Este cronista, no mosteiro dos Jerônimos, Lisboa, na exposição em homenagem a Alexandre Herculano, maio de 2010 (Foto: álbum de família) |
(O texto deste ensaio foi escrito originalmente em 2004 para o Projeto Ensayo Hispánico, coordenado na Universidade de Georgia, Estados Unidos, pelo professor Dr. José Luis Gómez-Martínez)
I - BREVE SINOPSE BIO-BIBLIOGRÁFICA
Alexandre Herculano de Carvalho nasceu em
Lisboa, em 28 de março de 1810, ano 3º da invasão francesa. Os seus
pais foram Teodoro Cândido de Araújo (recebedor da Junta dos Juros e que
professava idéias liberais) e Maria do Carmo de São Boaventura (descendente de
pedreiros e mestres de obras do Paço). Cursou Herculano os seus estudos de
Humanidades, preparatórios à Universidade, no Colégio de São Filipe de Nery,
dirigido pelos Padres Oratorianos (onde também fez os seus estudos o grande
pensador luso Silvestre Pinheiro Ferreira). Impedido de freqüentar a
Universidade, em decorrência de problemas de saúde do seu pai, o nosso autor
viu-se obrigado a assistir a um curso técnico, tendo-se matriculado na Aula de
Comércio (que tinha sido criada pelo Marquês de Pombal) e freqüentou, na Torre
do Tombo, a cadeira de Diplomática. Essa formação recebida pelo historiador
português, sem dúvida influenciou diretamente nos rumos da sua vida
intelectual, tendo herdado dos Oratorianos o contato com as idéias
neoplatônicas. O nosso autor tirou, outrossim, da sua passagem pela Torre do
Tombo, nas aulas de Diplomática, a
diuturna procura e valorização dos documentos antigos.
O agitado clima político da época foi, com
certeza, outro fator que influiu decididamente no perfil intelectual de
Herculano. Grandes mudanças experimentou Portugal no início do oitocentos, em
decorrência da agitação de idéias e da reformulação do panorama político
europeu, ao ensejo da gesta napoleônica e do ulterior confronto entre
democratismo e monarquia, que de uma ou outra forma se espalhou pelos países
que receberam a influência cultural da França. António Borges Coelho sintetiza
assim esse pano de fundo histórico: "A primeira metade do século XIX é uma
época extraordinariamente fértil em acontecimentos políticos. Invasões
Francesas, fuga da Família Real, guerrilhas, regência do diplomata inglês
Beresford, execução de Gomes Freire de Andrade e dos outros conjurados,
revolução de 1820, Constituição de 1822 (a primeira Constituição de Portugal),
Vilafrancada, carta constitucional de 1826, monarquia absoluta de 1828,
revolução liberal do mesmo ano esmagada com o corolário de enforcamentos no
Porto, Aveiro e todo esse sudário descrito por Herculano nos mártires da liberdade"
[Coelho, 1965: 9-10].
As primeiras poesias de Herculano revelam-nos
um jovem inflamado pelas idéias tradicionalistas, que o levaram a tecer elogios
ao regime absolutista de Dom Miguel, em 1828. No entanto, essa etapa é curta,
porque logo a seguir, em 1829, Herculano fazia a crítica "aos
tiranos". A partir de então o nosso autor familiarizou-se com o meio
social que cultivava as idéias liberais, os salões literários, notadamente o da
Marquesa de Alorna, por cujo intermédio o nosso autor foi estimulado a ler as
obras de Chateaubriand e Madame de Staël. (Que as primeiras idéias dos românticos
franceses tinham entrado cedo entre os denominados estrangeirados portugueses, fica provado a partir da
correspondência entre Dom Pedro de Souza - futuro Conde de Palmella - com
Madame de Staël, na primeira década do século XIX) [cf. Staël-Souza, 1979]. A
Revolução de Julho de 1830 na França animou sobremaneira a juventude liberal
portuguesa. O nosso autor, com a idade de 21 anos, participou, em 21 de agosto
de 31, do levantamento do Quarto Batalhão de Infantaria. Os amotinados foram
esmagados pelas forças governamentais, com um balanço trágico: 300 mortos e 40
fuzilados em Lisboa. Herculano conseguiu se refugiar numa fragata francesa e
fugir para Inglaterra. Embora tivesse sido curta a permanência do nosso autor
no exílio europeu (ao todo seis meses, entre 21 de agosto de 1831 e o final de
fevereiro de 1832, tendo ficado semanas apenas na Inglaterra e depois algum
tempo mais dilatado na França), esse período foi o bastante intenso como para
imprimir um selo intelectual indelével na restante parte da sua obra. Para os
tacanhos espíritos acostumados às benesses do turismo acadêmico é certamente um
período curto demais. Não assim para jovens sedentos de cultura e interessados
em compreender as intrincadas condições da sua época. Lembremos que por esse
mesmo tempo, um jovem francês de apenas 26 anos parte, na companhia de seu
melhor amigo para os Estados Unidos, onde passa nove meses, com a finalidade de
estudar o sistema penitenciário e compreender o fenômeno da democracia
americana. Desse curto período nasce, entre outras obras, a Democracia
na América, esse clássico da ciência política que ainda causa admiração
pela sua abrangência e que tornou o seu autor, Alexis de Tocqueville, conhecido
pelo mundo afora.
Dois importantes centros de documentação
foram freqüentados pelo jovem Herculano durante a sua permanência na França: a
Biblioteca Pública de Rennes, na Bretanha, e a Biblioteca Nacional de Paris.
Certamente o publicista francês mais lido nesse período era o todo-poderoso
ministro da Instrução de Luís Filipe, François Guizot, cuja obra foi consultada
com entusiasmo pelo nosso autor. Daí emerge a inspiração doutrinária de
Herculano, sendo essa, sem dúvida nenhuma, a caraterística intelectual mais
marcante do seu pensamento, como teremos oportunidade de ilustrar ao longo
deste ensaio. Mas não foi apenas de Guizot que o nosso autor recebeu
influência. Também foi moldada a sua inteligência pelo espiritualismo de
Royer-Collard, sistematizado harmoniosamente no ecletismo espiritualista de Victor Cousin, que possibilitaria
estabelecer uma ponte mediadora entre o empirismo lockeano e a filosofia
transcendental de Kant. Além da inspiração neoplatônica recebida dos seus
mestres Oratorianos, Herculano foi tributário das idéias de Hegel - muito
provavelmente não de maneira direta -
mas, como Guizot, tendo recebido essa influência através de Victor
Cousin, de forma a considerar "a história, desde as formas elementares do
mundo inanimado até às realizações mais perfeitas da humanidade, que são os
heróis, como o desenvolvimento progressivo da Idéia ou Razão divina. Cada
século e cada época encarna uma idéia, ou melhor, uma fase da Idéia"
[Saraiva, 1977: 49]. Junto com o hegelianismo, o nosso autor recebeu embalada a
idéia de progresso, que o mestre alemão, por sua vez, tinha haurido na obra de
Vico e Savigny.
Outra importante vertente do pensamento
francês com a que o nosso autor se familiarizou nas suas leituras realizadas em
Rennes e Paris, foi a do cristianismo liberal representado pelo grupo do jornal
Avenir
(que apareceu em Paris em 1830, sob a orientação de Lamennais), com a
finalidade de conciliar a vivência cristã com os ideais da revolução burguesa, apregoando a separação
da Igreja do Estado e defendendo a conquista da Liberdade também para o
proletariado. Na conhecida obra de Lamennais intitulada Essai sur l'Indifférence en
matière de Réligion, era defendida, contra a visão apologética
tradicional, a existência de um senso comum da humanidade que, à maneira de uma
religião civil, transpareceria ao longo da história na legislação, nos costumes
e nas crenças dos vários povos. Sem dúvida que estas idéias de corte
epistemológico tradicionalista, contribuíram a moldar a desconfiança de
Herculano em face dos sistemas racionalistas de pensamento, bem como na sua
crítica aos excessos perpetrados pela Ilustração, em nome de uma razão
abstrata.
Vale a pena destacar um aspecto das
influências recebidas, no que tange à concepção da historiografia. Além da
principal obra de Guizot, as Lições sobre a História da Civilização na
Europa (1828), o nosso autor leu a obra de Thierry, as suas conhecidas Lettres
sur l'Histoire de la France (1827). Vejamos a forma em que o principal
historiador da formação de Herculano, Antônio José Saraiva, ilustra as
influências recebidas desses dois autores, destacando a particular forma em que
eles focalizam a história, lida do ponto de vista da responsabilidade das
classes médias burguesas:
"Herculano chegava à França na época da
grande voga dos estudos históricos de Thierry e Guizot, que davam a perspectiva
histórica da revolução burguesa pela qual ele se estava batendo. Thierry
oferecia (...) a história do Terceiro Estado, que fizera a revolução.
Reconstitui as suas humildes origens nos municípios que reerguem as muralhas
derrocadas pela passagem dos bárbaros invasores, se defendem contra a rapina
dos senhores feudais e dos reis, arrancam pela insurreição as cartas de foral,
acolhem os servos fugitivos, elegem os seus magistrados, se educam na liberdade
e no trabalho. O Terceiro Estado concluíra enfim a sua obra derrubando as
muralhas da Bastilha. Thierry abre desta maneira na história, dentro do impulso
do século XVIII, a perspectiva da marcha das maiorias para a riqueza e a
liberdade; e chama a atenção para as lutas de classes através das quais se realiza
o progresso. A França, diz ele, não é uma nação, mas duas nações
irreconciliáveis, uma das quais acabará por esmagar a outra. E na história de
Portugal, saudando a revolução portuguesa de 1820, mostrava Thierry os antigos
antecedentes da classe média resistindo à aristocracia e manifestando-se nas
cortes. Recordava a este propósito a frase de Madame de Staël: La liberté est ancienne; seul le despotisme
est moderne. Opondo a classe burguesa, produtora de riqueza, aos
privilegiados feudais, que vivem de um imposto lançado sobre o trabalho,
Thierry desenvolve retrospectivamente a apologia da produção que se encontra
nas obras de Saint-Simon, de quem fora secretário. Mas já Guizot sugere outra
visão da história. Também ele (...) se ocupa do Terceiro Estado e da sua
ascensão; mas as lutas de classes assumem no seu quadro histórico o aspecto de
lutas de princípios: o princípio da unidade personificado no Papado, o
princípio democrático representado
pelas comunas, o princípio da liberdade
introduzido pelos bárbaros. E a Providência executa por intermédio deles o seu
plano sobre a Terra, sem que os homens se dêem conta da obra em que
trabalham, como operários que realizam
separadamente as diferentes peças de uma máquina cujo projeto desconhecem. É
sobretudo com base nesta preparação cultural, tentando aplicar os princípios
gerais da renovação filosófica, da renovação religiosa e da reforma
econômico-social consciencializada pelos historiadores, que Herculano enfrenta
os problemas da reconstrução moral da sociedade portuguesa imposta pela queda
do antigo regime. Tais problemas constituem a sua principal preocupação de 1834
a 1843, isto é, entre o fim da guerra civil e a preparação da História
de Portugal" [Saraiva, 1977: 51-52].
Em fevereiro de 1832 o nosso autor embarcou
de regresso à Ilha Terceira, formando parte do corpo expedicionário de 7.500
homens que em 8 de julho do mesmo ano desembarcaram no Mindelo. Herculano era o
soldado de número 99 da 3ª Companhia de Voluntários da Rainha.
Participou na linha de frente da guerra civil que se seguiu. Antes de terminar
o conflito, vemos o nosso autor, liberado do serviço militar e transformado em
pesquisador que trabalha incansavelmente na busca de fontes primárias da
história portuguesa. Na qualidade de 2º bibliotecário da Biblioteca
Pública do Porto (criada por essa época com os fundos da livraria do
Bispo), Herculano percorreu as
bibliotecas monásticas do norte de Portugal, na busca de documentos que
possibilitassem a reconstrução da gesta portuguesa, um trabalho sem dúvida
inspirado no ofício de historiador que Guizot expõe detalhadamente na sua obra.
Ainda na cidade do Porto, no ano de 1835, o nosso autor colaborou no jornal O
Repositório Literário, órgão da Sociedade das Ciências Médicas e da
Literatura.
Mas o democratismo de inspiração
rousseauniana e jacobina estava em ascensão em Portugal. A Revolução de
Setembro de 1836 que restaurou a Constituição de 1822, foi considerada pelo
nosso autor como um lamentável retrocesso. O seu ensaio intitulado A Voz
do Profeta, testemunha o descontentamento de Herculano para com a
"populaça" em ascensão. Nesse mesmo ano pediu demissão do seu cargo
público no Porto e regressou a Lisboa, onde se engajou na luta contra o setembrismo. Herculano, como aliás o seu
inspirador, Guizot, era um liberal moderado. O jovem escritor era um cartista que defendia entusiasticamente
a posição de Dom Pedro IV, inimigo declarado do modelo absolutista ensejado
pelo miguelismo, bem como do
democratismo. Sem emprego, o nosso autor aceitou, em 1837, a redação de O
Panorama, semanário ilustrado, editado pela Sociedade Propagadora dos
Conhecimentos Úteis. Aderiu, em 1838, à nova Constituição, que representava um
modelo de transição entre o democratismo da Carta de 22 e as tendências
moderadas. Nesse mesmo ano, Herculano publicou a primeira edição das suas
poesias sob o título de A Harpa do Crente.
Em 1839, o nosso autor foi nomeado, pelo rei
Dom Fernando, Diretor das Bibliotecas Reais da Ajuda e das Necessidades. Nessa
nova posição, o jovem historiador, que então contava com 29 anos, pôde se
dedicar às pesquisas históricas. Ao longo da década de 1840, o nosso autor
firmou a sua vocação de historiador e escritor, com os seus Apontamentos para a história dos
bens da Coroa e dos Forais, com os romances Eurico, o Presbítero e O
Pároco da Aldeia e com os dois primeiros volumes da História
de Portugal. Em 1840, por interferência de Rodrigo Magalhães, ministro
do Reino, o nosso autor foi eleito deputado pelo círculo eleitoral do Porto. A
sua breve passagem pelo Legislativo traduziu-se em duas iniciativas: o nosso
autor combateu o projeto de lei que criava um depósito bancário para a fundação
de jornais (medida decerto restritiva à liberdade de imprensa); de outro lado,
como já fizera Guizot na França, o jovem deputado preparou um projeto de
reforma do ensino popular. Nessas empreitadas contou com a colaboração de
alguns amigos como António Luis de Seabra, Oliveira Marreca e Vicente Ferrer
Neto Paiva, que se destacou por ser um dos filósofos de inspiração krausista que
mais influenciou na renovação das idéias
jurídicas em Portugal. Ao ensejo da restauração da Carta de 1842 por
Costa Cabral, o nosso autor retirou-se da cena política, não tendo aceitado o
convite formulado pelo chefe do Estado para que ocupasse o cargo de Inspetor
Geral dos Espetáculos, de que Almeida Garrett tinha sido afastado. Dedicou-se
Herculano, ao longo destes anos, às suas pesquisas históricas. Em 1850 publicou
o terceiro volume da História de Portugal, tendo
desencadeado a reação do clero conservador. Em ensaios contundentes, o nosso
autor defendeu a sua obra, como nos intitulados Eu e o Clero, Solemnia
Verba e no prefácio à História da origem e do estabelecimento da
Inquisição em Portugal (cujo primeiro volume apareceria depois, em
1853). Em 1844, o nosso autor foi
admitido na Academia, na qualidade de sócio correspondente. Nesse mesmo ano
traçou os lineamentos gerais de uma obra que ficou inédita, intitulada Estudos
sobre a Idade Média Portuguesa, na qual, à maneira de Thierry,
pretendia revolucionar a historiografia nacional.
