Comemora-se este ano o centenário de nascimento do grande estadista e pensador liberal Roberto Campos. Para recordar esta ímpar figura, em sua honra publico um breve comentário sobre alguns aspectos da sua vida, obra e pensamento.
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Nestes momentos pelos que o Brasil passa, com o governo e a sociedade brasileira tentado fazer reformas para diminuir o tamanho do ineficiente Estado Patrimonialista, a lembrança do pensamento de Roberto Campos é norte que nos deve guiar.
Durante décadas, a figura de Roberto
Campos tentou ser riscada pelo establishment no interior do Itamaraty,
porquanto representava um perigo para os que tinham se encastelado no regime de
sesmarias ao redor de uma opção pelo “socialismo real”, após a derrota dos
alemães na Segunda Guerra Mundial.
Inicialmente, quando nosso autor optou
por se habilitar em concurso para trabalhar no Ministério das Relações
Exteriores em pleno Estado Novo, no ano de 1938, a maior parte dos nossos
diplomatas se colocava no contexto dos interesses do Eixo. Mas, quando as
forças de Hitler começaram a ser detonadas pelos Aliados na Segunda Guerra
Mundial, os diplomatas correram céleres para se arrumarem em torno aos representantes
das democracias ditas “populares”, chefiadas pela antiga União Soviética.
Guinada de 180 graus que deixou intacto, contudo, o dogmatismo e o gosto pelo
“poder total”.
Entre os Aliados, os itamaratianos
fizeram a sua escolha: os Russos, que representavam a nova força que se
estabelecia no mundo, contrária aos Americanos. A respeito do clima que se
vivia no Ministério das Relações Exteriores no contexto dessa arrumação
ideológica, escreve Roberto Campos: “O Itamaraty, situado na avenida Marechal
Floriano (a antiga rua Larga de São Joaquim), era comumente apelidado de Butantã da rua Larga. – São cobras, mas
fingem que são minhocas – dizia-me de seus colegas o admirável Guimarães Rosa,
que depois se tornaria o meu escritor preferido”. [1]
Roberto Campos e um grupo minoritário
representaram a opção por um conceito de diplomacia afinado com a democracia
ocidental e alheio à busca do “democratismo” que terminou vingando no mundo
comunista. Como ele mesmo destacava, virou uma espécie de “profeta da
liberdade”, à maneira, aliás, de Tocqueville, que se descrevia a si próprio
como um “João Batista que prega no deserto”. A respeito da opção liberal,
frisava Roberto Campos na sua obra autobiográfica, A lanterna na popa: “Em
nenhum momento consegui a grandeza. Em todos os momentos procurei escapar da
mediocridade. Fui um pouco um apóstolo, sem a coragem de ser mártir. Lutei
contra as marés do nacional-populismo, antecipando o refluxo da onda. Às vezes
ousei profetizar, não por ver mais que os outros, mas por ver antes. Por muito
tempo, ao defender o liberalismo econômico, fui considerado um herege
imprudente. Os acontecimentos mundiais, na visão de alguns, me promoveram a
profeta responsável”. [2]
O nosso autor definia o seu compromisso
intelectual com a defesa de duas variáveis: opulência e liberdade, que deveriam
estar estreitamente ligadas para não degenerarem em populismos irresponsáveis.
A respeito, Campos frisava: “Neste fim de século ressurgem tendências liberais
sob a forma do capitalismo democrático.
Este se baseia na convicção de que somente através do mercado se alcança a
opulência, enquanto que para a preservação da liberdade o instrumento
fundamental é a democracia. Ambos, opulência e liberdade são valores
desejáveis. O mercado pode gerar opulência sem democracia, e a democracia, sem
o mercado, pode degenerar em pobreza. Conciliar o mercado, que é o voto
econômico, com a democracia, que é o voto político, eis a grande tarefa da era
pós-coletivista – o século XXI”. [3]
Talvez o traço mais marcante da
personalidade intelectual de Roberto Campos tenha sido a capacidade de rir de
si próprio, estabelecendo uma saudável relatividade nos seus pontos de vista.
Definiu-se a si mesmo, no primeiro capítulo de sua autobiografia, como o
“analfabeto erudito”. Analfabeto em matéria de especialidades cartoriais que o
habilitariam para um concurso público. Mas erudito por uma inegável formação
humanística haurida no Seminário, onde cursou os estudos completos de Filosofia
e Teologia, além de ter recebido as “Ordens Menores” (hostiário, leitor,
exorcista, acólito). Lia com familiaridade o grego e o latim. E, forçosamente,
para quem viveu anos a fio em meio às exigências celibatárias, a iniciação
sexual começou bastante tarde, já na casa dos vinte e tantos anos. [4]
Dessas peripécias dá notícia, com humor, Roberto Campos na sua obra
autobiográfica.
