral, nem propriedade. O homem, considerava
Hobbes, é levado a superar essa deplorável situação pelas suas paixões (medo da
morte, desejo de conforto e esperança de conseguir este último mediante o
trabalho) e pela sua razão (que "sugere adequadas normas de paz, em torno
das quais os homens podem chegar a acordo") [Hobbes, 1974: 81]. A partir
dessa dupla tendência (racional e irracional) surge o Estado, que é definido
por Hobbes [1974: 110] da seguinte forma: "Uma pessoa de cujos atos uma
grande multidão, mediante pactos recíprocos (de) uns com os outros, foi
instituída por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os
recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para assegurar a paz
e a defesa comum".
Para o pensador inglês, há
duas maneiras de criação e organização do Estado: ou por instituição, ou por aquisição.
O Estado por instituição ocorre
"quando os homens concordam entre si em submeterem-se a um homem, ou a uma
assembléia de homens, voluntariamente, com a esperança de serem protegidos por
ele contra todos os outros". Já o Estado por aquisição ocorre pela via da força
natural, "como quando um homem obriga seus filhos a submeterem-se, e a
submeterem seus próprios filhos, à sua autoridade, na medida em que é capaz de
destruí-los em caso de recusa. Ou como quando um homem sujeita através da
guerra seus inimigos à sua vontade, concedendo-lhes a vida com essa condição"
[Hobbes, 1974: 110].
O filósofo inglês
mostrava-se mais favorável ao Estado por instituição,
sem dúvida mais afinado com a tradicional prática da representação na
Inglaterra. Não é difícil, aliás, encontrar um paralelismo na dupla tipologia
hobbesiana do Estado e a proposta por Max Weber [cf. 1944: IV, 85-203], a
saber: Estado contratualista e Estado
patrimonial.
Mas voltemos à
caracterização da violência por Hobbes. Esta ocorre em ausência do pacto social
que funda o Estado, como já vimos, ou quando este se corrompe, (ou, em outros
termos, quando perde a força e fica doente). A sedição, o menosprezo face à
lei, a guerra civil, a desobediência ou anarquia cidadã, a cupidez do poder
espiritual, o domínio das corporações ou grupos sobre o governo, a desordem
orçamentaria, eis algumas das causas endógenas que, além da invasão
estrangeira, levam à doença e à dissolução do Estado [cf. Hobbes, 1974:
196-203]. Anarquizado o Estado, instala-se a violência na sociedade, bem como a
plêiade de desgraças que acarreta a guerra de todos contra todos. Embrutecidos,
os cidadãos passam a viver coagidos pelo temor constante da morte violenta.
O fenômeno da violência na
América Latina teve dois momentos semelhantes aos observados na tipologia
hobbesiana: em primeiro lugar, insegurança generalizada, prévia à consolidação
do Estado e, em segundo lugar, violência decorrente da degeneração ou má
formação deste.
Quanto à primeira
manifestação, a violência, na América Latina caracterizou-se por ser efeito, já
desde os tempos coloniais, da denominada por Oliveira Vianna [1973: 142] de anarquia branca. Para o sociólogo
fluminense, o motivo imediato que impelia a população rural brasileira a se
organizar em clãs, era a necessidade de defesa contra essa anarquia. Naqueles
remotos tempos, entre nós, não havia Estado organizado. A corrupta magistratura
portuguesa não funcionava, como tampouco os tribunais superiores, que ficavam
muito distantes; isso levava a população a se refugiar em clãs, para ser
protegida contra os excessos dos magistrados e poderosos. "Nessa situação
de permanente desamparo legal, -- frisa
Oliveira Vianna -- em que vivem, sob
esse regime histórico de mandonismo, de favoritismo, de caudilhismo judiciário,
todos os desprotegidos, todos os fracos, todos os pobres e inermes tendem a
abrigar-se, por um impulso natural de defesa, à sombra dos poderosos, para que
os protejam e defendam dos juízes corruptos, das devassas monstruosas, das residências
infamantes, das vinditas implacáveis. Faz-se, assim, a magistratura colonial,
pela parcialidade e corrupção dos seus juízes locais, um dos agentes mais
poderosos da formação dos clãs rurais, uma das forças mais eficazes da
intensificação da tendência gregária das nossas classes inferiores".
Essa situação de anarquia
primordial era testemunhada pelos visitantes estrangeiros. Eis o relato de um
comerciante francês, publicado em Rouen em 1723, com o longo título de Journal
d'un voyage sur les costes d'Afrique e aux Indes d'Espagne; avec une
description particulière de la Rivière de la Plata, de Buenos Aires e autres
lieux; commencé en 1702 et fini en 1706 [apud Pernoud, 1990: 63-105].
