Comemora-se o 80º aniversário do jurista e pensador português Antônio Braz Teixeira. Com motivo dessa data, serão realizados, ao longo deste ano, em Portugal e no Brasil, vários eventos comemorativos em homenagem ao grande intelectual. Este texto constitui a minha contribuição para os eventos que estão programados, no Brasil, nos Colóquios que terão lugar em Mariana (MG) e no Rio de Janeiro (no Real Gabinete Português de Leitura).
Mais do que fazer uma exposição exaustiva
acerca do lugar que António Braz Teixeira ocupa no movimento da Filosofia
Portuguesa, apresentarei um balanço acerca de como ele entende a meditação
filosófica. A fim de ilustrar o tema central da minha exposição, desenvolverei
quatro itens: 1) Conceito de filosofia e de filosofias nacionais; 2) Caráter
mediador da antropologia filosófica; 3) A experiência religiosa e a corrente da
Filosofia Portuguesa e 4) A experiência jurídica e a filosofia do direito.
Concluirei destacando os aspectos mais marcantes do legado filosófico do nosso
pensador.
Conceito de
Filosofia e de Filosofias Nacionais
A filosofia não é para Braz Teixeira discurso
puramente abstrato, sem nenhuma relação com o homem concreto. Para ele, o
existencialismo e a fenomenologia deixaram claro que a meditação filosófica
abarca o homem na sua concreção histórica. A filosofia é, assim, lógos que surge no seio de uma nação,
fala uma linguagem, debruça-se sobre problemas específicos que desvelam o ser
humano. Essa contribuição dada pela filosofia contemporânea abriu as portas
para que o homem português, a quem se tinha negado num contexto racionalista a
vocação de pensar, descobrisse a sua identidade filosófica, traduzindo o viver
numa meditação projetada sobre a vida.
Mas se a Filosofia caracteriza-se pela sua
inserção na história, no entanto também devemos reconhecer o seu compromisso
com a verdade. Em relação a este ponto, escreve Braz Teixeira: "A
Filosofia não é, como os outros tipos de saber, um corpo de doutrina, um acervo
de conhecimentos ou um conjunto articulado de soluções ou de respostas, mas um
processo, uma actividade permanente de interrogação sobre o próprio saber, seu
valor e seus fundamentos. O que constitui a sua essência é a busca constante e
sempre recomeçada da verdade e não a sua posse. Não é um saber feito, que possa
transmitir-se e se vá adicionando, mas um conjunto permanente de interrogações,
nunca definitivamente respondidas em que cada resposta que o filosofar a si
próprio se dá é sempre uma resposta provisória, que se converte em nova
interrogação. Com efeito, enquanto a solução resolve, dissolve, elimina ou
suprime o problema, a resposta filosófica não é solucionante, deixando
irresoluto o problema e viva a interrogação. Daí que, diversamente do que
acontece com os restantes tipos de saber humano, a Filosofia seja, essencial e
radicalmente, interrogativa, problemática
e não solucionante".
A filosofia, para o pensador português,
possui esse caráter de irresolubilidade,
em virtude da sua dimensão aporética, que decorre da inadequação essencial
entre o ser e o pensar. Justamente porque a realidade transcende ao pensar,
aquela constitui-se, para o homem, em algo de misterioso, inesgotável pelo Lógos. Em relação a esse ponto, frisa o
nosso pensador: "A Filosofia é, assim, fundamentalmente, aporética, já que a sua actividade
interrogativa do real e do próprio pensamento a conduz à identificação e ao
tratamento das aporias, à verificação de que o pensamento e a realidade se não
identificam e de que nem tudo é pensável ou abarcável pela razão humana. É
precisamente daqui que surge a noção de
incognoscível ou de mistério, não
como o que contraria a razão ou o pensamento humano, mas como o que o excede,
ultrapassando a sua capacidade ou possibilidade de conhecimento ou compreensão.
Trata-se, pois, do domínio, não do irracional por defeito, por contrário à
razão, mas do irracional por excesso (Leonardo
Coimbra), do que, ultrapassando a razão, só é acessível por via mística, por
inspiração angélica ou por revelação divina"[Sentido e valor do direito].
