(Texto da entrevista concedida por Ricardo Vélez Rodríguez à jornalista Graça Loures, Juiz de Fora, dezembro de 2004)
1) Quais os conceitos básicos acerca da ética e da moral?
É evidente que a moral social horizontal constitui a base
cultural para a democracia. Como na nossa tradição republicana (de privatização
do poder para beneficiar amigos e apaniguados), as questões de moral social
quase sempre foram fixadas verticalmente, estamos longe das condições culturais
que embasam uma verdadeira democracia. Somente seremos uma sociedade
democrática, quando todos os brasileiros tiverem condições econômicas,
políticas e culturais para fixarem, de maneira consensual, os princípios de
moral social que servirão de embasamento ao convívio e à legislação. Enquanto
isto não for realidade, a nossa democracia será apenas um projeto.
2) Em
que consiste a moral de responsabilidade?
Este é um outro conceito importante. Consiste na moral que
exigimos dos homens públicos e que se concretiza quando o governante age
pensando nos resultados que da sua ação advirão para a sociedade. Nós vamos
julgar Lula não pelas suas intenções, mas observando se o que ele fizer no
governo for bom para o Brasil e estiver de acordo com as suas promessas de
campanha. Difere a moral de responsabilidade da moral de convicção que deve
guiar a nossa vida privada, no seguinte ponto: nós temos de agir consultando
sempre a nossa consciência, sem calcularmos se o resultado da ação vai ser
aprovado ou não pelos outros. Não devo roubar, não devo pregar mentiras, mesmo
se dessa minha convicção resultados negativos acontecerem para mim.
3) E
sobre a ética empresarial?
A ética empresarial é um capítulo muito importante da
moral social. Consiste em a empresa ajustar o comportamento dos seus membros a
dois critérios básicos: produtividade, de um lado (não podemos renunciar, no
caso das empresas, aos critérios do lucro e da produção de riqueza) e
preocupação com o bem comum. O lucro não é tudo: a empresa tem também uma
função social, que consiste em ela se inserir na comunidade, não agredindo o
meio ambiente e levando em consideração o índice de desenvolvimento humano das
pessoas. Ética empresarial é o melhor meio de garantir, no mundo de hoje, a
produtividade e o lucro de uma empresa. As pessoas estão mais sensíveis, nos
tempos atuais, a essa variável ética. Precisamos deixar claro que ser ético é,
hoje, o melhor negócio. Ser esperto, passar por cima das pessoas é, cada vez
mais, um péssimo negócio.
4) Fale-nos
sobre os conceitos básicos acerca dos valores e da pessoa.
O universo da pessoa é constituído pelos valores. Estes
consistem em entidades ideais, de tipo relacional, que se atualizam quando a
pessoa valora. O caso típico é o dos valores estéticos: os quadros de Van Gogh,
ou de Di Cavalcanti têm valor estético, por exemplo, quando são apreciados. A
Nona Sinfonia de Beethoven existe enquanto obra de arte, quando assistimos à
sua execução pela Sinfônica Brasileira no Teatro da cidade. Se jamais for
executada, a Nona Sinfonia não realiza o seu valor estético. Ora, quem confere
valor à obra de arte é o expectador. Por isso é estúpida a posição dos que
acham que a apreciação artística é coisa de minorias.Tem muita gente por aí que
pensa que arte é privilégio de casa grande, deixando a senzala do lado de fora.
Isso é burrice e conspira contra a essência da arte, que consiste em as pessoas
apreciarem, cada vez mais, as obras artísticas.
