A figura de Antero de
Quental sempre esteve vinculada, na nossa memória cultural, à poesia. Poucos
sabem, porém, que além de poeta, o grande escritor açoriano era um ideólogo de
renome (um dos que deitaram as bases do Partido Socialista em Portugal), bem
como um pensador de qualidade, autor de importante ensaio que fez um balanço
das idéias filosóficas no final do oitocentos, intitulado: Tendências gerais da Filosofia na
segunda metade do século XX.
A finalidade deste artigo
consiste em apresentar a personalidade de Antero destacando os seus aspectos de
doutrinário político e de pensador no terreno da filosofia. Enfatizar-se-á este
último item. Serão desenvolvidos dois pontos: I - Breve sinopse
bio-bibliográfica de Antero de Quental; II -
Antero de Quental, ensaísta.
A primeira versão deste trabalho foi feita em 2003 para o Projeto Ensayo Hispánico, que o prof. Dr. José Luis Gómez Martínez desenvolveu na Universidade do Estado da Geórgia, nos Estados Unidos [www.ensayistas.org].
I - BREVE SINOPSE
BIO-BIBLIOGRÁFICA
Antero Tarquinio de Quental, de origem nobre,
nasceu em Ponta Delgada, ilha de São Miguel (no arquipélago das Açores), em
abril de 1842. Viveu na cidade natal até os 14 anos de idade, num ambiente
bucólico em que se destacava a religiosidade familiar. O tio avô de Antero era
o padre Bartolomeu de Quental, orador sacro de renome, escritor de temas
místicos e fundador da ordem da Congregação do Oratório. Impressionado pela
figura deste familiar, bem como pela leitura do poema Deus, que integrava a obra intitulada Harpa do Crente do grande
historiador Alexandre Herculano, o nosso autor cultivou durante algum tempo a
idéia de se tornar sacerdote. No entanto, o contato com as "correntes do
espírito moderno", que Antero conheceu ao longo dos seus estudos de
direito em Coimbra (realizados entre 1856 e 1864), terminou por fazer apagar no
seu coração essa tendência herdada da religiosidade familiar. A partir de 1865,
ano em publica as suas Odes Modernas, consolida-se esse
afastamento e o conseqüente surgimento no espírito do poeta e ensaísta da
atitude crítica em face das tradições portuguesas.
Adolfo Casais Monteiro considera que Antero
exerceu uma posição de liderança em relação aos seus companheiros de estudo
(Teófilo Braga, Vieira de Castro, Adolfo Coelho, Oliveira Martins, Eça de
Queirós e outros), no que tange a uma reflexão crítica sobre Portugal e a sua
cultura. A propósito, Casais Monteiro escreve: "Se procurarmos ter uma
visão de conjunto da geração de 70, quanto à orientação geral das idéias, o
lugar de iniciador e condutor de Antero salta imediatamente à vista" [apud
Moisés, 1974: 8]. Antero ocuparia assim, em Portugal, para a
geração intelectual a que pertencia, posição semelhante à ocupada no Brasil por
Tobias Barreto.
Antero e a "geração coimbrã" buscavam regenerar a cultura portuguesa,
presa demais às tradições católicas dos ancestrais. O nosso autor alimentou por
essa época, outrossim, o desejo de ir para longínquas terras americanas a fim
de lutar pela liberdade ao lado de heróis aventureiros como Garibaldi. Os
ideais revolucionários terminaram dando ensejo a um projeto bem mais modesto,
mas que libertava o nosso pensador da cômoda atividade de advogado: após ter
aprendido em Lisboa o ofício de tipógrafo, viajou para Paris (onde exerceu essa
profissão) e Espanha, em 1867 tendo publicado, no final do mesmo ano, o folheto
intitulado: Portugal perante a Revolução da Espanha. Regressou dali ao
pouco tempo, em 1868, com os quebrantos psicossomáticos que o afetariam até a
morte. No ano seguinte viajou para os Estados Unidos da América, a bordo do
veleiro Carolina, de bandeira
portuguesa, em companhia do poeta João de Deus e Joaquim Negrão, capitão e
proprietário do navio. O nosso autor desembarcou junto com a tripulação em
Halifax e depois de alguns dias viajou para Nova Iorque onde, por intermédio de
Joaquim Negrão, entrou em contato com um rico banqueiro brasileiro que o
contrataria por três anos, para ser tutor dos seus filhos. No entanto, o nosso
pensador desistiu do polpudo contrato, em decorrência das crises de pessimismo
que amiúde o assaltavam.
Da viagem de Antero à América restou precioso
testemunho recolhido por António Arroyo no ensaio intitulado A
viagem de Antero de Quental à América do Norte. Conta-se ali delicioso
episódio que revela a índole estóica do nosso pensador. Na viagem de volta,
pelo mês de setembro de 1869, o navio teve de enfrentar fortíssima tempestade
que quase o faz afundar encalhado nos perigosos bancos de areia que margeiam a
costa americana. Recolhido ao seu camarote, Antero, como de costume, estudava
alemão. Relata Arroyo: "Negrão, quase ao findar do temporal, desconfiado,
pela altura da vaga, que o navio tivesse caído muito e se achasse próximo do
banco, foi ter com Antero para lho dizer. Este continuava impassível a ler e a
consultar os livros alemães, e olhou para o amigo na mais completa indiferença,
sem idéia de qualquer cousa a recear. Apesar de isso o capitão preveniu-o de
que talvez se achassem sobre o banco. - E se lá chegarmos?... perguntou Antero.
- Desfaz-se tudo, não escapa nada. - Pois então, quando você vir que isso está
vai não vai para acontecer, venha dizer-mo, ou mande cá. Verdade, verdade, eu
não ganho nada com isso. Mas venha sempre; talvez até eu lá chegue acima.
Depois resolverei conforme me achar. E continuou a ler" [Arroyo, 1992: 48-49]
Influenciado pelas idéias radicais da
Revolução Espanhola, bem como pelos ideais do socialismo francês, o nosso autor
passou a se engajar cada vez mais nas lutas sociais e operárias. A sua
atividade era intensa. Como confessava Antero na sua Carta autobiográfica,
"ao mesmo tempo que conspirava a favor da União Ibérica, fundava com a
outra mão sociedades operárias e introduzia, adepto de Marx e de Engels, em
Portugal a Associação Internacional dos Trabalhadores. Fui durante uns sete ou
oito anos uma espécie de Lassalle, e tive a minha hora vã de popularidade"
[Quental, 1974: 132].
O primeiro escrito político de Antero datava
de 1864. Sob o título de Defesa
da Carta Encíclica de S. Pio IX contra a chamada opinião liberal, o
nosso autor fazia uma paradoxal defesa da opinião do Papa, que tinha condenado
o liberalismo no Syllabus, e que era atacado por liberais que se diziam ao mesmo
tempo católicos. Na sua Carta autobiográfica Antero
explicava assim a sua posição: "glorificando o Pontífice pela beleza de
sua atitude intransigente em face do século, via nessa intransigência uma lei
histórica, rezava respeitosamente um De
Profundis sobre a Igreja condenada pela mesma grandeza da sua instituição a
cair inteira mas não a render-se, e atacava a hipocrisia dos jornais
liberais" [Quental, 1974: 132]. No inverno de 1865 o nosso autor passou a
criticar a velha escola de crítica literária portuguesa representada António
Feliciano de Castilho. A crítica de Antero aos mestres antiquados da crítica
literária portuguesa foi sistematizada por ele no ensaio intitulado Bom
senso e bom gosto, carta ao Exmo. Senhor António Feliciano de Castilho.
O clima iconoclasta e renovador do
ensaio anteriano foi destacado pelo nosso autor na Carta autobiográfica, com
as seguintes palavras: "Quando o fumo se dissipou, o que se viu
mais claramente foi que havia em Portugal um grupo de 16 a 20 rapazes, que não
queriam saber da Academia nem dos acadêmicos, que já não eram católicos nem
monárquicos, que falavam de Goethe e Hegel como os velhos tinham falado de
Chateaubriand e de Cousin; e de Michelet e Proudhon, como os outros de Guizot e
Bastiat; que citavam nomes bárbaros e ciências desconhecidas, como glótica,
filologia, etc., que inspiravam talvez pouca confiança pela petulância e
irreverência, mas que inquestionavelmente tinham talento e estavam de boa-fé e
que, em suma, havia a esperar deles alguma coisa, quando assentassem"
[Quental, 1974: 133]. Datava de 1865 ainda um outro escrito de crítica
literária: Dignidade das letras e literaturas oficiais.
Em 1871 formou-se ao redor de Antero o Grupo
do Cenáculo, que concebeu as famosas Conferências do Cassino, que marcaram um
momento importante da crítica filosófica e sociológica à tradicional cultura
portuguesa. Eça de Queirós deu a respeito um valioso testemunho, em que
destacava a figura carismática do nosso autor: "Antero, que desembarcara
em Lisboa como um Apóstolo do socialismo, a trazer a palavra aos gentílicos, em
breve nos converteu a uma vida mais alta e fecunda. Nós fôramos até aí, no
Cenáculo, uns quatro ou cinco demônios, cheios de incoerência e de turbulência.
Sob a influência de Antero, logo dois de nós, que andávamos a compor uma
ópera-bufa, contendo um novo sistema do Universo, abandonamos essa obra de
escandaloso delírio, e começamos à noite a estudar Proudhon nos três tomos da Justiça
na Revolução e na Igreja, quietos à banca, com os pés em capachos, como
bons estudantes. E do Cenáculo, de onde, antes da vinda de Antero (que foi como
a vinda do rei Artur à confusa terra de Gales), nada poderia ter nascido além
da chalaça, versos satânicos, noitadas curtidas a vinho de Torres, e farrapos
de Filosofia fácil, nasceram, mirabile dictu, as Conferências do
Cassino, aurora de um mundo novo, mundo puro e novo que depois, oh dor!, creio
que envelheceu e apodreceu..." [apud Moisés, 1974: 9-10].
Modernizar Portugal: tal era o intuito
perseguido por Antero e pelos seus colegas com as famosas Conferências, que
ensejaram forte movimento oposicionista do governo e das classes tradicionais,
até serem proibidas. Eis a forma em que os jovens reformadores justificavam o
seu empreendimento: "Ninguém
desconhece que se está dando em volta de nós uma transformação política, e
todos pressentem que se agita, mais forte que nunca, a questão de saber como
deve regenerar-se a organização social. (...) Abrir uma tribuna, onde tenham
voz as idéias e os trabalhos que caracterizam este movimento do século,
preocupando-nos sobretudo com a transformação social, moral e política dos
povos. Ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o nutrir-se assim dos
elementos vitais de que vive a humanidade civilizada. Procurar adquirir a
consciência dos fatos que nos rodeiam, na Europa. Agitar na opinião pública as
grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna. Estudar as condições da
transformação política, econômica e religiosa da sociedade portuguesa. Tal é o
fim das Conferências Democráticas" [apud Moisés, 1974: 10].
As Conferências começaram no dia 22 de maio
de 1871 com a exposição de Antero intitulada: O Espírito das Conferências.
A segunda, também da autoria de Antero, intitulava-se: Causas da decadência dos Povos
Peninsulares nos últimos três séculos. Para o nosso pensador, tais
causas eram três: o Catolicismo ultramontano que emergiu do Concílio de Trento,
o Absolutismo da monarquia portuguesa e as Conquistas do Estado português além
mar, na África, na Ásia e na América do Sul. A revolução, inspirada no
cristianismo, seria o único meio de abrir Portugal à modernidade. A respeito,
frisava o nosso autor, antecipando as palavras de Rosa Luxemburgo (no opúsculo
da escritora polonesa, publicado em 1905 com o título de O Cristianismo e as Igrejas: o
Comunismo dos primeiros cristãos): "O Cristianismo foi a Revolução
do mundo antigo: a Revolução não é mais do que o Cristianismo do mundo
moderno" [apud Moisés, 1974: 10]. Ficava clara em Antero a inspiração do
seu conceito de reforma radical ou revolução num espiritualismo tributário da
civilização cristã. Assim, mesmo que tendo se distanciado da fé dos seus pais,
o nosso pensador permanecia inspirado pelo élan
místico, de uma religião civil à maneira rousseauniana, ou dos cultos cidadãos
que tanto sucesso tiveram na França com Henri-Claude de Saint-Simon, Augusto
Comte, para não deixar de mencionar a religiosidade burguesa em que Guizot
tentava ancorar a sua reformulação do Estado e da representação.
Em 1872 Antero publicou as suas Considerações
sobre a filosofia da história literária portuguesa. Em 1887, a pedido
do estudioso Wilhelm Storck, Antero escreveu a sua conhecida Carta
autobiográfica, em que ficava clara a sua inspiração religiosa, nas
seguintes palavras: "O fato importante da minha vida, durante aqueles
anos, e provavelmente o mais decisivo dela, foi a espécie de revolução
intelectual e moral que em mim se deu, ao sair, pobre criança arrancada do
viver quase patriarcal de uma província remota e imersa no seu plácido sono
histórico, para o meio da irrespeitosa agitação intelectual de um centro, onde
mais ou menos vinham repercutir-se as encontradas correntes do espírito
moderno. Varrida num instante toda a minha educação católica e tradicional, caí
num estado de dúvida e incerteza, tanto mais pungente quanto, espírito
naturalmente religioso, tinha nascido para crer placidamente e obedecer sem
esforço a uma regra reconhecida" [Quental, 1974: 131].
Em 1874 Antero tinha adoecido gravemente,
como frisava ele na sua Carta autobiográfica, "com uma
doença nervosa de que nunca mais pude restabelecer-me completamente"
[Quental, 1974: 136]. Essa crise levou-o a aprofundar numa concepção
espiritualista do mundo e do homem, superando o naturalismo pelo qual tinha
sentido forte atração no período anterior. As leituras dos autores alemães,
notadamente Leibniz, Lange, Kant e Hartmann, bem como algumas leituras de
livros budistas, constituíram o seu alimento espiritual neste duro período.