O caráter aporético
do filosofar não invalida, antes pressupõe a capacidade da razão de apreender o
real numa primeira visão intuitiva, denominada por José Marinho de visão unívoca. Firma-se, a partir
desta, a dimensão teórica da filosofia. Assim caracteriza o nosso autor essa
dimensão: "Sendo a Filosofia pensamento reflexivo ou especulativo, e sendo
este actividade própria da razão, que
se exerce, discursivamente, através do raciocínio,
não pode esquecer-se, no entanto, que não só a razão humana se não garante a si
própria enquanto órgão de conhecimento ou de pensamento, pressupondo sempre a
sua actividade um prévio acto de crença,
por um lado na racionalidade do real e, por outro, na capacidade da razão para
se apreender a si e para compreender a realidade, como ainda, que o raciocínio
ou a actividade cognoscente da razão tem sempre como condição ou pressuposto
uma intuição ou uma primordial visão, assim como se nutre do outro da
razão, seja sensação, imaginação ou crença e das múltiplas formas de experiência, sendo, nessa medida, razão experimental, razão aberta ao outro de si, ao não racional,
tantas vezes erradamente confundido ou identificado com o irracional. Assim, em sua radicalidade ou como saber radical, a
Filosofia é sempre teoria, no seu
originário e tradicional sentido, isto é,
intuição intelectual, contemplação de
idéias, visão espiritual do invisível ou teoria do ser e da verdade. De igual
modo, a compreensão da realidade ou
do ser e da sua verdade que todo o pensamento filosófico procura alcançar
depende sempre de uma prévia apreensão
intuitiva, sensível ou trans-sensível, daquilo a que José Marinho chamou visão unívoca".
O caráter situado do filosofar, que o nosso
autor já tinha apontado na sua obra de 1959, A filosofia jurídica portuguesa
actual, é destacado de forma mais completa num dos seus últimos
escritos, a segunda edição de Sentido e valor do direito.
Repitamos as suas palavras, que constituem decantada expressão do pensamento de
Braz Teixeira nos últimos anos: "Actividade humana, a Filosofia é, como o
próprio homem, ser do tempo, radicada e dinâmica, interrogação permanente a
partir de uma situação concreta, de uma circunstância
definida, está indissoluvelmente ligada a uma língua, a uma tradição, é um
movimento espiritual num espaço-tempo que não é homogéneo e uniforme mas
múltiplo e diverso, como o ser individual de cada filósofo. Daí que, sendo
embora una na busca da verdade, a Filosofia seja múltipla e diversa na
variedade dos seus caminhos, pois, se são imutáveis os enigmas com que se
defronta, é sempre outro o movimento do pensamento que pensa e interroga,
pensando-se e interrogando-se também a si. Por outro lado, se a Filosofia é
actividade ou processo da razão que se interroga a partir de uma intuição ou
visão a que sempre regressa ou a que sempre se refere, está também sempre
condicionada pela língua em que o filósofo pensa, já que não há pensamento sem
palavra nem linguagem, ainda que este não se pretenda comunicar pela fala ou
pela escrita (...). Deste modo, não pode haver verdadeiro pensamento
filosófico, enquanto discurso racional, sem palavras nem linguagem".