Essa capacidade de as pessoas valorarem estende-se aos
valores úteis, à economia. Marx lembrava que, na sua época, algumas pessoas
fetichizavam as mercadorias, lhes atribuindo valor absoluto. Ora, o que produz
valor é o trabalho humano. E quem valora, em economia, são as pessoas. Uma nota
de cem reais na Lua não tem valor algum. Se as pessoas desconfiam umas das
outras, não há relações econômicas. Não sou otário de comprar no açougue, quando
sei que o açougueiro é ladrão. As relações econômicas são relações de
valoração, como tudo no universo das pessoas. Mas, entre os valores, os mais
importantes são os morais, porque são aqueles que carimbam a autenticidade da
pessoa. Falamos em “boa pessoa”, quando alguém é autêntico. Ora, esse é o valor
fundamental que nos torna pessoas. Se não formos morais, se formos insensíveis
aos valores éticos, faltar-nos-á o que é essencial ao homem, a sua dignidade
moral.
5) Quais os
conceitos de moral social na cultura brasileira?
Falei anteriormente que se consolidou, na nossa cultura
republicana privantizante do espaço público, uma moral social vertical. Esse
modelito é ruim. Consiste na denominada “ética macunaímica” de levar vantagem
em tudo, driblando o trabalho produtivo. Ser esperto é o mandamento fundamental
dessa aberração. “O mundo é dos espertos”, estamos cansados de ouvir isso na
sala de aula, no guichê da repartição pública, no sindicato, em casa. Esse
modelo de moral social consolidou-se ao ensejo da conquista predatória feita
nestas terras pelos portugueses, e chegou até nós. Apropriamo-nos espertamente
do espaço público fazendo grilagem de terras, patrocinando queimadas na
Amazônia, colocando no bolso o dinheiro do orçamento municipal, distribuindo
cargos públicos entre amigos e parentes sem o menor critério de eficiência,
passando para trás os otários que não perceberam que somos amigos dos poderosos
de plantão. Essa espertice é a responsável pela desgraça de termos, no Brasil,
cidadãos de primeira e de segunda. Se pertencermos ao Partido atualmente no
governo, estamos feitos. Se não conseguirmos nos colocar bem situados na escala
do poder, estamos perdidos. Vale na nossa cultura o “você sabe com quem está
falando?”. A Lei tem peso para quem está por fora do privilégio. Essa é a
verdadeira causa do nosso atraso. E essa é a causa da desvalorização do
conceito de cidadania. O cidadão brasileiro, como afirma Roberto Da Matta, é um
pobre João ninguém que tem vergonha de si mesmo.
6) Como deveria ser o comportamento
ético das empresas em face de um mundo globalizado?
No mundo globalizado, como frisei anteriormente, as
pessoas estão cada vez mais sensíveis ao perfil ético das empresas. Firmas que
não respeitam o meio-ambiente, que abrigam trabalho escravo ou infantil, não
conseguem credenciamento internacional para exportarem os seus produtos. É
evidente que ainda há muito caminho para andar. Mas as coisas estão ficando
cada dia mais difíceis para os espertinhos. O melhor investimento que uma
empresa pode fazer para se inserir no mundo globalizado é preparar o seu
pessoal do ponto de vista ético, investindo na formação humanística dos
executivos e dos funcionários em geral, e estimulando a criação dos Conselhos
de Ética na empresa.
7) Como fica a integração
mundial via redes?
Ela está aí, gostemos ou não. Não adianta assumir, em face
da globalização, uma atitude infantil, do tipo: as velhinhas quebram a perna no
buraco da rua porque existe a lei da gravidade; derroguemos, portanto, essa
maldita lei... Algo semelhante observou-se há alguns anos, em assembléias
universitárias, onde se votava contra a globalização. A integração mundial via
redes é uma bênção tecnológica, que podemos utilizar para baratearmos custos no
comércio, para agilizarmos a vida dos pacientes nos hospitais, para renovarmos
o ensino. O mundo moderno assiste a fenômenos paradoxais, onde as pessoas
comunicam-se via rede, como na preparação dos Fóruns Sociais Mundiais, para
valentemente jogarem pedras na globalização e nos transgênicos. Já diziam os
Romanos: “Infinitus stultorum est numerus” (“O número dos imbecis é infinito”).
8) A sociedade contemporânea
aponta cada vez mais para a diminuição do trabalho e o aumento do tempo livre.