"No Psiquismo - frisava o poeta
- isto é, no Bem e na Liberdade moral, é que encontrei a explicação última e
verdadeira de tudo, não só do homem moral mas de toda a natureza, ainda nos
seus momentos físicos elementares" [Quental, 1974: 137]. No próximo item
explicaremos melhor essa concepção de Antero, no contexto da evolução da
filosofia na segunda metade do século XIX. Os últimos 21 Sonetos do poeta,
publicados nos seus Sonetos Completos são inspirados por esse espiritualismo.
Em 1889 Antero escreveu o seu ensaio intitulado
Tendências
gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX. Este escrito
constitui, sem dúvida, o testamento espiritual do nosso escritor, tanto no que
se refere à sua concepção pessoal do homem e do mundo, quanto no relacionado à
sua avaliação da cultura filosófica da época. A respeito da importância que o
mencionado ensaio representa na obra de Antero, escreveu o estudioso português
Leonel Ribeiro dos Santos: "Antero decide-se pela oportunidade de
oferecer, sob pretexto de traçar um quadro do desenvolvimento do espírito
filosófico no seu século, uma síntese orgânica dos problemas e motivos
fundamentais que determinaram a sua própria evolução intelectual. Neste
sentido, as Tendências não são menos a síntese da evolução intelectual e do
pensamento de Antero do que são, como pretendem, a síntese das correntes
fundamentais do pensamento na segunda metade do século XIX. Esta identidade
entre o espírito pessoal e o espírito do tempo não deve parecer
estranha em quem tanto e desde tão cedo se esforçou por ser um homem do seu
tempo, a síntese de idéias da sua época, e que acabaria por conceber o processo
de evolução e maturação da consciência individual como a passagem do egoísmo
pessoal para a visão universal isto é, para a identificação e a comunhão com o
sentido e destino do Universo. As Tendências devem, por conseguinte,
ser consideradas como o esboço mais desenvolvido da filosofia anteriana"
[Santos, 1989: 14-15].
Antero planejava escrever as Tendências
já em 1887, quando da redação da sua Carta autobiográfica. Efetivamente,
no final desta frisava: "Não sei se poderei realizar, como tenho desejo, a
exposição dogmática das minhas idéias filosóficas. Quisera concentrar nessa
obra suprema toda a atividade dos anos que me restam a viver. Desconfio, porém,
que não o conseguirei; a doença que me ataca os centros nervosos não me permite
esforço tão grande e tão acurado como fora indispensável para levar a cabo tão
grande empresa. Morrerei, porém, com a satisfação de ter entrevisto a direção
definitiva do pensamento europeu, o Norte para onde se inclina a divina bússola
do espírito humano. Morrerei também, depois de uma vida moralmente tão agitada
e dolorosa, na placidez de pensamentos tão irmãos das mais íntimas aspirações
da alma humana, e, como diziam os antigos, na Paz do Senhor! Assim o
espero" [Quental, 1974: 138].
Este ensaio foi, sem dúvida, o coroamento da
meditação anteriana. Publicadas pela primeira vez em 1890, um ano antes do
suicídio do poeta em Ponta Delgada, as Tendências são como que o testemunho
do otimismo imanentista com que o sofrido poeta açoriano passou a encarar a
existência, superando a crise pessimista que o tinha afetado espiritualmente
anos atrás, mas que, paradoxalmente, teria se abatido novamente sobre a sua
alma nos últimos momentos, fato que o levou à desesperada solução. Resta-nos,
contudo, o silêncio e o mistério em torno às vivências imediatas que conduziram
Antero ao suicídio, nesse final de tarde de 11 de setembro de 1891.
II
- ANTERO DE QUENTAL, ENSAÍSTA
A figura de Antero desponta no universo das
letras portugueses como poeta. Mas poucos conhecem o Antero ensaísta e ativista
político. Ora, estas duas últimas variantes estão intimamente ligadas. O
Antero-pensador é a outra cara da moeda do Antero-homem-de-ação. Poderíamos até
frisar que ele foi, em Portugal, uma espécie de doutrinário, certamente não de
inspiração liberal como Benjamin Constant de Rebecque, Royer-Collard ou François
Guizot, mas de feição socialista. Ele e Oliveira Martins guardam essa marca de
intelectuais engajados.
Desenvolveremos os conceitos fundamentais da
filosofia de Antero nos seguintes doze itens: 1) O ensaio Tendências gerais da Filosofia na
segunda metade do século XIX, no
contexto da obra anteriana; 2) Espírito metafísico mas não sistemático da
meditação anteriana; 3) Finalidade do ensaio sobre as Tendências gerais da Filosofia; 4) Poesia e religião na filosofia
anteriana; 5) Natureza absoluta e relativa da Filosofia; 6) A metafísica
latente que corresponde a cada período histórico e a aproximação eclética entre
os sistemas na modernidade; 7) As quatro noções metafísicas que caracterizam o
pensamento moderno; 8) Crítica ao dogmatismo do idealismo sistemático alemão;
9) O predomínio do processo indutivo e do espírito científico; 10) A renovação
do espiritualismo no kantismo e na psicologia científica; 11) Resposta às
questões espiritualismo / liberdade e mecanismo / determinismo; 12) A plena manifestação do espírito na ordem
moral. Concluiremos destacando o perfil do espiritualismo anteriano no panorama
cultural português e assinalando as fontes de que se louvou o nosso pensador na
elaboração da sua filosofia.
1) O ensaio sobre as Tendências
gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, no contexto da obra
anteriana
Antero sintetizou a sua concepção filosófica
nesse belo ensaio que foi publicado em 1890, no fim de sua vida. Várias
tentativas têm sido feitas pelos estudiosos do pensamento anteriano, para
assinalar as etapas da obra do poeta-filósofo. Lúcio Craveiro da Silva, por
exemplo, no seu estudo intitulado Antero de Quental, evolução do peu
pensamento filosófico, divide a vida intelectual do autor, bem como a
sua produção filosófica, em cinco períodos: a) da formação universitária
(1861-1864). A respeito deste frisa Craveiro da Silva que tal "período de formação de seu caráter foi
atravessado por um rasgão de dúvida que abalou a sua crença católica e
tradicional, e o fez voltar sofregamente para as novas correntes da filosofia
européia e para as novas realidades sociais" [Silva, 1959: 16]. b) Período da Questão Coimbrã (1865-1866), no qual são fatos marcantes o intento
de realização do ideal socialista que o poeta teve em Paris como tipógrafo, nos
anos 1867-1868, e a sua visita aos Estados Unidos em 1869. c) Período de febril
propaganda socialista (1870-1874), no qual o fato marcante são as Conferências do Casino (1871). d)
Período da crise pessimista (1874-1881).
e) Por último, período em que o poeta ensaia uma síntese filosófica
(1881-1891).
Já para José Bruno Carreiro na sua obra
intitulada Antero de Quental: subsídios para a sua biografia, são
fundamentais três períodos na vida intelectual de Antero: a) agitação política
(1870-1873). b) Crise pessimista, que coincide praticamente com a permanência
do poeta em Vila-do-Conde (1874-1881). c) Período em que se perfila a figura de
Santo Antero e que é caracterizado
pelo amadurecimento da sua obra filosófica (1882-1891). Joaquim de Carvalho,
nas suas magníficas análises sobre Antero, que foram publicadas com o título de
Estudos
sobre a cultura portuguesa do século XIX - Volume I: Anteriana,
identifica os mesmos períodos na vida do autor, salientando que na evolução do
espírito do poeta açoriano "julgamos ver a sucessão de três vidas ou
núcleos de polarização interior - o homem
novo, o desesperado e o filósofo - considerando como marcos
capitais da expressão literária desta existência, tão revolta metafísicamente e
tão estável afectivamente, as Odes Modernas, os Sonetos
e as Tendências
gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, ou sejam,
respectivamente, o manifesto da juventude, o testamento do poeta e o derradeiro
ideário do sages". [Carvalho, 1955: 6].
Como se pode observar, a distinção dos
períodos da evolução intelectual de Antero não difere essencialmente nos
autores citados, sendo que Craveiro da Silva desdobra em três etapas o primeiro
período assinalado por Bruno Carreiro e por Joaquim de Carvalho. Para todos
eles, de outro lado, o ensaio de Antero sobre as Tendências gerais da Filosofia
representa a mais importante síntese do seu pensamento filosófico, como bem o
salientou Joaquim de Carvalho no texto que acabamos de citar. Ampliando a sua
observação, afirma este autor: "A marcha ascendente no sentido de uma nova
concepção da vida e da existência tem duas expressões capitais: os sonetos do último ciclo - o quinto,
constituído pelos sonetos escritos entre 1880 e 1884, os quais significam o
testamento político de Antero e o ensaio sobre as Tendências gerais da Filosofia na
segunda metade do século XIX (1890), que condensa o seu testamento
filosófico" [Carvalho, 1955:
162-163].
2) Espírito metafísico mas não sistemático da meditação anteriana
Não há dúvida quanto à índole metafísica da
meditação anteriana. Essa caraterística influi definitivamente em toda a sua
obra. Em carta a Oliveira Martins (de 13 de maio de 1876), o poeta confessa que
"eu, por mim, sinto-me incapaz de caminhar direito pela realidade enquanto
não tiver, como um espartilho de fino aço, que me sustente, todo um sistema de
idéias transcendentais - e é isto que me faz parecer muitas vezes estranho e
sonambulesco" [in: Carvalho, 1955: 292]. Essa sede metafísica inspira a
própria linguagem poética do nosso autor, podendo ser caracterizado o seu
estilo como "idealizador de emoções intelectuais", no sentir de Ruy
Galvão de Carvalho [1965: 175] e a sua imaginação como "de tipo aéreo,
como aliás convém aos metafísicos e aos homens de instinto libertário"
segundo a apreciação de João Mendes [1971: 481].
Essa inspiração metafísica do pensamento
anteriano foi assim tipificada por Joaquim de Carvalho em relação à crise
pessimista: "Necessidade dum sistema absolutista de idéias, carência de
bases inabaláveis e alentadoras do pensamento discursivo e da ação - eis a
essência da crise metafísica de Antero. A dúvida que então o afligia não era a
dúvida dum céptico. Ignorava, padecia de incertezas, sentia-se atraído para
soluções opostas e diversas, mas no íntimo admitia a possibilidade de certezas
e verdades transpessoais (...). O mobilismo e o fenomenismo repugnavam-lhe como
subversores da concepção do mundo, e porque o entusiasmo idealista e romântico
da juventude o habituara nobremente a repudiar o conceito instrumental de
verdade, (...) procurava a verdade absoluta ou, como ele diz com sabor
kantiano, um sistema de idéias
transcendentais que tornassem possível e explicável a variedade da
experiência e a esta dessem norte" [Carvalho, 1955: 292-293].
Em que pese a inspiração metafísico do seu
pensamento, Antero não é um filósofo sistemático. Essa característica é patente
para quem se aproximar da sua obra. Ele mesmo reconhece essa caraterística em
carta escrita a Eça de Queirós em 1889, afirmando que desistia de expor a sua
filosofia "porque fazê-lo estaria acima das minhas forças e, ademais,
ninguém me entenderia" [apud Carvalho, 1955: 191].
3) Finalidade do ensaio sobre as Tendências
gerais da Filosofia
É clara a finalidade que Antero persegue no
seu ensaio escrito em 1890, um ano antes da sua morte. Situado no último
período da sua produção filosófica (1882-1891), o autor trata de reagir contra
o naturalismo que o tinha influenciado marcadamente nos períodos anteriores e
que o teria conduzido à crise pessimista (1874-1881). Na Carta autobiográfica que
o nosso autor endereçou a Wilhelm Storck (em 14 de maio de 1887), Antero
confessa: "A minha antiga vida pareceu-me vã e a existência em geral
incompreensível. Da luta que então combati, durante 5 ou 6 anos, com o meu
próprio pensamento e o meu próprio sentimento que me arrastavam para um
pessimismo vácuo e para o desespero, dão testemunho, além de muitas poesias,
que depois destrui (...) as composições que perfazem a secção 4ª (de 1874 a 80)
do meu livrinho (...). Direi somente que esta evolução de sentimento
correspondia a uma evolução de pensamento. O naturalismo, ainda o mais elevado
e mais harmônico, ainda o dum Goethe ou
dum Hegel, não tem soluções verdadeiras, deixa a consciência suspensa, o sentimento,
no que ele tem de mais profundo, por satisfazer. A sua religiosidade é falsa, é
só aparente; no fundo não é mais do que um paganismo intelectual e
requintado" [Quental, 1974: 136].
Joaquim de Carvalho sintetizou assim a
finalidade perseguida por Antero no seu ensaio sobre as Tendências gerais da Filosofia: "Com
veemente sinceridade, como é próprio da filosofia de alguém sem a impedimenta de um filósofo escolar, as Tendências
são a expressão viva do esforço de Antero em demanda de uma concepção
universal, do Mundo e da Vida, que, estabelecendo a ponte entre a Ciência e as
aspirações morais, lhe dissipasse a sensação de suspensão da consciência, que o naturalismo lhe provocara"
[Carvalho, 1955: 191]. Essa concepção
universal do mundo e da vida, veremos,
Antero a orienta em direção do espírito e da realização de um projeto
moral como m máxima expressão da grandeza humana. O tipo de homem perfeito,
para o poeta, não será já o revolucionário que derruba reinos, nem sequer o
cientista ou o filósofo abstrato. O ideal humano apregoado por Antero na parte
final do seu ensaio será o da santidade. Como bem sublinhou ele na sua Carta
autobiográfica, "para o santo, o mundo deixou de ser um cárcere;
ele é, pelo contrário, o senhor do mundo, porque é o seu supremo intérprete. Só
por ele é que o Universo sabe para que existe: só ele realiza o fim do
Universo". Ao longo desta apresentação desenvolveremos as idéias
fundamentais de Antero em relação ao seu espiritualismo, que o levam a formular
no seu ensaio sobre as Tendências gerais da Filosofia o que
Joaquim de Carvalho denominou de transcendentalismo
anteriano [cf. Carvalho, 1955: 300].