No seu diário, o viajante descreve assim a arraia miúda e a elite cariocas da
época : "Falando em termos gerais, os portugueses são muito atenciosos,
muito amáveis e de fino trato. Não me refiro ao povo baixo, cuja insolência e
descaro estão por cima de tudo quanto se possa dizer. Não creio que possa haver
indivíduos mais mal-intencionados e mais intratáveis; são mentirosos,
indolentes, briguentos, insubordinados, sediciosos e cheios de injúrias, e das
mais grosseiras; são, numa palavra, a mais indigna e mais maldita canalha de
que se tenha ouvido falar. Critica-se às gentes honradas, e possivelmente não
sem razão, pelo fato de serem vaidosos, orgulhosos e de terem uma cortesia e
uma polidez que podem ser consideradas exageradas. Conta-se, a propósito do
anterior, que um capitão de navio bateu tão forte num marinheiro, que este
morreu -- segundo disse o agressor --,
pelo fato de ter sido pouco atencioso com ele. Na sua maior parte são
extraordinariamente inimigos do
trabalho, preguiçosos e muito inclinados à voluptuosidade" [apud
Pernoud, 1990: 99]. Em síntese, para o narrador francês a violência era a marca
registrada da população carioca, com alguns matizes segundo a faixa social:
rude e explícita no povão, jeitosa nas elites.
Mas se a anarquia branca dos cariocas era
evidente no século XVIII, não menos visível era a mesma caraterística entre os
paulistas, segundo o relato de Régine Pernoud [1990: 137-138], que se alicerça,
entre outras fontes da época, nas Lettres édifiantes et curieuses,
escritas pelos missionários jesuítas das Reduções paraguaias entre 1717 e 1776.
A respeito da anarquia dos paulistas, escreve a historiadora francesa:
"Mas os maiores perigos provinham dos paulistas
ou mamelucos; chamava-se assim a
população de São Paulo que era, nessa época, um verdadeiro refúgio de
bandoleiros, formada principalmente por mestiços e portugueses; tinha acolhido
aventureiros de todas as regiões, cujo principal recurso era o comércio de
escravos. Por isso viram com satisfação o estabelecimento dos primeiros
povoados, que constituíam para eles excelentes reservas de índios, destinadas a
se converterem em presa fácil. De fato, desde 1629 caíram sobre as Reduções da
província de Guairá, levando como escravos mais de quinze mil índios dos
povoados de Santo Antônio, São Miguel e Jesus Maria, depois de terem
assassinado os que se opunham (...). Os
mamelucos (eram) temíveis ao ponto de que não arredavam pé diante de nenhum
estratagema; em várias ocasiões apresentaram-se diante dos povoados de índios,
vestindo sotainas, com a cruz na mão, entoando cantos religiosos, etc., e
enquanto os índios, sem desconfiança, reuniam-se para escutar a sua pregação,
as suas tropas, colocadas em emboscada, atacavam. Isso provocou inúmeras
dificuldades aos missionários e levantou uma desconfiança que custou a vida a
muitos deles".
Testemunho dessa anarquia branca dos paulistas já tinha
sido dado, aliás, em fins do século XVIII, pelo viajante francês Froger, para
quem a cidade de São Paulo tinha a sua origem numa "(...) assamblage de brigans de toutes les Nations, qui peu à peu
y ont formé une grande Ville et une espèce de Republique, où ils se font une
loy de ne point reconnaître le Gouverneur" [apud Vianna, 1973: 183].
Mas o fenômeno da violência
não se restringiu apenas, no nosso Continente, à situação de guerra de todos contra todos anterior à
consolidação do Estado. Revela-se também hoje na corrupção do mesmo, ao ter
sido ele privatizado por grupos, corporações, estamentos, facções e partidos,
no seio da tradição patrimonialista. Não
há dúvida de que o exemplo mais caraterístico foi, no final do século XX e no início deste milênio, a
Colômbia. A respeito, assim caracterizou a situação de violência clânica nesse
país Almudena Mazarrasa, delegada da ONU na Colômbia: "Este parece ir se
tornando um país feudal onde cada um cria o seu próprio exército (...). Cheguei
num momento em que o incremento da violência é aterrorizante. Estou muito
consternada pelo fato de ser testemunha dessas atrocidades" [Mazarrasa,
1997: 1].
As atrocidades que deixaram
perplexa a delegada da ONU na Colômbia decorriam do fato de o país ter sido
loteado entre os bandos criminosos, num acelerado processo de desintegração e
de guerra total, que foi denominado de "escobarização"
(lembrando a onda terrorista desencadeada por Pablo Escobar)
[Bustos, 1997] e que ensejava, para os colombianos, uma situação de
"emergência internacional", em decorrência das tensões geradas por
esse país a escala global [Tokatlian, 1997b].