Na trilha desta reflexão, a filosofia
reveste-se, no sentir de Braz Teixeira, das caraterísticas culturais da língua
em que está expressa, ganhando assim o colorido nacional em que se encontra
situada. Todo discurso filosófico refere-se, na modernidade, a esse contexto,
fora do qual sairia da história. Posto que expressa em língua nacional, a
filosofia reveste-se, em cada uma delas, de gêneros literários diversos. O
pensador português lembra, a respeito, que Julián Marías identificou catorze
formas literárias válidas do discurso filosófico ocidental. Isso testemunha a
riqueza da meditação filosófica, que é suscetível de ser vertida em múltiplas
formas de expressão, dependendo da personalidade e dos pendores literários de
cada pensador. Em relação a essa variedade, frisa Braz Teixeira:
"Diferentemente do que, muitas vezes, se diz ou do que uma análise
superficial poderia levar a concluir, a Filosofia não só não constitui um
género literário como não tem uma forma própria e única de exprimir o seu
discurso, quando adopta a forma escrita para comunicar o pensamento pensado
pelos filósofos. Na verdade, basta atentar com mediana atenção na história da
Filosofia ocidental, para concluir, de imediato, que esta tanto se tem
expressado através do poema ou da
forma poética (Parménides, Lucrécio, Nietzsche, Teixeira de Pascoaes),como do diálogo, de estrutura teatral ou não
(Platão, Cícero, Leão Hebreu, Berkeley, Leibniz, Leonardo Coimbra), do aforismo (Heraclito, Pascal, José
Marinho), como da máxima ou reflexão, geralmente de índole ou
intenção moral (Epicteto, Marco Aurélio, La Rochefoucauld, Matias Aires), da autobiografia (Santo Agostinho, Dom
Duarte, Descartes), como do ensaio
(Bacon, Locke, Maine de Biran, António Sérgio), do tratado (Aristóteles, Espinosa, Hume, Wittgenstein) como do comentário (Averróis, São Tomás de
Aquino, Pedro da Fonseca), da suma
(São Tomás, Pedro Hispano, Ockam), como do sistema
(Hegel, Comte, Cunha Seixas, Leonardo Coimbra)".
Caráter mediador da
Antropologia Filosófica
A antropologia filosófica, no sentir do nosso
pensador, ganhou um lugar de destaque na hodierna meditação ocidental. Isso em
decorrência da evolução das próprias ciências, que conseguiram se ver livres do
estreito cientificismo do século XIX, bem como do fato de a meditação
filosófica ter superado os limites do racionalismo, por força da crítica
vivificante ensejada pela fenomenologia, a filosofia dos valores e o existencialismo.
A antropologia centro-européia percorreu caminho diferente do trilhado pela
meditação antropológica em Portugal. Naqueles países ficou restrita à análise
fenomenológica e terminou dando ensejo à formulação de ontologias regionais. Em
Portugal, no entanto, graças especialmente à corrente da Filosofia Portuguesa,
a antropologia filosófica abriu-se a uma visão metafísica projetada sobre um
pano de fundo cósmico e escatológico, de que a meditação de José Marinho,
Álvaro Ribeiro, António Quadros, Afonso Botelho e Leonardo Coimbra são exemplos
vivos.
A filosofia, para Braz Teixeira, está situada
historicamente, em virtude do caráter temporal do homem. A dimensão ôntica
deste condiciona a sua meditação sobre o real. Ora, como o ser humano pensa fundamentalmente
em base aos problemas com que se defronta, a meditação filosófica está
condicionada por essa perspectiva problemática. A Antropologia Filosófica é,
destarte, a perspectiva mediadora entre a teoria, a prática e a dimensão
estética, estabelecendo, de outro lado, o nexo entre a natureza e o espírito.
Decorrente do valor especial conferido à Antropologia Filosófica, a experiência
constitui a porta através da qual podemos penetrar no interior da razão humana.
Haverá tantas áreas em que possamos nós, humanos, plasmar a nossa concepção de
mundo, quantas forem as possibilidades da experiência do mundo. O nosso
pensador considera que a revalorização do conceito de experiência constitui um dos grandes achados do pensamento
contemporâneo. Ela é, basicamente, dos seguintes tipos: estética, ética,
religiosa, científica e jurídica.
A experiência
religiosa e a corrente da Filosofia Portuguesa
O nosso autor dedica especial atenção ao
estudo de dois tipos de experiência, entre os mencionados: a religiosa e a jurídica.
Quanto à primeira, Braz Teixeira considera que relaciona-se com a vivência do mistério, da apreensão intuitiva do fato
de que há mais mundos do que este apreendido pela experiência sensível. A
religiosa constitui a experiência fundamental, já que ela permite superar o
estreito racionalismo, aderindo a uma concepção elevada de razão, aberta à
realidade na sua mais numinosa plenitude.