4) Poesia e religião na filosofia anteriana
Heidegger sublinhou em vários dos seus
ensaios (principalmente em A origem da obra de arte e Hölderlin
e a essência da poesia) que a poesia é o dizer da descoberta ou da
revelação do ser, porquanto no dizer poético põe-se em obra a verdade
projetante daquele. Porisso a obra de arte, cuja essência não é outra coisa
diferente da poesia, funda verdadeiramente e institui o mundo, ao trazer a um
povo o conceito da sua própria realidade. Como afirma o filósofo alemão, a poesia não é "um simples ordenamento
que acompanharia a realidade humana, nem um mero entusiasmo passageiro, como
também não é uma simples exaltação ou um passatempo. A poesia é o fundamento
que suporta a História" [cit. por
Ferreira da Silva, 1964: I, 261].
Não podemos deixar de mencionar, mesmo que
rapidamente, este importante aspecto da obra anteriana que lhe dá, aliás, muita
atualidade. Para Antero, a poesia é fundamentalmente revelação do ser. Daí
porque não podemos entender a sua evolução filosófica sem levarmos em
consideração a sua obra poética. Referindo-se aos sonetos, afirma o poeta
açoriano em carta dirigida em 5 de julho de 1876 ao amigo Lobo de Moura: "reconheço
que de tudo quanto tenho escrito é onde tenho posto mais verdade, digo verdade
pessoal, expressão exacta do meu íntimo sentir. O atual (refere-se ao seu
soneto Transcendentalismo), mais do que qualquer outro, tem esse
valor. Posso chamar-lhe um salmo, uma efusão religiosa, porque está ali com
efeito a minha religião, o meu culto da existência supra-sensível, sem o qual
não sei o que seria desta minha pobre existência sensível" [apud Carvalho,
1955: 299-300]. Esse soneto justamente sintetizava toda a doutrina
espiritualista que Antero expõe nas Tendências gerais da Filosofia. Eis
os dois tercetos: "Não é no vasto mundo - por imenso / Que ele pareça à
nossa mocidade - / Que a alma sacia o seu desejo intenso... / Na esfera do
invisível, do intangível, / Sobre os desertos, vácuo, soledade, / Voa e paira o
espírito impassível!"
Delfim Santos salienta a íntima relação
existente, em Antero, entre o seu sentir poético, o lirismo, e o
espiritualismo, assinalando o influxo anteriano no meio português: O seu espiritualismo
- frisa - põe a descoberto e revela em forma admirável, um dos aspectos permanentes do pensamento
nacional e fixa as suas principais coordenadas no lirismo, de que ele é um dos
mais excelsos representantes. Sampaio Bruno, apesar de o seu inicial labor ter
sido encarado com simpatia pelos positivistas, em breve adere a essa mesma
corrente metafísica e dedica um volume profundo ao tratamento especulativo da
idéia de Deus" [Santos, 1971: 451].
Salientemos um outro aspecto sem o qual não
poderiamos interpretar o pensamento filosófico de Antero: o seu profundo
sentimento religioso. Ele constitui, na obra do poeta açoriano, como que o
ambiente em que se desenvolve toda a sua meditação filosófica. Essa
caraterística é, ao nosso entender, uma
das responsáveis mais diretas pelo profundo apreço de que goza a obra anteriana
no meio português. Antero representa como que a materialização desse Leitmotiv da cultura lusa, surgida ao
ensejo da fé cristã.
"Espírito naturalmente religioso"
escrevia Antero de si mesmo em 1887, numa das suas cartas. Jaime de Magalhães
Lima, por sua vez, afirma que
"acima de todos os talentos de Antero, porventura humilhando-os, ele foi
talvez o mais religioso dos religiosos que o sangue português gerou". Luis
de Magalhães não hesita em frisar que os sentimentos de Antero pela Igreja
Católica "seguiram o mesmo rumo de respeito, de simpatia e de admiração,
embora não houvesse reingressado no seu
grêmio, nem uma crença definida e precisa se restabelecesse no seu
espírito. Lia com encanto e alto interesse os grandes Padres da Igreja e até
forrageava no campo da Teologia no seu ermitério de Vila-do-Conde" [apud
Carreiro, 1948: I, 25].
Em que pese a crise pessimista que o abalara,
Antero escrevia assim em carta de 1876: "O meu misticismo dia a dia se
consolida mais, como sentimento e como doutrina. Neste último ponto tenho
realmente feito importantes progressos, devidos a um belo método que inventei e
que consiste no estudo das religiões (especialmente o Cristianismo) segundo um
critério metafísico. Creio que já uma vez lhe toquei neste meu método, a que eu
dou a máxima importância, porque o tenho achado fecundíssimo. É neste sentido
que vou prosseguindo os meus estudos, lentamente, mas com segurança, porque
caminham com alvo fixo" [apud Carvalho, 1955: 300]. Na parte final do
ensaio anteriano sobre as Tendências gerais da Filosofia, que
analisaremos a seguir, o pensador açoriano insiste na necessidade de o
sentimento religioso vivificar a realização do projeto moral, que é a máxima
manifestação do espírito. Craveiro da Silva sintetizou muito bem os principais
pontos da meditação anteriana: "Espiritualismo. Busca de Deus. Preocupação
moral. Problema da dor. Sentido da existência. Valor das ciências e da
metafísica. Reação contra um soberbo e frio intelectualismo que despreza as
vozes humanas do coração"
[Silva, 1959: 153].
5) Natureza absoluta e relativa da Filosofia
Antero inicia o seu ensaio sobre as Tendências
gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, salientando o
caráter vivo da meditação filosófica que, como o pensamento em geral, é
suscetível de progresso e retrocesso. A filosofia tem dois aspectos: no seu fieri incessante, que trata de exprimir
consciente e sistematicamente a misteriosa realidade do ser, ela representa
"o que há de absoluto no pensamento". Mas, ao mesmo tempo, representa "o que há de relativo na
consciência que o pensamento tem de si mesmo)" [Quental, 1931: 62-63].
Esses dois aspectos, no entanto, estão intimamente relacionados, porquanto a
filosofia progride graças ao que tem de relativo: essa relatividade consiste na
dúvida, através da qual a filosofia consegue não só propor os grandes
problemas, mas começar a resolvé-los.
Iludem-se, então, pergunta Antero, os que
procuram a verdade na filosofia? E responde: iludem-se aqueles que buscam nela
uma verdade completamente acabada em que possam instalar-se. E manifesta a sua
antipatia por esse tipo de filosofia, que é a própria negação do espírito
filosófico. A propósito frisa: "Uma filosofia definitiva, feita e assente
uma vez para todo o sempre, implicaria a imobilidade do pensamento humano: o
absoluto anestesiá-lo-ia. Essa tal verdade,
aspiração ingênua de espíritos incultos, pode animar os crentes e
exaltar os entusiastas; nos domínios do puro pensamento nunca produzirá senão
vertigem e ilusão" [Quental, 1931: 63]. Isso não significa, no
entanto, que a verdade filosófica não
exista: a sua relatividade, considera Antero,
implica limitação e não erro. Trata-se de uma verdade simbólica em que a
imagem imperfeita da verdade incognoscível apresenta alguns vagos lineamentos.
Não sendo o absoluto, participa contudo da sua natureza. Baseado nessas
considerações, o autor propõe a seguinte definição da filosofia: "É a
equação do pensamento e da realidade, numa dada fase do desenvolvimento daquele
e num dado período do conhecimento desta: o equilíbrio momentâneo entre a
reflexão e a experiência; a adaptação possível em cada momento histórico (da
história da ciência e do pensamento) dos fatos conhecidos às idéias diretoras
da razão, e a definição correlativa dessas idéias, não por esses fatos, mas em
vista deles" [Quental, 1931: 64].
6) A metafísica latente que corresponde a cada período histórico e a
aproximação eclética entre os sistemas na modernidade
Em virtude dessa natureza do pensar
filosófico, salienta Antero, a cada
período histórico corresponde a sua própria filosofia. Não que a razão mude na
sua essência: permanecendo sempre e em todos os temos a mesma, a experiência
varia continuamente; em relação a ela a razão define, coordena e sistematiza as
diversas concepções.
Essa identidade da razão consigo mesma
permite reconhecer, entre os diferentes
sistemas de uma época determinada, um ar de família, uma metafísica latente,
que são expressão de um estado íntimo psicológico de cada período da
civilização. Forma-se assim, segundo Antero, o substrato da alma coletiva de
cada idade. É possível, pergunta ele, que a razão humana atinja e sintetize
esse substrato que, inconscientemente, anima os diferentes sistemas, num dado momento
histórico do pensar humano? O autor não chega a reconhecer essa possibilidade.
No entanto afirma que, em compensação,
dá-se uma interpenetração dos diferentes sistemas filosóficos em cada
época, fenômeno que se manifesta na aproximação dos diferentes pontos de vista,
que se materializa num ecletismo ou num sincretismo mais ou menos sistemático.
Ao sincretismo que caracteriza o ambiente
filosófico na segunda metade do século XIX, contribuem vários fatores, entre os
quais Antero menciona os seguintes: o
cansaço produzido pelas discussões intermináveis; o ceticismo que acompanha a
esse cansaço; a complicação crescente dos sistemas; a erudição; uma surda elaboração geral do pensamento
metafísico e, por último, o espírito prático das multidões não filosofantes que exigem resultados e não disputas, a fim de terem um chão firme de
afirmações dogmáticas. Em que pese a atualidade desse fenômeno de sincretismo,
ele tem-se dado em outras épocas: foi por exemplo o que aconteceu no período
alexandrino, quando se uniram as diferentes correntes de Pitagóricos,
Platônicos, Estóicos e até Peripatéticos, no esforço de elaboração de uma
última fórmula menos nítida mas talvez
mais ampla, sutil e profunda do racionalismo iluminista dos pensadores
helênicos. Foi o que aconteceu, também,
com o sábio ecletismo de São Tomás de Aquino, que sintetizou na
gigantesca Summa Theologica a herança de três séculos de criação
filosófica e de acirradas disputas entre correntes tão diferentes como as
filosofias de Santo Anselmo, Pedro Abelardo, Lanfranco e Santo Alberto Magno.
Na época moderna também aparece esse espírito
de sincretismo. Depois de terem-se formulado, ao longo dela, desde a Renascença
até a segunda metade do século XIX os mais variados sistemas filosóficos,
tendo-se revestido a razão com manifestações idealistas, espiritualistas,
panteístas, materialistas e céticas, hoje se experimenta um progressivo
enfraquecimento da atitude dogmática e do espírito de sistema. O fenômeno do
criticismo é uma das caraterísticas do espírito moderno, e é responsável por
essa crise do dogmatismo sistemático. Eis a forma em que o autor caracteriza o
que ele chama de período alexandrino do
pensamento moderno: "E também de todos os lados o espírito prático,
debatendo-se no meio da confusão moral da sociedade contemporânea, aspirando,
como no período greco-romano, a uma direção segura, pede mais uma vez aos
filósofos resultados e não disputas. A hora do joeiramento das verdades
adquiridas, da crítica e coordenação dos diversos pontos de vista, e da
conciliação dos sistemas parece ter soado para a filosofia moderna. Entre os
muitos sintomas, que o indicam, um dos mais frisantes é por certo o gradual
enfraquecimento do espírito de sistema, do fanatismo dogmático. Não só se não
criam já novos sistemas, verdadeiramente originais e inteiriços, mas todos os
homens realmente inteligentes, inclinando-se, como é natural, mais ou menos
para certas soluções gerais, forcejam entretanto por se conservarem sempre
acessíveis a outras influências, venham elas de onde vierem, conquanto que
sejam racionais. O adepto de uma escola, segundo os velhos moldes, absoluto e
intransigente, faz-nos hoje muito proximamente o efeito de uma inteligência
acanhada, às vezes quase de um extravagante. Um largo criticismo vai rapidamente
substituindo o antigo dogmatismo. Por este lado ainda, tudo indica que somos
entrados no que se pode chamar o período alexandrino do pensamento
moderno" [Quental, 1931: 69].
Antero se pergunta, contudo, se essa
aproximação eclética entre os sistemas, produzida pelo criticismo moderno, não
passa de uma simples convergência acidental, ou se, pelo contrário, trata-se de
uma verdadeira síntese do pensamento. E responde afirmando esta segunda
hipótese, baseado no fato de encontrar, no arcabouço do pensamento da idade
moderna, um substrato de noções metafísicas que, penetrando todos os sistemas,
tornam possível a apreensão filosófica da unidade fundamental. As noções
capitais, segundo Antero, seriam quatro: as de força, de lei, de imanência ou
espontaneidade e de desenvolvimento. Vale a pena citar as suas próprias
palavras a respeito: "É efetivamente para alguma coisa como uma síntese do
pensamento moderno que parece caminhar-se. A história mostra-nos, com efeito, a
existência de um substratum de noções
metafísicas comuns a toda a filosofia moderna, que penetram mais ou menos
profundamente os diversos sistemas, e não só os sistemas mas ainda todas as
criações espirituais dos povos modernos, afeiçoam os seus processos de pensar,
inspiram as teorias gerais das suas ciências, como determinam as tendências
típicas da sua arte, da sua poesia, da sua política, modificam a sua
religiosidade, infiltram-se no sentido geral, constituindo por assim dizer a
atmosfera intelectual e psicológica do mundo moderno, ao qual dão a sua feição
histórica particular e a sua unidade fundamental. Essas noções capitais são as
de força, de lei, de imanência ou espontaneidade
e de desenvolvimento" [Quental,
1931: 70].