Estudo da Fundação Milênio, com sede em Bogotá, revelava, efetivamente, que a guerrilha de esquerda e os paramilitares de
direita iniciaram, nas duas últimas décadas do século passado, uma estratégia para dominar as regiões mais
ricas da Colômbia, buscando um melhor financiamento para a guerra a morte que
se declararam. As duas maiores organizações guerrilheiras, as Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia (FARC) e o Exército de Libertação Nacional (ELN)
adquiriram grande vantagem nesse ponto, já que administravam sólidas finanças.
Cada um dos guerrilheiros dessas organizações criminosas passou a ter um ingresso de 70
mil dólares anuais, o que equivalia a 40 vezes o que ganhava, na época, um colombiano médio
[cf. AFP, 03/08/97].
A respeito, o mencionado
estudo frisava: "Houve uma expansão intencional (da guerrilha) em direção
àquelas áreas economicamente mais prósperas. O crescimento adicional da
guerrilha (...) concentrou-se nas áreas prósperas e
não em zonas de colonização, onde teve a sua presença tradicional (...). Em
1985 a subversão estava presente em 15% dos municípios de campesinato médio não
cafeicultor e em 2% dos municípios de campesinato cafeicultor. Em 1995 estava
em 58% do primeiro tipo de municípios e em 53% dos municípios do segundo tipo.
No mesmo período, a guerrilha aumentou a sua presença de 13% dos povoados de
agricultura comercial para 71%, e a sua presença em cidades intermédias passou
de 3 para 85%" [AFP, 03/08/97].
A guerrilha, segundo o
mencionado estudo, adquiriu tal força, que superou a capacidade de controle por
parte do Estado. Pesquisa de opinião realizada, na época, revelava que os colombianos
consideravam ter a guerrilha derrotado, definitivamente, as Forças Armadas. Em
1994, o então Presidente César Gaviria reconhecia que 600 dos 1000 municípios
colombianos sofriam alguma forma de presença guerrilheira. Os paramilitares,
por sua vez, entenderam, aos poucos, que deveriam penetrar nas áreas mais
desenvolvidas economicamente, em especial naquelas que possuíam nexos com o
narcotráfico. Um total de 26% dos 134 municípios onde se cultivava a papoula
(base da heroína), contavam já com a presença de grupos armados paramilitares,
que disputavam com a guerrilha o domínio sobre os narcotraficantes.
Conseqüentemente, havia uma acelerada escalada da violência, decorrente do
conflito entre guerrilheiros e paramilitares, conflito que terminou vitimando a
população civil, manipulada por guerrilheiros, paramilitares, Forças Armadas,
políticos corruptos e narcos. A perspectiva era sombria. À violência praticada, nos anos anteriores, pelos cartéis da cocaína, somava-se, então, o conflito entre os
dois agrupamentos subversivos que pretendiam encampar o narcotráfico,
aproveitando o vácuo deixado com as prisões dos tradicionais chefões. O estudo
da Fundação Milênio concluía a
respeito: "Há uma escalada em andamento do conflito entre guerrilha e
paramilitares, embora é difícil de predizer se vai acontecer de forma
generalizada em todo o país, ou se vai se apresentar sob a modalidade de
guerras locais" [AFP, 03/08/97].
Essa escalada da violência
tornou a Colômbia um dos países mais inseguros do planeta. Os cientistas
políticos Uprimmy Yepes e Vargas Castaño [1990: 105] quantificaram, da seguinte
forma, essa violenta realidade: "Na Colômbia, a morte violenta tornou-se
uma realidade cotidiana. Segundo dados oficiais da Polícia Nacional, em 1988
cometeram-se no país aproximadamente 21.000 homicídios, um a cada média hora em
promédio. A taxa de homicídios nesse ano foi de 70 por cem mil habitantes,
fazendo da Colômbia o terceiro país mais violento do mundo. (...). Se
excluirmos as crianças e os velhos, a metade das mortes dos homens cuja idade
está compreendida entre 15 e 44 anos, deve-se a assassinato".
Quais seriam as principais
causas do fenômeno da violência na América Latina? Séculos de cultura
patrimonialista levaram os países ibero-americanos a encararem a política como
luta entre os clãs pela posse do poder do Estado e, uma vez consolidado este, a
administrá-lo como botim orçamentário a ser distribuído entre amigos e apaniguados, com exclusão de todos os outros. Essa é a raiz peculiar da
violência na América Latina. Não fomos dotados, como outros povos, da tendência
à solidariedade. O nosso, como destaca Oliveira Vianna, é um individualismo
clânico e insolidário, amadurecido em três séculos de poder latifundiário. O
patotismo, nos nossos países, sufocou o patriotismo [cf. Vianna, 1973: 220].
