Em boa hora entra na pauta
da discussão acadêmica a questão da moral social aplicada ao campo da saúde. A
dissertação intitulada: O Direito fundamental à saúde e a responsabilidade social: uma contraposição ao argumento da reserva do possível (Londrina: UEL, 2017, 106 p.) defendida por Natália Martins de Abreu, com a orientação do Professor Doutor Clodomiro Bannwart (da UEL) e com a participação, na banca examinadora, da Professora Doutora Rita de Cassia R. Tarifa Espolador (da UEL) e deste escriva (docente da FAAT), insere-se nesse
contexto.
Ora, na nossa tradição
luso-brasileira, eivada de cientificismo, não era possível enxergar esse tipo
de abordagem até algum tempo atrás. Tamanhas as certezas das elites pensantes
acerca do que deveria ser o agir humano, todo ele entendido no contexto do
estreito cientificismo de origem pombalina, segundo o qual cabia ao
Estado-empresário garantir a riqueza da Nação e pautar verticalmente a moral
pública e privada.
Para Pombal e o despotismo
ilustrado emergente das suas reformas educacionais, competia ao Estado garantir
a riqueza da Nação, não precisando, o reles cidadão, de mais esforço do que se
encostar na estrutura todo-poderosa para se enriquecer, sem precisar encarar o
incômodo de trabalhar. “Pai-Estado”, rezava o pai-nosso pombalino, “dai-nos o
emprego e livrai-nos do trabalho, amém”. Não foi essa variante improdutiva,
exclusiva herança portuguesa. Também o Império Russo da czarina Ana Ivanovna,
encontrou semelhante caminho de modernização ao ensejo das reformas
empreendidas na segunda metade do século XVIII, sob os cuidados do médico judeu
português Antônio Nunes Ribeiro Sanches que, de Paris (para não cair nas garras
da Inquisição de Lisboa), assessorou também D. José I e o seu todo-poderoso
marquês, nas reformas modernizadoras que deram ensejo a nova variante de
nobreza burocrática, ao ensejo da criação do Colégio dos Nobres de Lisboa,
origem remota da nossa Real Academia Militar, criada em 1810, no Rio, pelo
Conde de Linhares.
Hoje em dia, com motivo do
maremoto causado pela corrupção sistêmica e pela Operação Lava-Jato que a
desnudou, as questões relativas ao que seria a moral social começam a ficar mais
ou menos explícitas para a opinião pública. O mal-estar de início foi grande:
não tivemos formulada de cima para baixo uma tabela comportamental pela qual
possamos nos guiar. Também pudera! Estávamos acostumados a que as orientações,
em matéria de comportamento social, eram pautadas desde cima, pelo Estado
modernizador. Foi o modelito
castilhista-getuliano que terminou dando certo na nossa história republicana
mas que, ao ensejo da redemocratização da vida política, revelou-se
insuficiente. Afinal de contas, o papel do governo como parâmetro moral entrou
em declínio, já desde os tempos de Itamar (quando a cúpula do Estado se
refestelou com passistas seminuas no camarote do samba). Ora, se o formulador
da moral social é o Estado e este se corrompe, estamos entregues, em matéria de
critérios de comportamento ético, à novela das nove que, convenhamos, não é uma
Brastemp de moralidade. E como gostaríamos nós, simples cidadãos, que junto com
a abertura democrática, nos tivesse sido dada de presente a tabelinha dos
princípios da moral social! Novel professor de EPB na USP em 79, tentei
estimular os meus alunos para que debatêssemos em sala de aula a magna questão
da moral social que nos deveria pautar e que não pode vir de Brasília já feita.
Tive um rotundo fracasso pedagógico. Afinal, como me dizia um acadêmico de
direito, meu aluno, no Largo de São Francisco, “de moral e de religião não se
discute”!