Ora, é esse substrato de noções metafísicas o
responsável pelo caráter revolucionário do pensamento moderno e, ao mesmo
tempo, o que o diferencia do pensamento antigo. Enquanto este último se
inclinava para a abstração e para o formalismo dialético, o pensamento moderno
é decididamente realista na forma de conceber as idéias e as suas relações com
o mundo objetivo; enquanto no pensamento antigo a metafísica era quase uma derivação da lógica, no
pensamento moderno, pelo contrário, a lógica é determinada pela metafísica;
enquanto para o pensamento antigo a realidade era a emanação de um ser em si absoluto e só verdadeiramente
existente, já para o pensamento moderno a realidade consiste no fieri incessante de um ser "em si
só potencialmente existente e que só realizando-se atinge a plenitude";
enquanto no pensamento antigo o princípio de energia dos seres era exterior a
eles e a distinção entre matéria e forma era radical, no pensamento moderno elas são indissolúveis
e "fundem-se na natureza autônoma dos seres" cujo princípio de energia,
longe de ser exterior, constitui a sua essência; enquanto para o pensamento
antigo o movimento dos seres parecia reproduzir um arquétipo primordial,
inalterável e fixo desde toda a eternidade, já no pensamento moderno o
movimento consiste numa criação em
permanência dos próprios seres; enquanto para o pensamento antigo a
necessidade dos fatos aparecia como um decreto exterior imposto de cima sobre
os seres, e determinando a sua natureza, no pensamento moderno é a natureza
deles que determina a sua necessidade, de dentro para fora; enquanto o pensamento
antigo considerava a realidade como dividida ou fracionada numa série de
categorias incomunicáveis entre si, o pensamento moderno considera a realidade
como o ato único de uma substância
omnímoda, sendo todos os seres momentos ou modalidades dela, que por sê-lo
intercomunicam-se constantemente; enquanto o pensamento antigo fazia do
universo uma máquina, cujo plano de funcionamento lhe era imposto de fora, o
pensamento moderno, pelo contrário, concebe o universo como um ser vivo, cuja
atividade obedece a um princípio intrínseco: "as tendências espontâneas do
seu próprio desenvolvimento". Em síntese, enquanto o pensamento antigo
buscava a unidade fora do universo, o pensamento moderno a encontra na unidade imanente na mesma diversidade.
7) As quatro noções metafísicas que caracterizam o pensamento moderno
Antero analisa, ao longo do seu trabalho
sobre as Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, a forma em que se apresentam, no pensamento
moderno, as quatro noções metafísicas que o caracterizam. Analisa essa presença
mostrando a atuação viva desse substrato metafísico no seio do pensamento
moderno. Essa substrato será, em última análise, o que permitirá entender o
rumo do pensamento filosófico da modernidade. Acompanhemos o poeta-filósofo na
sua análise. Mas, antes, salientemos um aspecto que poderíamos chamar
metodológico na meditação anteriana. Tanto a aparição no plano da consciência
moderna, do substrato metafísico a que aludimos anteriormente, quanto da
evolução dessa consciência à luz das noções basilares, não é obra de um
indivíduo isolado. É, fundamentalmente, uma obra coletiva e cíclica, em que os
pensadores e as correntes, muitas vezes inconscientemente e opondo-se uns aos
outros, contribuem para uma finalidade profunda e desconhecida, que leva o
espírito moderno até atingir a sua maturidade. Além disso, devemos levar em
consideração outra caraterística do evoluir do pensamento moderno: a sua
estreita vinculação ao desenvolvimento científico. Antero pressupõe que
filosofia e ciência vão de mãos dadas, de forma tal que "cada passo para
diante no terreno da especulação provoca logo no campo das ciências uma
remodelação das suas teorias gerais"; paralelamente, a fundação de uma
ciência nova ou o progresso de uma delas obrigam a filosofia "a aprofundar
ou definir melhor os seus princípios".
Para o autor, é justamente esse
caráter coletivo e cíclico que mencionávamos atrás, o elemento que faz da filosofia
moderna uma verdadeira história, ou seja, uma unidade de desenvolvimento.
O primeiro elemento pertencente ao substrato
metafísico que se manifesta no século XVII é a idéia de força. Os responsáveis por essa inserção são Descartes, Bacon, Leibniz, Espinoza, Galileu e Copérnico. A
revolução feita por eles no que se refere à compreensão dos primeiros princípios do movimento e da matéria, ensejou uma
autêntica consistência para a filosofia moderna. Tanto o cartesianismo quanto a
monadologia de Leibniz são materializações da idéia de força. O cartesianismo, por exemplo, afirma Antero, leva à
conclusão da identidade do ser e do saber, bem como à
da "autonomia dum universo que,
análogo no fundo ao espírito, só pelas suas idéias imanentes existe e se
governa". Em que pese a
vinculação de Descartes aos credos tradicionais, diz Antero, Espinoza encarregou-se de salientar a idéia
de força contida na sua filosofia, ao
formular o seu panteísmo, tendo-se inspirado na filosofia cartesiana. Leibniz,
com a sua monadologia, por sua vez, fazia
da força a essência comum da matéria e do espírito. Ao fundamentar a
monadologia na teoria da harmonia preestabelecida, Leibniz fazia, de outro
lado, uma grande afirmação da idéia de
lei. Para Antero, essa idéia que
forma parte do substrato metafísico em que se apoia o pensamento moderno,
"saía ao mesmo tempo da elaboração das ciências físicas". Assim,
duplamente alicerçada na ciência e na filosofia, a idéia de lei entrou no espírito moderno de forma
definitiva.
O século XVIII, com todo o seu ímpeto
revolucionário, traz ao arcabouço das noções últimas do pensamento moderno a
idéia de desenvolvimento. Tal idéia,
considera Antero, inspira filosofias muito diversas como o naturalismo de
Diderot, o panteísmo de Lessing, o idealismo de Vico, o deísmo de Herder, o
humanismo poético de Goethe e Schiller, a paixão revolucionária de Rousseau e
até o seco racionalismo de Voltaire. Eis a forma em que Antero explica a
aparição dessa idéia no seio do pensamento moderno: "A idéia de desenvolvimento é a conseqüência e o
complemento natural das idéias de força e
imanência. Saindo da evolução lógica
delas, é o último elo da grande cadeia das concepções modernas fundamentais.
Apareceu pois no seu tempo e no seu lugar. Com efeito, se a essência da força é a atividade, a sua
existência pressupõe uma série contínua de atos, atos que, sucedendo e apoiando-se cada um no
anterior e como que envolvendo-o, não podem ser a simples repetição do mesmo
ato (pois a repetição do mesmo ato reduz-se, metafisicamente, a um ato único),
mas um avanço do posterior relativamente ao anterior, que nele vem contido, um
alargamento da esfera de ação da força, isto é um desenvolvimento. Todo o ser tende para a afirmação de si mesmo,
isto é, para a expansão e realização da
sua essência, que exprime a sua mesma existência, lhe é imanente, a sua
potência ou virtualidade de expansão e realização é necessariamente ilimitada,
pois no momento em que encontrasse um limite absoluto a essência do ser estaria em contradição consigo mesma
(...). O universo aparece-nos agora não já somente como o grande ser autônomo e
eternamente ativo, mas como o ser de ilimitada e infinita expansão, tirando de
si mesmo, da sua inesgotável virtualidade, de momento para momento, criações
cada vez mais completas (...). Divino e
real ao mesmo tempo, manifesta a si mesmo a sua essência prodigiosa,
contempla-se numa infinidade de espelhos e em cada um sob um aspecto
diverso" [Quental, 1931: 76-77].
Kant é o responsável pelo ingresso, no seio
do pensamento moderno, da idéia metafísica de imanência ou espontaneidade,
segundo Antero. O filósofo alemão representa para o pensamento moderno o que
Sócrates tinha representado para o pensamento grego. Este último com o
conceptualismo, Kant com o criticismo, conseguiram libertar o pensamento
filosófico das cadeias do dogmatismo. Kant pretende, fundamentalmente, "assentar as verdadeiras bases dos
nossos conhecimentos". Como?
Antero responde: a solução para Kant está na imanência do espírito, ou
seja, no reconhecimento de que "é partindo do espírito que se há de
conhecer o mundo objetivo, não partindo do mundo objetivo que se há de conhecer
o espírito".
O nosso autor é enfático ao concluir que,
queira Kant ou não, o espírito é o verdadeiro noumenon, o espírito "é o ser tipo, a medida de todos os
seres". Antero sintetiza as suas apreciações a respeito do criticismo
kantiano com estas palavras: "O universo, no kantismo, reflui todo para a
consciência e some-se nela, mas para de lá sair transformado, análogo ao
espírito e idêntico com o espírito. O subjetivismo de Kant é, pois, ou coisa
alguma, - a impossibilidade de qualquer conhecimento além do da mesma faculdade
de conhecer, neste caso sem objeto - ou
então, como o entenderam Fichte, Schelling e Hegel, o reconhecimento da identidade do ser e do saber, a
generalização do espírito a todo o universo, um idealismo realista, que, ao
mesmo tempo que subordina todos os seres às leis da razão, põe a razão e as
suas leis latentes em todos os seres, ainda os mais elementares. Sendo isto
assim, e não parece que possa ser de
outro modo, a crítica de Kant veio, pelo
rodeio do ceticismo, confirmar e ampliar prodigiosamente as idéias fundamentais
do pensamento moderno, levando-as, pode dizer-se, até as suas últimas
conclusões" [Quental, 1931: 79-80].
Antero reduz a significação histórica do
kantismo ao que, segundo o seu modo de ver, é aquilo que legitimamente saiu dele, ou seja, o realismo transcendental de
Schelling e Hegel, que tiveram a incumbência de alargar as bases do criticismo
kantiano, reinterpretando o panteísmo e o naturalismo do período anterior, do
ponto de vista do novo idealismo transcendental da Crítica da Razão Pura. A
nova filosofia que sai dessa releitura, baseia-se na identidade do ser e do
saber e constitui a síntese mais acabada do substrato metafísico que representa
a base do pensamento moderno. Antero caracteriza assim essa nova síntese da
filosofia pós-kantiana, que explica a realidade como um grande processo
evolutivo do ser, com uma finalidade espiritual: "A nova filosofia fundada
sobre a identidade do ser e do saber
leva as idéias fundamentais do espírito moderno, as idéias de força, imanência
e desenvolvimento, até o máximo grau de condensação. Schelling e Hegel fundaram
definitivamente a doutrina da evolução, e fundaram-na na mais alta região das
idéias, onde ela domina todo o pensamento do nosso século. A evolução, vista
dessa altura, não é somente o processo mecânico e escuro da realidade; é o
próprio processo dialético do ser tem as suas raízes, comuns com as raízes da
razão, na inconsciente mas fundíssima aspiração da natureza a um fim soberano, a
consciência de si mesma, a plenitude do ser e a ideal perfeição. A lei suprema
das coisas confunde-se com a sua finalidade e essa finalidade é espiritual. Com
Schelling e Hegel a filosofia da natureza compenetra-se dos seus verdadeiros
princípios metafísicos: o mecanismo dissolve-se no dinamismo, cujo tipo último
é o espírito. O universo, à luz do realismo transcendental dos dois grandes
sucessores de Kant, transfigura-se; o seu movimento aparece como uma sucessão e
encadeamento de idéias e a sua imanência define-se como a da alma infinita das
coisas" [Quental, 1931: 81].
8) Crítica ao dogmatismo do idealismo sistemático alemão
Em que pese a importante contribuição da
filosofia alemã, que levou o pensamento moderno a realizar essa grande síntese
inspirada no idealismo kantiano, o realismo que radicalmente empolga a
meditação filosófica do seu tempo, frisa Antero, conduz a "valorizar os aspectos
cambiantes das coisas, a comprazer-se com a linha sinuosa das realidades",
e a superar as limitações dos filósofos alemães. As mencionadas limitações
consistem no dogmatismo que ainda secretamente inspira essa sistematização,
principalmente o pensamento hegeliano. O pensamento moderno, sem abandonar a
grande síntese em torno do espírito feita pela filosofia alemã, quer mudar o
dogmatismo e trocá-lo por "alguma coisa de espontâneo e orgânico",
como a fonte de inspiração da ciência moderna: a natureza.. Nesse sentido,
frisa Antero, o pensamento moderno sente-se mais representado por um homem como
Goethe, "poeta, artista, naturalista, por cima disso viajante e homem de
mundo, tendo também uma clara orientação
filosófica", mas longe do espírito de sistema que caracteriza a um
pesado construtor de silogismos como Hegel.
A fim de fundamentar a sua crítica ao
dogmatismo filosófico alemão, e de justificar a necessidade de superá-lo numa
nova interpretação filosófica mais realista, baseada no reconhecimento das
descobertas científicas dos últimos séculos, Antero fixa o divisor de águas
entre filosofia e ciência. Essa distinção é reduzida por ele a quatro pontos:
1) o terreno da especulação está
limitado aos primeiros princípios das coisas e à análise das idéias
fundamentais, enquanto "o grande e variado mundo dos fatos pertence inteiro
à observação, à experiência e à indução". 2) A hipótese que gera a teoria e que fecunda a
ciência, é filha legítima da especulação, mas não se impõe à ciência, apenas
ilumina-a, sendo sempre necessário que a observação, dirigida pelos métodos
próprios de cada ciência, confirme a hipótese; esta é, portanto, o ponto de
contato entre a filosofia e a ciência. 3) A cada ciência preside uma idéia
fundamental, sendo missão da filosofia tomar posse dessa idéia e de todas elas,
para as tornar matéria das suas especulações, cabendo à ciência o dever de realizar
o desenvolvimento dessas idéias no mundo dos fenômenos. 4) Por último, sintetizando as características mencionadas anteriormente para a filosofia e
para a ciência, Antero frisa que cabe a esta última a tarefa de desenhar,
"com os traços firmes das leis positivas, o quadro do universo na sua
variedade e complexidade fenomenal", enquanto à filosofia cabe a missão de
"interpretar superiormente a significação desse quadro" e de tentar
descobrir a chave do grande enigma do ser.
Por aqui se compreende melhor a crítica que
Antero faz ao dogmatismo da filosofia alemã: o seu apriorismo absoluto levou-o
a tentar realizar a "pretensão exorbitante de tentar construir o universo
dedutivamente e só com o poder da dialética", perpetrando assim um verdadeiro
atentado contra as ciências modernas que, nos últimos três séculos, tinham-se
esforçado por criar uma imagem realista do universo, "pedra a pedra, pela
paciente observação e pela indução cautelosa". Contra a tentativa de
construir o universo dedutivamente e só com o poder da dialética, tentativa que
se materializou especialmente no sistema hegeliano, insurgiram-se as próprias
ciências da natureza e as ciências humanas, que incorporara, a partir de 1830,
a idéia de evolução. "Ela
irrompia, frisa Antero, quase ao mesmo tempo, no chão de todas as ciências,
desde a astronomia (...) até a antropologia, a etnografia e a
lingüística".