O sociólogo fluminense,
aliás, traçou, em Instituições políticas brasileiras [Vianna, 1974: I, 297], um
quadro magistral desse insolidarismo patrimonialista, na dinâmica da nossa
sociedade: "Em toda essa psicologia da vacuidade ou ausência de motivações
coletivas da nossa vida pública, há um traço geral que só por si bastaria para
explicar todos os outros aspectos (...). Este: a tenuidade ou fraqueza da nossa consciência do bem coletivo, do nosso
sentimento da solidariedade social e do interesse público. Esta tenuidade
ou esta pouca densidade do nosso
sentimento do interesse coletivo é que nos dá a razão científica do fato de que
o interesse pessoal ou de família tenha, em nosso povo -- no comportamento político dos nossos
homens públicos -- mais peso, mais
força, mais importância determinante, do que as considerações do interesse
coletivo ou nacional. Este estado de espírito tem uma causa geral (...): e esta razão científica é a ausência da
compreensão do poder do Estado como órgão do interesse público. Os órgãos
do Estado são, para estes chefes de clãs, locais ou provinciais, apenas uma
força posta à sua disposição para servir aos amigos e aos seus interesses, ou
para oprimir os adversários e os interesses destes".
O cientista político Juan
Gabriel Tokatlian [1997a: 61] exprimia, nos seguintes termos, a presença desse
insolidarismo patrimonialista na sociedade colombiana: "Na Colômbia, no
Estado e no terreno não-governamental, os agentes mais poderosos extremaram um
comportamento orientado à maximização de benefícios particulares e à garantia
da própria sobrevivência, com prejuízo dos interesses nacionais no seu conjunto".
O folclore político já tinha identificado esse vício patrimonialista do
trinômio insolidarismo / clientelismo / autoritarismo nos seguintes versos, que
eram recitados pelo povo após as guerras da independência da Nova Granada, na
terceira década do século XIX: "Bolívar
venció a los godos / Mas, desde ese infausto día / Por un tirano que había / Se
hicieron tiranos todos!".
Já para o ex-padre e sociólogo
colombiano Camilo Torres, o fenômeno da violência, inerente à privatização do
poder por estamentos e clãs, decorria da agressividade social que acompanha à
frustração de aspirações daqueles segmentos que se sentiram excluídos. A
respeito, escrevia [Torres, 1985: 106-107]: "A agressividade pode ser
individual ou social. A agressividade individual é o resultado de um desejo de
destruição originado em uma frustração. A destruição é buscada como uma
compensação e como um meio de reconstrução do que não se conseguiu. A
agressividade social possui as mesmas características, mas alargadas ao grupo
social. A agressividade pode ser manifesta ou latente, segundo o desejo de
destruição possa se realizar ou não. A agressividade social, em geral,
encontra-se naqueles países nos quais há frustração de aspirações. Se essa
frustração de aspirações forma parte da consciência social e encontramos, no
interior das instituições sociais, instrumentos violentos e eficazes de
realização, a agressividade tornar-se-á manifesta".
Foi o que de fato aconteceu
na Colômbia: frustrado, a partir dos acenos de modernização e de liberdade que
foram inicialmente encenados e logo freados pelas oligarquias nas décadas de 1930
e 1940, o campesinato, "por uma espécie de ação diabólica -- frisa o sociólogo Orlando Fals-Borda --
foi induzido a identificar os seus inimigos entre os seus próprios vizinhos e
parentes" [Fals-Borda, 1985: 42]. Essa foi a etapa da violência que
ensejou a luta a morte entre liberais e conservadores até 1958. A ulterior fase
da violência -- chamada de etapa dos
filhos da violência -- começou a se gestar durante o chamado Frente Nacional (1958-1974) e eclodiu, com força, quando os partidos tradicionais recusaram-se a permitir o surgimento
de partidos de representatividade popular e foram boicotadas as principais
reformas econômicas e políticas reclamadas pela população. Os filhos da violência, camponeses famintos
e operários desempregados, juntaram-se a jovens universitários desiludidos de
tudo, e passaram a engrossar as fileiras dos movimentos guerrilheiros. A
cooptação de uma parcela dessas massas pelos narcotraficantes foi questão de
tempo e se viu facilitada pelo estranho raciocínio de alguns líderes
guerrilheiros que, estimulados por Cuba, passaram a achar que o incremento do
narcotráfico ajudaria a derrotar o gigante imperialista e, de outro lado, daria
lugar a preciosas divisas para compra de armamento. Desse contexto emergiu,
nestas últimas décadas, o esquisito fenômeno da narco-guerrilha [cf. Castillo,
1987; Landazábal, 1985; Castro, 1985; Pérez, 1990].