Estamos caminhando para o ócio?
Sem dúvida que sim. O pensador
italiano Domenico de Massi lembrava, numa das suas obras, que, dos seis bilhões
de seres humanos que habitam a espaço-nave Terra, somente trabalham dois bi. O
resto são crianças, ou aposentados, ou pessoas que esperam uma oportunidade
para trabalhar. Não há dúvida de que o tempo livre hoje é uma constante. Ora,
as pessoas foram programadas para o trabalho, ao longo da Era Industrial.
Precisamos pensar no que vamos fazer quando nos aposentarmos, ou quando as
condições de trabalho mudarem de tal forma que possamos ficar mais tempo em
casa. O primeiro que se preocupou em discutir este assunto foi Lorde Maynard
Keynes, nos anos vinte do século passado. Hoje é uma realidade que o tempo
livre das pessoas aumentou. Daí porque, por exemplo, as empresas do que os
americanos chamam de entertainment, são as que mais crescem. Aqueles que
vendem serviços nessa área, como os futebolistas, os cantantes de música pop,
os esportistas das grandes ligas dos Estados Unidos, são os que mais faturam.
Todo mundo está com tempo livre para administrar.
O entretenimento é a grande
jogada. Este é um filão que os educadores e as Universidades apenas estão
descobrindo aqui no Brasil. O estudo das Humanidades deveria ser um produto
oferecido ampla e abertamente pelas nossas escolas. O ser humano se amarra em
conhecer como os seus antepassados viviam, quais eram os seus valores, como
enfrentavam as incertezas da finitude, da doença, da morte, quais os seus
anseios, etc. O melhor entretenimento deveria ser algo ligado ao estudo da história
da cultura. Seria legal podermos conhecer como pensavam os Assírios, os
Romanos, os Egípcios, os Maias, os Tucano, os Tupi-guaranis, os homens da Idade
Média ou da Renascença. Ora, isso é cultura. Ainda estamos engatinhando em
matéria de massificação de estudos humanísticos no Brasil. As pessoas querem
saber. Mas os administradores do conhecimento ainda pensam com mentalidade
profissionalizante ou de casa grande, como se os conhecimentos humanísticos
fossem coisa de especialistas ou de minorias. Todo mundo, principalmente o
povão, quer conhecer, se ilustrar. Não podemos sonegar essa riqueza aos nossos
semelhantes.
9) Em um futuro bem próximo
seria possível prosseguir com a educação sem ter o professor como mediador?
Certamente não. O professor como mediador é essencial. Só
que a forma de se realizar essa mediação está mudando aceleradamente. Em
primeiro lugar, destaquemos que a figura do professor como formador ainda é, ao
lado dos pais, algo essencial para a educação da criança no ciclo básico. Hoje,
com o desajuste da família, os pais se encostam, de forma comodista, na escola.
Isso está errado. A crise da família é um dos nossos grandes problemas. Não
podemos descarregar nos mestres toda a responsabilidade pela formação moral das
nossas crianças. Os pais têm aí um papel fundamental. Valores morais são
assimilados pelas crianças, no lar, via exemplo e vivência. Uma criança que não
é amada no lar, dificilmente vai saber o que é solidariedade. Uma criança que
assiste diariamente a cenas de violência e injustiça, no seio do seu lar,
certamente terá problemas de desajuste social. Pressupondo que os pais são os
primeiros responsáveis pela formação dos valores essenciais na criança, aos
mestres compete completar essa formação, notadamente no terreno da moral,
mediante o exemplo e a denominada “educação para a cidadania”, que deve ser
ministrada nas quatro séries iniciais do Primeiro Grau. Uma escola que permite
a discriminação das crianças por aparência, sexo, cor ou classe social,
deseduca em termos éticos.