Assim foi como a física, por exemplo,
esquecendo a velha hipótese dos fluidos imponderáveis ao restaurar a doutrina
cartesiana do éter, encaminhava-se para a teoria da unidade e correlação das
forças físicas, a química, por sua vez, demonstrava a circulação no universo
"duma mesma matéria disfarçada na variedade das formas", ao chegar às
noções de corpos inorgânicos e corpos orgânicos. A geologia tornava-se
geogenia sob a inspiração de Cuvier, Leopoldo de Buch, Alexander de Humboldt,
E. de Beaumont, etc., ou seja, ciência de uma evolução, considerando o globo
"quase um ser vivo, que se desenvolve". A paleontologia, uma das
ramas da geologia, adotava também a idéia de evolução, inspirando-se nos
grandes precursores de Darwin, Lamark e Geoffroy Saint-Hilaire. A antropologia
também aderia à idéia evolucionista e transformava-se em verdadeira ciência
natural, ao testemunhar as origens animais do homem. E a lingüística, por sua
vez, assumia também uma perspectiva evolucionista ao destacar o progresso
sofrido pela linguagem, a partir da simplicidade da expressão humana "que
correspondia à rudeza primordial do pensamento". Desta forma mostra Antero
como as ciências caminharam, já antes da metade do século XIX, por uma via que
renegava qualquer tentativa de organização apriori e que se regia pela idéia
mestra de evolução. Conclui a respeito: "Reconheçamos que era, pelo menos,
mal escolhido o momento pela filosofia transcendental para vir impor a essas
diligentes e poderosas obreiras os seus planos apriori".
Mas a crítica às pretensões apriorísticas do
idealismo alemão não se limitara só à intervenção das ciências positivas.
Também insurgiram-se contra essas pretensões a história e a psicologia. A
primeira, ao salientar a importância essencial de um fator imponderável na
explicação dos fatos humanos: o fortuito.
Escreve a respeito Antero: "Providência, Acaso? Liberdade humana? Tudo
é possível: mas o certo é que estava aí um elemento irredutível à teoria".
Só esse fato, considera nosso autor, é suficiente para tirar credibilidade às
pretensões apriorísticas da filosofia alemã. E confirma a sua apreciação com
estas palavras, salientando o caráter indutivo e a índole peculiar da
disciplina que estuda os fatos humanos no tempo: "A história não é a
metafísica. As idéias metafísicas dominam e penetram a história, não a fazem.
Na ordem dos fatos, não se pode construir apriori o que não se conheça já a
posteriori. Sem direção metafísica não poderá nunca haver verdadeira e superior
compreensão da história: mas, com tudo
isso, os historiadores continuarão a procurar o encadeamento e a lei real dos
fatos no estudo crítico dos mesmos fatos e deixarão sempre uma larga margem
àquele factor (necessário, sem dúvida, como tudo, mas de uma necessidade que escapa à razão,
embora provavelmente não esteja fora da razão), a que chamarão cada um,
conforme a cambiante filosófica do seu pensamento, Providência, acaso,
liberdade, ou simplesmente o desconhecido" [Quental, 1931: 89].
A psicologia como ciência da alma
insurgira-se também contra as pretensões sistematizadoras apriori do dogmatismo
alemão. A própria escola escocesa, em
que pese a índole não plenamente científica das suas afirmações, tirava porém
toda possibilidade ao dogmatismo, pelo fato de que reconhecia uma esfera moral
que não podia ser substituída por nenhuma abstração mental. E conclui Antero:
"Ora, se o sentimento moral não é a filosofia nem se pode substituir à filosofia, é muito certo também que filosofia
alguma, que o sentimento moral reprove, poderá prevalecer contra ele".
Nesse sentido, reconhece o nosso autor, os escoceses conseguiram o fim que
pretendiam: reivindicar a existência da alma espiritual. De outro lado, a
psicologia dos espiritualistas franceses (Royer-Collard, Maine de Biran,
Jouffroy, Cousin, Ravaison), apesar de ter-se limitado apenas a uma ciência literária, no sentir de Taine,
que só conseguiu "produzir um mito de escola e um simples Deus oficial",
representava porém mais um obstáculo às pretensões apriorísticas do
hegelianismo, ao reivindicar em nome da consciência humana a irredutibilidade
do espírito do homem à qualquer abstração filosófica.
Eis a forma em que Antero interpreta a
contribuição dos espiritualistas franceses, ao mesmo tempo em que não deixa de
reconhecer as suas limitações, salientando de outro lado a forma em que eles
representaram as idéias de força e imanência: "Mais do que qualquer
outro sistema metafísico, o da nova filosofia alemã, arrastando e como que
triturando os seres na sua poderosa engrenagem, substituindo à realidade a
dialética, parecia anular os indivíduos, fundidos na absoluta unidade do
ser-idéia, e suprimir a liberdade como incompatível com a necessidade lógica dos
desenvolvimentos desse ser. Por muito profunda que fosse a concepção hegeliana
da história, da política, da ética - e era-o, sem dúvida alguma -, por muito
subtis que fossem as suas distinções - e eram-no, também -, esta objeção surgia
irresistivelmente e, ainda quando não ia até condenar o sistema em globo,
apontava em todo o caso para uma lacuna gravíssima, um aleijão de nascença que
tornava suspeita a sanidade de todo o organismo. E, torno a dizé-lo, essa
objeção não era só filosófica, era humana: daí a sua grande força. Em face
dessa necessidade superior dos desenvolvimentos do ser-idéia, substituindo-se
nos indivíduos ao seu princípio íntimo de ação, onde ficavam, o que eram o
esforço intrépido dos heróis, as lutas secretas da virtude e os seus dolorosos
triunfos, a abnegação sublime dos mártires, a renúncia voluntária dos bons e
dos justos, onde ficava o dever e a liberdade e toda a nobreza moral que estas
duas palavras exprimem? Coisa curiosa, aqui nesta profunda região do senso
íntimo e da verdadeira realidade humana os espiritualistas, pouco filósofos,
nada metafísicos, pareciam representar mais genuinamente essas idéias de força
e imanência, de que o hegelianismo é a mais vasta e poderosa sistematização, do
que o mesmo Hegel e o seu sistema!" [Quental, 1931: 96-97].
Antero salienta, a seguir, que o protesto dos
espiritualistas contra o desconhecimento da dimensão espiritual e irredutível
da consciência, por parte da filosofia dogmática, também se estendia às
"tendências mecanistas e deterministas das ciências". Essa crise, a
seu ver, pode exprimir-se "por esta antítese: espiritualismo e liberdade,
dum lado, mecanismo e determinismo, do outro". O autor pergunta se poderá
resolver-se esta formidável antítese. Para dar a resposta, faz um balanço dos
elementos com que pode contar. Os fenômenos que mais importância têm nesse
contexto, e que constituem "os dois fatos mais consideráveis da história
da filosofia" na segunda metade do século XIX, são, por um lado, "o
descrédito da especulação metafísica sistemática e das ambiciosas construções a priori, e o conseqüente predomínio do
processo indutivo e do espírito científico; por outro lado, a transformação ou
antes visceral renovação do caduco espiritualismo, retemperado no criticismo
kantiano e numa psicologia verdadeiramente científica" [Quental, 1931: 98].
9) O predomínio do processo indutivo e do espírito científico
Em relação ao primeiro fato (predomínio do
processo indutivo), Antero considera que a crise da filosofia transcendental
alemã proveio do fato de pretender deduzir o ser da razão, o que supõe que a
razão se conhecesse a si mesma com uma certeza absoluta. No entanto, afirma,
tudo leva a pensar que a razão se conhece de forma muito imperfeita, "só
nos seus elementos fundamentais, nas suas grandes faculdades e noções''. Se a
razão é, como pretendem os filósofos alemães, a expressão superior do ser, isso
mesmo nos deve levar a crer que existe uma distância enorme entre a razão e os
"estados obscuros e rudimentares de onde partiu". A consciência que a
razão tem das suas origens remotas, "daquela região inferior que é o mundo
objetivo", é muito confusa. Este fato permite a Antero concluir que é
evidente "o descrédito da especulação metafísica sistemática e das
ambiciosas construções apriori". Contudo, se o dogmatismo da metafísica
sistemática está em crise, isso não significa que o pensar filosófico esteja em
crise também. Antero considera que é chegado o momento de uma profunda mudança
no que ele chama de temperamento da
filosofia. Essa mudança consiste em que a meditação filosófica da metafísica se
torne científica; de transcendental se torne realista e de dedutiva, indutiva.
Porém, não nega simplesmente a possibilidade da metafísica. Reconhece que no
seio desta nova tendência pode haver uma metafísica, a partir da experiência e
dos fatos. E considera que a mudança de temperamento da filosofia está presente
no pensamento de Comte, Spencer, Stuart Mill e Taine.
A respeito do anterior, Antero frisa:
"Um recrudescimento do espírito filosófico é uma das características da
segunda metade do nosso século. Somente, a par com esse recrudescimento, dá-se
uma mudança no temperamento da filosofia: de metafísica, torna-se científica;
de transcendental, realista; de deductiva, inductiva. Querem-se idéias, mas que
as idéias se adaptem o mais perfeitamente possível aos fatos, não que pairem,
em largo vôo, por cima deles. É esta nova tendência que se patenteia na Filosofia Positiva de Augusto Comte, na Filosofia da Evolução de Herbert
Spencer, na Lógica de Stuart Mill, no
livro Da inteligência de Taine e em outras obras consideráveis deste
tempo. Procura-se chegar à síntese pelo caminho da inducção; procura-se até
construir a metafísica partindo da experiência só e dos fatos. Todos almejam
por imprimir à especulação um caráter positivo" [Quental, 1931:100].
O caráter fundamental da ciência perante a
complexidade do real, considera Antero,
consiste em "procurar os elementos irredutíveis dos fenômenos
complexos, decompondo a aparência enganosa das coisas e resolvendo-a em fatos
últimos", que são os únicos suscetíveis de serem apreendidos com rigor e
que, de outro lado, constituem expressão perfeita da linguagem científica,
porquanto podem ser reduzidos a fórmulas matemáticas. Assim se materializa o ideal científico de
explicar o complexo pelo simples. Mas é justamente nesse esforço de
simplificação que aparece o vício do mecanismo, tendência que afeta diretamente
à filosofia inspirada na ciência moderna. O mecanismo se dá no arcabouço da
ciência, pois ao decompor a realidade, despojando-a das qualidades segundas que
revestem os fenômenos, "o resíduo objetivo de toda sensação é sempre, em
última análise, um movimento". Podemos concluir, portanto, que os fatos
últimos da ciência são simples movimentos. O mecanismo científico, assim
caracterizado por Antero, gera o determinismo, pois a concatenação de
movimentos é necessariamente explicada pelo princípio da causalidade mecânica.
Desta forma, considera Antero, as ciências da natureza, bem como a filosofia
nelas inspirada, são mecanistas e deterministas. O autor conclui assim: "O
mundo da mecânica é o mundo da necessidade. Reina ali, de uma maneira absoluta,
o princípio da causalidade mecânica. Não se concebe movimento que não tenha
atrás de si outro movimento; nenhum se cria, assim como nenhum se destrói. Uma
ação é provocada por outra, e a sua intensidade é medida pela intensidade da
que a provocou. Tudo ali se passa segundo leis simples e férreas, nem há lugar
para o acaso ou a Providência, assim como o não há para a espontaneidade; uma
série de fatos chama outra série de fatos, e os fenômenos sucedem-se numa ordem
invariável e fatal, ordem que porisso mesmo pode ser rigorosamente conhecida,
descrita e prevista. A precisão da ciência funda-se nesta âncora, e uma
filosofia científica da natureza tinha de ser determinista, pela mesma razão
por que tinha de ser mecanista" [Quental, 1931: 102].
O universo científico é, além de mecanista e
determinista, evolutivo. Mas com um tipo de evolução puramente cumulativa.
Levando em consideração a forma em que as ciências da natureza enfrentam o
universo, não reconhecendo nele uma substância com poderes de renovação
constante de si própria nas suas manifestações, mas como simples concatenação
mecânica de movimentos simples, o autor salienta que o conceito de evolução
assumido por tais ciências é puramente formal, gerando assim a
"fantasmagoria do mundo fenomenal". E conclui em relação a esse
ponto: "Reduzindo assim a uma ilusão subjetiva o que dava à evolução a sua
substancialidade, excluído qualquer aumento de ser, qualquer superioridade
verdadeira, o universo, agregado uniforme regido por leis matemáticas,
dissolve-se numa vasta mecânica de forças elementares" [Quental, 1931:
105-106]. Ora, a filosofia científica da natureza é, a fortiori, porquanto inspirada nas ciências, uma filosofia
evolucionista. Antero diferencia aqui a
forma em que é entendida a evolução por parte da filosofia e das ciências da
natureza, de um lado, e por parte da metafísica alemã, de outro. Para esta
última, a evolução implica a idéia de aumento
de ser, qualidade que lhe provinha da "virtualidade infinita da idéia
(de substância) no seu processo de desenvolvimento. A evolução tinha, pois,
(...) um conteúdo verdadeiro, era essencialmente substancial". Entretanto,
a evolução para a filosofia e as ciências da natureza é entendida, segundo
Antero, como processo puramente formal, despojado de qualquer aumento de ser.
Mecanismo, determinismo, evolução: eis as
três caraterísticas que marcam profundamente a filosofia e as ciências da
natureza. Em que pese o rigor matemático alcançado pelas ciências nesse
contexto, bem como o caráter científico assumido pela filosofia nelas
inspirada, há em tudo isso um aspecto negativo: a concepção da realidade e do
homem é essencialmente fatalista, porquanto tudo se reduz a movimentos
determinados, conduzindo, em última análise, ao pessimismo. A vida do espírito,
a espontaneidade, as aspirações do nosso sentimento moral, ficam sem resposta
nesse gélido universo. Diante desse quadro, o autor afirma, angustiado:
"De tudo isto resulta uma concepção das coisas extremamente precisa, mas
limitada à esfera inferior do ser e por isso abstrata e inexpressiva. Daí o que
quer que é de glacial e morto na sua lucidez. É um universo que se move nas
trevas, sem saber por que nem para onde. Não o alumia a luz das idéias, não lhe
dá vida a circulação do espírito. Paira sobre ele um mudo fatalismo. A inerte
serenidade, que inspira a sua contemplação, é muito semelhante ao desespero. A
sua beleza puramente geométrica tem alguma coisa de sinistro. Nada nos diz ao
coração, nada que responda às mais ardentes aspirações do nosso sentimento
moral. Para que, um tal universo? E para que viver nele? Nada alimenta tanto o
mórbido pessimismo dos nossos dias como este gélido fatalismo soprado pela
ciência sobre o coração do homem" [Quental, 1931: 106-107].