Os numerosos grupos de
jovens desiludidos que habitam na periferia das grandes cidades colombianas,
são o que poderíamos chamar de exército
marginal de reserva da guerrilha, do narcotráfico e dos organismos
para-militares. Calcula-se que de cada 100 pessoas assassinadas em Medellín, 70
estão na faixa dos 14 aos 19 anos. Esses jovens desenraizados e sem esperança
vendem os seus serviços de sicariato
a qualquer um. Só em Medellin havia, em 1989, mais de 150 grupos de extermínio
integrados por adolescentes. Esses fatos levaram à jornalista Laura Restrepo a
escrever que "uma nova geração de colombianos não sabe que é possível
morrer de velhice" [Restrepo L., 1990: 27].
Testemunho claro da exclusão
social e da violência causadas pela privatização patrimonialista do Estado, foi
dado por um jovem chefe de um grupo de extermínio com atuação em Medellín. O
testemunho desse jovem muito bem poderia ser o de qualquer líder de polícia mineira numa favela carioca:
"Destruímos as bocas de fumo e atacamos o consumo de droga, porque daí
provém grande parte da decomposição da gente. Num dia justiçamos cinco moleques,
porque eram casos perdidos de drogadição. Já haviam sido advertidos, mas nunca
houve forma de recuperá-los, porisso os matamos. Criamos uma rede de
informações para todos os setores, com a mesma gente da comunidade. As
senhoras, as crianças, os velhos, todos eles nos avisam acerca da presença de
assassinos e de estranhos. Só estamos respondendo aos problemas que o governo
não resolve. Aqui a polícia nunca sobe e quando o faz torna-se cúmplice dos
ladrões. Entendemos que é pelo desemprego que muita gente opta por essa vida de
delinqüência: se estes bairros tornaram-se um inferno, não é por culpa da
gente, mas do governo. Mas as coisas já foram longe demais. Não há mais remédio
que optar pela violência para defender a tua vida e a da comunidade" [in:
Restrepo, L., 1990: 31].
A violência colombiana,
poderíamos afirmar com o historiador Eric Hobsbawn [1985: 23], "procede de
uma revolução social frustrada. Isso é o que pode acontecer quando as tensões
revolucionárias sociais não são dissipadas pelo pacífico desenvolvimento
econômico, nem freadas para criar estruturas sociais novas e revolucionárias.
Os exércitos da morte, os desenraizados, os mutilados físicos e mentais, são o
preço que a Colômbia paga por esse fracasso".
Para o cientista político,
Eduardo Pizarro [in: Restrepo D., 1990: 210] uma das caraterísticas marcantes
da violência colombiana é o fato de ela provir da privatização do poder pelos
partidos, que são "(...) aparelhos tipicamente clientelistas, onde o poder
do congressista não provém do partido mas do controle sobre uma parte do
eleitorado, através da apropriação das corporações públicas, da capacidade de
decisão sobre o gasto, dos contratos e oferta de emprego público (...)".
No caso da violência que sofre o Brasil e que se traduz na pesada estatística de 60 mil assassinatos por ano, o Ministro de Justiça, Sérgio Moro, elaborou plano para atacar o surto da criminalidade ali onde ele ocorre: nos Municípios. A proposta de uma política de Segurança Pública, apresentada pelo Ministro ao Congresso, inseria-se justamente nesse contexto. Infelizmente, de forma suicida, o Congresso enterrou o projeto. Ora, era uma proposta lúcida, que se afastava do tratamento geral à criminalidade, como se ela tivesse exatamente as mesmas características em todos os lugares. A violência precisa ser identificada e calibrada ali onde acontece, nos Municípios. Era essa a proposta do atual governo. A Colômbia, com uma estratégia semelhante à de Moro, conseguiu diagnosticar e combater eficazmente a violência a partir dos Municípios. As cidades colombianas tiveram sucesso, justamente por esse realismo. Algum dia o Brasil deverá fazer o mesmo, se quisermos erradicar a onda de violência que nos assoberba.
A alternativa democrática em
face da violência latino-americana
O fenômeno da violência na
América Latina possui raízes profundas, de natureza culturológica, não sendo, apenas, um fenômeno conjuntural. Daí por que os remédios devem apontar à mudança
dessa complexa realidade. Precisamos, nos nossos países, como dizia Tocqueville
em relação aos franceses, construir o
homem político [cf. Mélonio, 1993: 91 seg.], civilizado, solidário, livre
das amarras do patotismo, solidamente ancorado na defesa da liberdade, cônscio
dos seus direitos e dos seus deveres como cidadão. Precisamos reverter a
tremenda infra-valorização em que se encontra o cidadão, esse João Ninguém
envergonhado de si mesmo, tão bem descrito por Roberto da Matta [1991: 6].