Dessa experiência, por outro lado, parte toda
a concepção da denominada Filosofia
Portuguesa. Eis a forma em que o pensador explicita o seu ponto de vista a
respeito: "Importa, antes de mais, partir de um conceito de razão que
exceda os limites de um racionalismo fechado e formalista, apoiado unicamente
nas ciências do mundo sensível e numa noção redutoramente empírica de
experiência, e se abra ao essencial e irrecusável valor e significado gnósico
da sensação, da intuição, do sentimento, da imaginação e da crença, reconheça
que há mais mundos para além daquele
que os sensos nos revelam e admita que a experiência humana assume múltiplas
formas, desde aquela em que se fundam as ciências, até à experiência estética,
que as figuras e formas simbólicas propiciam, à experiência ética, que
transcende a lei, norma e mandamento, para encontrar nos valores e nos
princípios o seu centro ou o seu objecto, e à experiência religiosa, que,
partindo do numinoso dos mitos, ascende à sublimidade do sagrado e do divino ou
se eleva à união mística. Necessário é, também, atender a que a mais autêntica
origem da interrogação filosófica se não encontra no espanto ou na admiração
perante a multiplicidade dos seres e a imensidão cósmica, pois que ambos são
ainda do domínio meramente psicológico e limitadamente humano, mas sim no plano
ontológico mais radical do enigma ou
do mistério, no qual e pelo qual todo
o ser e toda a verdade, em instantânea visão, simultaneamente, se ocultam e
patenteiam ao espírito do homem"[Deus, o mal e a saudade].
A partir do conhecimento do enigma ou do mistério forma-se em nós a idéia de Deus, que passa a se constituir
no núcleo que dá sentido a tudo quanto existe e deita os alicerces do
filosofar. A busca incondicional do absoluto constitui, no sentir de Braz
Teixeira, não apenas um tema de indagação teórica mas é, como já foi
salientado, a causa originante do filosofar. Diríamos mais: que a problemática
teodiceica é o leitmotiv das
preocupações existenciais do homem comum, bem como o ponto de partida para a
indagação filosófica. Isso constitui marca caraterística da cultura em
Portugal. "No português, escreve Braz Teixeira no seu ensaio intitulado O
problema do mal na filosofia portuguesa contemporânea, a ânsia
desmedida de absoluto, causa tão freqüente de seus sucessos e fracassos, a
apetência de regresso a uma perdida harmonia e perfeição, de que emerge a
saudade, como já D. Francisco Manuel o vira, choca-se dramaticamente com a
realidade brutal e agressiva do mal nos homens e no mundo. A possibilidade de
existência de Deus, suma Bondade e sumo Bem, e a realidade insofismável do mal,
eis o que, desde o plano do mais desatento viver quotidiano até ao da mais
séria e responsável especulação, é para ele causa de inquietação e
perplexidade. De tal atitude e problema dá sinal o seu pensamento, com tão
funda ressonância, desde a heresia priscilianista aos nossos dias, que por eles
acentuadamente se singulariza no quadro do filosofar europeu, como tem já sido
notado por alguns dos seus mais esclarecidos intérpretes".
O nosso pensador faz referência específica,
neste ponto, a Álvaro Ribeiro e José Marinho. Embora estes pensadores, bem como
outros importantes representantes da corrente da Filosofia Portuguesa (como
Leonardo Coimbra, Sant'Anna Dionísio, Antônio Quadros e Afonso Botelho) tenham
salientado o caráter religioso-metafísico do povo, inspirador da meditação
filosófica em Portugal, estudiosos de outras latitudes, em épocas passadas,
salientaram também essas caraterísticas, referindo-as ao homem peninsular.
Madame de Staël, por exemplo, na sua obra Dix années d'exil, tinha dito acerca
da Rússia que "(...) os laços da nação consistem na religião e no
patriotismo", tendo encontrado profundas semelhanças entre esse povo e os
ibéricos, ao ponto de dizer que os russos eram os "castelhanos do
norte".