Até aqui o autor caracterizou o que ele
reconhece como um dos "fatos mais consideráveis da história da
filosofia", ou seja, "o descrédito da especulação metafísica
sistemática e das ambiciosas construções apriori e o conseqüente predomínio do
processo indutivo e do espírito científico". Assinalou Antero a respeito
os aspectos positivos e negativos desse novo espírito científico, mostrando que
se bem permitiu superar o dogmatismo metafísico da filosofia alemã, conduziu,
de outro lado, a uma visão mecanista, determinista e formalmente evolutiva do
universo que, logicamente, deixa sem responder as questões surgidas do fundo do
sentimento moral.
10) A renovação do espiritualismo no kantismo e na psicologia
científica
Vejamos agora a forma em que Antero analisa o
outro fato considerável na história da filosofia na segunda metade do século
XIX, "a transformação ou antes visceral renovação do caduco
espiritualismo, retemperado no criticismo kantiano e numa psicologia
verdadeiramente científica" [Quental, 1931: 98]. Em primeiro lugar, o
nosso autor coloca no seu lugar a concepção mecânica do universo. Não se trata
de uma síntese científica desprezível. Afinal de contas, "representa o
substratum sobre que assentam as mais altas operações da razão". O erro
consiste em pretender identificar essa conquista com a dinâmica total do
espírito. A crítica que o autor fez anteriormente ao mecanismo científico que
gera o determinismo, visa não à necessária abstração que a razão faz sobre a
realidade material, mas à aplicação dessa abstração, de caráter matemático, à
vida do espírito. Situando-se numa perspectiva de inspiração kantiana, Antero
considera que "o quadro rígido do mecanismo universal exprime a dinâmica
das coisas" no seu aspecto exterior e abstrato e frisa que se trata, por
isso mesmo, de um quadro simples e fixo. E conclui: "é necessário
porque é elementar; e, porque é elementar, é incompleto". Portanto, a concepção mecânica do universo é incompleta;
a resposta para os grandes interrogantes do espírito humano deve provir de
outro lugar. E, o que é mais importante do ponto de vista do conhecimento, essa
concepção científica é possível porque existe uma dimensão - transcendental -
mais ampla do espírito.
A respeito desse ponto, frisa Antero:
"É, pois, um erro, uma ilusão monstruosa esta concepção mecânica do
universo, que resulta da grande síntese científica dos últimos 40 anos? De modo
algum. É uma verdade fundamental, mas circunscrita, positiva dentro dos seus
limites, mas incompleta na medida da estreiteza desses limites. Já vimos que
estes são os da mesma inteligência científica. E assim como os dados empíricos
sobre que opera a inteligência científica são o substratum sobre que assentam
as mais altas operações da razão, assim a sua concepção mecânica será o
substratum do conhecimento racional do universo. Esse quadro rígido do
mecanismo universal exprime a dinâmica das coisas no que elas têm de exterior e
abstracto, por isso mesmo de simples e fixo. É necessário porque é elementar;
e, porque é elementar, é incompleto (...). Tal como é, representa um resultado
enorme: a síntese do espírito moderno no terreno do conhecimento científico.
Outros elementos do mesmo espírito, que aqui faltam e que, pela própria
natureza das coisas, aqui deviam faltar, mas que abundam em outra esfera virão
ampliá-lo, fecundá-lo, alumiá-lo com a penetrante luz transcendental, que
necessariamente lhe falece" [Quental, 1931: 108].
O espírito, considera Antero, existe e tem vida
própria. Os fatos constatados pelas ciências são apenas o ponto de partida. Mas
o que lhes confere ser e expressão é a inteligência, ao entrarem nas categorias
desta e serem organizados pela elaboração mental. Numa perspectiva sempre
kantiana, o autor não duvida em afirmar que o conhecimento "é um fato
legítimo e próprio do espírito". Assim como este tem vida própria no que
tange ao conhecimento, ele também é espontâneo no campo da vontade, que se
autodetermina em face de motivos sem que eles a determinem. A respeito Antero
escreve: "Os fatos são o ponto de partida das idéias, cuja virtualidade
está no espírito: em si são inertes e inexpressivos. O que lhes dá a expressão
e verdadeiro ser é a inteligência, em cujas categorias entram, fundidos pela
elaboração mental, como em outros tantos moldes, ordenando-se nelas e por elas.
O conhecimento é pois um fato íntimo e próprio do espírito, e o universo
conhecido o produto da sua espontânea atividade. E assim como o espírito é
espontâneo na esfera do conhecimento, não o é menos na da vontade. Determina-se
esta em vista de motivos, mas não a determinam eles. Tem em si a raiz última
das suas determinações. Ser causa é a própria essência da vontade. Não há
volição, ainda a mais elementar, que seja absolutamente passiva: a determinação
da vontade nunca é assimilável à determinação mecânica porque tem um fim, e
esse fim (em última análise) está nela mesma. Por trás da determinação limitada
está uma virtualidade ilimitada" [Quental, 1931: 114-115].
O que é, afinal, o espírito para Antero? Ele
o define como força espontânea e consciente: "O espírito é pois uma força
espontânea: mas é, por cima disso, uma força consciente. É esse predicado que
vem completar a sua plenitude e fazer dele a força tipo. Conhecendo-se, possui-se
na identidade fundamental de todos os seus momentos, vê-se na sua unidade e
propõe a si mesmo o seu próprio fim. Este conhecer-se tem graus: é mais ou
menos íntimo; mas, ainda nos ínfimos graus, a unidade do espírito aparece já, encerrando o mais elementar a virtualidade do
mais pleno. Fazendo-se toda a evolução do espírito dentro da sua própria
natureza, e não sendo mais do que a gradual realização de si mesmo em si mesmo,
há oposição entre as sucessivas esferas do seu desenvolvimento, nunca contradição.
É assim que o espírito, sem sair de si, se cria e fecunda continuamente,
compenetrando-se cada vez mais com a sua própria essência, extraindo dela, da
sua infinita virtualidade, momentos cada vez mais complexos e ricos de ser, até
atingir a mais alta consciência de si. Reconhece-se então idêntico com o eu absoluto e independente de toda a
fenomenalidade: concebe Deus como o tipo de sua mesma plenitude, concebe e
sente a vida moral como a esfera da realização desse ideal. A realização desse
ideal parece-lhe agora como o seu fim último, aquele de que os fins
anteriormente propostos, limitados e transitórios, eram só imagem e preparação.
Este fim último, porém, sendo imanente, confunde-se com a perfeição do seu
mesmo ser: na atração dele reconhece a causa de toda a sua evolução, que só
para realizá-lo tendia. Pela realização dele é livre - livre na medida exata em que o realiza
- (...). Reunindo deste modo na sua
unidade, agora consciente, a causa e o fim, a sua autonomia é completa"
[Quental, 1931: 115-116].
Em síntese, o espírito é para Antero uma
força espontânea e consciente que, conhecendo-se, possui-se na identidade
fundamental de todos os seus momentos, vê-se na sua unidade e propõe a sim
mesmo o seu próprio fim. Convém frisar que na análise anteriana da dinâmica do
espírito, estabelece-se uma confusão entre dois planos, o ontológico e o
crítico, que o levam a identificar a dimensão transcendental do espírito, no
campo do conhecimento e da vontade, com a afirmação do eu absoluto, Deus. Outra
anotação importante: Antero dá primazia
ao plano moral, como esfera da realização da plenitude humana. A partir daí, a
filosofia do nosso autor assume um caráter de projeto moral que materializa o
ideal da plenitude do espírito. Antero salienta que assim como a filosofia
anterior "se resolvera num dinamismo mecânico", o seu espiritualismo
resolve-se num dinamismo psíquico. Esta característica ele faz derivar da
autonomia do espírito. A respeito, afirma: "Segundo o nosso
espiritualismo, o espírito define-se como uma força autônoma que se conhece na
sua íntima natureza, que é causa dos seus próprios fatos e só às suas próprias leis obedece, que a essas
leis submete os fatos objetivos e só assim lhes dá significação e realidade,
que a si mesma determina o seu próprio fim, que existe em si e em si encontra a
sua plenitude. Sendo a força autônoma, consciente e plena, é a força por
excelência, a força tipo. O espiritualismo resolve-se num dinamismo psíquico,
assim como o materialismo da filosofia científica da natureza se resolvera num
dinamismo mecânico" [Quental, 1931: 116-117]. Vale a pena salientar, aqui,
uma nova confusão que Antero estabelece, ao identificar o plano transcendental
da consciência com o plano psíquico, que faz referência ao processo
subjetivo-individual.
Entendido o saber científico dentro deste
amplo contexto do espiritualismo anteriano, desaparece qualquer contradição
entre metafísica e ciência, pois se trata já não de formas de conhecimento
antagônicas, mas de manifestações complementares do saber total que é, ao mesmo tempo, positivo e metafísico, experimental e especulativo. Em relação a
este ponto, frisa o nosso autor: "A metafísica e a ciência não são pois
rivais, mas colaboradoras na obra do conhecimento, e a concepção metafísica e a
científica não devem ser representadas como duas esferas opostas, mas como dois
círculos concêntricos. Finalmente e como conseqüência do que fica dito, só este
processo tem o caráter do verdadeiro realismo:
ele constitui o saber total, ao mesmo tempo positivo e metafísico, experimental
e especulativo, tomando o ser na sua unidade, da qual o espírito só
arbitrária e violentamente pode ser
amputado, e na ordem de desenvolvimento dos seus momentos, dos quais o espírito
é o superior e típico" [Quental, 1931:
120]. Antero conclui a análise da profunda renovação do velho
espiritualismo com estas palavras: "temos pois já conhecido o terreno da
síntese do pensamento moderno, o dinamismo, e o processo adequado à realização
dela, a interpretação do mecanismo pelo psiquismo".
11) Respostas às questões espiritualismo / liberdade e mecanismo /
determinismo
Feito o balanço que se propunha dos elementos
com que podia contar, para responder à dupla questão da antítese
espiritualismo/liberdade e mecanismo/determinismo, Antero trata de dar uma
resposta direta na última parte do seu Ensaio. Em primeiro lugar, salienta que
"é no terreno da idéia de espontaneidade que se resolve a antítese
determinismo/liberdade". Em segundo lugar, lembra que a caraterística
fundamental do espírito consiste em que a sua idéia básica, a espontaneidade, envolve as de força e causa. A espontaneidade
seria, pois, a capacidade da força-espírito para se determinar a si mesma ou,
em outros termos, para ser causa de si mesma. Levando em consideração, em
terceiro lugar, que é pela força-causa do espírito que em último termo pode ser
explicada a realidade do mundo natural,
Antero conclui que é daquele tipo de força da qual deveremos deduzir a
natureza íntima de todas as forças, inclusive as mais elementares. Em quarto
lugar, o autor salienta um fato que para ele é evidente: não há, no mundo
natural, ser totalmente passivo; todos os seres, mesmo os mais simples, possuem
certa espontaneidade, no sentido de que em tudo palpita uma vontade própria,
que não é mais nada do que a tendência teleológica a realizar o próprio fim.
Para Antero é claro que há alguma coisa de espontâneo "e um acordo do ser
com a sua verdade profunda e com a sua infinita virtualidade", mesmo nos
fenômenos que se nos revelam como os mais elementares no campo da matéria,
terreno no qual parece reinar o determinismo mecânico. Essa secreta finalidade
que em todo ser revela uma força-causa que procura um fim, não pode ser
explicada pelo simples fluir dos fenômenos, como se os antecedentes
determinassem a finalidade dos conseqüentes: o fenômeno antecedente é só
condição para que se produza o conseqüente. A propósito, frisa Antero: "A
causa do fenômeno está na mesma natureza do ser onde ele se dá, ou antes, do
qual ele é essencial modalidade".
Da anterior análise o nosso autor conclui que
a distância existente entre os seres do mundo natural e o espírito não é
intransponível. Esse pouco de espontaneidade que os seres naturais têm
assemelha-os ao espírito. "Não há ainda a liberdade - afirma Antero - no alto
sentido espiritual desta palavra: mas é
o prenúncio dela e o seu germe. Na espontaneidade inconsciente da matéria está
a raiz do que na consciência se chama verdadeiramente de liberdade"
[Quental, 1931: 123]. Em que consiste propriamente a liberdade? Deixemos que o
próprio Antero expresse o seu pensamento: "A liberdade, no rigoroso
sentido da palavra, é pois a espontaneidade quando plena, isto é, quando o ser,
não já espontâneo apenas na sua atividade exteriormente condicionada (...), o é
ainda nessa mesma condicionalidade, criando conscientemente os motivos das suas
determinações e criando-os em vista do próprio fim. Neste ponto culminante, o
motivo da determinação identifica-se com a essência e o fim do ser que se
determina: este, conformando-se com o motivo, conforma-se exclusivamente
consigo mesmo. A sua determinação é agora um fato absolutamente seu, é ele
mesmo, na plenitude da sua essência, refletindo-se na realidade, é essa
essência, substituindo-se a todas as leis exteriores, feita lei única da sua atividade.
Agora, quando mais se determina, mais livre é, porque as suas determinações,
motivadas só pelo seu próprio fim, não envolvendo elemento algum estranho à sua
substância e tirando dela a sua matéria e a sua forma, são atos perfeitamente
adequados à sua potência e outras tantas realizações da sua mesma unidade"
[Quental, 1931: 123].