Lembrarei aqui três tarefas
inadiáveis, sem as quais não será possível reverter, no nosso Continente, a
problemática da violência, umbilicalmente ligada à privatização do Estado no
seio da tradição patrimonialista. Essas três tarefas, interligadas entre si,
são as seguintes: em primeiro lugar, a conquista da liberdade econômica, mediante a desregulamentação, o estímulo à
livre iniciativa, o alívio da carga tributária para o capital que gera
empregos, o controle do gasto público e os processos de privatização. Em
segundo lugar, o aperfeiçoamento da representação e do
controle da sociedade sobre o aparelho estatal, mediante a reforma política
e administrativa do Estado; em terceiro lugar, a efetivação da educação para a
cidadania, a ser realizada nas quatro primeiras séries do primeiro grau.
É evidente que constitui
passo importante a formulação de políticas públicas adequadas no terreno da
segurança cidadã. Mas só conseguiremos reforçar o statu quo, se essas providências não se inserirem no quadro mais
largo da reforma e modernização do Estado, do estímulo à livre iniciativa e à
produtividade e da superação definitiva das crenças e práticas que constituem o
chão axiológico em que se alicerça o patrimonialismo, que outra coisa não é
senão o nosso conhecido patotismo, aplicado à administração do governo.
No que tange à conquista da
verdadeira liberdade econômica,
podemos anotar que o problema do narcotráfico, responsável por grande parte da
onda de violência que sofrem os países latino-americanos, ancora na dificuldade
para gerar empregos. A pesada herança contra-reformista criou, ao longo dos
séculos, verdadeiras barreiras contra a modernização econômica. Os governos,
via de regra, punem quem trabalha e quem gera empregos, dando continuidade,
destarte, à mentalidade colonial ibérica de perseguição contra os elementos
economicamente ativos: judeus e mouros, no passado, e empresários, no presente.
É já conhecida a chocha ladainha populista dos nossos governantes de plantão
contra as multinacionais e contra o empresariado, como se fossem eles e não a nomenclatura corrupta e improdutiva, os
responsáveis pelo atraso.
No tocante à representação
política e ao controle da sociedade sobre o aparelho estatal, é interessante
notar que as soluções apontadas para superar a violência muitas vezes continuam
a mante-la sem controle. Ora, a melhor forma para marginalizar a sociedade da
representação dos seus interesses e da participação na gestão da coisa pública,
é instituir uma minoria de puros, que
se auto-intitulam portadores do interesse
público e entregar a eles a escolha de quem são os verdadeiros cidadãos. O
resto, ou seja, os que não foram cooptados pelos detentores da razão e da moral, devem se submeter a um tratamento hobbesiano, ou seja, renunciar a todos os seus direitos. Esse tipo
de aventura de Democracia Participativa
somente faz perpetuar a violência, cuja causa fundamental é a privatização do
Estado por patotas. Mais importante do que criar uma nova patota é aperfeiçoar
os mecanismos da representação, a fim de que, através de Partidos modernos, a
sociedade possa participar efetivamente na discussão e no equacionamento dos
seus problemas.
No que tange à educação para
a cidadania, ela constitui o elemento cultural de maior importância, a fim de
que a sociedade possa encontrar o verdadeiro caminho para a superação dos
problemas que a afligem. A crise das instituições, nos países latino-americanos,
decorre do fato muito simples de que não foi equacionada essa questão ao longo
do século XX. Esse problema foi resolvido pelos países que hoje se situam no
primeiro mundo. Em relação a este ponto, no texto sobre Educação para a Cidadania dedicado, pelo Instituto Liberal, a analisar a questão, Antônio Paim, Leonardo Prota e eu destacávamos em 1999:
"Nos principais países europeus, nos Estados Unidos e no Canadá, do mesmo
modo que no Japão, há uma consciência profunda de que o adequado aproveitamento
dos recursos naturais e outras potencialidades nacionais encontra-se na estrita
dependência da educação. Quando se faz semelhante enunciado, tem-se presente,
antes de mais nada, a educação geral, facultada a todos, e não apenas os
investimentos em pesquisa e desenvolvimento ou a formação de técnicos de nível
superior. A experiência sugeriu que cabe ao ensino básico e fundamental a
responsabilidade de assegurar a homogeneidade cultural de cada um dos países
considerados. Esse problema foi mais agudo nos Estados Unidos, nas últimas
décadas do século passado, pelo grande fluxo de imigrantes. Mas, com maior ou
menor intensidade, afeta a todas as nações. De sorte que se pode tomar como um
princípio de ordem geral, válido para a maioria das circunstâncias" [Paim,
Prota, Vélez, 1999: 5-6].