Mas Herculano, doutrinário por vocação, não
se limitou à vida intelectual. Participou ativamente, em 1850, do protesto dos
intelectuais contra a denominada "Lei das Rolhas", que constituía um
atentado contra a liberdade de imprensa. Na sua casa, no ano seguinte,
realizaram-se as reuniões dos oposicionistas que levaram à queda de Costa
Cabral, ao ensejo do golpe de estado que deu início à denominada Regeneração. Mas a situação política não
se estabilizou com a ascensão do novo governo, de que participaram,
inicialmente, alguns dos seus amigos. Desiludido com os rumos pouco liberais do
governo emergido da Regeneração, o
nosso autor passou a participar ativamente da oposição, através dos seus
artigos nos jornais O País e O Português. Em 1853 candidatou-se,
pela oposição, às eleições municipais, tendo sido eleito presidente da Câmara
Municipal de Belém. Aos poucos, o nosso autor converteu-se no porta-voz mais
destacado da média burguesia rural. Naquele mesmo ano publicou o primeiro
volume da História da origem e estabelecimento da Inquisição em Portugal.
Fundou em 1856 o Partido Progressista Histórico, tendo participado de sua
direção. Em 1857 combateu a Concordata com a Santa Sé. Em 1860, como membro da
Comissão Revisora do Código Civil, propôs a introdução, em Portugal, do
casamento civil, tendo sido atacado duramente pelo clero. Herculano defendeu-se
numa série de artigos contundentes que publicaria mais tarde sob o título de Estudos
sobre o casamento civil. A atividade intelectual do nosso autor foi
bastante intensa ao longo da década de 1850. Além dos trabalhos já mencionados,
no ano de 1853 apareceu o quarto volume da História de Portugal. Entre 1853 e
1854 preparou a edição dos documentos medievais portugueses dos séculos XII e
XIII, sob o título de Portugaliae Monumenta Historica. Em
1853 a sua História de Portugal recebe da Universidade um elogio oficial,
de que foi relator o seu amigo Vicente
Ferrer Neto Paiva. Em 1859 foi publicado o último volume da História da Inquisição.
Presença tão destacada no universo cultural e
político português do período, conferiu ao nosso autor a auréola de liderança
cívica que todos reconheciam, até críticos como Teófilo Braga que, na sua História
do Romantismo, escreveu o seguinte: "Nunca ninguém exerceu um
poder tão grande, na forma a mais espontaneamente reconhecida; as opiniões
entregavam-se à sua afirmação, como um povo se entrega a um salvador"
[apud Coelho, 1965: 16]. Privava o nosso autor da amizade de Dom Pedro V, mas
não quis aceitar as benesses e distinções
que lhe foram oferecidas, como a nomeação de par do Reino, a
condecoração com a ordem Torre e Espada e a regência de uma cadeira no Curso
Superior de Letras. Em 1867, Herculano casou-se com Hermínia Meira, que
conhecia desde a sua infância. Instalou-se, a partir desse tempo, na sua Quinta
de Vale de Lobos, que tinha adquirido em 1859 com os recursos gerados pelas
suas publicações. Afirmando que dava por terminada a sua carreira literária
dedicou-se, nos anos seguintes, à vida agrária. O Imperador do Brasil, Dom
Pedro II, foi lá visitá-lo. Mas o velho doutrinário não podia deixar de
refletir sobre as realidades da sua época. Desse período datam alguns escritos
seus muito significativos, como a correspondência com Oliveira Martins e as
suas críticas às decisões do Concílio Vaticano I, reunido em 1869-1870. Em
1873, Herculano começou a publicar os seus escritos avulsos, que tinham
anteriormente aparecido na imprensa, sob o título de Opúsculos. Esta obra, em
dez volumes, terminou de ser editada postumamente, em 1908. Defensor intransigente da propriedade rural,
o nosso pensador no entanto mostrou-se sensível à sorte dos camponeses da sua
região, que lhe renderam sentida homenagem quando da sua morte, ocorrida em 13
de setembro de 1877.
II - ESPÍRITO DOUTRINÁRIO E
ROMANTISMO NA VERSÃO DE ALEXANDRE HERCULANO
Nesta segunda parte da minha exposição farei
uma análise sucinta dos principais aspectos que integram a concepção
doutrinária e romântica de Herculano. Serão desenvolvidos os seguintes itens:
1) A crise em Portugal, segundo Herculano e a geração romântica; 2) A fundamentação da moral na religião; 3) A
concepção religiosa do homem; 4) Concepção religiosa da história e da política;
5) O liberalismo de Herculano; 6) Crítica à filosofia incrédula; 7) Paralelo do
romantismo de Herculano com a versão romântica de Domingos Gonçalves de
Magalhães.
A obra de Herculano insere-se no amplo
contexto do romantismo europeu em cujas origens remotas, segundo António José
Saraiva está o progresso econômico, político e social da burguesia e cujo
desfecho identifica-se com as conseqüências da grande revolução industrial que
desde 1850 transformou totalmente a vida na Europa. A função que o escritor
romântico passa a desempenhar no seio da sociedade européia dessa época, é de
grande importância, porquanto as camadas
sociais em ascensão procuram uma identificação plástica dos seus ideais através
das obras literárias [cf. Saraiva, 1976: 729-730].
1)
A crise de Portugal, segundo
Herculano e a geração romântica
A obra de Herculano deixa transluzir a crise
que atingia Portugal no século XIX. A intelectualidade dedicar-se-ia a
denunciar essa crise e a analisá-la desde diferentes ângulos. Segundo Joaquim
Veríssimo Serrão, "o último terço do século XIX eleva-se, no caso
português, como época de profunda crise política, econômica e ideológica. Mas,
por mais paradoxal que pareça, não o foi no domínio da cultura, dado que
algumas das maiores figuras do pensamento nacional puderam então erguer a sua
obra, para o que basta citar Antero de Quental, Teófilo Braga, Oliveira
Martins, Guerra Junqueiro, Alberto Sampaio e outros" [Serrão, 1977: 18]. A
reflexão da intelligentsia portuguesa
sobre a crise do país, teve a sua maior manifestação nas chamadas Conferências
Democráticas que se efetuaram em Lisboa nos meses de maio e junho de 1871, com
os objetivos de "ligar Portugal com o movimento moderno, fazendo-o assim
nutrir-se dos elementos vitais de que vive a humanidade civilizada; procurar
adquirir a consciência dos fatos que nos rodeiam na Europa; agitar na opinião
pública as grandes questões da Filosofia e da Ciência moderna; estudar as
condições de transformação política, econômica e religiosa da Sociedade
portuguesa" [apud Serrão, 1977: 20].
O manifesto de convocação às Conferências
Democráticas foi assinado por homens de variada formação como Antero de
Quental, Teófilo Braga, Eça de Queirós,
Manuel de Arriaga e Germano Meireles, todos antigos estudantes de Coimbra;
Augusto Fuschini e Augusto Soromenho, professores do Curso Superior de Letras,
etc. Segundo Antero, a crise de Portugal repousava, toda ela, no absolutismo que vingara na Península
Ibérica desde o século XVI. Veríssimo Serrão sintetiza assim a análise
anteriana: "Que razões profundas
haviam levado a Península, condutora dos destinos europeus até o fim do século
XVI, a ser ultrapassada por outras monarquias, como a França e a Inglaterra?
Para o notável pensador, o absolutismo, como marca política que assentava na
aliança do Poder real e da Igreja de formação tridentina, esgotara as energias
medievais das nações hispânicas, já de si depauperadas pelo esforço colossal da
expansão ultramarina. Dando-se à propagação de um ideal civilizador, que
impunha uma política de conquistas e uma forte ambição comercial, a Espanha e Portugal
tinham-se visto a braços com o desapego da vida rural e do trabalho útil,
deixando de produzir a riqueza indispensável ao seu fortalecimento. Tal fato
explicava a crise que atingira a Ibéria no último quartel de quinhentos: em
Portugal, com o termo do reinado de D. Sebastião e a perda da independência; em
Espanha, com o desastre da Invencível Armada e a morte de Filipe II" [Serrão, 1977: 21].
Qual foi a fórmula receitada por Antero para
superar a crise que avassalava Portugal? Posto que os males presentes provinham
da fixação no passado mediante uma educação baseada nele, tratava-se agora de
romper virilmente com esse mesmo passado. Diz Antero a respeito: "Dessa
educação que a nós mesmos demos durante três séculos provêm todos os nossos
males presentes. As raízes do passado rebentam por todos os lados do nosso
solo; rebentam sob a forma de sentimentos, de hábitos, de preconceitos. Gememos, sob o peso dos erros históricos. A
nossa fatalidade é a nossa história... Que é pois necessário para readquirirmos
o nosso lugar na civilização? Para entrarmos outra vez na Europa culta? É
necessário um esforço viril, um esforço supremo; quebrar resolutamente com o
Passado. Respeitemos a memória dos nossos avôs, mas não os imitemos..."
[apud Serrão, 1977: 22]. Para Herculano, como para Antero, a crise de Portugal
no século XIX baseava-se no teocratismo de inspiração absolutista que
predominava, sufocando as liberdades individuais e locais. Herculano vai até as
raízes do absolutismo luso, analisando, na sua História de Portugal, as
origens do fenômeno na Península Ibérica. Adotando o rico conceito weberiano de dominação patrimonial ou patrimonialismo, podemos frisar que
Alexandre Herculano consegue ilustrar de maneira muito clara a forma que
assumiu em Portugal o exercício do poder como propriedade particular do
príncipe, que é a nota caraterística do patrimonialismo.
Herculano salienta o fato de que, a partir de
1097, consolidou-se em Portugal o exercício do poder como bem particular e
hereditário do príncipe. Eis as suas palavras a respeito: "Casando sua
filha Teresa com Henrique, Affonso VI não se limitou a entregar a este o
governo da província portucalense, com a qual já freqüentemente se confunde nos
monumentos dessa época o distrito conimbricence e o de Santarém, debaixo do
nome comum de Portugal. As propriedades regalengas, isto é, do patrimônio do
rei e da coroa, passaram a ser possuídas como bens próprios e hereditários
pelos dois consortes. Assim o cavaleiro francês, que viera buscar na Espanha
uma fortuna mais brilhante do que poderia esperar na pátria, viu realizadas as
suas esperanças, porventura além daquilo que imaginara" [Herculano, 1914:
II, 19-20]. O predomínio dos interesses particulares dos governantes na
estrutura política, fenômeno típico do patrimonialismo, é assim ilustrado por
Herculano, referindo-se à história portuguesa do século XI: "Mas, em
realidade, cada um dos personagens que figurava naquele drama, quer príncipes,
quer senhores, só pensava em tirar das desgraças públicas a maior vantagem possível.
As alianças faziam-se e desfaziam-se rapidamente; porque nenhuma sinceridade
havia no procedimento dos indivíduos. Os interesses particulares dos nobres e
prelados cruzavam-se com as questões políticas e modificavam-nas
diversamente" [Herculano, 1914: II, 65-66].
A própria batalha de Ourique (1139), definida
por Herculano como "a pedra angular da monarquia portuguesa",
porquanto a partir dessa vitória sobre os sarracenos os soldados aclamaram
monarca o moço príncipe Affonso Henriques, é considerada por ele como uma "audaz empresa do príncipe dos
portugueses", na qual tomaram parte os cavaleiros vilãos dos diversos
conselhos, ou dos distritos, obrigados pelas suas cartas de foral. Esse tipo de
obrigação para colaborar na "obra do príncipe" é já uma marca
bastante definida da índole patrimonial que revestia o exercício do poder no
seio da nascente monarquia portuguesa. Herculano salienta um fato que
contribuiu decisivamente para o progressivo acúmulo de poderes nas mãos dos
monarcas, na Península Ibérica: ao longo dos séculos X e XI vai se abandonando,
progressivamente, o direito eletivo dos visigodos em matéria de sucessão e vai
se substituindo "por uma espécie de direito consuetudinário", baseado
na preservação de uma herança patrimonial de pai para filhos. Assim foi como o
principado de Portugal veio a cair nas mãos de um príncipe estrangeiro, Dom
Henrique de Borgonha, ao casar com Teresa, a filha de Afonso VI [cf. Herculano,
1914: I, 218-228; II, 19-20].
O poder patrimonial do príncipe reforçou-se em
Portugal, segundo Herculano, graças à interferência do poder papal, originando
assim a tendência ao absolutismo católico que tantos males causou ao País ao
longo dos séculos XVIII e XIX. Ele relata pormenorizadamente a forma em que foi
adotado o poder de interferência do Papa em Portugal, no século XII, por parte
de Affonso Henriques, que pretendia reforçar o seu próprio poder, contra as
tradições visigóticas em que apoiava a sua soberania o rei da Espanha, Affonso
I. Eis o relato de Herculano: "É indubitável que as instituições da
monarquia de que Portugal fizera até então parte contradiziam a sua separação
perfeita e absoluta; era, portanto, necessário anulá-las por uma jurisprudência
superior a elas. O povo a cuja frente Affonso I se achava não tinha, nem podia
ter, um direito público diferente do leonês: este era o mesmo dos visigodos,
segundo o qual a existência política do rei dependia em rigor da eleição
nacional; e, na verdade, havia muitos anos que o jovem príncipe recebia dos
seus súditos o título de rei, posto que nenhum ato nos reste de uma eleição
regular. Mas isto não era bastante para destruir as leis góticas que se opunham
à desmembração da monarquia, apesar de alguns abusos anteriores. Assim, com um
direito político assaz disputável, numa época em que a força resolvia mais do
que nunca a sorte dos povos e dos imperantes e, sendo possível, ou antes
provável, que, renovada a luta da independência, Portugal, ainda em débil
infância, viesse ou cedo ou tarde a sucumbir, como sucedera à Navarra, só
colocando o seu trono à sombra do sólio pontifício, Affonso Henriques podia
torná-lo sólido e estável. À supremacia que em geral o sumo pastor exercia
sobre as monarquias cristãs, associava-se a idéia de que na Espanha tinha a sé
romana um domínio particular e imediato, e porisso, uma vez que ela se
declarasse protetora do novo estado, a existência individual deste estribava-se
numa jurisprudência política superior às mesmas instituições visigóticas"
[Herculano, 1914: II, 189-190].
