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domingo, 28 de maio de 2017

BOLÍVAR SEGUNDO MARX


Karl Marx (1818-1883) não gostava de Simón Bolívar (1783-1830). Deixou isso claro no verbete que escreveu sobre o Libertador das cinco nações sul-americanas (Colômbia, Venezuela, Peru, Equador e Bolívia). Charles Dana (1819-1897), diretor do New York Daily Tribune, contratou o pensador alemão, que tinha passado a residir em Londres a partir de 1843, para que redigisse alguns artigos sobre história militar, bem como biografias e outros assuntos, a fim de publica-los na The New American Cyclopaedia, que Dana vinha preparando. O texto de Marx apareceu publicado, em 1858, no volume III da mencionada obra, com o seguinte título: "Bolívar y Ponte".

Marx dividiu as matérias para a Cyclopaedia com o amigo e colaborador Friedrich Engels (1820-1895), que desde 1840  tinha passado a residir temporariamente na Inglaterra, primeiro em Manchester e depois em Londres. Na distribuição dos temas, coube a Marx redigir a entrada correspondente a Simón Bolívar. O pensador alemão alicerçou-se, para o seu trabalho, em limitada bibliografia por ele consultada na British Library e que menciona no final do artigo. Estas são as fontes consultadas: DUCOUDRAY-HOLSTEIN, General e VIOLLET Alphonse, Histoire de Bolívar, Paris, 1831. MILLER John, General, Memoires in the service of the Republic of Peru. HIPPISLEY, Coronel, Account of his Journey to the Orinoco, Londres, 1819.

Consultei a seguinte edição do ensaio de Marx, publicado em português com o título: Simón Bolívar por Karl Marx (introdução de  José Aricó; epílogo de Marcos Roitman Rosenmann e Sara Martínez Cuadrado; tradução de Vera Ribeiro. São Paulo: Martins, 2008, coleção Dialética, 76 p.). Os meus amigos Antônio Paim e Arsênio Corrêa, do Instituto de Humanidades, presentearam-me com essa obra e a eles dedico o presente comentário.

O acervo da British Library apresentava, na época de Marx, alentada lista de obras sobre o Libertador, que certamente teria dado embasamento a uma apresentação bem mais equilibrada sobre o pensamento e a obra de Bolívar. Marx simplesmente despachou o tema com uma consulta a bibliografia secundária, de forma muito diferente a como agiu em face de outros temas trabalhados por ele na Enciclopédia organizada por Dana e na imprensa, notadamente no New York Daily Telegraph. Convenhamos que a bibliografia existente sobre Bolívar na Inglaterra de então era bem mais rica. O autor não caprichou na escolha das suas fontes.

Dividirei a minha exposição em dois itens: 1 - A apresentação negativa de Bolívar por Marx. 2 - As razões da visão negativa de Marx acerca de Bolívar. 

1 - A apresentação negativa de Bolívar por Marx.

Basta dar uma olhada ao texto escrito por Marx para que fique clara a visão negativa deste sobre o Libertador das cinco nações sul-americanas. Num ensaio curto, de apenas 24 laudas, o autor se refere de forma negativa a Bolívar, a fim de caracteriza-lo apenas como o "Napoleão das retiradas". Os seus triunfos militares não foram mérito próprio. Decorreram ora de circunstâncias alheias como a presença de inúmeros oficiais e soldados estrangeiros, ora da pusilanimidade que de forma instantânea se apossou dos espanhóis em momentos decisivos, ora simplesmente da imprevisível força do destino. Mas nada que possa ser atribuído às virtudes militares do Libertador Simón Bolívar.

Acompanhemos o relato de Marx acerca das "retiradas" do seu biografado.  Logo no começo do ensaio, ao traçar um quadro biográfico do início da vida pública do Libertador e de informar que ele formava parte das "famílias mantuanas" que "constituíam a nobreza crioula da Venezuela", o escritor destaca o fato de Bolívar ter viajado cedo para a Europa, com a idade de quatorze anos, tendo residido na Espanha e na França, concretamente em Paris. O jovem aristocrata, conta Marx, casou em 1802, em Madri, tendo retornado rapidamente à Venezuela onde a sua jovem esposa faleceu de febre amarela. Depois disso, Bolívar visitou a Europa pela segunda vez, tendo estado presente, em Paris, na coroação de Napoleão Bonaparte como Imperador dos Franceses, em 1804. Bolívar presenciou, também, na Itália, a assunção, por Napoleão, da coroa de ferro da Lombardia, no ano seguinte. Não conta nada acerca da viagem que Bolívar realizou em companhia do seu jovem mestre Simón Rodríguez (1769-1854), um rousseauniano de tempo completo, a várias outras cidades italianas, nem menciona o juramento que o jovem fidalgo fez no Monte Sacro, em Roma, no sentido de libertar as nações sul-americanas do jugo espanhol.