A primeira conseqüência da adoção, por parte
da Filosofia Portuguesa, do mencionado ponto de partida teológico, é a crítica
à razão que pretendeu, sob a inspiração do racionalismo iluminista, se
constituir em juíza e senhora da verdade. A propósito, frisa Braz Teixeira:
"Como, porém, o problema de Deus é indissociável do problema do Logos, a
crítica filosófica à idéia tradicional da divindade é acompanhada por uma
paralela dissolução do conceito iluminista de uma razão clara e segura de si,
que recusa todo o negativo e todo o irracional, primeiro através da
interrogação sobre os limites da própria razão e sobre o seu saber de si, e,
depois, pela admissão progressiva do irracional que recusara, tanto do
irracional entitativo, como do irracional cognitivo, e, por fim, pela sua
abertura a outras formas gnósicas, como a intuição, a imaginação ou a
crença".
Em decorrência desta avaliação crítica da
razão, as questões antropológicas deságuam em questões teológicas, sendo o
problema do mal a indagação central da antropologia na Filosofia Portuguesa. No
contexto da crítica à tendência racionalista, a meditação portuguesa, no sentir
de Braz Teixeira, passa a se polarizar ao redor das seguintes questões: a idéia
de Deus, o problema do mal, o conceito de razão e as relações entre razão e fé,
filosofia e religião e filosofia e ciência. Se a meditação filosófica se
polarizou em Portugal em torno às questões teológicas, isso não significa,
contudo, que esteja fechada a porta para um diálogo criativo com a meditação
brasileira, claramente formulada numa perspectiva fenomenológica e crítica.
A experiência jurídica
e a filosofia do direito
A experiência jurídica constitui o outro tipo
de experiência que, junto com a religiosa, merece especial atenção do nosso
autor. Diferentemente desta, que se abre à escatologia e à transcendência, como
acabamos de ver, a experiência jurídica projeta-se sobre o mundo e sobre os
conflitos entre as pessoas. É definida por Braz Teixeira, no seu ensaio
intitulado Experiência jurídica e ontologia do direito, no qual o pensador
português sintetiza os aspectos essenciais da sua filosofia do direito, que
expôs de maneira sistemática na obra, já citada, Sentido e valor do direito.
Introdução à filosofia jurídica. Eis a definição de experiência
jurídica, no primeiro dos escritos mencionados: "A experiência jurídica
aparece-nos constituída por um conjunto, complexo mas unitário, de dados, de
que se destaca, em primeiro lugar, a sua estrutura
antinómica, a natureza ou dimensão conflitual das relações jurídicas, o
envolver uma questão prática, um problema referente à conduta, em que existe um
conflito entre diversos sujeitos, que carece de ser resolvido ou composto, de
ser satisfeito, de modo a obter a paz social. Este tipo particular de
experiência (...) revela-se constituído por dados que se referem não só a
pessoas e a realidades da vida ou coisas do mundo, como também a valorações, a
necessidades e pretensões, envolvendo questões concretas que é necessário
resolver ou decidir. É por isso que constituem dados imediatos da experiência
jurídica, por um lado, os conflitos de
interesses e, por outro, o critério
de valor - o sentido do justo e do injusto - a que se recorre para a
respectiva solução. E também aqui a sua estrutura antinómica se revela, agora
no confronto entre o sentimendo de justiça, que fornece o critério de valor em
que se baseia a solução dos conflitos e a necessidade de fundamentar
racionalmente essa mesma solução, de encontrar razões ou argumentos que a
justifiquem".
O nosso autor destaca o caráter cultural da realidade jurídica, criação
humana referida a valores, princípios ou ideais, inserida no contexto da
historicidade em que se desenvolve a vida do homem. Eis a maneira em que Braz
Teixeira sintetiza esse aspecto do direito, de forma muito próxima, aliás, a
como Miguel Reale interpreta essa realidade, no contexto do seu conhecido
culturalismo, que constitui o marco da teoria
tridimensional do direito. "Como realidade cultural, - frisa Braz
Teixeira - o Direito não pertence ao mundo físico nem biológico, em que impera
a causalidade e o determinismo, nem ao domínio psíquico, nem sequer ao dos
seres ideais, em que se situam as realidades lógicas e matemáticas, pois
enquanto estas são intemporais e abstractas, o direito é concreto, variável no
tempo e no espaço e, como realidade humana, é profundamente marcado pela
temporalidade e pela historicidade essenciais ao próprio homem. Como criação
cultural, o Direito não é um dado, uma realidade pré-existente que o homem
encontre no mundo ou na natureza, nem uma realidade estática, mas sim espírito objectivado, projecção
espiritual do homem, algo que está aí para ser pensado, conhecido e vivido e
cuja existência depende, por isso, da relação cognitiva e vivencial que o homem
com ele estabelece e mantém, a qual lhe dá vida e conteúdo e actualiza,
dinâmica e criadoramente, o sentido que nele está latente e lhe é conferido
pela referência a valores, princípios ou ideais".