O ingresso da política portuguesa no seio do
pensamento teocrático iniciou-se, então,
a partir da decisão de Affonso Henriques de reconhecer a doutrina da
tutela papal desenvolvida por Gregório VII. Herculano termina assim o relato do
fato, assinalando as conseqüências políticas e espirituais que se seguiram para
a Coroa portuguesa: "Partindo do pensamento teocrático predominante na
cristandade, Affonso Henriques, apenas assentada a paz de Zamora, tratou de
iludir as conseqüências dela que lhe podiam ser de futuro desfavoráveis,
apelando para a doutrina de Gregório VII e reconhecendo que ao pontífice
pertencia o sumo império dos Estados cristãos da Península (...). As condições
desta homenagem eram que os seus sucessores contribuiriam sempre com igual
quantia (censo anual de quatro onças de ouro) e que ele rei, como vassalo
(miles) de São Pedro e do Pontífice, não só em tudo o que pessoalmente lhe
tocasse, mas também naquilo que dissesse respeito ao seu país e à honra e
dignidade do mesmo país, achasse auxílio e amparo na Santa Sé, não reconhecendo
domínio algum eminente, eclesiástico ou secular, que não fosse o de Roma na
pessoa do seu legado (...). Assim, mediante o censo prometido e por aquele
testemunho de obediência e submissão, Lúcio, na qualidade de sumo pastor, lhe
prometeu que ele e seus sucessores, como herdeiros do príncipe dos Apóstolos,
dariam bênçãos e proteção material e moral, com que, fortes contra os inimigos visíveis e
invisíveis, resistissem aos seus adversários e obtivessem na morte a recompensa
da vida eterna" [Herculano, 1914: II, 192-194].
À adoção da tutela papal para ver garantido o
poder patrimonial do monarca veio juntar-se, no século XV, a inspiração das
leis portuguesas no direito romano. Até na historiografia revelar-se-ia o
"amor exagerado pelas coisas romanas". Com veemência escreve
Herculano a respeito: "O primeiro escritor, conhecido por nós, que usou da
palavra lusitani para designar os
portugueses, foi o desgraçado bispo de Évora Dom Garcia de Meneses (1481),
vítima desse mesmo amor exagerado das coisas romanas que fez triunfar o poder
absoluto de Dom João II da organização política da Idade Média, e que, em
literatura, levava aquele prelado a dar aos compatrícios o nome coletivo de uma
porção de tribos célticas da antiga Espanha" [Herculano, 1914: I, 38].
Além do progressivo esquecimento do direito visigótico e da adoção da tutela
papal, uma outra causa veio a contribuir ao avanço do absolutismo em Portugal:
a influência árabe. No longo período que vai desde 709 até 1490, os cristãos
lutaram constantemente contra os sarracenos na Península Ibérica, adotando
muitos elementos da cultura muçulmana, especialmente no relacionado com a forma
de exercício do poder político. A concentração dos poderes militares, judiciais
e administrativos numa só cabeça, esse era o traço fundamental da política
sarracena, e esse estilo foi rapidamente
copiado pelos cristãos, não só por razões de segurança, num meio em que a
guerra era a constante e a paz a exceção, mas também para garantir a
continuidade das próprias conquistas [cf. Herculano, 1914: I, 161-170].
Herculano reconhece, assim, a ausência de
feudalismo na Península Ibérica, bem como a inclinação dela, num primeiro
momento, para a progressiva desmembração (com o surgimento dos que Weber
denomina de "senhores patrimoniais locais") [cf. Weber, 1944: IV,
131] e, num segundo momento, para a consolidação do absolutismo monárquico de
tipo patrimonial, capaz de cooptar todos os demais poderes. A respeito, frisa o
historiador: "Antes de acabarem as guerras do emir de Toledo, Fernando
I, achando-se bastante enfermo, voltou a
Leão, onde, agravando-se a doença, faleceu nos fins de dezembro do ano de 1065.
Já anteriormente, seguindo as pisadas de Sancho o maior, o rei leonês tinha
determinado num concílio ou cortes a forma por que todos os seus filhos deviam
herdar cada qual uma porção dos vastos estados que lhes legava. Estas divisões,
contrárias ao disposto no código visigótico, o qual, no mais, se conservava
geralmente em vigor, tinham origem, quanto a nós, não tanto no amor excessivo
dos príncipes para com seus filhos, como nas circunstâncias que haviam
acompanhado o crescimento da monarquia fundada por Pelagio. A rápida narração que temos feito basta para
se conhecer que essa monarquia, depois de se dilatar por certa extensão do
território, tendia constantemente a desmembrar-se em pequenos principados. Cada
conde ou governador de distrito, tendo necessariamente, em virtude do estado de
guerra contínua, juntos em suas mãos todos os poderes militares, judiciais,
administrativos, era quase um verdadeiro rei, e nada mais fácil do que
esquecer-se de que lá ao longe, para o lado das montanhas das Astúrias, havia
um homem superior a ele. Sem existir o feudalismo, causas análogas às que o
tinham gerado no norte da Europa atuavam na Espanha, e estas causas, mais
fortes nos distritos da fronteira árabe, onde a energia dos respectivos condes
devia ser maior e o seu poder mais ilimitado, faziam com que aí as rebeliões
fossem mais freqüentes e algumas coroadas de bom sucesso, como sucedeu, primeiro com a Navarra ao oriente, depois com
Castela no centro, e por último com Portugal ao ocidente. Palpando, por assim
dizer, esse espírito de desmembração, que nascia da força das coisas depois que
os estados cristãos adquiriram pela conquista mais remotos limites, Fernando
Magno procurou que as tendências de separação, em vez de aproveitarem a
estranhos, revertessem em proveito dos membros da sua família, e que se assim
evitassem as lutas civis, cedendo a essas tendências em vez de tentar, talvez
inutilmente, reprimi-las". [Herculano, 1914: I, 233-234].
2)
A fundamentação da moral na
religião
Herculano concebe a sua obra literária e no
campo do ensaio, como uma grande campanha para a reconstrução moral da
sociedade portuguesa, abalada pelas lutas entre os proprietários rurais aliados
à agiotagem (o partido cartista ao qual estava filiado ele e que contava com a
influência do Paço, das prerrogativas régias e da limitação censitária do voto)
e a pequena burguesia industrial (o partido setembrista, que contava com o
apoio das maiorias eleitorais urbanas). Essa luta situa-se no período de 1835 a
1844 [cf. Saraiva, 1976: 170; Serrão, 1977: 68]. No contexto da luta entre as
facções políticas que se digladiavam na sua época, Herculano enxerga um mal
profundo, comum aos políticos que nelas militavam: a hipocrisia, que é
caracterizada por ele nestes termos: "Na maioria das sociedades atuais
falta geralmente aos homens públicos o valor não só para ousar o bem, mas,
até, para praticar francamente o mal.
Deste fato psicológico, que assinala as épocas de profunda decadência moral,
deriva principalmente a hipocrisia: a hipocrisia, que é a anemia da alma. A
altivez insolente do poder que se coloca acima do decente e do legítimo e que
ri das invectivas da opinião indignada, como de um clamor sem sentido"
[Herculano, 1914: I 13-14]. O nosso autor junta a esta crítica contra o
comportamento hipócrita dos poderosos, uma outra dirigida contra o materialismo
reinante na sociedade, que produz a desagregação dela e a morte do espírito.
Nas suas Composições várias, o historiador escreve: "A
incredulidade ameaçada de desterro nas regiões onde, por mais de cinqüenta anos
imperava como rainha, faz-se fabril e bucólica; senhoril e disputadora ainda há
pouco, torna-se rude, bestial e grosseira", porque "o materialismo
pouco a pouco expulso do meio daqueles que primeiro recebem as inspirações de
uma civilização progressiva vai aninhar-se nas tabernas, nos prostíbulos
e, o que é de sentir, nas choupanas
colmadas. Em mais duma, quando a desventura se assenta ao pobre lar camponês,
este que dantes se abrigava na resignação, no orar, no derramar lágrimas aos
pés da cruz, procura agora o esquecimento na embriaguez, o remédio da miséria
no roubo e até a salvação no suicídio" [apud Beirante, 1977: 81].
A luta política de Herculano é em prol da
fundamentação da conduta humana e da moral na religião, a única que pode, segundo ele, dar base
estável ao agir do homem. Essa fundamentação
entrou em crise na Revolução Francesa, que desconheceu sumariamente a tradição
e tornou-se impossível nos sistemas filosóficos que, inspirados no racionalismo
ou no sensualismo, esbarraram em contradições internas insuperáveis [cf.
Saraiva, 1977: 58/63]. O fato religioso, no qual Herculano procura basear a
moral, é fundamentado mediante argumentos que tentam mostrar a sua objetividade
histórica. "Buscada deste modo a certeza - escreve Herculano -, a vitória
do cristianismo é infalível: ele repousa em provas históricas de indubitável
autoridade, porque, além da sua clareza e força, não contradizem a razão nem a
consciência" [Herculano, 1914: III, 201]. Contudo, Herculano não cai no
tradicionalismo de Lamennais, ao basear a credibilidade do cristianismo não na
autoridade como única fonte de verdade religiosa, mas em argumentos de caráter
histórico. No entanto, segundo reconhece Saraiva, não deixa de haver
contradição no pensamento do historiador português neste ponto, porquanto
embora rejeite a tradição como fonte de credibilidade, "afirma-se
tradicionalista porque a razão principal da sua campanha religiosa é de ordem
sociológica: a necessidade de conservar determinados símbolos e expressões
afetivas da vida coletiva capazes de manter a coesão e a moralidade
pública" [Saraiva, 1977: 74]. Esse tradicionalismo de ordem sociológica
reflete-se no seguinte texto de Herculano, em que patenteia a sua valorização
do cristianismo como religião que alivia ao homem na busca do sentido para o
seu destino e a sua felicidade: "Creio em ti (Cristianismo), porque a tua
moral é sublime (...), porque nos explicaste como os destinos do homem se
compensavam além do sepulcro (...), porque só tu soubeste revelar a consolação
à extrema miséria sem horizonte e os terrores à completa felicidade sem
termo" [apud Beirante, 1977: 81].
De outro lado, a índole liberal de Herculano salta à vista aqui: acredita no
cristianismo porque ele resolve o problema do sentido do agir do homem. Não se
trata, em momento algum, da crença numa religião por ela mesma, mas em função
de um projeto humanístico: dar sentido à vida do indivíduo e salvá-lo da
destruição a que foi conduzido pelo filosofismo e pelo teocratismo.
Essa religiosidade humanística herculaniana,
de cunho nitidamente liberal-doutrinário, é salientada por Cândido Beirante,
que ao se referir à supremacia dada por Herculano à religião, afirma: "A
prioridade absoluta ou superioridade da religião é triplamente apontada por
Herculano. Primeiramente, pela imutabilidade dos seus preceitos. A este
respeito é de notar o combate encarniçado que Herculano conduzirá, mais tarde,
contra o neocatolicismo por causa dos
novos dogmas: o da Infalibilidade pontifícia e o da Imaculada Conceição. A
superioridade da religião assenta, em segundo lugar, no fato de ela aceitar e
explicar cabalmente a condição humana: corpo
e alma ou misto de miséria e de
grandeza. Em terceiro lugar, é superior, dado que impõe uma moral exigente
como condição para a salvação individual. Em 1841, Herculano dissera o mesmo: O Evangelho é mais claro e preciso que os
volumosos escritos de todos os moralistas filósofos desde Platão até Kant: a
moral que não desce do céu nunca fertilizará a terra" [Beirante, 1977:
80-81]. Em suas Composições várias, Herculano explica a ênfase social dada por
ele à religião, nestes termos: "a religião é, pois, uma necessidade
social, já que ela é o fundamento da moral e esta é o suporte da sociedade
civilizada. Eis claramente exposto o sentido último da apologia do
Cristianismo: tomaremos a defesa da
religião porque sem ela não há civilização, não há bons costumes e sem estes
não só a liberdade não é possível, mas nem sequer a sociedade" [apud
Beirante, 1977: 81].
Fundamentada a conduta humana no fato
religioso cristão, na pureza da Revelação Evangélica, Herculano explicita os
elementos essenciais que contribuem, segundo a mensagem bíblica, para nortear o
comportamento do homem. Há dois aspectos essenciais nesse ponto: o cristianismo
supõe a liberdade como condição do homem e da fé, de um lado; de outro lado, o
mandamento supremo do cristianismo, a caridade, sintetiza a doutrina moral do
cristianismo e fundamenta a vida em sociedade. A caridade estabelece a
verdadeira igualdade entre os homens, ao acabar com o egoísmo. "Assim
concebido, diz Saraiva [1976: 71], o cristianismo é o aliado natural do
liberalismo". Baseado nessa perspectiva autenticamente liberal, Herculano
rompe definitivamente com o ultramontanismo e com o tradicionalismo católico em
geral, salientando a compatibilidade que há entre a defesa dos interesses
materiais dos indivíduos e a dos seus interesses espirituais. Poderíamos
afirmar até que Herculano consegue enunciar as bases de uma nova ética que
tornasse os católicos verdadeiramente comprometidos com a sua sociedade, sem
contudo cair no materialismo. Esforço de conciliação de valor invulgar para
quem, como ele, nascera e vivera num meio não formado na ética calvinista.
Esforço que já tinha sido feito na França por católicos como Royer-Collard ou
como o próprio Alexis de Tocqueville [cf. 1977: 403-405], que levou a este
último, aliás, a formular a sua noção de "interesse bem
compreendido", aquele que concilia a defesa dos próprios interesses com o
imperativo cristão da solidariedade e do amor ao próximo. Lição de moderação
que, sem dúvida, Herculano tirou das leituras que fez da obra de Guizot, durante
a sua permanência na França.
Em relação a esse ponto, escreveu Herculano:
"Defendei os vossos interesses espirituais juntamente com os vossos
interesses físicos. É a nossa doutrina, porque não queremos insultar a memória
dos nossos pais que combateram e padeceram para conquistar essas garantias e
direitos inscritos no pacto político do país; porque não queremos amaldiçoar o
nosso passado, nós que viemos ocupar nas fileiras da liberdade o lugar onde
eles caíram. É a nossa doutrina, porque entendemos que as necessidades morais
do homem social não são menos atendíveis que as suas necessidades materiais
(...). É a nossa doutrina, porque o
progresso material é filho das conquistas da liberdade, do progresso e da
civilização moral. A máquina a vapor e o caminho de ferro não nasceram entre os
povos servos; nasceram nos países onde as garantias individuais, o amplo
direito de associação, a franca manifestação do pensamento, a verdade
eleitoral, a independência de poderes; os fatos sociais, em suma, em que
aparece a fisionomia de um povo livre eram uma realidade (...). Pugnar pelos
melhoramentos materiais que razoavelmente o país tem direito a pedir sem querer
todavia que se lhes sacrifiquem ou sequer se posponham os sacrossantos direitos
dos cidadãos" [apud Beirante, 1977: 115].