A formação humanística no Seminário fez com
que o nosso autor tivesse como pano de fundo da sua vivência intelectual, a
compreensão da complexidade das relações sociais, ancorando o estudo destas na
meditação aprofundada sobre o ser humano. Algo semelhante ao que motivou o pai
do liberalismo, John Locke, a entender as relações políticas sobre o pano de
fundo mais largo das exigências morais, a partir do imperativo, de inspiração
medieval, do controle moral ao poder. Não em vão o maior vulto do liberalismo
inglês frequentou os estudos humanísticos preparatórios para a clerezia no
Christ Church College, antes de passar pelos estudos da Medicina em Oxford que
o levaram, jovem praticante, a tratar do conde de Shaftesbury e virar, pelo seu
intermédio, o principal assessor da liderança parlamentar no desmonte do
absolutismo monárquico.
A formação humanística recebida por
Roberto Campos o habilitou para, sobre esse legado, entender em profundidade o
mundo econômico, ao ensejo dos estudos feitos em nível de pós-graduação em
Economia, na Escola de Governo da George Washington University, sob a rigorosa
orientação de Edward Champion Acheson. Na mencionada Universidade o nosso autor
teve contato com os maiores vultos do pensamento econômico da época como John
Donaldson, Arthur F. Burns, Gottfried Haberler, Fritz Machlup, Joseph Alois
Schumpeter (que considerou que o montante das pesquisas feitas por Campos para
a tese de mestrado “era suficiente para uma tese doutoral”), John Maynard
Keynes e o papa da Escola Austríaca, Friedrich A. Hayek.
Assim, a passagem de Roberto Campos
pela divisão de “secos e molhados” (nome jocoso dado pelo nosso autor à área de
Assuntos Econômicos do Itamaraty) foi bastante profícua, tendo-o colocado,
junto com Eugênio Gudin, na linha de frente da formulação das políticas
econômicas, que se tornariam, após a Conferência de Bretton Woods em 1944, a
peça forte das relações diplomáticas. (Da mencionada Conferência, Roberto
Campos participou como assessor da equipe brasileira chefiada pelo professor
Gudin).
Duas etapas podem ser reconhecidas na
formação do liberalismo econômico no nosso autor: a primeira, onde a influência
maior veio de Keynes e a segunda, já derrubado o Muro de Berlim, com uma
aproximação maior ao pensamento da Escola Austríaca. Mas sempre mantendo atenta
a vista na construção de instituições que conduzissem o Brasil ao pleno
desenvolvimento econômico com preservação da liberdade.
Roberto Campos, crítico do
Patrimonialismo. Ele foi, ao meu ver, um dos críticos mais sistemáticos e
radicais das práticas patrimonialistas com a tendência secular a fazer do
Estado negócio de família. Na sua última
fala no Congresso, ao se despedir da vida pública, em 1999, frisou: “ (...).
Sempre achei que um dos mais graves problemas dos subdesenvolvidos é a sua
incompetência na descoberta dos verdadeiros inimigos. Assim, por exemplo os
responsáveis pela nossa pobreza não são o liberalismo, nem o capitalismo, em
que somos noviços destreinados, e sim a inflação, a falta de educação básica, e
um assistencialismo governamental incompetente, que faz com que os assistentes
passem melhor que os assistidos. Os inimigos do desenvolvimento não são os
entreguistas que, aliás, só poderiam entregar miséria e subdesenvolvimento, e
sim os monopolistas, que cultivam ineficiências e criaram uma nova classe de
privilegiados – os burgueses do Estado. Os promotores da inflação não são a
ganância dos empresários ou a predação das multinacionais e sim esse velho
safado, que conosco convive desde o albor da República – o déficit do setor
público”. [5]
Referências
Bibliográficas
CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa – Memórias. Rio
de Janeiro: Topbooks, 1994, p. 31.
CAMPOS, Roberto. A despedida de Roberto Campos. O
Estado de São Paulo, 31/01/1999, p. A8.
[1]
CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa – Memórias. Rio de Janeiro: Topbooks, 1994,
p. 31.
[2]
CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa – Memórias. Ob. Cit., p. 20
[3]
CAMPOS, Roberto. A lanterna na popa – Memórias, ob. cit., p. 21.
[4] Sinto-me irmanado com o grande pensador
nestes aspectos da sua biografia, pois percorri todas essas etapas clericais,
tendo inclusive recebido, além da tonsura, as “Ordens Menores”. Pulei fora
quando chegou a hora do subdiaconato, com a renúncia definitiva ao casamento.
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