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domingo, 3 de dezembro de 2017

ORIGENS DA QUESTÃO SOCIAL NO BRASIL, SEGUNDO ARSÊNIO EDUARDO CORRÊA

Capa da obra de Arsênio Eduardo Corrêa intitulada: Primórdios da questão social no Brasil (Apresentação de Antônio Paim. Campinas: CEDET, 2016, 262 pág.).

É falso que a questão social começou a ser equacionada no Brasil por Getúlio Vargas (1883-1954). O líder são-borjense só procedeu a fazer uma consolidação das leis já existentes, colocando-as no contexto autoritário ensejado pela Segunda Geração Castilhista, que deu lugar ao varguismo. Mas a questão social começou a ser debatida - num clima democrático - já no início do ciclo republicano. É o que mostra o estudioso das questões sócio-políticas da República nos últimos decênios, Eduardo Arsênio Corrêa, diretor executivo do Instituto de Humanidades em São Paulo.

Na obra intitulada: Primórdios da questão social no Brasil (Apresentação de Antônio Paim, Campinas: CEDET, 2016, 262 páginas), Arsênio mostra de forma clara como se formularam as primeiras políticas sociais no Brasil ao longo do século XX. A obra consta de seis capítulos, assim distribuídos: I - O nascimento da seguridade social. II - O embasamento teórico da questão social: Leonard T. Hobhouse. III - A atuação da bancada reformista na Câmara nas primeiras décadas do século XX. IV - Rui Barbosa e a questão social. V - O encaminhamento autoritário nos anos trinta do século XX. VI - Alternativa teórica não-autoritária. A obra apresenta, em anexo, o texto completo do Projeto do Código do Trabalho de 1917.

Na Apresentação da obra, Antônio Paim frisa que a figura mais importante para compreender o surgimento da questão social na República é o grande estudioso Evaristo de Moraes Filho (1914-2016). A propósito, Arsênio Eduardo Corrêa destaca o seguinte: "A sobrevivência de legislação trabalhista anacrônica - alheia às profundas mudanças ocorridas no mundo do trabalho em decorrência dos avanços da tecnologia -,  bem como o encaminhamento (paternalista) dado pelos governos petistas à Rede de Proteção Social, a que o país vem se dedicando desde a segunda metade do século passado, proporcionam grande atualidade aos estudos dessa questão efetivados por Evaristo de Moraes Filho. Longevo (comemoramos os seus 100 anos no ano passado) e profundo, a parcela de sua obra dedicada ao direito do trabalho corresponde a instrumento definitivo e eficaz para nortear a sua imprescindível e sempre postergada modernização. A par disto, facultou-nos ampla evidência de que, nessa matéria, o país trilhava um caminho muito próximo daquele seguido pelos países europeus industrializados, especialmente a Inglaterra" (p. 7).

Segundo Evaristo de Moraes Filho, efetivamente, quando a Revolução de 30 sobreveio, guindando ao poder o jovem ex-deputado e ex-ministro gaúcho Getúlio Vargas, os traços essenciais das nossas políticas sociais já tinham sido deitados, de forma democrática, pelo Parlamento brasileiro. Paim cita, para provar essa assertiva, texto de Evaristo, tirado da sua obra intitulada: As tendências atuais do direito público (Rio de Janeiro: Forense, 1976): "Quando eclodiu a 3 de outubro (de 1930), encontrou a revolução em vigor cerca de uma dúzia de leis trabalhistas, numerosos projetos de leis do Congresso Nacional, inclusive um Código do Trabalho; a reforma constitucional de 1926, dando competência privativa à União para legislar sobre o trabalho; o Brasil já filiado à OIT desde a sua fundação; a Comissão de Legislação Social, na Câmara, desde 1918. Grande era o número de entidades sindicais, com as mais variadas e às vezes pitorescas denominações. O movimento social, mormente a partir de 1917, era intenso e atuante, com greves, violências, reivindicações, expulsão de líderes estrangeiros e prisões de toda ordem. Funcionavam ou haviam funcionado os Partidos Comunista e Socialista, com publicações próprias e representantes no Congresso. Da agitação participavam intelectuais, jornalistas, escritores, professores, com decididas tomadas de posição, revolucionárias ou reacionárias, mas tudo significava vida e presença. Não foi um país morto e parado que o movimento de 30 surpreendeu, muito pelo contrário" (p. 8-9).

Os intelectuais e os políticos da República Velha não estavam desatrelados dos avanços das políticas sociais formuladas na Europa e nos Estados Unidos. Rui Barbosa, por exemplo, segundo frisa Paim na Apresentação da obra, conhecia em profundidade o teor das propostas sociais do pensador inglês Leonard T. Hobhouse (1864-1929), notadamente na obra intitulada: Liberalism (1911), que forma parte do acervo da biblioteca da Casa Rui Barbosa, com anotações do próprio Rui. Hobhouse, lembra Paim, "participou ativamente do grande debate, ocorrido na Inglaterra, a propósito das primeiras leis relacionadas à segurança social, promulgadas entre 1906 e 1914, durante o governo de Lloyd George (1863-1945)" (p. 8-9).

"As Trade Unions" - frisa ainda Paim na sua Apresentação - "haviam se decidido pela criação de seu próprio partido político em 1900, denominando-o Partido Trabalhista, cujos representantes chegaram ao Parlamento, nessa fase inicial, na legenda do Partido Liberal. Sem embargo, lutaram denodadamente no sentido de que essas primeiras leis se limitassem a beneficiar aqueles que pertencessem aos sindicatos. Hobhouse destacar-se-ia entre aqueles que propugnaram pela universalização daqueles direitos". 

Arsênio Eduardo Corrêa analisa na sua obra o mencionado momento histórico, em especial a obra de Hobhouse, e  considera que se trata da consolidação democrática da questão social. Deste modo, Arsênio efetiva uma importante contribuição ao enriquecimento da abordagem feita por Evaristo de Moraes Filho. Paim conclui a respeito: "(...) nessa mesma linha de ampliação e profundamento das pesquisas de Evaristo de Moraes Filho, levantou minuciosamente a atuação da bancada reformista na Câmara dos Deputados naquelas primeiras décadas do século XX. Como não poderia deixar de ser, resume o essencial da argumentação de Rui Barbosa" (p. 9). De fato, Vargas, inspirado pelo Castilhismo, tentou uma "incorporação do proletariado à sociedade", nos moldes verticais apregoados por Comte. Assim, como frisa Paim na obra de Arsênio Corrêa, "o encaminhamento autoritário dado por Vargas à legislação do trabalho acha-se caracterizado de forma consistente e clara" (p. 9).

O que mais se destaca na obra de Arsênio, no entanto, é a ênfase dada pelo autor às concepções da questão social efetivadas do ângulo democrático por uma série de empresários e homens públicos não suficientemente estudados no nosso meio. A respeito, escreve Paim na Apresentação: "Na linha de enriquecer o legado de Evaristo de Moraes Filho, Arsênio Eduardo Corrêa abordará o entendimento de outras personalidades cuja obra constitui o que denomina alternativa teórica não-autoritária.  Se tivéssemos seguido o seu alvitre, proporcionaria ao país arcabouço jurídico diferente do que viria a eternizar-se. Este revelaria flexibilidade na subseqüente modernização. São estes os autores estudados no contexto brasileiro: Jorge Street (1863-1939); José Maria Belo (1885-1959) e Armando de Sales Oliveira (1887-1945)" (p. 9-10). Mas, antes, Arsênio apresenta o pensamento social de Rui Barbosa (1849-1923), qualificando-o de precursor do pensamento social de inspiração liberal.

Destacarei os principais conceitos do autor no que se refere aos autores por ele estudados. Em relação ao núcleo do pensamento social de Lloyd  George, frisa Arsênio: "A assistência social na Inglaterra era prestada em sua maioria por entidades privadas; as denominadas Fiendly Societies exerciam um papel relevante; com grandes fundos acumulados por doações e contribuições de seus associados. (...) A novidade introduzida por Lloyd George foi a participação do Estado na assistência social inglesa, que não tinha objetivo de substituir tal procedimento, e sim complementá-lo" (p. 36-37).

Para Arsênio, dois homens públicos foram essenciais na formulação do pensamento social inglês, no âmbito do liberalismo: William Gladstone (1809-1898) e John Stuart Mill (1806-1873). Em relação ao primeiro, frisa:  "Gladstone era considerado um político conservador até que enfrentou a Câmara dos Lordes no que tange à emancipação financeira da Câmara dos Comuns, tendo sido o grande vencedor. Depois lutou pela extensão do sufrágio, tornando-se a representação que hoje (...) a Inglaterra possui. No que tange à doutrina econômica, adotou a escola de (Richard) Cobden (1804-1865) [considerado na Inglaterra como o maior economista liberal do seu tempo]; não tinha simpatia pelo novo unionismo, nem pelas ideias socialistas que apareceram no final do século XVIII, e que se constituíam em uma grande força de oposição à sua política. Gladstone tinha uma paixão pela justiça, tendo dedicado sua vida a combater os tirânicos. A política de Gladstone pode ser definida como antítese das de Maquiavel ou Bismarck. Não admitia o jargão de que razão de Estado pode justificar qualquer coisa.. Para ele, além de zelar pelos bens materiais do Estado, o estadista deve zelar pela honra da Nação. Entendia ser esta uma atribuição do patriota, que também devia zelar pelos oprimidos e lutar por um regime de plena liberdade" (p. 56-57).

Em relação à obra de John Stuart Mill, Arsênio Eduardo Corrêa frisa: "Foi uma força moral; não teve a vida prática de Gladstone, mas deixou uma doutrina e transitou pelo antigo e o moderno Liberalismo. Sua doutrina foi considerada por Hobhouse como o melhor ideário do Socialismo Liberal. Não admitia que a propriedade pública fosse importunada por nenhum direito individual. No fim da vida continuava descontente com a estrutura social existente na Inglaterra, não se conformando (com) que a maioria da população se encaminhasse para ser assalariada, enquanto uma minoria vivia de investimentos. Propunha um sistema de cooperação voluntária, onde o indivíduo trabalharia para si e para a Nação. (Segundo Mill) a liberdade não é simplesmente a restrição legal. A tirania pode existir no simples costume social, na lei, no governo (...)" (p. 57).

O estudioso que inspirou as teorias sociais inglesas, Leonard T. Hobhouse, tinha uma concepção do Liberalismo fortemente ancorada na defesa das liberdades e levava em consideração, também, a justiça social. Inspirava-se, sem dúvida, nas reformas efetivadas por William Gladstone e nas reflexões de John Stuart Mill, tendo incorporado assim ao credo liberal as questões da democratização do sufrágio e da representação. 

Segundo Arsênio Eduardo Corrêa, o fulcro da concepção do Liberalismo segundo Hobhouse deveria ser centrado no seguinte contexto: "O desenvolvimento do Liberalismo deve partir do pressuposto de que não deve aceitar, de antemão, nenhum fato consumado, nenhum direito de propriedade inamovível. Acrescenta que devemos aprofundar os estudos sobre tudo que ocorre na sociedade para podermos descobrir como devemos proceder a fim de garantir que todos tenham um trabalho digno e uma remuneração compatível com sua capacidade. Não devemos admitir que nenhum homem prospere à custa de outros homens; para tal devemos ser contrários a qualquer tipo de monopólios (...)" (p. 56).

Em relação aos brasileiros que se debruçaram sobre a questão social, Arsênio Eduardo Corrêa destaca, em primeiro lugar, a figura de Rui Barbosa. No sentir de Arsênio, Rui propôs o equacionamento da questão social do ângulo do liberalismo, na versão democrática pensada por Stuart Mill e Alexis de Tocqueville (1805-1859). Eis a forma em que é sintetizado o seu pensamento em matéria social: "O que Rui propunha era que houvesse garantia legal contra os abusos do capital em relação ao trabalho. A escravidão foi abolida; portanto restituiu-se a condição humana de parte da sociedade brasileira, na medida em que atentava contra a ordem moral. Agora propunha o desenvolvimento da classe trabalhadora, incluindo-a no consumo, integrando-a na vida cultural. Com isso certamente o país ganharia um contingente de pessoas que ajudariam a formar uma sociedade melhor, mais rica em todos os sentidos. Como detentor dos méritos de ter sido abolicionista, julgava-se e era certamente portador de todas as qualidades para defender e representar o operariado e também o resto da sociedade. É necessário lembrar que Rui era um velho liberal, atualizado naquilo que de melhor ocorria nos países desenvolvidos. Mais precisamente, na Inglaterra, onde, graças a Lloyd George, já existia uma legislação avançada em favor do operariado inglês, dando início àquilo que depois veio a ser conhecido como estado do bem-estar social. Portanto, além de ter qualidades pessoais, intelectuais e morais, tinha conhecimento do que era mais atual e visava dotar o país de uma legislação social atualizada. Rui não era socialista. Entendia que o socialista defendia uma teoria. A teoria defendida, como todas as teorias partidárias, possui o verdadeiro e o falso. É um erro, dizia, deixar a causa operária na dependência do sistema socialista. Rui aderiu à causa do operariado, sem, entretanto, aderir ao socialismo" (p.  107-108).

Em segundo lugar, Arsênio Eduardo Corrêa detêm-se na figura do médico e industrial carioca Jorge Street, que fixou residência em São Paulo. Ele não deixou uma obra teórica. Mas a sua participação, no meio empresarial, no sentido de destacar a importância da questão social, deitou as bases para a formulação de políticas sociais acolhidas pelos empresários, levando em consideração as particulares condições da economia do país. Para Street, o empresário deveria participar ativamente da discussão e das propostas de legislação que atendessem às necessidades dos operários, levando em consideração dois fatores: em primeiro lugar, os direitos dos trabalhadores e as suas legítimas reivindicações; em segundo lugar, a saúde econômica das empresas que garantiam o sustento tanto de empresários quanto de trabalhadores. As questões relativas à justiça social, portanto, não deveriam ficar relegadas aos teóricos ou aos políticos. Delas deveriam participar ativamente também os empresários, ao lado dos sindicatos de trabalhadores. Por causa dessa preocupação social, Street terminou sendo considerado, por alguns empresários, como liberal demais em questões sociais.

Não há dúvida, destaca Arsênio, de que Street foi um empresário claramente comprometido com as políticas sociais. O fato de ele ter participado do grupo que criou a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP) fez com que a sua influência constituísse ponto marcante na história econômica do Estado de S. Paulo e do Brasil. Street chamava a atenção para a complexidade de que se revestia a questão social. Múltiplas variáveis deveriam ser levadas em consideração: fixação da jornada de trabalho em termos que atendessem às necessidades do país e às reivindicações dos assalariados; fixação dos limites etários do trabalho infantil; política salarial realista; fixação das linhas mestras da questão previdenciária para os trabalhadores; discussão acerca do direito de greve, etc. Arsênio complementa a sua exposição do pensamento e da obra de Street com as seguintes palavras: "Foi um dos primeiros brasileiros a defender o que hoje denominamos de licença-maternidade. Defendeu o direito de greve e que esta não era caso de polícia. Propugnou pelo reconhecimento dos sindicatos, a implantação do contrato coletivo de trabalho; enfim, antes do final da segunda década do século XX foi defensor de uma legislação trabalhista realista, adequada ao emergente processo industrial brasileiro" (p. 173).

Em terceiro lugar, Arsênio Eduardo Corrêa estuda a obra de José Maria Belo. Pernambucano de origem, tinha ampla formação humanística e conhecia perfeitamente os meandros do Parlamento brasileiro, tendo trabalhado como funcionário do Congresso e, depois, tendo-se eleito para a Câmara dos Deputados e para o governo de Pernambuco (no quatriênio 1930-1934). Não conseguiu, no entanto,  tomar posse em virtude da Revolução de 30. José Maria Bello deixou-nos alentada série de obras em que registra a riqueza dos debates em torno às questões sociais que tomaram conta do palco político da República Velha. Alguns dos escritos em que o autor historia esse período são: Estudos Críticos (1917), Rui Barbosa e escritos diversos (1918), À margem dos livros (1922), Panorama do Brasil (1936) e História da República (1940). 

Arsênio Eduardo Corrêa sintetiza da seguinte forma a linha historiográfica do autor: "Os escritos de José Maria Belo refletem com bastante propriedade as dificuldades enfrentadas pelos liberais brasileiros ao longo da República. No período que decorreu da Proclamação da República até 30, a liderança liberal esteve perdida em matéria de teoria da representação. No período imperial não havia dúvidas quanto à natureza da representação política. A elite sabia que a representação era de interesses. O processo de democratização do Sistema Representativo diz respeito justamente ao reconhecimento do direito de ser representado. Este, na fase inicial, limitou-se à classe proprietária. No Brasil, a reforma eleitoral da década de 1880 inicia a flexibilização desse princípio, em curso na Inglaterra, e que desembocaria no sufrágio universal. O início do processo democrático se faria com a incorporação de outros grupos de interesses. Semelhante diretriz está claramente fixada na Lei Saraiva de 1881. Com a República, essa discussão saiu de pauta" (p. 187).

A maior contribuição de José Maria Belo no que tange às políticas sociais foi a seguinte, segundo Arsênio: "(...) Nos parece que na década de 30, José Maria Belo se apercebeu que a bandeira da questão social não poderia ser apropriada pelo autoritarismo, na medida em que colocava em risco a própria democracia. Essa sua percepção o coloca na vanguarda do pensamento liberal dos anos 30. Em Panorama do Brasil menciona o 'New Deal'  de Keynes; John Dewey, que entusiasmado com o encaminhamento dado pelos liberais à questão social, denominava-o de 'renascente liberalismo' " (p. 189).

A crítica principal feita por José Maria Belo ao longo ciclo getuliano centrava-se em dois aspectos: de um lado, no fato de o autoritarismo da Segunda Geração Castilhista ter tratado o Brasil como um bloco homogêneo, desconhecendo as variações regionais; de outro, ao fato de Getúlio ter sumariamente desconhecido a agricultura, concentrando toda sua ação modernizadora no desenvolvimento da indústria. 

Ora, esta era justamente a crítica que um liberal da talha de Eugênio Gudin (1886-1986) endereçava ao Estado getuliano, ao ensejo da polêmica sustentada pelo economista liberal com o também economista Roberto Simonsen (1889-1948), que somente pensava no desenvolvimento da indústria como meio para a modernização do Brasil, esquecendo o agro.

Arsênio Eduardo Corrêa sintetiza da seguinte forma as críticas de José Maria Belo: "O governo do Sr. Getúlio Vargas, segundo Belo, deveria estimular o cooperativismo, além de ampliar o crédito agrícola, moeda de produção indispensável. Essas medidas, se implementadas, mudariam [a realidade da economia]. Segundo o presidente: '(...) a terra brasileira deixará de ser o que disse o Sr. Getúlio Vargas, em discurso no Recife: um valor indescontável (...)'. Outros aspectos importantes da questão econômica são o funcionamento do mercado, os meios de transporte e o financiamento da produção, levando-se em conta a imensidão do território nacional. Dado a diversidade de regiões, bem como a diversidade de produção, o problema do proletariado rural deve ser adequado no tempo e no espaço, para que, de um lado, melhore seu padrão de vida e, de outro, não se torne um óbice ao próprio desenvolvimento daquela produção e distribuição de bens. (...). A clareza do raciocínio de Belo não deixa dúvida, dar a cada um o que é possível, no momento possível. Essa frase pode parecer óbvia, mas nossos governantes têm-se esquecido dela, criando legislações que, logo que outorgadas, são desrespeitadas por não serem viáveis no mundo real" (p. 208-209).

Em quarto lugar, Arsênio estuda a obra do paulista Armando de Sales Oliveira, que se firmou como a mais importante liderança liberal entre meados dos anos trinta e a primeira parte da década de 40. Engenheiro de formação, concentrou a sua atividade política na defesa do governo representativo e do respeito às instituições democráticas, fato que o levou a se ir distanciando progressivamente das lideranças da Revolução de 30. Após o movimento revolucionário paulista de 32, foi nomeado interventor em São Paulo, cargo que desempenhou entre 1933 e 1934. Foi eleito pelas forças liberais em 1935 como governador de São Paulo e terminou o seu mandato no ano seguinte, quando deixou o cargo para se candidatar às eleições presidenciais, em nome da oposição ao governo Vargas. Ao ensejo da decretação do Estado Novo, Armando de Sales foi preso e exilado do Brasil, encerrando assim a sua brilhante trajetória como representante dos ideais libertais em face da questão social que passava, infelizmente, a ser equacionada nos termos puramente estatizantes das reformas trabalhistas de Vargas, efetivadas no início dos anos 40.

Na passagem pelo governo de São Paulo, Armando de Sales Oliveira concentrou o seu trabalho em duas frentes: desenvolvimento de uma efetiva política para reforçar o ensino primário e secundário no Estado, tendo passado os grupos escolares, na sua gestão, de 514 para 605 e tendo criado nada menos do que 3.300 escolas rurais. O ensino secundário viu-se também ampliado tendo passado as matrículas de 1.443 (em 1930) para 9.412 (em 1936). Além disso, Sales Oliveira participou da fundação da Universidade de São Paulo. No terreno da imprensa, formou parte do grupo que alavancou o jornal O Estado de S. Paulo, nos anos 30. 

Quanto às crianças que ainda não tinham chegado à idade escolar, Sales de Oliveira criou os famosos Parques Infantis, que lembram os hodiernos "Céus"  ou Parques-Biblioteca (com que o governo paulista atende às comunidades mais carentes, na trilha das ações sociais desenvolvidas pelas prefeituras de Bogotá e Medellín, na Colômbia). "Dentro desses parques - frisa Arsênio - instalou recreação, assistência médica, assistência social, e com um inquérito de como vivia a criança, quais as condições higiênicas (...). E caso fossem identificadas quaisquer moléstias, deveriam tratá-las" (p. 221).

A segunda frente em que trabalhou Armando de Sales Oliveira foi a da modernização da infraestrutura elétrica do Estado de São Paulo, fator que se tornou decisivo para a aceleração da atividade econômica desenvolvida pelas indústrias privadas nos anos subsequentes.

Na trilha da valorização da representação política, Sales de Oliveira propugnava pela formação de Partidos modernos, que respondessem às demandas da sociedade com programas claros e objetivos.

Arsênio Eduardo Corrêa assim caracteriza a gestão pública de Sales de Oliveira, enquadrando-o como um dos grandes estadistas liberais do período: "Os avanços legislativos resultariam de gestões políticas a serem levadas ao mundo político pelos partidos nacionais. Portanto a demanda social seria canalizada pelo partido político, e quando das eleições a população escolheria a proposta mais adequada àquilo que a maioria desejasse. O Estado não seria um criador de obstáculos para o desenvolvimento da economia, e sim um sinalizador de rumos (...) ditados pela sociedade e pelo desenvolvimento do mundo. A formação de uma elite intelectual era também uma de suas preocupações. O trabalhador intelectual desenvolve um tipo de trabalho que proporciona uma síntese à nacionalidade. Daí seu entusiasmo pela universidade, tanto que foi fundador da Universidade de São Paulo (USP). Lamentamos que um administrador desse quilate não tenha chegado à Presidência da República, pois possuía o que de mais moderno havia naquele momento, e nos privamos desse avanço" (p. 228).

Paim destaca, na Apresentação, este trecho da conclusão a que chega Arsênio Eduardo Corrêa na sua pesquisa: "Havia alternativas que não foram adotadas. O grupo no poder, de tendência autoritária, acreditava estar de posse de uma fórmula eficaz de eliminação da luta de classes, subordinando os sindicatos à tutela do Estado, colocando-os ao serviço do governo. Nunca é demais lembrar que o conflito social é inerente ao próprio processo, sendo algo saudável, enquanto os sindicatos ocupam um lugar especial no jogo democrático" (p. 10). 

A obra de Arsênio Eduardo Corrêa que ora resenhei, deixa claro que não foram os autoritários do ciclo varguista os primeiros que equacionaram a questão social no Brasil. Antes da Revolução de 30, como foi exposto, já tinham sido formuladas esclarecidas análises dessa questão, e tinham sido apresentadas soluções criativas, de cunho liberal democrático.

3 comentários:

  1. Uma história do Brasil absolutamente desconhecida, pois que obscurecida pela versão marxista dominante nas últimas três gerações, inclusive na própria USP, criada por Armando Salles de Oliveira. Fui beneficiário de um “parque infantil” nos anos 1950, sem nunca ter sabido que se tratava de criação de ASO. Grato a Arsênio Corrêa por revelar a verdadeira história, e a Ricardo Vélez-Rodríguez por dissemina-la.

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  2. nossa, bem interessante! REPLICANDO! MAM

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