De regresso à Venezuela, conta Marx, Bolívar rejeitou a proposta do seu primo, José Félix Ribas (1775-1815), para que se incorporasse à revolução nascente contra a dominação espanhola, tendo preferido aceitar uma missão diplomática em Londres, com a finalidade de comprar armas e buscar o apoio do governo britânico para a causa sul-americana. Bolívar somente conseguiu dos Ingleses, segundo a narrativa de Marx, a "liberdade de exportar armas em troca de dinheiro vivo". De volta à Venezuela, o general Francisco de Miranda (1750-1816), comandante das forças insurgentes, o convenceu para que aceitasse o posto de tenente-coronel do estado-maior, sendo destinado para o comando da estratégica fortaleza de Puerto Cabello.

Como comandante militar dessa importante praça, Bolívar revelou-se um irresponsável traidor da causa venezuelana. Conta Marx no seu relato: "Quando os prisioneiros de guerra espanhóis, que Miranda costumava confinar na fortaleza de Puerto Cabello, conseguiram dominar de surpresa os guardas e tomar a cidadela, Bolívar, apesar de os prisioneiros estarem desarmados, ao passo que ele dispunha de uma guarnição numerosa e uma grande quantidade de munição, partiu precipitadamente durante a noite com oito de seus oficiais, sem informar seus próprios soldados (...) e se recolheu  à sua propriedade de São Mateus. Ao tomar conhecimento da fuga do seu comandante, a guarnição retirou-se ordeiramente do local, que foi ocupado de imediato pelos espanhóis comandados pelo general Monteverde. Esse acontecimento fez a balança pender em favor da Espanha e obrigou Miranda, sob as ordens do Congresso, a assinar o Tratado de La Victoria, em 26 de julho de 1812, devolvendo a Venezuela ao controle espanhol" (p. 34). Não contente com a sua covarde fuga, Bolívar aprisionou Miranda e o entregou aos espanhóis que o trancafiaram numa masmorra em Cádiz, onde o comandante das forças venezuelanas veio a falecer meses depois.

Como prêmio pela sua traição, Bolívar recebeu das autoridades espanholas o passaporte para sair da Venezuela. O general Monteverde declarou: "A solicitação do coronel Bolívar deve ser atendida, como recompensa pelos serviços que ele prestou ao rei da Espanha ao lhe entregar Miranda" (p. 35). Os triunfos dos exércitos venezuelanos contra os espanhóis são explicados por Marx a partir de dois fatores: a crueldade destes para com os nativos e a covardia dos oficiais ibéricos que fugiam quando o confronto se apresentava. A propósito, escreve Marx: "Quanto mais avançavam, maiores se tornavam seus recursos, pois os excessos cruéis dos espanhóis funcionaram em toda parte como sargentos recrutadores do exército dos independentes. A capacidade de resistência dos espanhóis se desarticulou, em parte pelo fato de três quartos de seu exército comporem-se de nativos, que passavam para as fileiras opostas a cada encontro, e em parte pela covardia de generais como Tízcar, Cajigal e Fierro, que a qualquer oportunidade abandonavam suas tropas" (p. 36). Nada de grande planejamento da parte de Bolívar e muito menos de heroicos esforços do Libertador para manter em alto o moral das tropas. As circunstâncias, não os homens, venciam as batalhas em favor dos venezuelanos!