À luz das anteriores considerações podemos
entender a noção herculaniana de progresso, que abarca tanto o desenvolvimento
dos fatores materiais quanto dos morais, no homem. A respeito, escreve Cândido
Beirante [1977: 116]: "Herculano
utiliza muitas vezes a expressão
progresso moral e material; outras vezes, progresso material e intelectual e também progresso material e social. Todas estas designações contêm em si o
aspecto moral do progresso, num sentido lato, tal como o entendia Herculano
(...). No pensamento herculaniano o
verdadeiro progresso é o que engloba os factores materiais juntamente com os
morais. Quando houver um divórcio entre estes dois grupos componentes do
progresso humano, entrar-se-á num estado de pré-decadência que virá a trazer (a
prazo mais ou menos curto) a decadência generalizada. O grande termo de
comparação para as suas considerações vai buscá-lo à História, à decadência do
Império Romano". Contudo, o verdadeiro progresso não se dará no seio da
sociedade, segundo Herculano, senão na
medida em que o espírito humano for educado devidamente na leitura, na
ilustração, na civilização, no cultivo das artes, no desenvolvimento das
ciências. Aqui o nosso autor assume a melhor tradição da Ilustração, sem
contudo cair no extremo de apregoar a absoluta emancipação da razão humana.
Em O Panorama, semanário que dirigiu
entre 1837 e 1839, Herculano afirma que a verdadeira civilização é a do
espírito humano. Segundo ele, quem lê, "bebe a largos tragos na taça da
sabedoria (e é) cidadão de todas as repúblicas, membro de qualquer sociedade,
contemporâneo de qualquer século". No mesmo semanário, o nosso autor
escreveu em 1839: "Não é da abertura de canais e estradas, do acréscimo
das exportações, do fomento da indústria, que depende a felicidade futura do
povo: é da educação. Ilustre-se, civilize-se, aprenda a conhecer o que lhe
convém, renasça nele a boa moral, e a antiga virtude portuguesa, que depois
será o próprio povo quem, sem socorro do governo, e até apesar do governo se
preciso for, abrirá canais e estradas, melhorará a agricultura, aumentará o
comércio, aperfeiçoará a indústria". Herculano critica, porém, as reformas
progressistas empreendidas pelo Marquês de Pombal que entraram em declínio após
a sua saída do governo, porque "este é o destino de todos os progressos
que não nascem do seio da sociedade e do desenvolvimento das idéias" [apud
Beirante, 1977: 117].
O progresso integral do homem, que abarca o
cultivo do espírito humano, é um dever moral. A propósito, escreve o nosso
autor: "Negar o aperfeiçoamento
intelectual aos homens, deixá-los na bruteza e na ignorância é um ato imoral,
um menoscabo de deveres sagrados e por conseqüência um crime (...). O homem não
passará de máquina se carecer de instrução e raciocínio. É, portanto, preciso
cultivar-lhe o espírito (...). Os
proveitos e cômodos de que a Europa atualmente goza (...) nasceram todos da
cultivação das artes". Em 1872 Herculano escrevia: "Ninguém por certo
nega a utilidade de favorecer o trabalho literário e científico, principal
elemento do progresso social". O progresso material, segundo ele, é muitas
vezes conquistado às custas do homem: "Pobre povo - escreve o historiador
- mal sabes tu à custa de quantos gozos interiores, de quantas esperanças, de
quantos sonhos formosos, hás-de ir comprando os progressos e a
civilização!" [apud Beirante, 1977: 118]. A grandeza moral de Herculano
ergue-se como figura solitária que contesta com a sua palavra e a sua própria
vida uma sociedade entregue ao imediatismo e às conveniências políticas. Antero
de Quental escreveu em fins de setembro de 1877 o elogio de Herculano para a
Revista Os dois mundos. Para Antero, o nosso autor escondeu-se no
retiro de Vale de Lobos, durante os últimos anos, voltando as costas para uma
sociedade em atrito com o seu ideal de vida: "Na fisionomia moral de
Alexandre Herculano - escreve o poeta
luso - há certas linhas que fazem
lembrar o perfil enérgico e simples dos heróis típicos da nacionalidade
portuguesa. Pertencia a essa grande linhagem que acabou com ele. O seu século,
admirando-o, considerava-o todavia com um certo ar ininteligível, como se
sentisse vagamente que aquele homem pertencia a um mundo extinto, um mundo cujo
altivo sentir já ninguém compreendia. E acabaram, com efeito, por não se
compreenderem" [apud Serrão, 1977: 217-218].
Oliveira Martins, em Portugal contemporâneo
[1984: II, 225-226], escreveu elogio semelhante de Alexandre Herculano,
salientando o estoicismo do seu caráter: "A cova do cemitério de Azóia
onde baixou o cadáver de Herculano no verão de 77 é, no seu isolamento, o
símbolo da insensibilidade com que Portugal o sepultou (...). A palavra que o
retrata é o Caráter, porque nele a vida moral e intelectual eram uma e única
(coisa). Dissemos pois Caráter no sentido e valor que a palavra teve na
Antigüidade, e não na vaga acepção moderna (...). O tipo de caráter à antiga é
o estóico e este é propriamente que define a fisionomia de Herculano; este o
tipo que passo a passo veio crescendo até dominar os últimos anos, (...) quando
os desenganos do mundo o degradaram para o exílio, não como um mártir, mas como
um homem que, protestando sempre, se não converte nem se corrompe".
Oliveira Martins tinha caracterizado Herculano como "o único português
moderno". Joaquim Veríssimo Serrão identifica a grandeza de Herculano como
decorrente da sua vocação de escritor e do seu espírito liberal. A propósito
frisa: "Apesar das críticas de alguns nomes da geração de 70, como
Teófilo Braga e Adolfo Coelho, tinha-se
assim gerado em torno de Herculano uma admiração quase exclusiva pelo homem e
pelo escritor que era o símbolo de sua geração (...). A nobilitação intelectual
obrigava um grande escritor a ser também um homem grande, alguém que soubera
impor-se à consideração pública pelas atitudes que tomara nos debates e
problemas que afetavam toda a Nação. O liberalismo exigia que no indivíduo se
reunissem os dois múltiplos que definem os verdadeiros modelos de uma
sociedade" [Serrão, 1977: 214-215].
3)
Concepção religiosa do homem
É
patente o influxo da Bíblia especialmente dos escritos de São Paulo, Na
vida intelectual de Herculano. Eis o que afirmava a respeito o nosso autor em
1876: "Com a idade e com a reflexão, entre os personagens eminentes do
Novo Testamento começou a sobressair um que dia a dia cresceu a meus olhos em
sublimidade. Era São Paulo. São Paulo tornou-se afinal para mim o grande vulto
do Cristianismo militante. Foi São Paulo que me perdeu" [apud Beirante,
1977: 98-99]. A vida humana, para Herculano, percorre várias etapas, que ele
define no seu romance O Pároco da Aldeia, em 1843, do
ponto de vista da luta entre a razão humana e a crença viva. Eis as suas palavras a respeito: "Tal é o destino
da inteligência neste breve desterro: dois dias conserva as recordações
verdadeiras e puras da sua origem imortal: outros dois alumia-se com o fogo
fátuo das paixões e esperanças: o resto deles resolve-se na luta tormentosa das
idéias, dos afetos, dos desenganos: depois vem o dormitar da velhice e a
regeneração da morte" [apud Beirante, 1977: 84].
Vejamos a forma em que Herculano explica o
desenvolvimento da vida humana, ao longo dessas quatro etapas. Na primeira,
correspondente ao período da infância e da poesia, a alma conserva
"recordações verdadeiras e puras da sua origem imortal (...); nesse tempo
tudo me chegava aos olhos da alma alumiado, risonho, variegado, porque tudo
transparecia através de um prisma de sete cores da inocência singela e crédula
da infância". No segundo período, Herculano evoca as paixões e esperanças
e a dúvida instala-se no seu coração. A respeito, frisa: "A inocência
morreu, a poesia íntima e crente desbaratou-se, o sentimento religioso
esmoreceu; mas ficam os deleites dos sentidos que nos embriagam; os aplausos
das multidões aos nossos hinos decorados, que elas ainda julgam sublimes e
esplêndidos; aplausos que nos desvairam: fica-nos uma filosofia orgulhosa e
insensata, que se crê profunda, uma ciência superficial que se crê completa,
pela qual dormimos tranqüilos sobre a negação de todas as idéias místicas de
todas as lembranças de Deus" [apud Beirante, 1977: 84].
O terceiro período caracteriza-se pela luta
entre a Razão e a Fé. Eis a descrição
que dele faz Herculano: "A poesia suave e pura da infância e da puberdade
passou; passa também o íris das paixões férvidas, das ambições insaciáveis, da
crença na própria energia. Começa então o pardo crepúsculo, que, semelhante a
herpes lentos, vai lavrando por todas as nossas opiniões e afetos e os prostra,
os subjuga. Desde essa época, a vida tem largas horas de tédio, em que o
existir é uma carga pesada; porque nos falta alicerce em que possamos
firmar-nos; porque flutuamos sobre as névoas densas do duvidar de tudo".
Segundo Cândido Beirante, este é o período das grandes polêmicas com o clero.
Sem chegar a rejeitar a fé num catolicismo de tipo pré-tridentino, Herculano
opõe-se ao clero ultramontano e reacionário, particularmente aos jesuítas.
Serpa Pimentel caracterizava assim, em 1881, a personalidade do nosso autor
neste período polêmico: "Alexandre Herculano era um cismontano como Bossuet,
um jansenista como Pascal, um velho católico como Doellinger. Espiritualista
cristão, via o cristianismo compatível com a liberdade e a moral do Evangelho e
como a única base sólida da civilização e do progresso". Para Silva
Cordeiro, o polêmico Herculano "na Idade Média teria ficado a dois passos
da heresia, semi-ariano como Atanásio, montanista como Tertuliano, mas tenaz e
altíloquo ante os bispos de Roma como Cipriano em defesa dos relapsos, ou como
São Bernardo invectivando a corrupção da Igreja. Esta maneira de encarar o
problema religioso, se lhe concitava
ódios nos dois campos, foi também uma das forças ocultas de seu prestígio
porque o deixava bem a descoberto, consciência surpreendida em flagrante"
[apud Beirante, 1977: 89].
Cândido Beirante, por sua vez, caracteriza
assim o esforço conciliador de Herculano entre filosofia e Deus neste terceiro
período, bem como a distinção que introduz entre clero e religião: "Na sua
obra de doutrinação, há uma idéia fixa: conciliar a filosofia e Deus, daí a apologia dum cristianismo semelhante ao dos
primeiros cristãos (...). Isto compreende-se muito bem no caso de
Herculano, porque ele viu as massas
populares fanatizadas pelo clero regular lutarem durante dois anos contra os
liberais, como se se tratasse duma guerra
santa contra os infiéis. Esta
distinção entre clero e religião, no que diz respeito ao Cristianismo, é uma
dicotomia perigosa pelas conseqüências que envolve. Podíamos ver nesta sua
religião quase natural e no seu latente anticlericalismo uma herança das Luzes
que com o decorrer do tempo se acentuou" [Beirante, 1977: 69].
O quarto período assinalado por Herculano
corresponde à etapa final da sua vida, quando do seu refúgio no Vale de Lobos.
Diz o historiador a respeito: "A mente se definha e ela apenas dormita
para despertar vigorosa ao sol da eternidade, que rompe atrás do sepulcro
(...). Depois da taça do mel esgotada, resta a do absinto. Que se resigne e
espere aquele que vai devorando os dias da dúvida e do desalento. Chegará a
hora de renascer para a poesia e para a certeza: será a hora da morte". A
solução herculaniana do conflito entre Fé e Razão é colocada num plano
trans-histórico. Como afirma Cândido Beirante, "a confiança não o
abandona. Se não pode conciliar, neste mundo, a fé cristã com os imperativos da
razão e do século, resta ainda o Além que, para ele, é uma certeza" [Beirante, 1977: 86].
4) Concepção
religiosa da história e da política
Fundamentada a m oral humana numa visão
transcendente ao indivíduo, é lógico que a explicação da história seja feita em
termos transpessoais e sobrenaturais. Para isto, Herculano encontrou farto
material de inspiração no espiritualismo platônico de Santo Agostinho. A
realidade verdadeira não é a constituída pelos acontecimentos mutáveis, mas a
que se baseia nas idéias eternas. Assim, a história é explicada em termos
transhistóricos. Por trás dos
acontecimentos humanos estão as Idéias que movimentam a história. Cada época,
na história da civilização, representa uma idéia. Mas no fundo de todo o
processo histórico, há uma base ontológica que sustenta o acontecer
humano: trata-se, numa perspectiva
claramente agostiniana, da sabedoria e vontade de Deus que conduzem a história.
Em outros termos, a razão da história é a Providência divina. A fundamentação
herculaniana da história é, portanto, de caráter religioso, porque, como diz
Saraiva [1976: 89], "uma teoria providencialista da história é afinal uma
interpretação religiosa dos acontecimentos". O providencialismo
herculaniano tem, contudo, uma outra fonte de inspiração que lhe permite
conciliar o progresso com a Providência divina, como bem assinala Cândido
Beirante [1977: 97]: "Herculano, bem como os historiadores do período
romântico vão conciliar ambos os termos (Progresso e Providência divina). Por
que será que Herculano é providencialista e ao mesmo tempo presta culto sincero
ao Progresso indefinido? É que, em Herculano, influíram dois grandes filósofos
da história: Vico e Herder".
O próprio Herculano reconhece essa influência
numa carta dirigida a Oliveira Martins, do seu último refúgio de Vale de Lobos:
"No tempo em que eu andava peregrinando por esse mundo literários, antes
de me acolher ao mundo tranqüilo da santa rudeza, conversei um pouco com Vico e
Herder, com Vico e Herder como a Itália e a Alemanha os geraram, e não como os
aleijaram os cabeleireiros franceses". Vários anos antes, em 1839,
Herculano já tinha expressado a necessidade de "escrever uma história de
Portugal, segundo o sistema de Vico e Herder" [apud Beirante, 1977: 97].
Valha anotar que na Scienza Nuova, cujo subtítulo reza: "História ideal das
leis eternas de que dependem os destinos de todas as nações, o seu nascimento,
o seu progresso, a sua decadência e o seu fim", Vico sustenta a tese
de que o progresso autêntico não pode surgir do desconhecimento de Deus ou do
abandono da lei moral. Nesse ponto certamente o pensador italiano distancia-se
dos filósofos do período racionalista. A Providência divina é definida por Vico
como "sabedoria suprema a qual, sem força de lei, mas usando dos próprios
costumes dos homens, regula e conduz divinamente a grande comunidade das
Nações". Podemos afirmar que a interpretação da história em Vico é
agostiniana, mas integrando essa visão com a mentalidade moderna, baseada na
idéia de progresso. A respeito, Franco Américo frisa que "a conciliação da
causalidade divina com o livre arbítrio (...) tenta-a Vico na consideração
dinâmica da história e da Providência. Em virtude desta colaboração entre Deus
e o homem, a história tem um valor humano e um sentido divino" [apud
Beirante, 1977: 97]. A influência de Vico estende-se, no século XVIII, ao
pensador alemão Herder, em quem Herculano também diz inspirar-se.
A idéia básica de Herder, segundo Tonnelat,
consiste em "provar que na Terra há uma só e mesma espécie humana a quem
Deus prometeu um aperfeiçoamento constante e uma felicidade sempre aumentada.