Todas as escolas deveriam ter os Conselhos de Ética, que
zelassem pela reta educação moral dos alunos. Não se trata de comitês de
moralismo, nem de juntas de censura. Trata-se de institucionalizar a reflexão
sobre matérias éticas e acerca da forma em que cada escola está correspondendo
a essa exigência. Como as questões morais não estão predeterminadas em manual,
mas decorrem da reflexão diuturna em face da experiência cotidiana, os
Conselhos de Ética são um mecanismo essencial ao bom andamento da escola.
Infelizmente, no Brasil, as questões ligadas à ética foram relegadas a um
segundo plano, como se se tratasse de algo de que não se pudesse falar em
público. Ora, se a ética é a base da vida social, devemos falar muito nela,
refletirmos muito sobre a forma em que está acontecendo o ato de educar em face
dos valores morais. No caso da Universidade, a formação do bom profissional não
se limita ao estudo das técnicas e das teorias. É necessário cuidar, também,
dos valores que vamos incutir nos novos profissionais. Advogados inescrupulosos
certamente levarão à sociedade mais advogados inescrupulosos, quando os seus
discípulos se “deformarem” numa visão distorcida do direito. Médicos imorais,
que não dão o mínimo valor à pessoa humana e que só pensam em faturar e em
dominar, jogarão nas veias da vida social o sangue contaminado de mais médicos
desumanos. Bons profissionais, ao contrário, formarão profissionais competentes
e a serviço das suas comunidades.
10) Quais as exigências
educacionais dos novos sistemas comunicativos?
A primeira exigência é que o governo, nas suas várias
instâncias (municipal, estadual, federal), passe a valorizar verdadeiramente os
investimentos em educação. No Brasil, entra governo e sai governo e, em matéria
da valorização da educação, tudo fica como “dantes no quartel de Abrantes”. É
um crime dos políticos. Educação deveria ser algo sagrado. Preparar os mestres
dos nossos filhos, esse deveria ser assunto de primeira linha. O que se vê é o
menosprezo dos políticos em face dos nossos mestres. Professorinhas primárias
ganhando salário mínimo, mestres sem a menor condição de aperfeiçoamento nos
seus estudos, concursos que são feitos sem que os governos estaduais ou
municipais jamais tomem providências para preencher os cargos (mantendo uma
massa enorme de manobra para “negociar” em época de greve), são fatos de todos
os dias. E os políticos o que fazem? Fabricam pesquisas de opinião mostrando
que têm altíssimos índices de aprovação, apresentam como ideal de administração
a extinção do déficit público, sem que tenha havido diminuição nos gastos
secundários do governo com aviões, ministérios inúteis e mordomias, mas tendo
extinguido bravamente cargos essenciais ao bom andamento dos projetos
educacionais. É muito cinismo. Acho que o Brasil, em matéria educacional, não
está fazendo o dever de casa.
Em segundo lugar, deveria ser
criada já, no nosso país, a Universidade Federal de Ensino à Distância (de
forma semelhante a como fizeram os socialistas espanhóis na década de 80), para
garantir a cada um dos nossos mestres de ensino primário e secundário a
possibilidade real de se formar e aperfeiçoar no domínio das novas tecnologias
e nos conteúdos programáticos, passando a ganhar dignamente e sem ter de sair
das suas comunidades. Na Espanha, hoje, qualquer mestre de ensino primário ou
secundário pode fazer licenciatura, especialização, mestrado e doutorado on
line, com um custo baixíssimo e sem ter de se afastar da sua cidade. Isso
seria perfeitamente viável no Brasil. Essa idéia não constitui ainda prioridade
política. Sinceramente, fiquei decepcionado com o governo do PT quando o
ministro que poderia ter levado adiante essa tarefa foi demitido à distância
(pelo telefone). Logo o PT que fala tanto em cidadania e em direitos humanos!
Juiz de Fora, 27 de Dezembro de
2004.
Professor, desejo muito sucesso ao senhor em seu novo desafio e que o projeto para formação docente a distância se torne realidade. Sou professor e tenho uma vontade imensa e um dia poder fazer um mestrado.
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