Trata-se, sem dúvida, ao nosso modo de ver,
da dimensão transcendental da atividade humana, o que poderiamos chamar de
fundamentação transcendental da moral. Antero não duvida em atribuir ao agir
humano, desta forma considerado, um valor ideal e absoluto. O nosso sentimento
de liberdade provém da nossa união a esse centro que unicamente se revela
através da consciência, mediante a razão. É o que ele salienta no texto a seguir:
"Este ser, que está todo em cada um dos seus atos, cuja essência se
substitui ao universo, e cuja atividade não reconhece outros limites senão as
leis da sua própria natureza, realiza por certo o ideal de ser livre. É por
isso também que é um ser só ideal. Deus, se Deus fosse possível, seria esse ser
absolutamente livre. Mas, por isso que não é real, é que é verdadeiro. Ele é o
tipo da plenitude do ser, tipo de que a nossa liberdade moral, aquela que com
tamanhos esforços conseguimos realizar, é só vaga imagem, longínqua semelhança.
Esse ideal da nossa essência, esse eu do nosso eu, último e mais profundo, é o
centro de atração de toda a vida espiritual: é na união com ele que nos
sentimos livres, livres na medida exata dessa união. Segredo mais íntimo do
ser, mas tão sepulto na inconsciência das coisas, não o descobre o mundo.
Revela-o a consciência e é a razão o seu intérprete soberano. Só pela razão
somos verdadeiramente" [Quental, 1931:
124]. Vale a pena salientar que, neste texto ao menos, Antero permanece
estritamente no plano transcendental, sem fazer a confusão de planos que
criticamos anteriormente. O teor da sua referência a Deus, neste texto, é muito
claro: "Por isso que não é real,
é que é verdadeiro". O nosso
autor exclui qualquer referência ao plano ontológico.
A grandeza humana, em que pese as nossas
limitações de seres condicionados "pelo organismo, pelos instintos, pelas
relações exteriores" (e como sofreu Antero com esses condicionamentos!)
consiste nesse podermos nos identificar com o próprio ideal. Em síntese, a
nossa grandeza de seres humanos provém do nosso valor moral, que por sua vez se
alicerça nessa dimensão transcendental do nosso agir. A respeito, o
pensador-poeta escreve: "Fixando em si esses elementos do seu próprio ideal,
esses princípios geradores do seu espontâneo desenvolvimento, este pobre eu que
somos, ou parecemos ser, tão estreitamente condicionado pelo organismo, pelos
instintos, pelas relações exteriores que o comprimem num círculo fatal, este
pobre eu, que assim começa captivo e quase esmagado, transpõe gradualmente
esses limites, transborda, por assim dizer, sobre o mundo que o continha,
substitui motivos próprios aos motivos alheios, faz-se fim onde era meio e, de
particular e limitado, transforma-se finalmente no que se diria outro eu,
impessoal, absoluto, todo razão e vontade pura. Identificado com o próprio
ideal só agora é ele mesmo. Não concebemos que outra coisa seja ser livre"
[Quental, 1931: 125].
A evolução universal, à luz do relacionamento
natureza/espírito, assume uma caraterística de unidade e de progressiva
caminhada até a realidade do espírito, que em último termo comanda todo o
processo. "A cadeia universal das inexistências - frisa Antero - na sua prodigiosa espiral de espirais,
aparece-nos como a ascensão dos seres à liberdade, na qual descobrimos a causa
final de tudo" [Quental, 1931: 126]. O nosso autor atribui as seguintes
características à evolução universal: a) ela não é uma lei imposta de fora à
natureza. Baseia-se, pelo contrário, na "virtualidade infinita do
ser", que está presente mesmo nas realidades mais simples como as
moléculas. b) Essa evolução dirige-se "a um fim, à realização dessa
virtualidade, à plenitude e perfeição do ser". c) De outro lado, a
evolução universal não é uma lei fatal, cega, mas trata-se de uma lei racional, análoga à razão. d) A evolução universal pode caracterizar-se,
também, como "a aspiração profunda
de liberdade, que abala as moles estelares como agita cada uma das suas
moléculas". e) Trata-se de um processo "não já puramente formal e
aparente, mas real, substancial, é um verdadeiro progresso", que consiste
em que "cada nova esfera de desenvolvimento traduz um aumento de
ser". f) Esse aumento de ser, em que consiste o cerne dessa evolução
universal, se dá graças a um gradual desdobramento da infinita virtualidade que
possui a natureza, consistindo essa virtualidade no fato de o ser-causa estar
"imanente nas formas limitadas" e juntar "ao tipo inferior
preexistente esse quid novo e
diverso, com que produz o tipo superior". g) Este tipo superior não é uma
pura formalidade mas "é-o substancialmente e em toda a verdade"
porque "é mais rico de idéia" e "contém mais ser". h) No
processo evolutivo o tipo superior explica o inferior, pois "é para aquele
que este gravita". i) Por último, frisa Antero, "se o ideal supremo,
que a tudo atrai, para que tudo gravita, é razão, vontade pura, plena
liberdade, a evolução só será perfeitamente compreendida definindo-se como a
espiritualização gradual e sistemática do universo" [Quental, 1931: 127-128].
Em síntese, podemos afirmar que a evolução é
para Antero, fundamentalmente, um processo de progressiva espiritualização do
universo. É, ao mesmo tempo, um processo de humanização das coisas, pois a
máxima manifestação do espírito acontece na consciência humana. Graças a esse
processo de espiritualização da natureza, frisa, "o espírito humano sente
agora palpitar nas coisas o que quer que é análogo à sua própria
essência", em virtude de que "ele próprio é que é agora a chave do
enigma universal", pois só ele "conhece a causa e o fim de tudo e
esse segredo sublime é a sua verdade mais íntima, o seu mesmo ser". Antero conclui este arrazoado assim: "O
universo aspira com efeito à liberdade, mas só no espírito humano a
realiza".
12) A plena manifestação do espírito na ordem moral
Se o rumo da evolução é o homem, para
entendermos o sentido do progresso daquela devemos considerar, em última
instância, em que consiste verdadeiramente a feição humana do mesmo. Antero
frisa, em primeiro lugar, que "o progresso da Humanidade é (...)
essencialmente um fato de ordem moral". O progresso, portanto, pressupõe o
contínuo exercício da razão e da vontade humanas, para conseguir o
aprimoramento moral. A respeito, frisa o nosso poeta-pensador: "sem o
esforço sempre renovado do pensamento para a razão, da vontade para a justiça,
de todo o ser social para o ideal e a liberdade, o caminho andado escorrega
debaixo dos pés". E, num outro lugar, afirma em relação à forma em que
entende o progresso: a sua essência "está justamente nessa intervenção,
cada vez mais larga e intensa, do espírito na humanidade (...). A criação da
ordem racional e o alargamento indefinido do domínio da justiça, tal é a
definição do progresso. Fato da liberdade, ele consiste intimamente num desdobramento
incessante da energia moral, numa reação contínua da vontade sob o estímulo do
ideal, e é por isso que a virtude é a verdadeira medida do progresso das
sociedades" [Quental, 1931: 130]. Em que pese o fato de a ordem criada
pelo direito refletir a moralidade e a liberdade humanas, o progresso, porém,
deve-se manifestar, fundamentalmente, na consciência individual. "No mundo
da consciência - frisa Antero - dissolvem-se todas as leis naturais na única
lei moral. A lei moral, criada pelo espírito para si mesmo, ou melhor,
expressão da unidade final realizada pelo espírito em si mesmo, da inteira
compenetração da vontade com o seu ideal, é lei perfeita da liberdade, porque o
próprio dever, à medida que a sua idéia se aprofunda, perde gradualmente o
rígido caráter de obrigação, que lhe dava não sei que longes de fatalidade, e
transforma-se em atração pura, puro amor" [Quental, 1931: 131].
É pois no seio da consciência que o espírito
se liberta de todas as limitações, ensejando um mundo transcendente e
definitivo. Esse mundo transcendente tem alguma coisa de absoluto e é não
individualizado, apesar de ligado ao indivíduo. Nesse mundo se dá, para o
indivíduo, a "transição do ser para o não-ser, que eqüivale, quanto cabe
na realidade, à plenitude e perfeição do ser. É o que, na linguagem (que para
nós não pode ser senão simbólica) do misticismo, se chama a união da alma com
Deus: nós diremos simplesmente que é a união do eu com o seu tipo de
perfeição" [Quental, 1931: 131]. Impõe-se, portanto, para Antero, uma
espécie de ascese em que o indivíduo renuncie ao egoísmo tornando-se
instrumento do bem universal, seguindo os ditames da consciência moral e
inserindo-se, assim, no mundo da transcendência. Essa espécie de kénosis do indivíduo condu-lo à
liberdade. Diz Antero a respeito: "A renúncia a todo o egoísmo é para ele
(o indivíduo) o caminho direto que o leva à liberdade, à perfeição, à
beatitude". Agindo assim, frisa o nosso autor, o indivíduo conquista a
virtude que sintetiza os ideais da liberdade, da perfeição e da beatitude e que
coloca o indivíduo numa perspectiva universal e eterna. Graças à virtude, frisa Antero, a existência
do homem "já não é de uma individualidade particular, circunscrita no
tempo e no espaço, condicionada pelo temperamento, pela raça, pela nação, pelo
período histórico, pela educação, por mil circunstâncias fortuitas; não: é como que a existência dum princípio
universal, impessoal, absoluto, atuando indiferentemente num ponto do espaço, e
a sua obra, a virtude, não é também uma obra particular e transitória, mas
universal e absoluta. A virtude, liberdade suprema, é por isso a realidade por
excelência, a única realidade plena" [Quental, 1931: 132-133].
Sem essa ascese, frisa Antero, torna-se
impossível a vida moral. E ela é também a verdadeira vivência religiosa e a
fonte do único culto: "a consciência do justo - afirma -
é o único templo do único Deus; e, nesse templo, a renúncia ao egoísmo é
o único culto, Cessasse um só instante esse culto, esse holocausto do egoísmo nas aras do ideal,
e imediatamente toda a vida moral se suspenderia (...). O mundo moral só
subsiste por essa renúncia" [Quental, 1931: 133]. Consequentemente o
máximo desenvolvimento da ascese e da virtude, que é a santidade, é o termo de
toda a evolução e a máxima libertação a que o homem pode aspirar.
"Concluamos - escreve Antero - que a santidade é o termo de toda a evolução
e que o universo não existe nem se move senão para chegar a este supremo
resultado. O drama do ser termina na libertação final pelo bem" [Quental,
1931: 134].
Antero culmina o seu ensaio refletindo sobre
as tendências básicas do pensamento moderno na segunda metade do século XIX.
Caracteriza essas tendências como orientadas no sentido de uma síntese
indutiva: " Não será - escreve -
uma nova construção apriori, depois de tantas outras, mais um
sistema - último e definitivo sistema
- mas a coordenação superior e (...) a interpretação dos fatos positivos no
ponto de vista dos últimos princípios fornecidos ao mesmo tempo pela análise da
razão e pela análise da consciência" [Quental, 1931: 135]. Caracteriza tal
coordenação superior como um espiritualismo idealista que florirá e
frutificará "no tronco robusto do
materialismo". E lhe atribui as seguintes notas: a) será "superior à
ciência como idéia e como critério", mas a ela estará submetido do ponto
de vista do fornecimento da matéria-prima "que tem de ser elaborada
especulativamente". Assim, a nova síntese do pensamento moderno, 2)
reunirá, na sua unidade, "as duas tendências divergentes da inteligência
moderna, resolvendo nessa unidade superior, por uma mútua penetração, a
antítese da razão e da experiência". Por se tratar de uma síntese, todas
as grandes correntes do pensamento moderno no século XIX estarão representadas,
aproveitando o que cada uma delas tem de legítimo: o positivismo (sob o aspecto
da adoção de uma ordem de evolução formal dos dados científicos); o idealismo
alemão (pela afirmação da evolução dialética da realidade e pela adoção do
princípio da identidade do ser e do saber);
o espiritualismo (pela introdução de elementos psíquicos na especulação, bem
como pela adoção da idéia de força-espírito,
e pela finalização de todo o processo evolutivo na lei moral, que soluciona o
conflito determinismo-liberdade); por último, o criticismo também estará
representado (pela "verificação severa dos princípios pela dúvida
sistemática", que se insurge contra o dogmatismo). 3) A nova coordenação superior do pensamento
moderno reproduzirá o pluralismo da sociedade moderna que, longe de ser uma
igreja fechada "é uma larga comunhão de inteligências e de sentimentos,
fecunda na medida da sua mesma variedade e liberdade, rica de impulsos
diversos, que são outras tantas manifestações da atividade sempre criadora da
natureza humana". Assim, essa coordenação superior será
caracterizada pela unidade na variedade. 4) Por último, "a síntese do pensamento
moderno, preparada pelos filósofos, tem de ser a obra coletiva da humanidade
culta"; para isso, essa síntese não
poderá ser um grande e acabado sistema,
mas um "alto ideal comum, um princípio universal de inspiração, falando a
todas as potências da alma humana, e a cada uma na sua língua". Esse ideal será "o espírito criador da
civilização moderna". Antero termina valorizando o papel do pensamento
filosófico moderno, que se orienta a essa síntese. A propósito, afirma:
"Se definir o espírito duma civilização e torná-lo cônscio de si mesmo é a
obra essencial da filosofia, não se poderá dizer que a filosofia moderna tenha
mentido à sua missão".
Conclusão
Destaquemos, em primeiro lugar, o posto que
Antero ocupa no panorama cultural português. Eça de Queirós, nas belíssimas
páginas que dedicou ao querido amigo, salienta a presença tutelar de Antero no
pensamento português e alicerça a sua afirmação em dois fatos: Antero, de um
lado, possuía uma alma onde, na meiga e
intraduzível expressão francesa, il faisait très bom. "Por isso - afirma Eça - todos os intelectuais, que uma vez o
encontrassem, lhe conservavam para sempre um sentimento que era misturado de
amor e não dissemelhança da devoção. E tínhamos ainda nele um confortante
orgulho, pois bem sentíamos que esse homem tão simples, com uma má quinzena de
alpaca no verão, um paletó cor de mel no inverno, vivendo como um pobre
voluntário num casebre de vila pobre, sem posição nem fama, sempre ignorado
pelo Estado, nunca invocado pelas multidões, era o elo rijo, o mais rijo elo de
fino ouro, que prendia Portugal ao mundo do pensamento. Ora uma nação só vive
porque pensa - e pelo que pensa. Cogitat - ergo est. Naquele humilde, pois, que se comprazia entre
os humildes, estava a mais larga e mais rica soma da verdadeira vida de
Portugal" [Queirós, 1970: 285]. Em segundo lugar, no sentir de Eça, Antero
representou, para o Portugal moderno, um precioso testemunho de valor humano e
moral. "Por mim penso - escreve Eça
de Queirós - e com gratidão, que em
Antero de Quental me foi dado conhecer, neste mundo de pecado e escuridade, alguém, filho querido de Deus, que muito
padeceu porque muito pensou, que muito amou porque muito compreendeu, e que,
simples entre os simples, pondo a sua alma em curtos versos, era um gênio que
era um Santo" [Queirós, 1970: 288].