Só o homem é perfectível, dentre todos os seres terrestres" [apud
Beirante, 1977: 97]. Herder também salienta a idéia, tão cara a Herculano, como
frisei anteriormente, de que os progressos materiais e os avanços científicos
são igualmente importantes, posto que através deles se revela o poder da razão
humana. A cultura, segundo ele, longe de afastar os homens de Deus, os aproxima
dele. Apesar de o progresso da cultura não ter o mesmo ritmo em todos os povos,
não existe superioridade de um povo sobre os outros, segundo Herder, pois as
luzes da razão sempre encaminham os homens para o melhor, e, de outro lado, os
progressos dos diversos povos contribuem para o progresso geral da Humanidade.
Desenhadas as linhas gerais do providencialismo herculaniano, bem como das
fontes que o inspiraram, analisemos a aplicação que Herculano faz do seu
providencialismo à história e à política portuguesas. O providencialismo é
claro. À maneira dos antigos profetas bíblicos (e valha a pena registrar aqui a
semelhança entre a pregação providencialista herculaniana e o discurso dos doutrinários franceses, notadamente
Royer-Collard, François Guizot e o mais importante discípulo destes, Alexis de
Tocqueville), o historiador português identifica-se como arauto da Providência,
que lhe incumbiu a missão de fazer ver a ruína futura da sua Pátria. Eis a
síntese que Beirante [1977: 104] faz desse aspecto profético: "N' A voz
do Profeta, escrito que bem parece uma proclamação bíblica de estilo
profético, Herculano fala muitas vezes da Providência que o enviou e lhe faz
ver a ruína futura da Pátria. Tem várias exclamações em que proclama o seu
providencialismo: O Senhor nosso Deus é
justo: curvemos a cabeça diante da sua Providência (Opúsculos, I, p. 36).
Relembrando os tempos em que fora soldado
da liberdade, diz: A Providência
infundiu-nos valor, e sofremos, sem murmurar, a fome (Opúsculos, I, p. 38) e o que padece não deve queixar-se, nem
rebelar-se contra a Providência; porque essa queixa inspira-a a soberba (Opúsculos,
I, p. 42). A sua confiança está no justo juízo de Deus: A justiça celeste nunca dorme, como na alma
do criminoso nunca se cala o remorso (Idem, p. 44). Ao terminar A voz
do Profeta, Herculano, desdobrado em profeta, exclama: Não sabia como desculpasse perante a
Providência os pecados do povo (Idem, p. 114)".
A idéia de Vico, de conciliação entre a
Providência divina e o livre arbítrio, subjaze no seguinte texto de Herculano:
"A religião portanto não encontra na indústria nem na ciência que versa
sobre suas causas e leis gerais, a menor oposição. No pensamento do
Cristianismo (...) é o trabalho que fecunda a natureza, e multiplica por Deus
este festim da criação, ao qual a Providência convida tudo o que tem fome. O
que repugna à religião não é a conquista do homem sobre a matéria - é o reinado da matéria sobre o homem - (...). O Cristianismo, igualando os homens
moral e religiosamente, unindo-os pelos laços da fraternidade, enobrecendo todo
o trabalho honesto, ferindo pelo nariz a escravatura (...) deu início a uma
época inteiramente nova para as relações de homem a homem" [apud Beirante,
1977: 57-58]. A partir desses pressupostos básicos, de que a Providência lhe
encomendou a missão de assinalar o perigo de ruína da sua Pátria e da
conciliação existente entre livre arbítrio e Providência divina, Herculano
passa a interpretar a história como um processo dirigido por Deus. Eis, por
exemplo, a forma em que ele explica o
surgimento das nações modernas, repetindo os traços gerais da exposição de
Guizot no seu clássico livro intitulado Histoire de la Civilisation en Europe
depuis la chute de l'Empire Romain jusqu'a la Révolution Française:
"Grandes historiadores têm desenhado o sombrio e imenso quadro da
dissolução do Império dos Césares. Este resumia toda a civilização antiga;
resumia-a e continha-a em si. Essa dissolução havia acabado a tarefa que a
Providência lhe destinara na obra do progresso humano. O Cristianismo
aprofundara já as raízes na terra, vicejava aspergido com o sangue dos
mártires, abrigava as sociedades com a sua vasta sombra e, tomando os membros
desse cadáver gigante que se desconjuntava, ia preparando cada um deles para o
converter num corpo social cheio de mocidade e de vida. Novas migrações desciam
do setentrião ao meio-dia da Europa para o renovar, como em tempos remotíssimos
tinham descido das chapadas interiores da Ásia a povoa-lo. As legiões, a
política dos imperadores e a majestade do nome romano serviram por algum tempo
de dique à invasão. Fora, porém, Deus que soltara a torrente. Era uma luta
sublime a da civilização contra a barbaria; mas esta rompeu as barreiras. As
hostes e as tribos selvagens do norte arrojavam-se por cima do Império: a vaga
seguia-se à vaga. Daquele grande cataclismo nasceram as nações modernas"
[Herculano, 1914: I, 69].
Em relação à luta de séculos, na Península
Ibérica, entre cristãos e sarracenos, afirma Herculano [1914: I, 157-158]:
"A Providência decretara a restauração do Cristianismo na Península e os
seus decretos deviam cumprir-se, bem se, às vezes, a execução deles parecesse retardar-se".
E interpreta de modo providencialista a decadência do império muçulmano na
Península Ibérica e o triunfo do Cristianismo: "Sem recusar aos guerreiros
da cruz a audácia e o entusiasmo próprios daqueles vigorosos tempos, as suas
façanhas reduzem-se às proporções ordinárias quando se confrontam com a
situação dos que eles venceram e subjugaram. Longe também de negar por este
modo a intervenção da Providência nos destinos do gênero humano, só aí
acharemos motivos para admirar as leis de ordem moral que regem o
universo, não menos imutáveis do que as
leis físicas que presidem à existência material dele. Os maometanos da Península oferecem-nos pelo meado do século XII mais um desses
exemplos, ao mesmo tempo terríveis e
salutares, de que abunda a história. Naquele país, seja qual for o seu grau de
civilização e poderio, onde falece o amor da pátria, onde os vícios mais hediondos
vivem à luz do sol, onde a todas as ambições é lícito pretender e esperar tudo,
onde a lei, atirada para o charco das
ruas pelo pé desdenhoso dos grandes, vai lá servir de joguete às multidões
desenfreadas, onde a liberdade do homem, a majestade dos príncipes e as
virtudes da família se convertem em três grandes mentiras, há aí uma nação que
vai morrer. A Providência, que o previu, suscita então outro povo que venha
envolver aquele cadáver no sudário dos mortos. Pobre, grosseiro, não numeroso,
que importa isso? Para pregar as tábuas de um ataúde, qualquer pequena força
basta" [Herculano, 1914: I, 201-202].
Até os acontecimentos negativos são ordenados
pela Providência divina. Referindo-se à
derrota sofrida pelos cristãos portugueses na batalha de Alcácer Quibir, afirma
o historiador português: "A destra
de Deus tinha escrito no livro da
Providência o dia em que para Portugal devia acabar a glória de séculos e toda
a casta de prosperidades. Um dia e uma batalha acabou assim com a fúria e a
felicidade de um povo que fora tão afamado e temido" [Herculano, 1914: I,
104-105]. Em que pese as derrotas dos povos e as quedas dos Impérios, contudo,
o progresso é inevitável e Deus é quem o promove. "O gênero humano - frisa
o nosso autor - que sempre caminha avante, deixaria acaso após si esta porção
de seus membros, chamada nação portuguesa? Não, porque ninguém pode contrastar
os decretos da Providência nem os progressos da humanidade (...). E criaria a Providência o homem para o
assemelhar aos tigres e leões e não o destinaria a mais nobres e altos
fins?". Todo o progresso humano tem em Deus a sua origem. A propósito,
frisa Herculano [1914: I, 105]: "Felizmente Deus, que inspirou ao gênero
humano a sociabilidade e o desejo do aperfeiçoamento, põe na sociedade remédio
para os males que deviam resultar da imperfeita ciência. (...) Na mesma
natureza do nosso espírito está esse remédio contra o ceticismo e contra as
suas precisas conseqüências, o egoísmo e a imoralidade". O progresso,
contudo, não caminha sempre em linha reta. Pode ter paradas e até retrocessos,
que Herculano denomina de aberrações do
progresso. Com isso, o nosso autor pretendia, à maneira de Guizot,
conquistar os burgueses receosos de seu tempo, que viam com apreensão o confuso
panorama político do país. Para ele, a burguesia deve assumir a sua
responsabilidade de classe orientadora da sociedade, sem se deixar assustar
pelas crises passageiras. A respeito, escreve na sua obra História da origem e
estabelecimento da Inquisição em Portugal: "Os membros da
burguesia que não têm conduta nem ânimo para afrontar as aberrações do
progresso (aberrações que nunca faltam nas conjunturas das grandes
transformações) mentem aos destinos da sua classe, maldizem a santa obra de
civilização, as tradições de seu país, os fins do cristianismo e os próprios
atos da sua vida pública anterior" [apud Beirante, 1977: 110-111].
Cândido Beirante [1977: 111] sintetiza assim
esse aspecto do pensamento herculaniano: "Realmente, Herculano faz a
apologia do Progresso em nome das tradições e da liberdade, em nome do cristianismo
e da civilização. O progresso sócio-moral, uma vez conseguido, não pode ser
destruído". A certeza da inevitabilidade do progresso alicerça-se na
crença de que é vontade de Deus expressa no Evangelho. A respeito, frisa
Herculano: "A liberdade, a civilização, o progresso, que são leis de Deus,
reveladas nas aspirações de todos os homens, nos caracteres dos séculos, no
desenvolvimento invencível do espírito humano; a liberdade, a civilização e o
progresso, que se contêm no Evangelho de Cristo" [apud Beirante, ibid.]. A inevitabilidade do
progressismo de Herculano salta à vista no seguinte texto, escrito por ele no
desenvolvimento de notável polêmica travada no jornal O Português, em 1853:
"O caminho de ferro é inevitável, inflexível como o destino. Que se nos
permita uma expressão hiperbólica. Se não construíssemos vias férreas,
protestando contra a civilização, a Providência, que dirige a Humanidade, as
faria cair do céu sobre nossos campos. Ao homem não é lícito desobedecer ao
gênero humano, cujos passos na estrada do futuro Deus alumia com o facho da luz
eterna" [Apud Beirante, 1977: 109].
Qual é o papel do historiador? Herculano
considera que ele deve testemunhar, perante a sociedade da sua época, esse
sentido oculto em direção ao progresso, que a Providência traçou para a Nação
portuguesa. Observado os fatos antigos, o historiador pode traçar os
lineamentos gerais do que poderá vir a ocorrer num povo. É necessário, para
isso, conhecer as próprias tradições.
Não existe, contudo, uma história iluminista da Humanidade. Cada povo percorre
a sua trilha. Mas o historiador não pode se deixar enganar pelos fatos
descosturados. Deve interpretá-los à luz da idéia providencialista. O
historiador, de outro lado, deve levar em consideração a liberdade humana, o
que o conduzirá a não pretender traçar leis gerais, como as das coisas
naturais, mas a tentar identificar tendências esclarecedoras do comportamento
dos homens. Pode-se, apenas, esboçar uma probabilidade,
em relação ao comportamento humano. A propósito da metodologia da história
defendida por Herculano, escreveu o saudoso filósofo português Eduardo
Abranches de Soveral [2002: 12]: "Ao observar que tudo o que realmente
acontece tem uma causa e que os sucessos só parecem fortuitos porque se ignora
aquilo que os determinou, tem Herculano inteira razão, segundo penso. Não
obstante, deverá anotar-se que,
sobretudo no plano da realidade histórica, a maioria das causas não são
naturais mas humanas. E se, quanto às primeiras, se poderá metodologicamente
admitir um seguro conhecimento, integrando-as num sistema de leis permanentes e
universais, já, quanto às segundas, esse
conhecimento seguro não é possível, pois o comportamento livre dos homens é,
como tal, imprevisível. Quando muito se poderá estabelecer um sistema normativo
à luz do qual esse comportamento livre se objectivaria do modo mais eficaz e
perfeito. (Para Herculano, o valor que daria às ações humanas a máxima
consistência ontológica seria a liberdade)".
5) O
Liberalismo de Herculano
Fazendo um esforço de síntese, analisaremos
nesta parte seis aspectos do Liberalismo de Alexandre Herculano: a) a sua
decidida rejeição do despotismo; b) a inspiração religiosa do pensamento
político; c) a vinculação do liberalismo
de Herculano com a tradição; d) o nacionalismo; e) a preocupação do liberalismo
herculaniano por chegar ao estabelecimento de instituições políticas que
garantam a realização dos ideais professados.
a) Rejeição do despotismo.- Na sua História
de Portugal, Herculano critica a forma em que se concentrou o poder nas
mãos do monarca, esquecendo as antigas tradições de liberdades locais,
originárias da Idade Média. A rejeição do absolutismo é um traço constante na
sua obra. Eis a forma em que Joaquim Veríssimo Serrão sintetiza a crítica
histórica feita por Herculano ao surgimento do absolutismo português: "O
apego à Monarquia, como instituição suprema para o bom governo dos povos, nunca foi posto em causa pelo historiador,
que via na figura régia o garante do equilíbrio político e social. Mas com a
condição de os monarcas guardarem as liberdades que asseguravam a grandeza e a
virtude dos cidadãos, não os transformando em súditos e escravos. A baliza
temporal de D. João II para distinguir as duas fases históricas da Nação,
constitui um dos axiomas de Herculano, que, sendo um medieval de formação, via
nos fins do século XV, com a expansão em curso e a tendência para o
absolutismo, a grande viragem que alterou gravemente o equilíbrio português.
Daí que assacasse os maiores defeitos aos reis posteriores (...), como se a
história moderna do país se houvesse reduzido a um acervo de misérias e
desgraças. Tal foi a influência de Herculano neste pensamento, que levou
autores capazes, como Oliveira Martins, a situarem a decadência nacional no
processo de descobrimentos e conquistas, reduzindo a figuras pobres os monarcas
posteriores ao Príncipe Perfeito" [Serrão, 1977: 47-48].
Não podemos deixar de encontrar aqui, nesta defesa de Herculano em prol
de uma monarquia aberta à defesa da liberdade, um eco do pensamento de Guizot,
que defendeu a Monarquia de Julho na França e que, de forma clara, considerava
ser a Monarquia brasileira uma instituição em defesa das liberdades e da
representação, constituindo uma garantia contra o despotismo [cf. Guizot, 1864:
247-271].
Já salientamos, na no início da Segunda Parte
deste ensaio, a forma em que, de acordo com Herculano, consolidou-se o poder em
Portugal como propriedade particular do príncipe, o que ensejaria o surgimento
do absolutismo a partir do século XV. Limitemo-nos aqui, simplesmente, a
enfatizar a sua rejeição a qualquer forma de despotismo, como algo
absolutamente alheio à natureza dos povos livres. Eis a forma em que o nosso
autor introduz a sua História de Portugal: "A
liberdade tem conseqüências inevitáveis; as gerações dos povos livres
participam perante o futuro da responsabilidade dos poderes públicos ou, antes,
a responsabilidade é delas, porque têm sempre força e meios para os revogar aos
sentimentos do pudor e do dever quando eles a esquecem. As virtudes ou os crimes
dos que as governam; a sua glória ou a sua desonra pertence-lhes. O despotismo,
esse não o podem chamar à autoria. Para mim a questão, vista por esse lado,
estava resolvida. Não era, não podia ser o desejo de reagir contra
manifestações oficiais e solenes o que me impelia a renovar esforços tanto
tempo interrompidos. Era uma destas afeições individuais, modestas e
desinteressadas, que nascem, como flor singela, nos pedregais da vida"
[Herculano, 1914: I, 13].