A realidade dos países
latino-americanos dista muito de se assemelhar à das nações desenvolvidas, que
equacionaram o problema do ensino básico e fundamental. A gravidade da situação brasileira é
bem expressiva da falência dos países latino-americanos nesse ponto e era assim
descrita pelo estudo em apreço: "No Brasil, fomos despertados tardiamente
para o problema. As quatro séries do ensino primário somente são declaradas
obrigatórias na Constituição de 34. Nos 60 anos desde então transcorridos, ao
invés de perseguir a sua consecução, os governos buscam grandes feitos que os
notabilizem ainda no exercício dos respectivos mandatos. Desde a Constituição
de 67, a obrigatoriedade foi estendida a oito séries. Embora se tenha obtido
que a quase totalidade das crianças ingressem nas séries iniciais do Primeiro
Grau, não consegue retê-las na escola. Esta na verdade nutre o universo
desconcertante onde a maioria dispõe de baixos níveis de escolaridade. Para se
ter uma ideia da gravidade da situação basta indicar que a força de trabalho no
Brasil, compreendendo, em 1997, 73 milhões de pessoas, era integrada por 17%
com menos de um ano de instrução ou que sequer haviam frequentado qualquer
escola. Os que tinham de um a dois anos eram 12% e os que estiveram na escola,
de três a quatro anos, 26%. A média geral de escolaridade de nossa força de
trabalho equivale a quatro anos, enquanto, nos países desenvolvidos, varia entre 11 e 12
anos" [Paim, Prota, Vélez, 1999: 7-8]. É evidente que sem ter sido
equacionada a contento a questão do ensino básico e fundamental, dificilmente poderão os
nossos países, no continente latino-americano, ver solucionadas outras questões
como a democracia representativa e o efetivo controle do Estado pela sociedade.
No Brasil, os últimos dois governos, de Michel Temer e Jair Bolsonaro, fizeram um esforço significativo para progredir na reforma do ensino básico e fundamental. No governo de transição de Temer, foi encarada a reforma do ensino fundamental, a fim de evitar a evasão dos adolescentes que chegavam ao segundo grau profissionalizante. A ideia foi propor um modelo de ensino diversificado que preparasse o estudante para o mercado, mediante o desenvolvimento de propostas de formação teórica e prática, que vinculassem ensino e produção. Foi posta em prática uma política que instituía um modelo diversificado de ensino-trabalho, quebrando a proposta única vigente, de tipo livresco.
No atual governo, o MEC estabeleceu um novo programa de alfabetização que adotava novas metodologias de acordo com os avanços da ciência, tendo sido criada a Secretaria Especial de Alfabetização, com a finalidade pôr em prática um novo método que permitisse superar a ineficiência do modelo tradicional, a fim de vencer o analfabetismo funcional; outra finalidade proposta era a formação, nessa nova metodologia, de professores treinados no ensino-trabalho. Até o momento, foi possível formular o novo método de alfabetização, sendo ainda uma proposta, para concretizar, a política de formação de professores para o ensino básico, num modelo diversificado que recrie a carreira do magistério. Nos primeiros três meses de 2019, sob a minha gestão, o MEC cuidou de escutar os especialistas na matéria, a fim de elaborar o novo modelo de alfabetização. A proposta de formação de professores numa nova carreira de magistério estava sendo costurada, quando da minha saída do Ministério.
De outro lado, o novo modelo profissionalizante para o Ensino Fundamental e para o nível de Segundo Grau, começou a ser concretizado mediante a implantação, na Secretaria de Educação Básica, de um modelo de ensino-trabalho profissionalizante, para o qual foi nomeado como secretário executivo do Ministério, um profissional que conhecia em detalhe o modelo educacional vigente na Fundação Paula Souza, que se consolidou no Estado de São Paulo, desde os anos 60 do século passado. Com a minha saída do Ministério, interrompeu-se esse trabalho. Da nova proposta participariam outras Secretarias do MEC como a Setec e a Seres.
Uma última observação. No que tange à criação de partidos modernos que realmente valorizem a representação e desenvolvam modelos de governança adaptados às exigências da atual quadra da história, caracterizada pela maciça entrada da tecnologia digital, falta, ao atual governo de Jair Bolsonaro, a atuação de um Partido moderno. O PSL, do ângulo programático, tinha propostas sensatas, acordes com o ideário liberal. Mas a acirrada disputa entre os membros do Partido, levando em consideração as vantagens financeiras do Fundo Partidário, terminaram criando mais obstáculos do que soluções.
