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quinta-feira, 20 de setembro de 2018

ÉTICA E EDUCAÇÃO - CONCEITOS BÁSICOS

(Texto da entrevista concedida por Ricardo Vélez Rodríguez à jornalista Graça Loures, Juiz de Fora, dezembro de 2004)

1)      Quais os conceitos básicos acerca da ética e da moral?

 Os conceitos básicos são três: o de moral, o de ética e o de moral social. A moral consiste num conjunto de normas de conduta, adotado como absolutamente válido por uma comunidade humana, numa época determinada.  A ética consiste no estudo sistemático da moral. A moral social consiste no mínimo comportamental a ser exigido dos membros de uma comunidade, para que esta não se dissolva. Convêm distinguir, no que se refere à moral social, dois tipos: vertical, que ocorre quando aquele mínimo comportamental é imposto, ao resto da sociedade, de maneira autoritária, pela minoria que detém o poder. O outro tipo é a moral social horizontal, que acontece quando o mínimo comportamental é fixado consensualmente pelos membros da comunidade.

É evidente que a moral social horizontal constitui a base cultural para a democracia. Como na nossa tradição republicana (de privatização do poder para beneficiar amigos e apaniguados), as questões de moral social quase sempre foram fixadas verticalmente, estamos longe das condições culturais que embasam uma verdadeira democracia. Somente seremos uma sociedade democrática, quando todos os brasileiros tiverem condições econômicas, políticas e culturais para fixarem, de maneira consensual, os princípios de moral social que servirão de embasamento ao convívio e à legislação. Enquanto isto não for realidade, a nossa democracia será apenas um projeto.

2)      Em que consiste a moral de responsabilidade?

Este é um outro conceito importante. Consiste na moral que exigimos dos homens públicos e que se concretiza quando o governante age pensando nos resultados que da sua ação advirão para a sociedade. Nós vamos julgar Lula não pelas suas intenções, mas observando se o que ele fizer no governo for bom para o Brasil e estiver de acordo com as suas promessas de campanha. Difere a moral de responsabilidade da moral de convicção que deve guiar a nossa vida privada, no seguinte ponto: nós temos de agir consultando sempre a nossa consciência, sem calcularmos se o resultado da ação vai ser aprovado ou não pelos outros. Não devo roubar, não devo pregar mentiras, mesmo se dessa minha convicção resultados negativos acontecerem para mim.

3)      E sobre a ética empresarial?

A ética empresarial é um capítulo muito importante da moral social. Consiste em a empresa ajustar o comportamento dos seus membros a dois critérios básicos: produtividade, de um lado (não podemos renunciar, no caso das empresas, aos critérios do lucro e da produção de riqueza) e preocupação com o bem comum. O lucro não é tudo: a empresa tem também uma função social, que consiste em ela se inserir na comunidade, não agredindo o meio ambiente e levando em consideração o índice de desenvolvimento humano das pessoas. Ética empresarial é o melhor meio de garantir, no mundo de hoje, a produtividade e o lucro de uma empresa. As pessoas estão mais sensíveis, nos tempos atuais, a essa variável ética. Precisamos deixar claro que ser ético é, hoje, o melhor negócio. Ser esperto, passar por cima das pessoas é, cada vez mais, um péssimo negócio.

4)      Fale-nos sobre os conceitos básicos acerca dos valores e da pessoa.

O universo da pessoa é constituído pelos valores. Estes consistem em entidades ideais, de tipo relacional, que se atualizam quando a pessoa valora. O caso típico é o dos valores estéticos: os quadros de Van Gogh, ou de Di Cavalcanti têm valor estético, por exemplo, quando são apreciados. A Nona Sinfonia de Beethoven existe enquanto obra de arte, quando assistimos à sua execução pela Sinfônica Brasileira no Teatro da cidade. Se jamais for executada, a Nona Sinfonia não realiza o seu valor estético. Ora, quem confere valor à obra de arte é o expectador. Por isso é estúpida a posição dos que acham que a apreciação artística é coisa de minorias.Tem muita gente por aí que pensa que arte é privilégio de casa grande, deixando a senzala do lado de fora. Isso é burrice e conspira contra a essência da arte, que consiste em as pessoas apreciarem, cada vez mais, as obras artísticas.