O historiador português é um liberal no sentido
pleno da palavra, abarcando a sua doutrina as três instâncias essenciais da
cultura, da política e da economia. É kantiano do ponto de vista cultural
(embora não tenha lido jamais a obra do pensador de Königsberg, mas tomado contato com os seus lineamentos
gerais muito provavelmente através da obra de Madame de Staël De
l'Allemagne, que possibilitou aos portugueses o conhecimento do
kantismo) [cf. Staël, 1968]. Herculano, outrossim, acredita na livre iniciativa
em matéria econômica (embora com ressalvas conservadoras quanto à adoção da
técnica, que deve ser adotada sobre um pano de fundo moral). No que tange à
política, o nosso autor defende denodadamente o indivíduo, na sua liberdade,
contra os avanços do estatismo. Eis um texto bem revelador dessa índole liberal
ampla. Em carta endereçada a Oliveira Martins em 10 de dezembro de 1870,
escreve Herculano: "Eu, meu caro democrata e republicano, nunca fui muito
para as idéias que mais voga têm hoje entre os moços e que provavelmente virão a predominar por algum tempo no século XX,
predomínio que as não tornará nem piores nem melhores do que são. A liberdade
humana sei o que é: uma verdade da consciência, como Deus. Por ela chego
facilmente ao direito absoluto; por ela sei apreciar as instituições sociais.
Sei que a esfera dos meus actos livres só tem por limites naturais a esfera dos
actos livres dos outros e por limites factícios restrições a que me convém
submeter-me para a sociedade existir e para eu achar nela a garantia do
exercício das minhas outras liberdades. Todas as instituições que não
respeitarem estas idéias serão pelo menos viciosas. Absolutamente falando, o
complexo das questões sociais e políticas contém-se na questão da liberdade
individual. Por mais remotas que pareçam, lá vão filiar-se. Mantenham-me nesta,
que pouco me incomoda que outrem se assente num trono, numa poltrona ou numa
tripeça. Que as leis se afiram pelos princípios eternos do bom e do justo, e
não perguntarei se estão acordes ou não com a vontade de maiorias ignaras"
[apud Oliveira Martins, 1984: 229].
Aparece nestes dois textos um eco da
influência recebida por Herculano dos doutrinários e os seus discípulos, como
Tocqueville. Não é de claro sabor tocquevilliano essa profissão de fé na defesa
da liberdade, semelhante à confissão que fazia o pensador francês de estar
sempre do lado daquela, em que pese a tradição despótica que tomou conta do seu
país? Lembremos a profissão de fé liberal de Tocqueville [1988: 93-95],
formulada na sua obra O Antigo Regime e a Revolução: "Alguns hão de acusar-me de mostrar
neste livro um gosto muito intempestivo pela liberdade, a qual, segundo me
dizem, é algo com que ninguém mais se preocupa na França. Só pedirei àqueles
que me fariam esta censura, lembrar-se que esta tendência é muito antiga em mim.
Há mais de vinte anos, falando de uma outra sociedade, escrevia quase
textualmente o que vão ler aqui. No meio das trevas do futuro já podemos
descobrir três verdades muito claras. A primeira é que em nossos dias os homens
estão sendo levados por uma força desconhecida, que temos a esperança de poder
regular e abrandar, mas não de vencer, e que os impele suave ou violentamente a
destruir a aristocracia. A segunda é que, em todas as sociedades do mundo,
aquelas que sempre encontrarão as maiores dificuldades para escapar por muito
tempo ao governo absoluto, serão precisamente estas sociedades onde não há mais
e não pode haver uma aristocracia. A terceira é que em nenhum lugar o
despotismo poderá produzir efeitos mais nocivos do que neste tipo de sociedade,
porque mais do que qualquer outra espécie de governo, ele favorece o
desenvolvimento de todos os vícios, aos quais estas sociedades estão
especialmente sujeitas, e assim as empurra numa direção à qual uma inclinação
natural já as fazia pender. (...) Só a liberdade pode combater eficientemente,
nesta espécie de sociedades, os vícios que lhes são inerentes e pará-las no
declive por onde deslizam. Com efeito, só a liberdade pode tirar os cidadãos do
isolamento no qual a própria independência de sua condição os faz viver, para
obrigá-los a aproximar-se uns dos outros, animando-os e reunindo-os cada dia
pela necessidade de entender-se e agradar-se mutuamente na prática de negócios
comuns. Só a liberdade é capaz de arrancá-los ao culto do dinheiro e aos pequenos
aborrecimentos cotidianos (...) para que percebam e sintam sem cessar a pátria,
acima e ao lado deles. Só a liberdade substitui vez por outra o amor ao
bem-estar por paixões mais enérgicas e elevadas, fornece à ambição objetivos
maiores que a aquisição das riquezas e cria a luz que permite enxergar os
vícios e as virtudes dos homens. (...) Eis o que eu pensava e dizia há vinte
anos. Tenho de confessar que desde então nada aconteceu no mundo que me levasse
a pensar e falar diferentemente. Tendo demonstrado a boa opinião que eu tinha
da liberdade num tempo em que alcançou o apogeu, não acharão ruim que nela eu
persista quando a abandonam".
Para Herculano, a rejeição do despotismo é um
princípio que não admite a menor dúvida. Em carta a Oliveira Martins datada em
10 de dezembro de 1870 [apud Serrão, 1977: 194] escreve estas palavras, que
lembram a rejeição do absolutismo feita por John Locke no seu Primeiro
Tratado sobre o Governo Civil. Note-se o sabor empirista do texto, que
defende a soberania da Nação como um fato: "Tão ilegítimo acho o direito divino da soberania régia, como
o direito divino da soberania
popular. A soberania não é direito: é
fato - fato impreterível para a realização da lei psicológica, até fisiológica,
da sociabilidade, mas, em rigor, negação, porque restrição, nos seus efeitos,
do direito absoluto, e cujas condições são, portanto, determinadas só por
motivos de conveniência prática e dentro dos limites precisos da necessidade.
Fora disto toda a soberania é ilegítima e monstruosa. Que a tirania de dez
milhões se exerça sobre o indivíduo, que a de um indivíduo se exerça sobre dez
milhões, é sempre a tirania, é sempre uma coisa abominável".
Eduardo Soveral destacou a firmeza das
convicções liberais de Herculano, abeberadas na sua vida familiar e que o
levavam a não transigir com o despotismo, em qualquer uma das suas
manifestações. A respeito, frisa Soveral [2002: 6]: "Também as convicções
liberais que herdou cedo lhe moldaram a sensibilidade e lhe nortearam as idéias
políticas. Desde sempre repudiou o absolutismo régio e o jacobinismo radical e
revolucionário, apostado em instaurar, com o apoio despótico das maiorias, uma
igualdade que considerava utópica. E pugnou por um regime em que se não ficasse
na afirmação de princípios e boas intenções, mas de forma efectiva fosse
garantida a liberdade civil".
b) Liberalismo e Religião.- Já analisamos
suficientemente, nas páginas anteriores, a inspiração religiosa que marca todo
o pensamento herculaniano. Reforcemos as considerações feitas, mostrando a íntima
ligação que existe entre a sua forma de entender o liberalismo e a visão
religiosa do homem e do mundo. Veríssimo Serrão [1977: 50] afirma que "O
liberalismo de Herculano não põe em causa, antes defende com vigor, o apego
religioso que animou os Portugueses no seu ideal de cristandade. O respeito que
mereciam as cinzas dos antigos heróis identificava-se nele com o próprio culto
da Nação portuguesa. A vergonha, vergonha
eterna não provinha de se manter a lembrança desses homens, mas da ambição
e falta de caráter de muitos outros que, em nome de uma nova doutrina política,
colhiam os benefícios de um saque no patrimônio nacional e reduziam ao
enxovalho tradições venerandas".
Oliveira Martins, por sua vez, define assim a
índole religiosa do liberalismo herculaniano: "A tradição religiosa, ou
antes aquela pseudotradição de um catolicismo liberal inventada pelo romantismo
servia, pois, ao filósofo para temperar o seu individualismo, conciliando-o com
um resto de autoridade social consagrada nas prerrogativas do trono
representativo. De tal modo se combinava o racionalismo com o romantismo, e
este traço é o que dá a Herculano, ou antes à sua doutrina, um caráter de
individualidade original, depois do ensino apenas racionalista de Mouzinho da
Silveira" [Oliveira Martins, 1984 : II, 235]. A inclinação de Herculano em
favor do liberalismo monárquico, é devida a um esforço de adaptação do
liberalismo ao contexto católico português, a fim de superar o risco do
democratismo. Certamente pesa aqui, como já foi destacado, o influxo de Guizot e dos demais
doutrinários, que na França já tinham tentado equacionar um tipo de solução
semelhante, ao ensejo da monarquia de Luís Filipe. O nosso autor queria um tipo
de liberalismo que não colidisse com as tradições religiosas e que
possibilitasse a superação do jacobinismo e do terror. Veríssimo Serrão [1977:
195] afirma a respeito o seguinte: "Herculano considerava o regime democrático como inadaptado aos
estratos mentais do homem europeu, marcado pela crença católica que levara ao
fortalecimento das instituições de vários países. Admitia que na origem da
mentalidade republicana da Suíça e das colônias inglesas da América estivesse a
força respectiva do calvinismo e do puritanismo, como prolação da sua vida moral. A índole, os costumes e a expressão
própria desses países mergulhava em práticas religiosas que lhe mantinham o
vigor. Já o mesmo não sucedia com as nações católicas da Europa, ligadas pelas
suas raízes seculares ao liberalismo monárquico".
Herculano era um doutrinário de pura cepa.
Interessava-lhe não apenas a vida intelectual, mas a sua projeção sobre o mundo
da política, a fim de torná-la a esta mais humana. À maneira de Pierre-Paul
Royer-Collard ou de Guizot, aspirava a transformar as instituições de seu país,
tornando-as mais civilizadas, ou seja, pondo-as a serviço do homem, superando
portanto a velha tradição despótica do absolutismo. Se se afastou da vida
pública em alguns momentos da sua vida, fê-lo para reativar a sua reflexão em
face da sociedade e voltar à liça levando novas abordagens, que possibilitassem
uma renovação das instituições. A propósito deste traço do nosso autor,
escreveu Eduardo Soveral [2002: 9]: "Interessa declarar antes que comungo
da opinião dos que entendem que o recolhimento em Vale de Lobos não deve ser
interpretado como uma renúncia à vida pública que a incompreensão, a inveja, a
má fé, e os mesquinhos ataques pessoais tornavam, uma vez mais, inabalável para
um homem de princípios e de caracter como ele era. Penso também, que Herculano,
pelo contrário, soube reagir positivamente a esse clima malsão da vida cultural
portuguesa, e que, em Vale de Lobos, continuou a desempenhar o papel público
que mais se lhe afeiçoava: exercer um magistério intelectual e moral, fora e
acima das correntes, dos grupos, e mesmo das instituições, excluindo-se de
qualquer espécie de cumplicidade, inclusive daquelas que a aceitação de mercês
e honrarias permitisse admitir".
Doutrinário, liberal portanto, mas também
contrário ao democratismo e defensor convicto da monarquia representativa.
Herculano escreve, em carta dirigida a Oliveira Martins [1984: II, 230] em 10
de dezembro de 1870: "A democracia repugna às nações ocidentais da Europa
educadas pelo catolicismo que, na pureza da sua índole, é o tipo da monarquia
representativa. Seria preciso ignorar a imensa influência que as religiões têm
no desenvolvimento intelectual e moral das grandes famílias humanas, na
formação lenta da sua índole particular, para não perceber quão difícil é dar
um caráter, não só novo, mas até oposto, ao seu organismo social e
político". Em que pese a inspiração religiosa do seu liberalismo, nem por
isso fica minguada a capacidade crítica de Herculano, conforme ele mesmo
confessa: "Depois de uma época de incredulidade em que lentamente perece
uma religião, os espíritos cultivados que adotam outra para encher um vácuo e
para satisfazer a necessidade psicológica de crer, nem por isso perdem de todo os hábitos de
ceticismo e, se abraçam com ardor a nova
idéia na sua generalidade, não abdicam de
repente as tendências para a discussão e para a dúvida nas espécies
particulares" [apud Beirante, 1977: 68].
A mescla da herança iluminista-liberal e do
espírito religioso, em Herculano, que é típica aos românticos em geral, cria
nele uma divisão interna, que é caracterizada da seguinte forma por Beirante
[1977: 66]: "Herculano é um homem
dividido: de algum modo é filho espiritual dos iluministas, mas reage
duramente contra a sua irreligião. Por
um lado, é sensível ao acervo das suas idéias, por outro lado, manifesta-se de acordo com muitas das
críticas que lhes são feitas pelos pensadores eclético-espiritualistas das
primeiras décadas de oitocentos. Herculano procura seguir uma via de
conciliação entre os sistemas opostos que se digladiavam surdamente desde
finais do século XVII. Vai adotar a forma do
espiritualismo eclético, que afinal já era uma síntese entre o cristianismo
e a filosofia anterior". Podemos salientar, finalmente, que a síntese
entre liberalismo e cristianismo em Herculano processou-se a partir da sua
busca de um princípio que lhe acalmasse "a necessidade psicológica de
crer", sem contudo abandonar totalmente o espírito da ilustração.
Herculano relata, assim, a sua luta por
encontrar esse princípio religioso: "Não achando (...) esperança na
religião da matéria em que me criaram, fugi para a religião dos espíritos e,
por uma teoria de abstração subjetiva, expliquei como Deus me ajudou nas
minhas, aliás inexplicáveis, divagações" [apud Beirante, 1977: 65]. Esse
espírito de procura da religiosidade, como frisamos, é comum aos
românticos. Eles, como frisa Beirante,
"vão criar uma nova tábua de valores religiosos, morais, estéticos, etc.,
opostos à da filosofia das Luzes. Os escritores do romantismo vão voltar-se
para o Cristianismo primitivo sem as
superstições de dezoito séculos (na expressão de Herculano), ao contrário
dos iluministas que procuravam realizar a divisa de Voltaire: esmaguemos o infame" [Beirante,
1977: 66].
Herculano, sem dúvida, acredita no progresso.
Mas vincula a defesa deste a um fundo moral, sem o qual perderia o sentido.