O Presidente precisa de um Partido moderno e aberto à defesa da representação e ao estímulo à economia, fortalecendo o setor privado. Esse Partido seria um guarda-chuva para defender as propostas do Governo em prol das reformas, sem que se desgastasse a figura do Presidente, discutindo com a mídia ou os Congressistas. Sem essa base política, será difícil, ao atual Governo, dar continuidade à sua pauta política e econômica, que já atingiu, aliás, resultados alvissareiros na realização de reformas como a da Previdência e no tocante ao desengessamento da economia, para facilitar a atração dos capitais internacionais de que o Brasil precisa. O giro internacional que o Presidente Bolsonaro acaba de realizar, com sucesso, pelo Extremo e pelo Médio Oriente, revelou o quanto os investidores estão querendo trabalhar no Brasil. A estabilidade política e jurídica são fundamentais para manter essa porta aberta.
No Brasil, os últimos dois governos, de Michel Temer e Jair Bolsonaro, fizeram um esforço significativo para progredir na reforma do ensino básico e fundamental. No governo de transição de Temer, foi encarada a reforma do ensino fundamental, a fim de evitar a evasão dos adolescentes que chegavam ao segundo grau profissionalizante. A ideia foi propor um modelo de ensino diversificado que preparasse o estudante para o mercado, mediante o desenvolvimento de propostas de formação teórica e prática, que vinculassem ensino e produção. Foi posta em prática uma política que instituía um modelo diversificado de ensino-trabalho, quebrando a proposta única vigente, de tipo livresco.
No atual governo, o MEC estabeleceu um novo programa de alfabetização que adotava novas metodologias de acordo com os avanços da ciência, tendo sido criada a Secretaria Especial de Alfabetização, com a finalidade pôr em prática um novo método que permitisse superar a ineficiência do modelo tradicional, a fim de vencer o analfabetismo funcional; outra finalidade proposta era a formação, nessa nova metodologia, de professores treinados no ensino-trabalho. Até o momento, foi possível formular o novo método de alfabetização, sendo ainda uma proposta, para concretizar, a política de formação de professores para o ensino básico, num modelo diversificado que recrie a carreira do magistério. Nos primeiros três meses de 2019, sob a minha gestão, o MEC cuidou de escutar os especialistas na matéria, a fim de elaborar o novo modelo de alfabetização. A proposta de formação de professores numa nova carreira de magistério estava sendo costurada, quando da minha saída do Ministério.
De outro lado, o novo modelo profissionalizante para o Ensino Fundamental e para o nível de Segundo Grau, começou a ser concretizado mediante a implantação, na Secretaria de Educação Básica, de um modelo de ensino-trabalho profissionalizante, para o qual foi nomeado como secretário executivo do Ministério, um profissional que conhecia em detalhe o modelo educacional vigente na Fundação Paula Souza, que se consolidou no Estado de São Paulo, desde os anos 60 do século passado. Com a minha saída do Ministério, interrompeu-se esse trabalho. Da nova proposta participariam outras Secretarias do MEC como a Setec e a Seres.
Uma última observação. No que tange à criação de partidos modernos que realmente valorizem a representação e desenvolvam modelos de governança adaptados às exigências da atual quadra da história, caracterizada pela maciça entrada da tecnologia digital, falta, ao atual governo de Jair Bolsonaro, a atuação de um Partido moderno. O PSL, do ângulo programático, tinha propostas sensatas, acordes com o ideário liberal. Mas a acirrada disputa entre os membros do Partido, levando em consideração as vantagens financeiras do Fundo Partidário, terminaram criando mais obstáculos do que soluções.
O Presidente precisa de um Partido moderno e aberto à defesa da representação e ao estímulo à economia, fortalecendo o setor privado. Esse Partido seria um guarda-chuva para defender as propostas do Governo em prol das reformas, sem que se desgastasse a figura do Presidente, discutindo com a mídia ou os Congressistas. Sem essa base política, será difícil, ao atual Governo, dar continuidade à sua pauta política e econômica, que já atingiu, aliás, resultados alvissareiros na realização de reformas como a da Previdência e no tocante ao desengessamento da economia, para facilitar a atração dos capitais internacionais de que o Brasil precisa. O giro internacional que o Presidente Bolsonaro acaba de realizar, com sucesso, pelo Extremo e pelo Médio Oriente, revelou o quanto os investidores estão querendo trabalhar no Brasil. A estabilidade política e jurídica são fundamentais para manter essa porta aberta.
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