Bom, o certo é que por
caminhos transversos a discussão em torno à moral social terminou se instalando
na Academia brasileira, sendo o debate puxado, quem diria, pelo meliante
Fernandinho Beira-Mar que, na famosa comissão da CPI do Narcotráfico, lá nos
anos 90, ao ser indagado pelo deputado que presidia a Comissão acerca da
profissão por ele exercida, respondeu: “Traficante, excelência”. – “Traficante
de que?” Indagou o deputado. – “Ora, excelência, traficante de cocaína”! –
“Pode nos indicar os nomes dos seus fornecedores?” – perguntou ainda o ingênuo
Presidente da Comissão. - “Não posso, excelência, entregar os meus
fornecedores", respondeu Beira-Mar. - "Eu eu sou um bandido ético”! Outros “Bandidos éticos” juntaram-se à
turma dos que inauguravam o debate em torno à moral social e daí a moda pegou
na sociedade brasileira. Hoje todo mundo quer dar palpite nessa questão.
Felizmente não foram só os “bandidos éticos” que passaram a falar, mas também
os cidadãos comuns, as Igrejas, as Universidades e Faculdades, os Sindicatos,
os animadores dos Programas de Auditório das Tevês, etc. Até “Comissões de
Ética” foram inauguradas no nosso combalido Parlamento.
Hoje é muito variado o
panorama dos grupos que, no seio da sociedade, debatem a questão da moral
social, potencializada a discussão pelas redes sociais. É possível encontrar,
no panorama do debate nacional, variadas agrupações que, mais ou menos
organizadas ou de forma espontânea, dão palpites em termos do que seria
fundamental para termos uma moral social. Enumero apenas dois grandes grupos ao
redor dos quais se arrumam os que debatem questões de moral social: 1 –
Cientificista; 2 – Dialógico.
O primeiro grupo recolheu a
velha tradição do cientificismo pombalino, aliada à versão do cientificismo
marxista. Segundo essa vertente, a verdade em matéria de comportamento social é
uma só, cabendo à Ciência Social identifica-la e impô-la à sociedade, de forma
vertical, a partir do Estado. É uma tendência na qual terminaram tomando carona
diversos grupos de inspiração jacobina ou rousseauniana, segundo os quais a regeneração
moral da sociedade brasileira consiste no abandono da luta em prol de
interesses individuais, devendo ser imposto, pelos puros, o interesse geral,
numa espécie de unanimidade salvadora.
É no segundo grande grupo
que hoje ocorre o animado debate em torno às questões da moral social. Esse
grupo se alimenta do que a filosofia moderna e contemporânea oferece em termos
de fontes, valendo destacar a presença, no nosso meio, de estudiosos de autores
tão variados quanto Russell Kirk, Edmund Burke, Friedrich Hayek, Von Mises,
Roger Scruton, Jürgen Habermas, Adam Smith, etc.
A filosofia de Jügen
Habermas ocupa certamente lugar de destaque nesse grande debate, justamente por
ter sido uma das correntes de pensamento – junto com a tendência hermenêutica
de Karl Oto Apel – que de forma mais completa reflete sobre as variantes da
moral e do direito. No contexto da evolução da social-democracia alemã, o
pensamento de Habermas tem tido um peso enorme, ao longo especialmente das
últimas três décadas. A social-democracia alemã, pela mão de Edward Bernstein
afastou-se do socialismo “científico” de inspiração marxista e passou a
considerar ser o socialismo mais uma questão de tipo moral, ligada ao
imperativo categórico de não explorar o trabalho alheio.
As conquistas dos
trabalhadores vieram na Alemanha de mãos dadas com o abandono das teses do
“socialismo científico” e passaram a se alicerçar num modelo de socialismo
democrático que utilizou a estrutura sindical para se consolidar como
programa de um partido político, buscando na disputa parlamentar o meio onde
faria amadurecer as propostas de libertação da classe trabalhadora, não
mediante o expediente da revolução proletária e da ditadura do proletariado,
mas no contexto de reformas pacientemente efetivadas mediante a legislação
ordinária.
O fato de os principais
partidos europeus de inspiração social-democrata terem galgado o poder pela via
eleitoral, na Alemanha já no final do século XIX, na Inglaterra com os
trabalhistas nos anos vinte e na França com os socialistas do Front Populaire
de Léon Blum, nos anos trinta, mostra o quanto estavam certos primeiro
Ferdinand Lassalle (ainda nos tempos de Marx) e ulteriormente Jean Jaurès e Edward
Bernstein (no finzinho do século XIX e nas primeiras décadas do século XX) no
diagnóstico reformista.