São justamente as afirmações de Eça de
Queirós as que nos permitem descobrir a verdadeira dimensão filosófica de
Antero, especialmente no ensaio analisado nestas páginas. É importante enxergar
no poeta e pensador açoriano o homem que vive profunda e sinceramente a sua
existência e que, filho da sua época, trata de dar uma resposta ao interrogante
do sentido da vida humana a partir dos elementos filosóficos com que contava. A
síntese espiritualista que Antero nos apresenta é inseparável da sua vida e do
seu martírio. Talvez por não ter atendido suficientemente para esse aspecto, um
crítico como Lúcio Craveiro da Silva faz um juízo negativo demais sobre o nosso
autor. "É verdade - frisa o citado
autor - que Antero não sintetizou
sistemas, mas princípios e tendências
de sistemas, colhendo na vasta seara da filosofia moderna algumas idéias
fundamentais. Mas, se é assim, com que
direito pode afirmar ter realizado uma remodelação e síntese dessa filosofia?
Por que se abandonam uns princípios e se preferem outros? Qual o critério? Em última análise, perdemo-nos
num labirinto de círculos viciosos. Foi o que aconteceu. Se Antero se
propusesse uma simples enumeração histórica, evidenciando os pontos de
contacto, porque os há, criticando, analisando, escolhendo, realizaria obra
proveitosa, mas de crítica da história da filosofia. Ao lermos as Tendências
gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX, pressentimos à
flor de pena este preconceito e esta superficialidade" [Silva, 1959:
107-109].
A obra filosófica de Antero, a sua síntese
espiritualista, longe de ser como afirma o severo crítico uma "triste réverie dum gênio infeliz" [Silva,
1959: 138], representa, pelo contrário, a maturidade de uma evolução pessoal à
procura da resposta filosófica acerca da questão fundamental sobre o sentido da
vida humana. O critério por que pergunta Craveiro da Silva é o da sinceridade
moral de Antero, assim expressado por Eça de Queirós: "Mas sobretudo se
impunha pela sua autoridade moral. Antero era então, como sempre foi, um
refulgente espelho de sinceridade e rectidão. De nascença a sua alma viera toda
limpa e branca, e quando Deus a recebeu, encontrou-a decerto tão limpa e branca
como lha entregara" [Queirós, 1970: 261]. Em termos filosóficos, Joaquim
de Carvalho expressa assim o alto ideal moral que foi o critério inspirador do
poeta-filósofo: "Em Antero, a liberdade, ou mais propriamente a
subjetividade irredutível da consciência foi, a um tempo, a intuição e o clarão iluminante, que
eticamente lhe deu o sentimento da autonomia e compreensivamente a noção da
insuficiência de toda a explicação que não tome em linha de conta esse dado.
Consequentemente, Antero partiu da consciência viva da sua personalidade, e a
partir dela considerou as relações humanas e a realidade natural, o que importa
dizer que foi intrinsecamente idealista, quer na maneira de estimar o conviver
social, quer ainda na de considerar o mundo natural, que só é tal pela
referência à consciência pensante" [Carvalho, 1955: 235]. O próprio Antero
já tinha assinalado esse norte de ideal ético à sua obra, quando confessa, na Carta autobiográfica, que
"Morrerei com a satisfação de ter entrevisto a direção do Pensamento
europeu, o norte para onde se inclina a divina bússola do Espírito humano,
Morrerei também, depois de uma vida moralmente tão agitada e dolorosa, na
placidez de pensamentos tão irmãos das mais íntimas aspirações da alma humana,
e, como diziam os antigos, na paz do Senhor!" [Quental, 1974].
Em que pese as limitações de Antero enquanto
pensador sistemático, Joaquim de Carvalho salienta que a essência da mensagem
espiritualista do poeta-filósofo, a sua convicção inquebrantável no valor
superior do espírito humano, permanece como uma lição preciosa para o mundo de
hoje. "À sua razão e à sua consciência
- afirma o crítico português - o
homem justo aparece como o fim da existência, e assim tinha de ser, porque o
homem é o único ente que pensa e pode elevar-se ao ideal da Humanidade,
inseparável da consciência da Justiça e do Bem" [Carvalho, 1955:
245]. Trata-se, para Joaquim de
Carvalho, mais de uma filosofia inspirada pela percepção poética e não
puramente intelectual do homem, o que dá ao pensamento anteriano uma grande
proximidade às expectativas do homem contemporâneo. Foi o coração que ditou a
filosofia a Antero? - pergunta Joaquim de Carvalho. "Responder - frisa
este autor - seria criticar, porventura
até refutar. Dir-se-á poética, pela forma como alarga a consciência e se situa
na Natureza, reduzida a série de eventos desprovidos de valor intrínseco; mas
as suas repulsas são ainda as nossas repulsas, os seus anelos, os nossos
anelos, e qualquer que seja a incoerência das idéias ou os saltos da ordem
subjetiva para a objetiva, da existência para o valor, singulariza e enobrece
esta concepção da liberdade e este sentido da moralidade o esforço para a
criação espiritual de um mundo mais justo, e para a emancipação deste desolador
cativeiro de cegueiras, tradições e mecanismos, que nos encadeiam e expulsam do
nosso ser profundo e do nosso destino humano" [Carvalho, 1955: 246].
Vejamos agora as fontes em que se inspirou o
espiritualismo anteriano e aprofundemos um pouco no teor filosófico deste.
Acerca do último ponto, Joaquim de Carvalho inclina-se a caracterizar o
pensamento de Antero como um "pandinamismo psíquico", ou um
"transcendentalismo" [Carvalho, 1955: 223; 246]. A essência desta filosofia
consiste em que "pela conversão da Idéia
em Espírito, confere à existência e à
vida um sentido profundo, em que a razão e o coração coincidem. A vida devém
uma aspiração para o melhor, uma ascensão íntima para a liberdade, e em face do
Universo assim espiritualizado" [Carvalho, 1955: 223-224]. O transcendentalismo de Antero, frisa
Joaquim de Carvalho, "não tem o significado kantiano nem tampouco o
cartesiano e escolástico; é a apreensão ôntica, na esfera do invisível e do intangível, da suprema essencialidade e valor do
espírito". Trata-se, pois, da "apreensão da existência metafísica
como realidade suprema e cuja expressão conceptual se encontra com algum
desenvolvimento nas Tendências gerais da Filosofia na segunda metade do século XIX "
[Carvalho, 1955: 300-301]. Em relação às fontes de que se nutriu a filosofia
anteriana, Joaquim de Carvalho salienta que "Antero foi um grande leitor,
dispersivo, que não sistemático; atesta-o o Catálogo da livraria de Antero de
Quental, legada à biblioteca pública de Ponta Delgada e confirmá-lo-á
mais copiosamente o inventário das fontes espirituais da sua obra. A sua
curiosidade, insaciável e volúvel, associada por demais em certos períodos ao
desejo de fundamentar alguns escritos de filosofia da História ou de pura
especulação, levara-o ao contacto quase sempre superficial, com as atitudes e
com as idéias que mais rigorosamente se perfilam na história do
pensamento" [Carvalho, 1955: 310-311].
As fontes da meditação anteriana foram, além
de Hegel ("o guia principal da reflexão de toda a sua vida", segundo
Joaquim de Carvalho), Leibniz, Kant (através de expositores como Désiré Nolen),
Emílio Boutroux (na sua obra Contingência das leis da natureza),
Windelband (História da filosofia moderna), Alberto Lange (História
do materialismo), Désiré Nolen (La critique de Kant et la métaphysique de
Leibniz, histoire et théorie de leurs rapports, Paris, 1875), Charles
Rémusat (De la Philosophie allemande, Rapport à l'Académie des Sciences Morales
et Politiques précedé d'une Introduction sur les doctrines de Kant, de Fichte,
de Schelling et de Hegel, Paris, 1845) e principalmente Eduardo von
Hartmann (Gesammelte Studien und Aufsätze, 3ª edição, Leipzig; Phënomenologie
des sittlichen Rewusstseins, Prolegomena zu künfitgen Ethik, Berlim,
1879; Religionsphilosophie. Ersterhistorischkritischer Theil. Das Religiöse
Bewusstsein der Menschheit, Leipzig; Philosophie de l'Inconscient,
traduit de l'allemand, Paris, 1876) [cf. Carvalho, 1955:171-172; 312-314].
A contribuição da obra de Eduardo von
Hartmann é importante na elaboração do pensamento anteriano, a partir da crise
pessimista que sofreu o poeta e cujo auge situa-se em 1875. Joaquim de Carvalho
salienta que dois temas interessaram ao nosso poeta no primeiro contato com o
pensador alemão: "a fundamentação do pessimismo e a concepção da
religião" [Carvalho, 1955: 281-282]. No entanto, esse primeiro contato
seria indireto, através de um artigo de Léon Dumont, publicado na Révue
Scientifique. Segundo o crítico português, neste artigo que versa sobre
a filosofia do inconsciente de Hartmann, "radica inicialmente a comoção
intelectual no sentido pessimista" [Carvalho, 1955: 290]. O influxo
definitivo da obra do pensador alemão em Antero é assim sintetizado por Joaquim
de Carvalho: "A influência de Hartmann se exerceu inicialmente, em 1872,
no sentido da fundamentação do pessimismo, e posteriormente, em 1876, na
meditação duma concepção da religião, especialmente cristã, e na descoberta,
crítica, da realidade metafísica" [Carvalho, 1955: 301]. No entanto, o influxo
de Hartmann sobre Antero, longe de revelar simples adoção passiva do pensamento
alheio por parte do poeta-filósofo, revela a inegável capacidade criativa
dele, bem como a sua orientação
filosófica. O nosso autor aprofundou no conhecimento da Filosofia do Inconsciente
do pensador alemão a partir da publicação em Paris, em 1877, da tradução
francesa. Nessa altura, frisa Joaquim de Carvalho, "Antero havia atingido
(...) o caminho do transcendentalismo, e por isso o terceiro contato com a
filosofia de Hartmann reveste acima de tudo feição subsidiária, isto é, de contributo para a elaboração pessoal do
sistema exposto sinteticamente nas Tendências gerais da Filosofia na segunda
metade do século XIX" [Carvalho, 1955: 301].
A filosofia de Hartmann, efetivamente, não
chega tão longe quanto o pensamento anteriano na trilha do espiritualismo. O
pensador alemão, na linha do idealismo de Kant, do Fichte da primeira época e
de Hegel, repudiou a idéia de Deus com atributos de antropopatismo, quer dizer, com caraterísticas de consciência,
memória, sentimento, pensamento, etc., como frisa Joaquim de Carvalho,
"fenomenologicamente ligados à existência de um sistema nervoso,
concebendo-o, em conseqüência, sem as limitações inerentes ao eu, como espírito inconsciente e impessoal"
[Carvalho, 1955: 307-308]. Isso equivale
a afirmar, em palavras do próprio Hartmann, que "a forma infinita eqüivale à própria ausência de qualquer forma, e que
a consciência absoluta que se
considera necessária a Deus, é idêntica à
inconsciência absoluta" [apud Carvalho, 1955: 309].
Antero, é certo, sofreu um forte influxo de Hartmann. Não
podemos negar que "se deixou impregnar de algumas concepções
hartmantianas" [Carvalho, 1955: 314] nos aspectos relacionados à
significação metafísica do inconsciente e ao seu ativismo cósmico, bem como à
efemeridade da consciência, ao panteísmo histórico-evolutivo e à morfologia da
ilusão de felicidade. Contudo, nas Tendências gerais da Filosofia na segunda
metade do século XIX, Antero supera definitivamente a posição de
Hartmann, ao salientar o caráter personalista do espírito em confronto evidente
com a inconsciência absoluta a que chega o filósofo alemão. Como frisa
lucidamente Joaquim de Carvalho, "Antero jamais enveredou por esta
metafísica do conhecimento; através das profundas vicissitudes e mutações do
pensamento foi sempre personalista, considerando firmemente, embora sem
meditação assídua e penetrante, a personalidade como inerente à essência do
espírito, tão firmemente que constitui até um problema de difícil, senão impossível explicação, como pôde conciliar o personalismo com a
teoria do Inconsciente como realidade psíquica independente dos graus e forma
da consciência" [Carvalho, 1955: 309-310].
A atualidade da meditação anteriana situa-se
justamente nessa dimensão de valorização do espírito como realidade pessoal,
que não pode ser reduzido a nenhuma determinação de ordem fáctico ou exterior,
que aponta para um projeto moral de autodeterminação e que não pode ser captado
só mediante a fria razão, mas que podemos atingir unicamente através da
vivência metafísica que não exclua o sentimento. Ao fixar essa posição, bem
como ao criticar o racionalismo e o determinismo por que tinham enveredado as
ciências na segunda metade do século XIX, e ao apontar a necessidade de uma
nova síntese espiritual e personalista do conhecimento, Antero não faz mais do
que prenunciar a meditação contemporânea, que com Husserl inicia essa espécie de saneamento filosófico, orientado
no sentido de levar o homem dos nossos dias a realizar livremente o seu ser
que, para o iniciador da fenomenologia, consiste basicamente em "realizar
a razão que lhe é inata, realizar o esforço de ser fiel a si mesmo, de
permanecer idêntico a si mesmo em tanto que racional" [Husserl, 1962: 272].
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