Braz Teixeira considera que o Direito,
enquanto realidade cultural, objetiva-se em normas,
"constituindo uma ordem reguladora da conduta ou do agir humano na sua
interferência inter-subjectiva, na sua convivência ou na sua vida social";
refere-se, assim, à atividade prática do homem e não à atividade teorética e
pressupõe, fundamentalmente, a liberdade,
"porquanto só enquanto o homem é livre no seu agir, quando pode escolher o
seu comportamento e optar entre diversas condutas possíveis, tem sentido que se
lhe ordene que aja de certo modo e se responsabilize e puna pelo desrespeito
pela ordem recebida ou imposta. Assim, o seu domínio próprio é o da liberdade de agir, cujo exercício e
manifestação exterior regula e disciplina, visando estabelecer uma ordem nessa
mesma conduta, definida a partir de princípios, valores ou ideais que se
entende ou pretende deverem conformar o agir humano. Ao Direito, como realidade
cultural, é, pois, inerente um sentido
ou um conteúdo axiológico, uma
relação entre a liberdade e determinados valores, princípios ou ideais".
Importante contribuição dá Braz Teixeira à
reflexão acerca da forma em que são atualizados os valores no contexto da
experiência jurídica. Nesse particular, atribui grande importância ao papel do
magistrado, aquele que tem a missão de tornar vivo o valor da justiça. O
Direito, de outro lado, considera nosso autor, tenta regular ou ordenar a
conduta relacionada à condição social do homem,
às relações com os outros homens e com as coisas, "na medida em que
estas últimas relações possam interessar ou afectar os outros". O Direito
possui, portanto, o caráter de realidade
social e de bilateralidade, ao
envolver as relações interpessoais, "implicando direitos e deveres de uns
perante os outros". O Direito é, além disso, uma realidade social heterónoma, "uma vez que a regulamentação ou
a ordenação da conduta que se propõe estabelecer é imposta do exterior aos
sujeitos, por um outro sujeito dotado do poder de estabelecer e impor
critérios, regras ou normas de conduta ou de comportamento".
Na análise que o nosso autor realiza do
Direito como ordem normativa ressaltam, de um lado, a sua extensa e profunda
cultura jurídica e, de outro, o sábio equilíbrio de quem muito refletiu sobre a
problemática humana do ângulo da solução dos conflitos à luz do ideal de
justiça. Além dos seus clássicos estudos no terreno da filosofia do direito, é
conhecida, também, a importantíssima contribuição dada por Braz Teixeira no
terreno do direito fiscal e tributário, ou no da teoria do Estado,
especificamente no que diz relação à guerra e ao papel das corporações. Não vou
me alargar mais na análise deste aspecto do pensamento de Braz Teixeira.
Gostaria de destacar apenas que, no terreno da historiografia das idéias
sociais e jurídicas, espelha-se de modo claro a sensatez e o equilíbrio que
animam a reflexão do nosso pensador, bem como a sua indiscutível atualização,
segundo transparece no seu ensaio intitulado A justiça no pensamento
contemporâneo. Outras comunicações neste encontro destacarão com mais
profundidade e pertinência a importante contribuição de Braz Teixeira neste
terreno. Chamarei a atenção, finalizando este item, para a concepção de Braz
Teixeira acerca da sociedade como pluralidade de interesses em conflito,
regulados pelo Direito na busca do bem comum, preservando a liberdade e à luz
do valor justiça.
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