Essa capacidade de as pessoas valorarem estende-se aos valores úteis, à economia. Marx lembrava que, na sua época, algumas pessoas fetichizavam as mercadorias, lhes atribuindo valor absoluto. Ora, o que produz valor é o trabalho humano. E quem valora, em economia, são as pessoas. Uma nota de cem reais na Lua não tem valor algum. Se as pessoas desconfiam umas das outras, não há relações econômicas. Não sou otário de comprar no açougue, quando sei que o açougueiro é ladrão. As relações econômicas são relações de valoração, como tudo no universo das pessoas. Mas, entre os valores, os mais importantes são os morais, porque são aqueles que carimbam a autenticidade da pessoa. Falamos em “boa pessoa”, quando alguém é autêntico. Ora, esse é o valor fundamental que nos torna pessoas. Se não formos morais, se formos insensíveis aos valores éticos, faltar-nos-á o que é essencial ao homem, a sua dignidade moral.

5) Quais os conceitos de moral social na cultura brasileira?

Falei anteriormente que se consolidou, na nossa cultura republicana privantizante do espaço público, uma moral social vertical. Esse modelito é ruim. Consiste na denominada “ética macunaímica” de levar vantagem em tudo, driblando o trabalho produtivo. Ser esperto é o mandamento fundamental dessa aberração. “O mundo é dos espertos”, estamos cansados de ouvir isso na sala de aula, no guichê da repartição pública, no sindicato, em casa. Esse modelo de moral social consolidou-se ao ensejo da conquista predatória feita nestas terras pelos portugueses, e chegou até nós. Apropriamo-nos espertamente do espaço público fazendo grilagem de terras, patrocinando queimadas na Amazônia, colocando no bolso o dinheiro do orçamento municipal, distribuindo cargos públicos entre amigos e parentes sem o menor critério de eficiência, passando para trás os otários que não perceberam que somos amigos dos poderosos de plantão. Essa espertice é a responsável pela desgraça de termos, no Brasil, cidadãos de primeira e de segunda. Se pertencermos ao Partido atualmente no governo, estamos feitos. Se não conseguirmos nos colocar bem situados na escala do poder, estamos perdidos. Vale na nossa cultura o “você sabe com quem está falando?”. A Lei tem peso para quem está por fora do privilégio. Essa é a verdadeira causa do nosso atraso. E essa é a causa da desvalorização do conceito de cidadania. O cidadão brasileiro, como afirma Roberto Da Matta, é um pobre João ninguém que tem vergonha de si mesmo.

6) Como deveria ser o comportamento ético das empresas em face de um mundo globalizado?

No mundo globalizado, como frisei anteriormente, as pessoas estão cada vez mais sensíveis ao perfil ético das empresas. Firmas que não respeitam o meio-ambiente, que abrigam trabalho escravo ou infantil, não conseguem credenciamento internacional para exportarem os seus produtos. É evidente que ainda há muito caminho para andar. Mas as coisas estão ficando cada dia mais difíceis para os espertinhos. O melhor investimento que uma empresa pode fazer para se inserir no mundo globalizado é preparar o seu pessoal do ponto de vista ético, investindo na formação humanística dos executivos e dos funcionários em geral, e estimulando a criação dos Conselhos de Ética na empresa.

7) Como fica a integração mundial via redes?

Ela está aí, gostemos ou não. Não adianta assumir, em face da globalização, uma atitude infantil, do tipo: as velhinhas quebram a perna no buraco da rua porque existe a lei da gravidade; derroguemos, portanto, essa maldita lei... Algo semelhante observou-se há alguns anos, em assembléias universitárias, onde se votava contra a globalização. A integração mundial via redes é uma bênção tecnológica, que podemos utilizar para baratearmos custos no comércio, para agilizarmos a vida dos pacientes nos hospitais, para renovarmos o ensino. O mundo moderno assiste a fenômenos paradoxais, onde as pessoas comunicam-se via rede, como na preparação dos Fóruns Sociais Mundiais, para valentemente jogarem pedras na globalização e nos transgênicos. Já diziam os Romanos: “Infinitus stultorum est numerus” (“O número dos imbecis é infinito”).