Eduardo Soveral destacou pertinentemente esse aspecto do pensamento
herculaniano, da seguinte forma: "Esclareça-se que a posição de Herculano
quanto ao progresso técnico do país, designadamente quanto à construção do
caminho de ferro e da sua ligação à Europa, era muito complexa. Tentarei resumí-la. A sua posição doutrinária de fundo era a seguinte: a subordinação do
progresso técnico a padrões morais era condição sem a qual mais valeria que ele
não se efetivasse. No que em particular se referia a Portugal, e atendendo
ainda ao facto de ser uma nação pequena, e à generalizada tendência para
aceitar sem crítica e imitar as idéias e modas que o comboio nos traria
diariamente de além-Pirinéus, entendia que assim ficaria em grande risco a
nossa cultura e o nosso modo de ser. Só gradualmente, e com um maior
conhecimento e uma mais justa avaliação das nossas tradições, esse ampliado
contacto com o que nos era estranho seria benéfico e não destrutivo. No plano
econômico entendia que era prioritário o desenvolvimento da agricultura, e que
seria apoiando-se nela que a industrialização devia operar-se. O recurso ao
crédito externo, como acontecia com a construção da linha férrea, traria
certamente, segundo pensava, prejuízos futuros" [Soveral, 2002: 8].
c) Liberalismo e Tradição.- No liberalismo
herculaniano encontramos uma ponte que o liga à tradição medieval, e que lhe
permite formular, já no campo das instituições políticas, soluções que sejam
aceitas pela Nação, cujo passado ele respeita. Atitude semelhante de culto à
tradição medieval encontramos na obra de John Locke, sobretudo quando o
filósofo inglês estabelece o princípio dos direitos da Nação, e o culto aos
valores religiosos como base da política, o que lhe faz mitigar o
individualismo e o racionalismo herdados, respectivamente, de Hobbes e de
Descartes. Essa presença da tradição, em Locke, deu-se graças ao influxo que
teve nele a obra de Richard Hooker
intitulada Ecclesiastical Polity, verdadeiro compêndio das tradições
medievais anglo-saxônicas em matéria política. Pois bem, aspecto semelhante de
culto à tradição encontramos na obra de Herculano. Mais uma vez, a
responsabilidade pela presença deste aspecto no pensamento herculaniano cabe à
sua inspiração romântica, como bem salientou Joaquim Veríssimo Serrão [1977:
193]: "Tem de fixar-se o princípio de que o nosso autor foi, ao mesmo
tempo, um romântico e um liberal, pela época em que viveu e pela expressão do
seu ideário. Se a sua concepção medieva e a busca de uma definição secular para
a origem da nação portuguesa o prendem ao movimento romântico, a valorização do
homem como princípio e fim da sociedade política tornou-o um liberal de
expressiva marca. Como pensador, Herculano foi mais romântico; como homem para
quem a ação política tinha de orientar-se pelo culto estrênuo de uma doutrina,
impõe-se pela segunda face. É na conjugação dos dois movimentos, sem qualquer
escusada alternativa, que Herculano encontrou a plena realização da sua
personalidade, no diálogo permanente que a si próprio impôs entre a pureza
doutrinal e a sua vivência no tempo".
Diálogo permanente que decorre, ao nosso modo de ver, da influência
marcante que os doutrinários franceses exerceram na sua obra e no seu
pensamento. Afinal, essa tensão constante entre a concepção do mundo e a ação
para transformar o universo político, constitui a marca registrada de homens
como Guizot, Royer-Collard e dos que, na França, recolheram essa herança, como
é o caso de Tocqueville, ainda no século XIX e de Raymond Aron, no século
seguinte.
Um texto do nosso autor serve para ilustrar o
profundo respeito que ele professa pelas tradições da Nação portuguesa. Eis as
suas palavras: "Oh! Que se a minha débil voz pudesse retumbar nos paços
dos grandes e no conselho dos legisladores, eu lhes dissera: nossa glória
passou, e o nome português é a fábula do mundo. Caímos no fundo do nosso
abatimento, incertos acerca do futuro; é para o passado que, sem rubor ou sem
custos, podemos volver os olhos: não apagueis portanto na face da terra natal
todos os vestígios de recordações de consolo. Esses claustros, esses templos
ora desertos, eram cheios de vida e de ruído em dias de virtude e de renome, e
por baixo dessas lages dormem homens que nos legaram larga herança de boa fama.
Não vendais ao rico as ossadas dos nossos antepassados, que disso tomarão as
raças vindouras estreita conta à vossa memória, nem fieis da piedade do
abastado, porque a infâmia que lhe aumentar os tesouros deixa de lhe ser
infâmia. Ele espalhará ao vento as cinzas aviltadas, com o mesmo descaro com
que o verdugo espalha as do justiçado, condenado a assim cumprir com a sua
justiça. Monumentos da história e fonte de meditações são os sepulcros, e em
quase todas essas campas, hoje cobertas de musgo, se lê em letras meias gastas
o nome de varões abalizados. Eles passaram, mas oxalá nunca a sua memória
pereça. É ela o grito de consciência nacional: este grito, se o deixardes soar,
talvez ajude à liberdade a regenerar os nossos filhos" [apud Serrão, 1977:
49-50].
d) O Patriotismo.- Em que pese a
caracterização de estrangeirado com
que J. Barradas de Carvalho tentou tipificar Herculano, o liberalismo do
historiador português, pelo contrário, é
de profunda inspiração nacional. Poderíamos aqui lembrar tudo quanto foi
afirmado anteriormente sobre o culto ao passado e acerca do papel atribuído à
religião no pensamento herculaniano. O patriotismo foi uma das características
da geração do nosso pensador.
. Veríssimo Serrão [1977: 11] afirma a
respeito que "um forte sentimento pátrio animou os homens do século XIX,
que punham os valores nacionais acima do ideário pessoal e, quando não o faziam
na prática, tinham pelo menos a consciência de respeitar esse princípio. Foi
esse um dos grandes legados do liberalismo que cumpre nesta hora relembrar na
figura de um dos seus maiores. Também a crença nos direitos individuais que
animou o espírito oitocentista, mantém viva a ressonância dos que acreditam no
homem como o fim último da sociedade". Segundo a análise crítica que Herculano
faz da história portuguesa, a falta de força moral que por volta de 1870 se
alastrava em Portugal não era conseqüência da liberdade, mas justamente tinha
sido causada pela carência dela, pois tanto o absolutismo quanto a influência
francesa conseguiram perverter a reta evolução do espírito medieval português.
Em que pese o sistema constitucional da sua época ser "incompleto,
contraditório, às vezes absurdo", ele não foi responsável pela
descaracterização do país, mas a má aplicação que se fizera dele. Herculano
frisava que "o mal está antes no país que nas instituições", nunca
deixando de nutrir a esperança de que o seu ideal tivesse perenidade [cf.
Serrão, 1977: 205-206].
e) Preocupação com o
aperfeiçoamento das instituições políticas.- Ao ser a história, segundo
Herculano, a simples manifestação de idéias que obedecem a um plano previamente
traçado pela sabedoria divina e que evoluem de acordo com a vontade de Deus, a
organização social dar-se-á em base à manifestação desse plano divino, cujos
arautos serão, no sentir de Herculano, os espíritos ilustrados, autênticos
representantes do sentido comum da sociedade. Assim, segundo diz Saraiva [1976:
109], "a razão pública se converte na razão de uma aristocracia
encarregada de pensar pelo todo coletivo de que faz parte; e a soberania do
direito na soberania de um grupo privilegiado". O pensamento elitista de
Herculano é o mesmo que empolgava ao partido cartista. Antônio José Saraiva
[ibid.] sintetizou esse elitismo assim: "à soberania popular contrapõe-se
uma sociedade hierarquizada politicamente, em que o voto pertence à
aristocracia selecionada pelo censo: soberania da Razão ou do Direito era o
nome que se dava à soberania desta oligarquia".
Na base da concepção herculaniana sobre a
sociedade hierarquizada, encontramos duas tradições que inspiram o seu
pensamento, provenientes porém de horizontes diferentes. De um lado, achamos a herança liberal clássica de John
Locke, com a sua insistência na representação de interesses, na sociedade,
através de uma elite abençoada por Deus, no contexto da mentalidade calvinista:
os proprietários. Só que no caso de Herculano, que teoriza fora do contexto
calvinista, os simples proprietários são substituídos pelo mercador, o artista,
o industrial, o professor, o homem de letras, o proprietário urbano ou rural, o
cultivador, o capitalista, "todos esses atentados vivos contra a igualdade
democrática" tão combatida por Herculano. De outro lado, encontramos na visão hierárquica de Herculano
a inspiração organicista, que o leva a defender a idéia de umas classes médias
reguladoras da sociedade. Influência certamente haurida da leitura de Guizot.
Uma sociedade puramente igualitária conspira contra a realidade das coisas
humanas. A desigualdade é um fato normal da sociedade, porque decorre da
natureza orgânica que lhe é própria. Em que pese a visão organicista e
hierárquica da sociedade, não podemos desconhecer a valorização que Herculano
faz da soberania popular, expressada através das eleições.
De acordo com o providencialismo herculaniano,
existe uma norma absoluta ou arquétipo, que permanece no mundo das idéias, que
é superior às sociedades e independente das suas fases históricas e pela qual
devem ser aferidas as instituições e as ações dos homens. A idéia da justiça
transcendente e soberana insere-se no contexto dessa crença. "Acreditamos
na justiça - frisa Herculano - como verdade absoluta pela qual as sociedades
vão procurando aferir os seus atos à medida que se aperfeiçoam" [apud
Saraiva, 1976: 104]. É aqui que
Herculano desenvolve a sua teoria da soberania. A sociedade consegue realizar a
idéia de justiça, se fazendo representar moderadamente através das elites
ilustradas - que para Herculano identificam-se com as classes médias
portuguesas da sua época - mediante o voto censitário, as eleições indiretas e
o reconhecimento da monarquia como garantidora da estabilidade do Estado. As
classes médias estariam integradas pelos mais capazes. É a noção já elaborada
por Guizot de "cidadão capaz", pivô da sua teoria da soberania, como
destaca com pertinência Pierre Rosanvallon [1985: 121]. O poder é algo que
existe de fato na sociedade; o papel da soberania popular é justamente o de
tratar de reduzir ao mínimo o caráter despótico do poder, de forma que
transluza na sociedade a idéia da justiça. E só o sistema representativo
garante esse processo. A palavras de Herculano a respeito são taxativas:
"Acreditamos na razão humana indagadora das leis do justo, como fonte de
soberania. É por isso que queremos a verdade do sistema representativo, que
proporciona à razão os meios de se produzir e manifestar pela discussão, de ser
consagrada pela eleição, e de reduzir constantemente o poder de fato à
soberania de direito" [apud Saraiva, 1976: 106].
Herculano considera que para garantir a
liberdade do sistema representativo, o regime mais consentâneo é o governo
parlamentar. Além disso, é necessário
defender constantemente a imprensa e zelar pela pureza do sistema eleitoral. Na
geração contemporânea do nosso autor coube a um grande estadista, Mouzinho da
Silveira, pôr em prática muitas das idéias professadas por ele. Sobre Mouzinho,
escreveu Herculano em 1841: "Só havia um homem capaz de aplicar a
filosofia à política: era o homem que tornou impossível o regime absoluto em
Portugal, o senhor Mouzinho da Silveira" [apud Beirante, 1977: 50]. Num
ensaio publicado em francês, em 1856, quinze anos depois, Herculano refere-se
assim à obra do estadista: "Mouzinho fut un verbe, una idée faite chair:
il a été la personification d'un gran fait social, d'une révolution qui est
sortie de sa tête". Os seus relatórios como ministro da Fazenda não
propunham senão "la réligion du bien-être matériel du progrès
économique" [apud Beirante, ibid.]. O próprio Mouzinho, no seu testamento,
expressa a sua missão de estadista nestes termos: "Vim ao mundo em época
fertilíssima em reflexões e invenções, que devem mudar a face do mundo para
grande melhoria material e para melhor multiplicação do gênero humano"
[apud Beirante, ibid.]. O aspecto central da obra de Mouzinho consistiu em deitar
as bases para o surgimento, em Portugal, de uma classe média rica e capaz de
sustentar as instituições do governo representativo, dentro da mais clara
referência ao ideário dos doutrinários franceses. As reformas que Mouzinho
encaminhou e que empolgaram Herculano, dizem relação à supressão das ordens
religiosas que pretendiam se manter sobranceiras ao Estado, à eliminação do
papel-moeda para conter o surto inflacionário, à redistribuição das terras
favorecendo a produtividade, ao combate à exploração escravista nas colônias e
à luta contra a improdutividade do clero e da nobreza.
6) Crítica à
filosofia incrédula
Herculano não nega validade à filosofia.
Insurge-se, sim, contra o pensamento iluminista que, a partir de Voltaire,
desconheceu o fato religioso. Considera que essa filosofia vã é a responsável
direta pelas crises da sociedade européia ao longo do século XIX. Eis a forma
em que o nosso autor caracteriza a obra da filosofia incrédula: "Como a
florinha do campo, a alma por onde passou a procela da filosofia, esse
turbilhão transitório de doutrinas, de sistemas, de opiniões de argumentos,
pende desanimada e tristonha; e na claridade baça do cepticismo, que torna
pesada e fria a atmosfera da inteligência, não pode aquecer-se aos raios
esplêndidos do sol de uma crença viva" [apud Beirante, 1977: 65].
Herculano julga severamente as escolas que, a seu ver, deixaram em segundo
plano o aspecto religioso. A respeito, o nosso autor escrevia em 1838: "A
verdade! Que é a verdade? (...) Quem me dará uma resposta cabal? (...) Cada uma das escolas que perquire desde os
acesos partidários do prazer, os histriões de ferro, chamados Estóicos; desde os semicristãos Platônicos, até os semirepublicanos
Epicúreos, desde o pessimista Heráclito até o otimista Pangloss, passando pelo
justo meio do compensador Azaís, cada escola me aturde com a sua quimera
especial (...). Na terra, porém,
ser-nos-á totalmente defesa a Verdade? Creio que não" [apud
Beirante, 1977: 91].
Para o historiador português, só é válida a
obra da razão que se abre à fé. É o que Herculano expressa no seguinte texto:
"A crença da civilização devia ligar-se com esta: a guerra entre o
Evangelho e o Progresso era absurda: era guerra entre luz e luz, não entre luz
e trevas. Concordes a fé e o saber, a sua ação sobre os destinos das nações
brevemente será imensa e irresistível. É por isto, incrédulos, que vos não convém tentar outra vez
reconstruir o andaime podre do filosofismo cadavérico. Por vosso próprio interesse deixai pelas
tabernas sua derradeira estância; deixai-o pavonear-se na praça, mas não o
leveis (...) par o mundo imenso, solene, santo, das inteligências!
Resignai-vos, pois, em silêncio, na vitória intelectual do cristianismo contra
a filosofia da incredulidade" [apud Beirante, ibid.]. Levando em
consideração que a fundamentação da moral humana estruturou-se, segundo
Herculano, por via sobrenatural através da Revelação Bíblica, ele não tem inconveniente em duvidar da
capacidade da razão, lhe atribuindo impotência radical que só é superada pela
intuição mística, graça divina, que se constitui em única possibilidade para
atingir o Absoluto. Assim, Herculano vê impossível aceitar, tout-court, o ecletismo, que supõe a
capacidade da razão humana. Mas o nosso autor utiliza, no entanto, algumas
respostas desse sistema, para equacionar problemas concretos, como o
relacionado à interpretação do processo histórico, ou o que se refere à teoria
política do Estado ou à reforma literária.