Bolívar, no entanto, segundo Marx, era atuante numa frente: os desfiles rodeado de belas damas. Eis como relata a entrada triunfal do Libertador em Caracas em fins de 1813: "Bolívar foi então homenageado com uma entrada apoteótica. De pé sobre um carro triunfal, puxado por doze jovens vestidas de branco e enfeitadas com as cores nacionais, todas escolhidas entre as melhores famílias de Caracas, Bolívar, com a cabeça descoberta e uniforme de gala, agitando um pequeno bastão, foi conduzido por cerca de meia hora, desde a entrada da cidade até sua residência. Proclamando-se 'Ditador e Libertador das Províncias Ocidentais da Venezuela' (...) criou a 'Ordem do Libertador', formou uma tropa de elite que denominou de sua guarda pessoal e se cercou da pompa própria de uma corte. Entretanto, como a maioria de seus compatriotas, ele era avesso a qualquer esforço prolongado, e sua ditadura não tardou em degenerar numa anarquia militar, na qual os assuntos mais importantes eram deixados nas mãos de favoritos, que arruinavam as finanças públicas e depois recorriam a meios odiosos para reorganizá-las (...) (p. 37).

Tendo recebido o general Bolívar, em 1814, da assembléia popular de Caracas a incumbência de, à frente do poder na Venezuela, negociar com os neo-granadinos a unificação de forças para melhor enfrentar os espanhóis, o "Napoleão das retiradas" perpetrou mais uma. Junto com os seus oficiais, fugiu para a Ilha Margarida e dali passou a Cartagena de Índias, não com a finalidade de negociar a unificação de forças com os neo-granadinos, mas para perpetrar um golpe contra as autoridades locais. Assim registra Marx essa nova aventura do seu biografado: "Se Ribas, Páez e outros generais houvessem acompanhado os ditadores em fuga, tudo se haveria perdido. Tratados como desertores (...) na Ilha Margarita, zarparam (...) para Cartagena. Ali, para coonestar a sua fuga, divulgaram um manifesto justificatório, redigido numa fraseologia pomposa" (p. 39).

Depois que essa tentativa foi frustrada, felizmente, por parte dos habitantes de Cartagena, "A Heroica", Marx conta que Bolívar dirigiu-se para a cidade de Tunja, no centro do país, onde estava reunido o Congresso da República Federal da Nova Granada. Apesar das aventuras golpistas, Bolívar foi incumbido por esse Congresso de submeter a província rebelde de Cundinamarca e, depois, marchar para o porto de Santa Marta, o único que ainda conservavam os espanhóis. Apesar de as autoridades regionais revoltadas terem sido submetidas mediante a toma de Bogotá por Bolívar, ele permitiu aos seus soldados que saqueassem a cidade durante 48 horas.

Depois, em lugar de marchar sobre o porto de Santa Marta, no Mar Caribe, Bolívar desviou o curso para Cartagena, a fim de se apossar da cidade que o tinha expulsado e a submeteu a severo cerco. A tentativa não deu em nada "senão (na) redução de seu exército, por deserção ou doença, de 2.400 para uns 700 homens". Foi uma vergonhosa trapalhada que permitiu às tropas espanholas sediadas em Santa Marta receberem reforços da Espanha, o que obrigou Bolívar a desviar a marcha para Kingston, na Jamaica, onde permaneceu por oito meses. Entrementes, os companheiros que o "Napoleão das retiradas" tinha abandonado na Venezuela resistiram ferozmente aos espanhóis, tendo alguns deles sido presos e fuzilados, como seu primo José Félix Ribas "a quem Bolívar devia sua reputação" (p. 41).

Nas suas andanças pelas ilhas do Caribe ao longo do ano 1815 Bolívar conheceu, no Haiti, Felipe Luís Brion (1794-1821), natural de Curaçao e que prestava os seus serviços como oficial da Marinha ao Reino da Holanda chefiado, na época, pelo irmão casula do imperador Napoleão I, Luis Napoleão Bonaparte (1778-1846). Com apoio do presidente do Haiti, Alexandre Pétion (1770-1818) a quem Bolívar prometeu libertar os escravos das nações que libertasse, organizou um pequeno exército de neo-granadinos que tinham fugido de Cartagena e de ex-escravos haitianos. Brion, por sua vez, conseguiu junto aos ingleses armar um navio de guerra. Bolívar convenceu-o a acompanhá-lo numa invasão à Venezuela. Brion aceitou e, nomeado Almirante por Bolívar, que agia como Comandante da expedição, rumaram para as costas venezuelanas. Desembarcaram primeiro na Ilha Margarida, onde receberam o apoio do general Arizmendi, chefe dos insurrectos, tendo conseguido armar 13 navios para transportar os 800 homens com que contava.