8) A sociedade contemporânea aponta cada vez mais para a diminuição do trabalho e o aumento do tempo livre. Estamos caminhando para o ócio?

Sem dúvida que sim. O pensador italiano Domenico de Massi lembrava, numa das suas obras, que, dos seis bilhões de seres humanos que habitam a espaço-nave Terra, somente trabalham dois bi. O resto são crianças, ou aposentados, ou pessoas que esperam uma oportunidade para trabalhar. Não há dúvida de que o tempo livre hoje é uma constante. Ora, as pessoas foram programadas para o trabalho, ao longo da Era Industrial. Precisamos pensar no que vamos fazer quando nos aposentarmos, ou quando as condições de trabalho mudarem de tal forma que possamos ficar mais tempo em casa. O primeiro que se preocupou em discutir este assunto foi Lorde Maynard Keynes, nos anos vinte do século passado. Hoje é uma realidade que o tempo livre das pessoas aumentou. Daí porque, por exemplo, as empresas do que os americanos chamam de entertainment, são as que mais crescem. Aqueles que vendem serviços nessa área, como os futebolistas, os cantantes de música pop, os esportistas das grandes ligas dos Estados Unidos, são os que mais faturam. Todo mundo está com tempo livre para administrar.

O entretenimento é a grande jogada. Este é um filão que os educadores e as Universidades apenas estão descobrindo aqui no Brasil. O estudo das Humanidades deveria ser um produto oferecido ampla e abertamente pelas nossas escolas. O ser humano se amarra em conhecer como os seus antepassados viviam, quais eram os seus valores, como enfrentavam as incertezas da finitude, da doença, da morte, quais os seus anseios, etc. O melhor entretenimento deveria ser algo ligado ao estudo da história da cultura. Seria legal podermos conhecer como pensavam os Assírios, os Romanos, os Egípcios, os Maias, os Tucano, os Tupi-guaranis, os homens da Idade Média ou da Renascença. Ora, isso é cultura. Ainda estamos engatinhando em matéria de massificação de estudos humanísticos no Brasil. As pessoas querem saber. Mas os administradores do conhecimento ainda pensam com mentalidade profissionalizante ou de casa grande, como se os conhecimentos humanísticos fossem coisa de especialistas ou de minorias. Todo mundo, principalmente o povão, quer conhecer, se ilustrar. Não podemos sonegar essa riqueza aos nossos semelhantes.

9) Em um futuro bem próximo seria possível prosseguir com a educação sem ter o professor como mediador?

Certamente não. O professor como mediador é essencial. Só que a forma de se realizar essa mediação está mudando aceleradamente. Em primeiro lugar, destaquemos que a figura do professor como formador ainda é, ao lado dos pais, algo essencial para a educação da criança no ciclo básico. Hoje, com o desajuste da família, os pais se encostam, de forma comodista, na escola. Isso está errado. A crise da família é um dos nossos grandes problemas. Não podemos descarregar nos mestres toda a responsabilidade pela formação moral das nossas crianças. Os pais têm aí um papel fundamental. Valores morais são assimilados pelas crianças, no lar, via exemplo e vivência. Uma criança que não é amada no lar, dificilmente vai saber o que é solidariedade. Uma criança que assiste diariamente a cenas de violência e injustiça, no seio do seu lar, certamente terá problemas de desajuste social. Pressupondo que os pais são os primeiros responsáveis pela formação dos valores essenciais na criança, aos mestres compete completar essa formação, notadamente no terreno da moral, mediante o exemplo e a denominada “educação para a cidadania”, que deve ser ministrada nas quatro séries iniciais do Primeiro Grau. Uma escola que permite a discriminação das crianças por aparência, sexo, cor ou classe social, deseduca em termos éticos.