O fundamental, do ângulo da epistemologia da
verdade, é reconhecer a Providência divina. Uma vez aceito este ponto de vista,
bem-vinda a razão iluminada pela fé e administrada pelas classes médias, postas
por Deus para garantir o feliz desfecho da história portuguesa. Herculano é um
audaz defensor da liberdade de imprensa que, sabe, beneficia a atuação das
classes médias, contra os radicais e os absolutistas. No seu belo opúsculo
intitulado A Imprensa, o nosso autor faz uma clara profissão de fé liberal
(como outrora fizera o precursor dos doutrinários, Benjamin Constant de Rebecque,
no famoso discurso que constitui o testamento ideológico do autor de Princípios
de Política) [cf. Constant, 1970]. O historiador português defende sem
meias tintas a liberdade de imprensa, pautada certamente pela defesa dos
interesses da média da opinião, ou seja, das classes médias, as chamadas a
dirigir a sociedade portuguesa pelo caminho do bem comum a todos os cidadãos.
Herculano frisa a respeito: "A liberdade de imprensa é um dogma, o
primeiro da religião política moderna, e para muitos até um axioma de
filosofia: uma potência essencialmente superior a todas forçosamente é livre.
Fique portanto dogma e axioma, porém entenda-se qual é o sentido que neste caso
cabe à palavra liberdade. (...) Não falamos aqui senão em relação à moral e à
política. A imprensa moderada produz a verdade e a animação para o bem; o
silêncio da imprensa ou o delírio frenético da imprensa, nublam a verdade, tiram a energia e o gosto do bem,
fazem que a opinião tornada falível, nem seja prêmio a bons e castigo a maus,
porque maus e bons a desprezam, como ela merece: quando se pode chamar e se
chama ladrão a todos, o que o é consola-se com a honrada companhia em que o
meteram; o que não era, talvez, e até por despeito, se decide a aproveitar os
prós do ofício, de que já lhe fizeram sofrer os percalços. A aplicação copiosa
e injusta da pena, quebrou-lhe o que ela tinha de doloroso, criou uma espécie
de impunidade, equivalente a uma mudez profunda da opinião. (...) A liberdade
de imprensa, como as demais liberdades, deve, portanto, ter a sua medida e esta
medida não pode ser outra senão a que naturalmente limita todas essas
liberdades para que possam coexistir em proveito de todos os cidadãos"
[Herculano, 1898e: 17-23].
Mas se a crítica à filosofia incrédula leva
Herculano a descartar os excessos do iluminismo na versão francesa, de outro
lado, em virtude do mesmo élan
liberal e antidogmático, o nosso autor é tremendamente duro para com o espírito
ultramontano, encarnado na atitude jesuítica, que utiliza as instituições
eclesiásticas para fortalecer uma proposta de dominação despótica. Herculano,
como outros católicos liberais do seu tempo (Tocqueville na França ou Rui
Barbosa no Brasil, por exemplo), não aceita o clericalismo no seio da sociedade
civil. Um trecho apenas para ilustrar essa feição do nosso pensador. No
opúsculo intitulado A reacção ultramontana em Portugal, ao analisar a perniciosa
presença do espírito jesuítico, Herculano escreve, em 1857, ao ensejo da
perseguição que lhe foi movida pelos jesuítas: "Onde vos dissemos, filhos
de Santo Inácio, que éreis incapazes de um assassínio moral? Onde vos dissemos que não podíeis minar
debaixo da terra como a toupeira, cortar a raiz de uma planta, destruir uma
existência literária? Onde que não
tínheis força para fazerdes um acervo dessa lepra de Job, que devora moralmente
tantos dos nossos homens públicos, e que todas as telhas do maior edifício da
capital não bastariam a raspar, para o atirardes contra um indivíduo? O que vos
dizíamos é que sois muito fracos, não diante de um homem que podeis ferir de
noite e pelas costas, mas diante do país, diante da razão pública, diante da
liberdade, a quem deveis tudo e que haveis traído vestindo a santa roupeta.
(...) O terreno pois da contenda é um terreno neutro, onde os homens de bem e
sinceros de todas as escolas políticas podem pelejar unidos como irmãos. A
guerra é contra a usurpação estrangeira e com o jesuitismo e ultramontanismo ad hoc de certo tipo de reacionários,
fezes de todos os partidos (...) O catolicismo, ainda o mais fervoroso, é
estranho à contenda. Não se trata hoje da crença que herdamos de nossos pais e
que devemos transmitir intacta a nossos filhos. Trata-se do direito. Trata-se
de manter os limites do sacerdócio e do império. Acima também do debate está o
sumo pontífice, o primaz da igreja católica, o primeiro entre os seus
coepiscopos. Impecável e santo perante os homens, enquanto espontânea e
individualmente não transpõe os limites em que circunscrevem a sua ação as
instituições eclesiásticas, cumpre-nos curvar a cabeça diante dele como chefe
visível da igreja, no exercício das suas legítimas atribuições. O que não somos
obrigados a aceitar é os erros e abusos dos seus ministros ou a deslealdade dos
nossos (...)" [Herculano, 1908:
7-15].
Herculano atribui papel importante à Igreja
portuguesa na formulação da média da
opinião no seio das classes médias, que devem dirigir o processo político.
Mas a voz que deve ser escutada é, fundamentalmente, a do Pároco de Aldeia (que significativamente é o título de um dos seus mais
importantes romances). O historiador português desconfia da cúria romana e de
tudo quanto simbolizar fidelidade política a um soberano além fronteiras.
Aceita a autoridade espiritual do Papa, nunca a sua ingerência em assuntos
políticos. António José Saraiva ilustrou muito bem a posição do nosso autor, no
seguinte trecho: "O alto clero e as ordens religiosas são peças essenciais
do mundo feudal, pois são eles que desfrutam os dízimos e outros direitos
feudais, e que dispõem dos chamados bens de mão morta, retirados da circulação
de capitais. A classe média dos párocos de aldeia não é economicamente
solidária com o antigo regime, vive, como qualquer trabalhador, das missas,
batizados ou casamentos que celebra, e, pormenor
que Herculano salienta, nada lucra com
os dízimos. Julgava-se possível um entendimento entre a burguesia clerical e a
burguesia econômica, política e cultural. Segundo a bela utopia de O
Pároco de Aldeia, competiria aos párocos divulgar a mensagem evangélica
tal como o liberalismo a concebia: a mensagem igualitária e fraternal, que
condenava os escribas e fariseus, que derruía em nome da justiça a exploração
do que trabalha pelo que não trabalha, que inspiraria a tolerância, que
fortaleceria as virtudes sociais, o amor da família, a morigeração, os hábitos
da caixa econômica. Insuflar um espírito novo nas antigas formas rituais,
valorizar o pároco a expensas do alto clero e utilizá-lo na difusão do
catolicismo liberal - tal parece ser o pensamento fundamental d' O
Pároco de Aldeia, o qual nos dá a chave da aparente contradição do
tradicionalismo e reformismo no pensamento religioso de Herculano"
[Saraiva, 1976: 76].
7) O
romantismo de Herculano em face do professado por Domingos Gonçalves de
Magalhães
Tentando reivindicar uma visão espiritualista
do homem, o ecletismo espiritualista de Magalhães, o maior expoente do
romantismo no Brasil, desempenha um papel similar ao representado pela obra de
Herculano em Portugal. Não cabe aqui uma exposição completa do pensamento de
Magalhães. Simplesmente procederemos, à maneira de conclusão deste ensaio, a
uma rápida comparação do pensador brasileiro com Herculano. Há nos dois autores
um ponto de partida comum: o afã de reivindicar nas obras literárias a
importância da fé na vida do homem, e a crença, profundamente enraizada, de que
só em Deus alcança pleno sentido a vida humana. Mas enquanto Herculano
desenvolve, a partir daí, uma concepção religiosa e não filosófica do mundo,
Domingos de Magalhães parte para um autêntico trabalho de cunho filosófico. A
respeito, escreve um dos mais importantes estudiosos brasileiros deste último,
Roque Spencer Maciel de Barros: "Magalhães responde filosoficamente à
questão que já suscitara como poeta: encontra, tão racionalmente quanto lhe é
possível, aquele fundamento religioso a que, como poeta, chegara pela fé... A
razão justifica a fé e aniquila a dúvida e o ceticismo" [Barros, 1973:
222]. Contrastando com a descrença herculaniana nos sistemas filosóficos,
Domingos de Magalhães fundamenta toda a sua obra teórica numa visão filosófica,
que deita as bases para uma concepção espiritualista do mundo, na qual possam se inspirar, por sua vez, a
justificação racional da liberdade, da moral e ainda da política, conforme
expressa no Prólogo à sua obra principal, Fatos do Espírito Humano. A
respeito, escreve Roque Spencer: "Só a filosofia - e naturalmente uma
filosofia verdadeira - pode dar, em plenitude, as razões do espiritualismo e
justificar a própria fé" [Barros, 1973: 222].
Em contraste com a fundamentação da conduta
humana no fato religioso cristão feita por Herculano, Gonçalves de Magalhães
baseará toda a sua visão da liberdade e da moral, numa análise filosófica inspirada em Cousin e
parcialmente em Malebranche e Berkeley. Magalhães tenta uma explicação do homem
em termos puramente espiritualistas, que negam qualquer valor substancial ao
mundo material, mesmo ao próprio corpo, já que o universo sensível só existe
intelectualmente em Deus, como pensamentos seus. O homem, preso no corpo, é
livre por ser espírito e adquire a conotação de ente moral justamente em
virtude dessa "resistência do corpo".
A moral de Magalhães, como a de Cousin, é uma moral do dever que
valoriza a intenção do autor e não o resultado do ato" [Barros, 1973:
220-221]. Há, no entanto, um traço comum à teoria herculaniana e à visão
filosófica de Magalhães: em virtude do fundo neoplatônico que anima, de longe,
os seus sistemas de pensamento, há a tendência, em ambos, a infravalorar o
mundo visível, bem considerando que por trás dele há uma idéia, dirigida em
última instância pela Providência divina (Herculano), ou bem identificando o
mundo sensível, sem mais, como
pensamento de Deus (Magalhães). Contudo, a diferença fundamental consiste no
fato já mencionado de Domingos de Magalhães valorizar a meditação filosófica,
enquanto Herculano a desvaloriza. Em relação a Magalhães é importante salientar que, de acordo com a
sua visão da moral do dever, há uma relação direta entre moralidade e
sociedade. O homem é moral porque inserto no corpo e, logicamente, na
sociedade. "Moralmente falando - escreve Magalhães - o ato é bom, justo e
belo, se serve para a conservação e perfeição da sociedade; e a intenção é pura
e meritória, se tende ao mesmo fim. A intenção é imoral, e seu mérito nenhum,
se o egoísmo, o amor próprio determinou o ato" [Apud Barros, 1973: 221].
BIBLIOGRAFIA CITADA
BARROS, Roque Spencer
Maciel de [1973]. A significação educativa do romantismo brasileiro: Gonçalves de
Magalhães. São Paulo: Edusp / Grijalbo.
BEIRANTE, Cândido
[1977]. A ideologia de Herculano: Da teoria do progresso da civilização às
reformas regeneradoras de Portugal. Santarém: Junta Distrital.
CALAFATE, Pedro [1990].
"Herculano (Alexandre)". In: Lógos, Enciclopédia luso-brasileira de
Filosofia. Lisboa / São Paulo: Editorial Verbo, vol. 2, pg. 1084-1093.
COELHO, António Borges
[1965]. Alexandre Herculano. Lisboa: Presença.
CONSTANT de Rebecque,
Henry Benjamin [1970]. Princípios de política. (Tradução ao
espanhol de Josefa Hernández Alonso; introdução de José Alvarez Junco). Madrid: Aguilar.
GUIZOT, François [1864]. Histoire de la Civilisation en
Europe depuis la chute de l'Empire Romain jusqu'a la Révolution Française. 8ª
edição. Paris: Didier.
HERCULANO, Alexandre
[1898a]. Opúsculos - Controvérsias e estudos históricos. 6ª
edição. Lisboa: Bertrand; Rio de Janeiro: Francisco Alves.
HERCULANO, Alexandre
[1898b]. Opúsculos - Questões públicas - Vol. I. 6ª edição. Lisboa: Bertrand; Rio de
Janeiro: Francisco Alves.
HERCULANO, Alexandre
[1898c]. Opúsculos - Questões públicas - Vol. II. 5ª edição.
Lisboa: Bertrand; Rio de Janeiro: Francisco Alves.
HERCULANO, Alexandre
[1898d]. Opúsculos - Questões públicas - Vol. IV. 3ª edição.
Lisboa: Bertrand; Rio de Janeiro: Francisco Alves.
HERCULANO, Alexandre
[1898e]. Opúsculos - Questões públicas - Vol. V. 3ª edição. Lisboa: Bertrand; Rio de
Janeiro: Francisco Alves.
HERCULANO, Alexandre.
[1908]. Opúsculos - Questões públicas - Vol. VI. Lisboa: Bertrand -
José Bastos.
HERCULANO, Alexandre
[1914]. História de Portugal. Lisboa: Aillaud & Bertrand, 8 volumes.
HERCULANO, Alexandre
[1927]. Fragmentos literários - Volume I. Rio de Janeiro: Sauer.
HERCULANO, Alexandre
[1987]. História da origem e do estabelecimento da Inquisição em Portugal. Lisboa:
Círculo de Leitores.
OLIVEIRA MARTINS
[1984]. Portugal contemporâneo. (Estudo introdutório de Moniz Barreto).
Lisboa: Europa-América, 2 volumes.
ROSANVALLON, Pierre [1985]. Le
moment Guizot. Paris: Gallimard.
SARAIVA, António José
[1976]. História da literatura portuguesa. 9ª edição. Porto: Porto Editores.
SARAIVA, António José
[1977]. Herculano e o Liberalismo em Portugal. Lisboa: Bertrand.
SERRÃO, Joaquim
Veríssimo [1977]. Herculano e a consciência do liberalismo português. Lisboa:
Bertrand.
SOVERAL, Eduardo
Abranches de [2002]. "Sobre as posições filosóficas, religiosas e
políticas de Alexandre Herculano". In: Revista da Faculdade de Letras do
Porto. 2ª série, no. 19 (2002): pg. 5-19.
STAËL Holstein, Germaine Necker Madame de
[1968]. De l'Allemagne. (Cronologia e
Introdução de Simone Balayé). Paris: Garnier Flammarion, 2 volumes.
STAËL Holstein,
Germaine Necker Madame de; Dom Pedro de SOUZA Holstein, conde de Palmella
[1979]. Correspondence. (Prefácio, introdução, comentários e notas a
cargo de Béatrix d'Andlau). Paris; Gallimard.
TOCQUEVILLE, Alexis de
[1977]. A democracia na América. (Tradução, prefácio e notas de Neil
Ribeiro da Silva). Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp.
TOCQUEVILLE, Alexis de [1988]. L'Ancien
Régime et la Révolution. (Prefácio, notas, cronologia e
bibliografia a cargo de Françoise Mélonio). Paris: Flammarion.
WEBER, Max [1944]. Economía y sociedad. (Tradução
ao espanhol a cargo de J. Medina Echavarría et
alii). 1ª edição em espanhol. México: Fondo de Cultura
Económica, 4 volumes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário