O padre jesuíta Francisco Suárez (1548-1617), figura central da Segunda Escolástica ibérica. |
Recordar Francisco Suárez consiste também em recordar que a civilização ocidental da liberdade sob a lei não começou com as ideologias revolucionárias do século XVIII.
Na passada quarta-feira, teve lugar no Instituto de Estudos Políticos da
Universidade Católica um Colóquio sobre o 4º centenário da
morte de Francisco Suarez, promovido por Manuel Braga da Cruz e Pe.
António Vaz Pinto, com o apoio da Companhia de Jesus e da Santa Casa da
Misericórdia de Lisboa. Na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, terá
lugar esta semana um Congresso sobre o mesmo tema.
O nome de Francisco Suarez poderá hoje ser pouco conhecido, ou mesmo
desconhecido, entre nós (e seria talvez interessante refletir porquê). Mas a
verdade é que se tratou de um dos mais célebres filósofos do seu tempo — e
acontece que está sepultado na Igreja de S. Roque, no Largo da Misericórdia, em
Lisboa (onde o Colóquio do IEP-UCP terminou com uma Missa celebrada por Pe.
António Vaz Pinto).
Francisco Suarez fez parte da chamada Escola de Salamanca e ensinou
também na Universidade de Coimbra. Nas convencionais histórias do pensamento
político ocidental, é costume recordá-lo como um precursor das doutrinas do
contrato social que seriam mais tarde desenvolvidas por Thomas Hobbes e John
Locke, bem como por Jean-Jacques Rousseau.
Há certamente muito mérito em recordar Suarez no contexto das doutrinas
do contrato social — isto é, no contexto das doutrinas que limitaram o ‘poder
divino’ dos reis por recurso a alguma forma de consentimento dos governados
(frequentemente chamados ‘Povo’ — uma expressão com alguma tonalidade coletivista
e monista, que procuro evitar).
Um crucial mérito dessa recordação consiste em observar empiricamente
que a moderna teoria da democracia não começou com a ruptura revolucionária do
Iluminismo do século XVIII. Por outras palavras, um embrião da teoria do
contrato social pode ser encontrado, para não ir mais atrás, na Escola de
Salamanca e em Francisco Suarez — por sinal um Jesuíta, e por sinal um crítico
veemente da Reforma protestante e do absolutismo regalista que, paradoxalmente,
lhe esteve associado.
Esta recordação é em si mesma muito relevante. Contraria empiricamente a
crença ingénua de que a democracia é produto de uma “revolução moderna contra o
passado”. Mas há mais a dizer sobre este assunto.
Francisco Suarez e a Escola de Salamanca enraizavam a ideia de contrato
social no Direito Natural — uma herança de Aristóteles e Tomás de Aquino. Este
enraizamento está ausente em Hobbes, que concebeu um contrato social fundado
apenas no “instinto de auto-preservação” — dando por isso lugar a um governo
absoluto (ainda que limitado). E está completamente ausente em Rousseau — que
concebeu a ideia peregrina (e, a meu ver, aterradora) de que o único critério
de bem e mal reside na “vontade geral” de um coletivo de iguais. Ele chegou
mesmo a sustentar que “o soberano [resultante da vontade geral], pelo mero
facto de ser, é sempre tudo o que deve ser”.
Por outras palavras, o contrato social de Rousseau é fundamentalmente
diferente do proto-contrato social de Suarez (bem como, em grande parte, de
John Locke, que também preservou, à sua maneira, a ideia de Direito Natural).
Rousseau “libertou” a vontade geral, alegadamente resultante do contrato
social, de quaisquer limites ou escrúpulos morais decorrentes do Direito
Natural. Escreveu Rousseau: “agora que o soberano é formado inteiramente pelos
indivíduos que o compõem, o soberano não tem, nem poderia ter, qualquer
interesse contrário ao deles; por isso, o soberano não precisa de dar quaisquer
garantias aos súbditos”.
O resultado não se fez esperar. Os fanáticos da revolução francesa de
1789 levaram a cabo as piores perseguições ideológicas com base na “vontade
geral” ou na “vontade do povo”. E os fanáticos da revolução comunista de 1917
na Rússia — que se apresentaram como herdeiros e continuadores da revolução
francesa de 1789 — fizeram o mesmo em escala ainda mais aterradora.
Convém acrescentar que também o nacional-socialismo alemão só pôde fazer
o que fez porque também ele se libertou de todos os limites e escrúpulos morais
— porque também ele se libertou dos limites sugeridos pelo Direito Natural.
Neste caso, a audácia “libertadora” foi culturalmente possível em grande parte
devido ao niilismo revolucionário de Nietzsche. Ele gabou-se de ter tido a
coragem do “olhar da águia sobre o abismo”, isto é, um olhar “para além do bem
e do mal”. Esta coragem, segundo Nietzsche, apenas seria acessível aos “homens
superiores”. (Pode talvez ser recordado que, pelo menos no caso pessoal de
Nietzsche, para não ir mais longe, aquela “coragem” não teve resultados
empíricos particularmente encorajadores).
Curiosamente, foram as revoluções inglesa de 1688 e americana de 1776
que recusaram romper com a tradição pré-moderna do Direito Natural. A inglesa
disse que estava apenas a restaurar as liberdades da (Cristã) Magna Carta de
1215 — que limitava o poder do Rei “sob Deus e a Lei”. A americana
justificou-se com base no “direito inalienável à vida, liberdade e busca da
felicidade” com que todos os homens tinham sido “igualmente dotados pelo seu
Criador”. Por outras palavras, como observou Edmund Burke, as “revoluções” que
[hoje sabemos que] deram origem aos mais duradouros regimes pluralistas
modernos orgulhosamente anunciaram que tinham raízes pré-modernas.
Para resumir uma longa história, recordar Francisco Suarez consiste
também em recordar que a civilização ocidental da liberdade sob a lei não
começou com as ideologias revolucionárias do século XVIII. A liberdade
ocidental assenta numa longa conversação a várias vozes, cujas raízes remontam
a Atenas, Roma e Jerusalém. Ignorar esta velha conversação produz consequências.
Entre elas incluíram-se os modernos totalitarismos do século XX. Muito
provavelmente, encontram-se hoje também as pós-modernas visões niilistas e
grosseiras de um mundo sem maneiras e sem fronteiras morais.
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O prof. Dr. João Carlos Espada é diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa.
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O prof. Dr. João Carlos Espada é diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, em Lisboa.
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