Todas as escolas deveriam ter os Conselhos de Ética, que zelassem pela reta educação moral dos alunos. Não se trata de comitês de moralismo, nem de juntas de censura. Trata-se de institucionalizar a reflexão sobre matérias éticas e acerca da forma em que cada escola está correspondendo a essa exigência. Como as questões morais não estão predeterminadas em manual, mas decorrem da reflexão diuturna em face da experiência cotidiana, os Conselhos de Ética são um mecanismo essencial ao bom andamento da escola. Infelizmente, no Brasil, as questões ligadas à ética foram relegadas a um segundo plano, como se se tratasse de algo de que não se pudesse falar em público. Ora, se a ética é a base da vida social, devemos falar muito nela, refletirmos muito sobre a forma em que está acontecendo o ato de educar em face dos valores morais. No caso da Universidade, a formação do bom profissional não se limita ao estudo das técnicas e das teorias. É necessário cuidar, também, dos valores que vamos incutir nos novos profissionais. Advogados inescrupulosos certamente levarão à sociedade mais advogados inescrupulosos, quando os seus discípulos se “deformarem” numa visão distorcida do direito. Médicos imorais, que não dão o mínimo valor à pessoa humana e que só pensam em faturar e em dominar, jogarão nas veias da vida social o sangue contaminado de mais médicos desumanos. Bons profissionais, ao contrário, formarão profissionais competentes e a serviço das suas comunidades.

10) Quais as exigências educacionais dos novos sistemas comunicativos?

A primeira exigência é que o governo, nas suas várias instâncias (municipal, estadual, federal), passe a valorizar verdadeiramente os investimentos em educação. No Brasil, entra governo e sai governo e, em matéria da valorização da educação, tudo fica como “dantes no quartel de Abrantes”. É um crime dos políticos. Educação deveria ser algo sagrado. Preparar os mestres dos nossos filhos, esse deveria ser assunto de primeira linha. O que se vê é o menosprezo dos políticos em face dos nossos mestres. Professorinhas primárias ganhando salário mínimo, mestres sem a menor condição de aperfeiçoamento nos seus estudos, concursos que são feitos sem que os governos estaduais ou municipais jamais tomem providências para preencher os cargos (mantendo uma massa enorme de manobra para “negociar” em época de greve), são fatos de todos os dias. E os políticos o que fazem? Fabricam pesquisas de opinião mostrando que têm altíssimos índices de aprovação, apresentam como ideal de administração a extinção do déficit público, sem que tenha havido diminuição nos gastos secundários do governo com aviões, ministérios inúteis e mordomias, mas tendo extinguido bravamente cargos essenciais ao bom andamento dos projetos educacionais. É muito cinismo. Acho que o Brasil, em matéria educacional, não está fazendo o dever de casa.

Em segundo lugar, deveria ser criada já, no nosso país, a Universidade Federal de Ensino à Distância (de forma semelhante a como fizeram os socialistas espanhóis na década de 80), para garantir a cada um dos nossos mestres de ensino primário e secundário a possibilidade real de se formar e aperfeiçoar no domínio das novas tecnologias e nos conteúdos programáticos, passando a ganhar dignamente e sem ter de sair das suas comunidades. Na Espanha, hoje, qualquer mestre de ensino primário ou secundário pode fazer licenciatura, especialização, mestrado e doutorado on line, com um custo baixíssimo e sem ter de se afastar da sua cidade. Isso seria perfeitamente viável no Brasil. Essa idéia não constitui ainda prioridade política. Sinceramente, fiquei decepcionado com o governo do PT quando o ministro que poderia ter levado adiante essa tarefa foi demitido à distância (pelo telefone). Logo o PT que fala tanto em cidadania e em direitos humanos!

Juiz de Fora, 27 de Dezembro de 2004.


Um comentário:

  1. Professor, desejo muito sucesso ao senhor em seu novo desafio e que o projeto para formação docente a distância se torne realidade. Sou professor e tenho uma vontade imensa e um dia poder fazer um mestrado.

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