Diante do confronto iminente com os ibéricos, aconteceu o inesperado: nova fuga do "Napoleão das retiradas"! Quando o pequeno exército se aproximava da cidade de Valencia, guardada pelo general espanhol Morales com um minguado contingente de 200 soldados e 100 milicianos, de súbito o comandante Bolívar fugiu de novo. Marx cita as palavras de uma testemunha ocular da covardia bolivariana: o comandante perdeu "toda a presença de espírito, não disse palavra, fez meia-volta no ato com o cavalo, fugiu a toda velocidade para Ocumare, passou pelo vilarejo num galope desabalado, chegou à baía próxima, apeou de um salto, entrou num bote e embarcou no Diana, ordenando a toda a esquadra que o seguisse até a ilhota de Buen Ayre [Bonaire] e deixando todos os seus companheiros privados de qualquer auxílio" (p. 43).

Reabilitado pelos patriotas venezuelanos, de forma paradoxal, após mais essa covarde evasão, Bolívar voltou a assumir as funções de Comandante supremo com a promessa de não se imiscuir na administração civil. Seguiram-se, ao longo de 1815, novas derrotas das forças venezuelanas. Em julho desse ano, no entanto, os patriotas conseguiram aplicar forte derrota aos espanhóis, a partir da invasão, pela retaguarda destes, de um contingente comandado pelo general Manuel Piar (1774-1817) que, desembarcando na Guiana com apoio de Brion, os tomou de surpresa. O triunfo das forças revolucionárias comandadas por Bolívar foi significativo.

Mas o triunfo dos revolucionários patriotas não sedimentou uma paz duradoura na Venezuela. O general Pablo Morillo (1775-1837), importante oficial espanhol, veio da Metrópole com a missão de implantar novamente o antigo poderio ibérico. Embora o número das forças comandadas por Bolívar fosse superior ao dos espanhóis, a errática estratégia bolivariana conspirou contra um desfecho feliz. Ao longo da segunda metade de 1815 e durante os anos de 1816 até 1818, os patriotas sofreram severas derrotas dos seus inimigos. A respeito desses fatos escreve Marx: "Para enfrentar cerca de 4 mil espanhóis, que Morillo não tinha conseguido concentrar, Bolívar reuniu mais de 9 mil homens, bem armados, equipados e fartamente supridos de tudo o que era necessário para a guerra. Não obstante, no fim de 1818, ele havia perdido umas doze batalhas e todas as províncias do rio Orinoco. Dada a maneira como Bolívar dispersava suas forças superiores, elas eram sempre derrotadas quando em separado" (p. 46).

No entanto, o Libertador mudou a sua estratégia aconselhado pelo ex-chanceler venezuelano Juan Germán Roscio (1763-1821) que se desempenhava como o seu assessor jurídico. Duas providências foram adotadas pelo Comandante das forças insurgentes: em primeiro lugar, convocar um Congresso Nacional quer votasse novos tributos para financiar a guerra; em segundo lugar, organizar um grande exército que garantisse aos venezuelanos a ofensiva contra as forças realistas. Rapidamente as forças comandadas por Bolívar chegaram a 14 mil homens bem armados.

A 20 de julho de 1818 os espanhóis eram expulsos de todas as províncias venezuelanas. Reunidos num congresso provisório na cidade de Angostura, os patriotas decidiram instaurar um triunvirato semelhante ao Consulado que tinha investido de poderes a Napoleão Bonaparte em 1802. Imitando a jogada que tinha posto em prática o primeiro cônsul francês, Bolívar dissolveu o Congresso e o Triunvirato, instaurou um Conselho Supremo da Nação e se colocou à testa dele.  Como chefes militar e político foram nomeados, respectivamente, Brion e Francisco Antonio Zea (1770-1822).

Consolidada precariamente a independência venezuelana, Bolívar conseguiu se ver livre de um concorrente incômodo: o general Piar. A respeito, escreve Marx: "Sob as falsas acusações de ter conspirado (...), planejado um atentado contra a vida de Bolívar e aspirado ao poder supremo, Piar foi levado a julgamento por um conselho de guerra presidido por Brion, condenado, sentenciado à morte e fuzilado em 16 de outubro de 1817" (p. 45).

Restava ao exército libertador um duplo repto: fazer frente a uma nova força espanhola chefiada pelo general Morillo que ameaçava chegar até Caracas ou desalojar os espanhóis da Nova Granada que, pela voz do general Francisco de Paula Santander (1792-1840), pedia ao Libertador o auxílio das forças venezuelanas. A respeito, Marx escreve: "Os oficiais estrangeiros lhe sugeriram fingir que tencionava desferir um ataque contra Caracas para libertar a Venezuela do jugo espanhol, e com isso induzir Morillo a enfraquecer Nova Granada e concentrar suas forças na defesa da Venezuela, enquanto o próprio Bolívar deveria rumar subitamente para oeste, unir-se aos guerrilheiros de Santander e marchar sobre Bogotá".

A nova estratégia deu certo. Os espanhóis descuidaram a proteção da Nova Granada para concentrarem as suas forças na defesa de Caracas. Num arrojado lance que lembra a travessia do general cartaginês Aníbal (248-182 a. C.) escalando com os seus elefantes os pelos Alpes para surpreender as legiões romanas, Bolívar dirigiu-se direto das planícies venezuelanas para os Andes, a fim de chegar a Bogotá no menor tempo possível. Realizou, nesse caminho, a arriscada escalada dos Andes, partindo de uma altitude baixa e galgando as geadas cumes da Cordilheira na Sierra del Cocuy (Páramo de Pisba), na província de Boyacá. Nesse trajeto vários dos seus soldados provenientes das cálidas planícies venezuelanas (que integravam a combativa divisão de lanceiros) pereceram de frio ao enfrentarem uma altitude superior aos 5 mil metros. A caminho da capital neogranadina, o exército libertador derrotou os espanhóis em três batalhas sucessivas travadas em 1º de julho, 25 de julho e 7 de agosto de 1819, tendo ficado as duas últimas (Pântano de Vargas e Ponte de Boyacá) como marco histórico da independência neo-granadina.

Vale destacar que essa campanha realizada por Bolívar é apenas mencionada en passant por Marx, ignorando totalmente o valor militar de que deu prova o Libertador nessas jornadas, reconhecidas pelos historiadores como fruto de uma corajosa e arrojada estrategia militar, comparáveis às campanhas desenvolvidas por Napoleão nos Alpes, quando da sua primeira chegada à Itália.

O triunfo das tropas neo-granadinas e venezuelanas foi acachapante e garantiu a libertação definitiva da Nova Granada, tendo aberto a porta para a independência da Venezuela do jugo espanhol. Com a libertação dos dois países nascia a República da Colômbia. A partir daí, Bolívar colocou em pauta a libertação dos restantes três países ainda dominados pela Espanha: Equador, Peru e Bolívia. Foi uma política bem pensada, arrojada e que consolidou a fama de Bolívar como excelente estrategista. 

Consolidado o triunfo sobre os espanhóis nas gestas de agosto de 1819, Marx resume de forma bastante genérica o que se passou depois. Para o autor de O Capital,  tudo não passou de uma circunstância que possibilitou a Bolívar juntar uma grande soma de dinheiro. Do ponto de vista militar, Bolívar desperdiçou a oportunidade que tinha de esmagar os espanhóis, graças à presença, nas filas de combatentes neogranadinos e venezuelanos, de grande contingente de soldados europeus. A respeito, Marx frisa: "(...) Com um tesouro de uns 2 milhões de dólares, obtidos dos habitantes de Nova Granada mediante contribuições forçadas, e dispondo de uma tropa de aproximadamente 9 mil homens, um terço dos quais compunha-se de ingleses, irlandeses, hanoverianos e outros estrangeiros bem disciplinados, coube-lhe então enfrentar um inimigo despojado de todos os recursos e reduzido a uma força nominal de 4.500 homens, dois terços dos quais eram nativos e, por conseguinte, não podiam inspirar confiança nos espanhóis. Com Morillo em retirada (....), os quartéis-generais inimigos ficaram a apenas dois dias de marcha um do outro. Se Bolívar tivesse avançado com arrojo, suas simples tropas europeias teriam esmagado os espanhóis, porém ele preferiu prolongar a guerra por mais cinco anos" (p. 48).

O certo é que, no decorrer dos anos de 1820 e 1821 as forças neogranadinas e venezuelanas se tornaram mais fortes. Bolívar comandava um exército de 6 mil homens de infantaria, entre eles a legião britânica com 1.100 soldados, além de 3.000 cavalarianos "llaneros" sob o comando do general Páez. Contando com a sorte que fez com que fracassasse a expedição que, da Espanha, comandava o general Enrique José O´Donnell (1776-1834), os patriotas desalojaram definitivamente os espanhóis da Venezuela e o Libertador pôde, então, centralizar os seus esforços bélicos na libertação dos países do sul e partir para o Equador, o Peru e a Bolívia.

Marx faz uma avaliação genérica dessa campanha, destacando dois aspectos: de um lado, o caráter centralizador e autocrático de Bolívar e, em segundo lugar, fazendo ênfase no decisivo papel desempenhado pelos auxiliares do Libertador, notadamente o  "Marechal de Ayacucho" o nobre general venezuelano Antonio José de Sucre y Alcalá (1795-1821) nas batalhas travadas contra os espanhóis. Na avaliação de Marx, aquilo de que mais gostava Bolívar era o poder ditatorial, sem esquecer as entradas triunfais, os manifestos e a promulgação de constituições.

A propósito, frisa: "(...) Essa campanha, que se encerrou com a incorporação de Quito, Pasto e Guaiaquil à Colômbia, foi nominalmente liderada por Bolívar e pelo general Sucre, mas os poucos êxitos alcançados pelo corpo do exército deveram-se inteiramente a oficiais ingleses, como o coronel Sands. Durante as campanhas contra os espanhóis do Baixo e Alto Peru, em 1823-1824, Bolívar já não julgou necessário manter a aparência de ser o comandante supremo, delegou toda a condução dos assuntos militares ao general Sucre, e se restringiu às entradas triunfais, aos manifestos e à promulgação de constituições. Por meio de sua tropa de guarda-costas colombianos manipulou a votação do Congresso de Lima, que, em 10 de fevereiro de 1823, transferiu para ele a ditadura; ao mesmo tempo, garantiu sua reeleição como presidente da Colômbia, mediante um novo pedido de renúncia. Nesse meio tempo, sua posição se havia fortalecido, em parte graças ao reconhecimento formal do novo Estado pela Inglaterra, em parte pela conquista das províncias do Alto Peru, as quais este unificou numa república independente, sob o nome de Bolívia. Ali onde as baionetas de Sucre imperavam, Bolívar deu livre curso a suas inclinações para o poder arbitrário, e introduziu o Código Boliviano, numa imitação do Código Napoleônico. Seu projeto era transplantar esse código da Bolívia para o Peru e deste para a Colômbia, a fim de manter esses Estados subjugados às forças colombianas, e manter a Colômbia submetida mediante a legião estrangeira e os soldados peruanos. (...) Como presidente e libertador da Colômbia, protetor e ditador do Peru e padrinho da Bolívia, atingiu o auge da sua glória (...)" (p. 52).

Bolívar desejava efetivar a unidade dos países por ele libertados, ampliando o seu poder a toda a América do Sul, que deveria se tornar uma espécie de República Federativa, a fim de perpetuar o seu nome pelo mundo afora. Esse foi, no sentir de Marx, o "sonho bolivariano" que teve, porém, um breve momento de realização, em decorrência das traições dos seus dominados e devido, também, à doença que o afetava, a tuberculose, fato que é omitido pelo nosso ensaísta.

Em relação ao "sonho bolivariano", escreve Marx, na parte final da biografia: "O que Bolívar realmente almejava era erigir toda a América do Sul como uma única república federativa, tendo nele próprio seu ditador. Enquanto, dessa maneira, dava plena vazão a seus sonhos de ligar meio mundo a seu nome, o poder efetivo lhe escapou rapidamente das mãos. Informadas dos preparativos de Bolívar para introduzir o Código Boliviano, as tropas colombianas do Peru promoveram uma insurreição violenta. (...). Sob a pressão de suas baionetas, assembléias populares reunidas em Caracas, Cartagena e Bogotá, para a última das quais Bolívar se deslocara, tornaram a investi-lo de poderes ditatoriais. Uma tentativa de assassiná-lo no quarto em que ele dormia, da qual o ditador só escapou por ter pulado da sacada em plena escuridão e se escondido embaixo de uma ponte, permitiu-lhe introduzir, durante algum tempo, uma espécie de terrorismo militar. Mesmo assim, ele não pôs as mãos em Santander, apesar deste haver participado da conspiração, ao passo que mandou executar o general Padilha, cuja culpa de modo algum fora provada, mas que, como homem de cor, não pôde oferecer resistência". 

Neste último episódio, Marx faz ênfase na covardia de Bolívar, que somente aplicou a pena capital naquele que não podia reagir, um oficial mulato, o general colombiano José Prudencio Padilla (1784-1827) herói da batalha de Maracaibo, que selou a independência da Venezuela. Com a sua autoridade contestada pelos colombianos, Bolívar refugiu-se no casarão de San Pedro Alexandrino, perto de Santa Marta, no litoral caribe da Colômbia, "quando faleceu repentinamente", escreve Marx. A realidade é que o Libertador foi vítima de tuberculose, que o afetou ao longo dos últimos anos. A vida de Bolívar extinguiu-se, assim, na luta entre dois inimigos: a doença e a reação dos seus libertados, como destacou com maestria Gabriel García Márquez no romance histórico intitulado: El general en su laberinto (1989).

2 - As razões da visão negativa de Marx acerca de Bolívar.

Várias interpretações foram elaboradas pelos estudiosos do marxismo em relação à apresentação escrita por Marx sobre o Libertador. Destaquemos, de entrada, a mutante versão "eclesiástica" elaborada pelos intelectuais do Kremlin, ainda na época do Império Soviético, sobre o escrito de Marx.


Para os especialistas russos, como frisa o estudioso marxista argentino José Aricó (1931-1991), na sua "Introdução - O Bolívar de Marx", (in: Simón Bolívar por Karl Marx, ob. cit., p.  9), as opiniões dos americanistas soviéticos, influenciados de forma decisiva por Vladímir Mikháilovich Mirochévski (1902-1978) e sua escola, "(...) coincidiram com a visão de Marx sobre Bolívar, tornando-a extensiva a uma caracterização negativa das guerras de independência latino-americana. Enfatizando o limitado caráter nacional e popular do processo revolucionário que conduziu à constituição dos Estados independentes, viram nele apenas 'um assunto próprio de um punhado de separatistas crioulos que não contavam com o apoio das massas populares'. O juízo formulado por Marx foi transposto inclusive para as demais personalidades do movimento de libertação e até para o próprio movimento".

No entanto, essa posição canônica dos especialistas do Kremlin mudou nos anos posteriores. A parcial avaliação de Marx sobre Bolívar foi atribuída, então, à parcialidade das fontes por ele consultadas, destacando - falsamente - a ausência de fontes melhores. 

Os americanistas soviéticos escrevem, de forma a salvar a isenção intelectual do seu ícone:  "Marx, como é natural, não possuía à sua disposição, naquela época, outras fontes senão as obras dos autores mencionados, cuja parcialidade era então pouco conhecida. Por conseguinte, era inevitável que Marx elaborasse uma opinião unilateral sobre a personalidade de Bolívar, como se reflete nesse ensaio. Essa ambição de poder pessoal, ampliada nas obras mencionadas, não pôde deixar de influir na atitude de Marx para com Bolívar" (cit. por Arigó, art. cit., p. 9).

Arigó coloca outra razão que explica a pinimba de Marx contra Bolívar: o fato de este ter ancorado na valorização das revoluções bonapartistas, à sombra do pensamento hegeliano e nesses "países sem história" (presentes em Ibero-America) como pensava o filósofo do Espírito Absoluto. Ora, o que Hegel (1770-1831) destacou foi uma espécie de retardamento da grande revolução proletária, consistente numa "expressão linear de uma relação de força já previamente consolidada dentro da esfera econômico-produtiva" (Aricó, art. cit., p. 20). Explicação, convenhamos, um tanto obscura que visa, apenas, a salvar a boa reputação de Marx entre os marxistas....Bolívar era rejeitado por Marx porque encarnava uma abstração da ciência burguesa esconjurada por Marx.

Faço, apenas, duas anotações. Em primeiro lugar, a sociologia marxista se dava bem no contexto dos denominados por Weber (1864-1920) de "Estados Contratualistas", aqueles que surgiram ao ensejo da formação de classes sociais que lutavam pela posse do poder. Não tendo conseguido se eliminar mutuamente, as várias classes firmaram "contratos" a partir dos quais emergiu o moderno Estado, a partir da luta de classes. 

É o caminho assinalado por François Guizot (1787-1874) para explicar a formação da Europa moderna, na sua obra História da Civilização Ocidental desde a queda do Império Romano até a Revolução Francesa (tenho a 6ª edição de 1864). A Europa viu nascer Estados Modernos ali onde houve feudalismo de vassalagem, que possibilitou a diferenciação das sociedades e a emergência de classes "com consciência de classe". Como destacou Plekhanov (1856-1918), Marx se louvou desses conceitos sociológicos conservadores, adotados por Guizot e que, no tangente às classes sociais e à sua dinâmica, tinham sido já tratados por Benjamin Constant de Rebecque (1767-1830) nos seus Princípios de Política (1814).

Já em relação ao tipo de "Estado Patrimonial", estudado por Weber e Karl Wittfogel (1896-1988), não se deu essa diferenciação em classes sociais, mas o Estado moderno se configurou como alargamento de uma autoridade patriarcal primigênia sobre territórios, pessoas e coisas extra-patrimoniais, passando a administra-lo tudo, como "propriedade familiar ou patrimonial". Assim teriam surgido, no Oriente, os Estados Patrimoniais ao ensejo do "despotismo hidráulico", que teve também a sua manifestação na Península Ibérica, bem como na Rússia czarista e nos Impérios pré-colombianos inca e asteca. Teria Marx uma dificuldade especial para lidar com essas formações sociais, onde o poder, como diz Raimundo Faoro (1925-2003), tem donos.

Ora, essa era a realidade imperante na América Latina, por força da forma em que espanhóis e portugueses conquistaram o Novo Mundo, como se se tratasse de um bem de família, submetido domesticamente aos soberanos na "empresa do rei". Um Estado surgido da luta de classes simplesmente inexistiu na América Latina. Daí a dificuldade para Marx entender este quadrante da história moderna. A ação libertadora de Bolívar ficava, portanto, presa a essa penumbra.

Em segundo lugar, do ângulo da formação intelectual, poderíamos reconhecer algumas contradições presentes no pensamento de Marx. No caso da avaliação negativa de Bolívar por parte do pensador alemão, a principal contradição decorria de uma rejeição profunda e emocional que Marx tinha experimentado em face de uma personalidade que não se ajustava às suas expectativas revolucionárias, o seu genro Paul Lafargue (1842-1911), que o destino colocou como parceiro conjugal da sua amada filha, Jenny Laura (1845-1911). 

Médico de origem franco-cubana, Lafargue se orgulhava de ter escrito um ensaio polêmico que se intitulava: O direito à preguiça (1880). Ora, um socialista judeu, como Marx, que valorizava o trabalho como fonte de redenção da classe operária e que acreditava no papel messiânico da classe explorada, à sombra do messianismo político de Saint-Simon (1760-1825), certamente se revoltou contra alguém que se gabava, na empreitada escatológica para libertar os trabalhadores, de faze-lo de costas para o trabalho, a partir do ócio. "Semeei dragões, mas colhi pulgas", afirmou Marx de certa feita em relação aos seus genros, Paul Lafargue e Charles Longuet (1839-1903).

Com a sua concepção anti-trabalho que se aproximava da visão contrarreformista imperante na Península Ibérica, Lafargue virou uma espécie de embaixador informal das ideias comunistas no meio ibérico. Mas o sogro jamais o perdoou por ter negado a "ética do trabalho" presente no Capital. Lafargue seria uma espécie de "bode expiatório" que carregava sobre si a infelicidade ibérica de não contar com a valorização do trabalho. Cubano e herdeiro dessa concepção nobiliárquica ibérica que fazia do trabalho "castigo pelo pecado original", Lafargue possibilitou que a imaginação do sogro enxergasse, à sua sombra, outra figura herdeira dessa perniciosa tradição de ética do não trabalho, o festeiro e guerreiro Bolívar, o "Napoleão das retiradas".

Lafargue e Jenny Laura praticaram o suicídio em 1911, se injetando uma substância letal. Na mensagem de despedida, Lafargue escreve que comete o suicídio "antes que a velhice imperdoável me arrebate". Lenine (1870-1924), tornando-se porta-voz dos comunistas, escreveu a respeito: "Um socialista não pertence a si mesmo, mas ao partido. Pode ser útil à classe operária. Por exemplo, escrevendo nem que seja um artigo ou um apelo. Não tem direito a suicidar-se".

Um comentário:

  1. O guru bolivariano caracterizado por Marx de: Napoleão das Retiradas...romântica definição, se não fosse hilariante.

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