Como foi frisado no Curso de Ciência Política do Instituto de Humanidades, "A principal contribuição de Edward Bernstein consistiu em ter criticado de forma clara a hipótese revolucionária dos bolcheviques. Para ele, os trabalhadores ganhariam melhores condições de vida pela via das reformas, através da prática do sindicalismo responsável, aliada à sua participação na atividade parlamentar".
Enquadrando o dogmatismo do denominado "socialismo científico", escrevia Bernstein:"Toda experiência histórica e também muitos fenômenos do tempo presente testemunham que o modo capitalista de produção é tão passageiro como qualquer outro modo de produção anterior. Mas o que aqui devemos elucidar é se o seu final será uma catástrofe, se se deve esperar que esta ocorra num futuro próximo e se conduzirá necessariamente ao socialismo. As respostas dadas a esta pergunta - ou perguntas – de parte dos socialistas diferem não pouco entre si. Outras hipóteses que não mais se aceitam: a idéia da pauperização crescente da classe trabalhadora; a do paralelismo entre o desenvolvimento da indústria e da agricultura; da fusão da classe capitalista; do desaparecimento das diferenças entre as ocupações. Toda uma lista de teses que passavam por estar cientificamente demonstradas, e todas elas resultaram ser falsas; bem, não exageremos, e digamos que se revelaram verdades parciais”. (Ricardo Vélez Rodríguez, organizador. Curso de Ciência Política, FAAT - Instituto de Humanidades, 2017, pg. 54)
Como foi frisado no Curso de Ciência Política do Instituto de Humanidades, "A principal contribuição de Edward Bernstein consistiu em ter criticado de forma clara a hipótese revolucionária dos bolcheviques. Para ele, os trabalhadores ganhariam melhores condições de vida pela via das reformas, através da prática do sindicalismo responsável, aliada à sua participação na atividade parlamentar".
Enquadrando o dogmatismo do denominado "socialismo científico", escrevia Bernstein:"Toda experiência histórica e também muitos fenômenos do tempo presente testemunham que o modo capitalista de produção é tão passageiro como qualquer outro modo de produção anterior. Mas o que aqui devemos elucidar é se o seu final será uma catástrofe, se se deve esperar que esta ocorra num futuro próximo e se conduzirá necessariamente ao socialismo. As respostas dadas a esta pergunta - ou perguntas – de parte dos socialistas diferem não pouco entre si. Outras hipóteses que não mais se aceitam: a idéia da pauperização crescente da classe trabalhadora; a do paralelismo entre o desenvolvimento da indústria e da agricultura; da fusão da classe capitalista; do desaparecimento das diferenças entre as ocupações. Toda uma lista de teses que passavam por estar cientificamente demonstradas, e todas elas resultaram ser falsas; bem, não exageremos, e digamos que se revelaram verdades parciais”. (Ricardo Vélez Rodríguez, organizador. Curso de Ciência Política, FAAT - Instituto de Humanidades, 2017, pg. 54)
Acho que a mestranda poderia
levar em consideração de forma mais sistemática essa abordagem, na descrição
que faz da forma em que se firmaram historicamente os direitos fundamentais
sociais, no capítulo 3 da sua dissertação. Ora, esses direitos não percorreram
o caminho de uma abstrata doutrina cientificista que implantaria a “ditadura do
proletariado” pela via da revolução, mas se firmaram como fruto da participação
política moderada e reformista dos sindicatos em partidos de inspiração
social-democrática.
Destaco, no entanto, que o núcleo da Dissertação que aparece nos capítulos 4º (“O argumento da
reserva do possível, como óbice à efetivação do direito à saúde”) e 5º (“A
superação ao argumento da reserva do possível baseado na teoria da ação
comunicativa”), está bem formulado e explanado, sendo plenamente satisfatório o
desenvolvimento dessa parte do trabalho.
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