Cunha e o Marques de Mirabeau (1749-1791) foram testemunhas vivas de um regime que morre. O parlamentar francês assistiu de camarote à derrubada, na França, do Ancien Régime e participou do governo tumultuado que, após a Revolução de 1789, instaurou a Assembleia Nacional, tendo sido presidente da mesma. O ex-presidente da Câmara dos Deputados do Brasil presidiu a sessão que iniciou o fim do regime lulopetista, com a aprovação do parecer que recomendava o processo de impeachment da presidente Dilma. Um e outro se destacaram, nas suas respectivas épocas, pela prática da arte da sobrevivência política. Ambos conheciam, com perfeição de relojoeiro suíço, as engrenagens da máquina pública. Identificaram a linha divisória entre duas eras e, por causa disso, conseguiram sobreviver no cenário político. Defenderam o Poder Legislativo. Cunha e Mirabeau destacaram-se dos seus contemporâneos pela atitude fria e calculista em face da maré dos acontecimentos que se avolumaram sobre as suas respectivas Nações, sem perder o rumo do que deveriam fazer para que as instituições funcionassem: derrubar Dilma, no caso de Cunha, implantar a monarquia constitucional com regime parlamentar, no caso de Mirabeau. Ambos suscitaram ódios mefistofélicos contra as suas pessoas. Vale a pena, ao menos por curiosidade, tentar entender essas duas paradoxais figuras.
Mirabeau remou contra a corrente dos que pensavam que a
Revolução Francesa tinha destruído completamente as práticas centralizadoras do
Antigo Regime, (“A Revolução Francesa
tem um caráter satânico”, dizia José de Maistre): o esquisito deputado considerava
que era esta precisamente a linha histórica que unia a Monarquia e as novas
instituições saídas da Revolução. Menos de um ano depois da queda da Bastilha,
assim escrevia Mirabeau em carta secreta dirigida ao rei Luís 16, segundo o
testemunho autorizado de Tocqueville no seu clássico O Antigo Regime e a Revolução:
“Comparemos o novo estado das coisas com o antigo regime: lá nascem os consolos
e as esperanças. Uma parte dos atos da Assembleia Nacional – a mais
considerável – é evidentemente favorável ao governo monárquico. Não significará
nada ser sem parlamento, sem governo de Estado, sem corpo de clero, de
privilegiados, de nobreza? A ideia de formar uma só classe de cidadãos teria agradado
a Richelieu: esta superfície igual facilita o exercício do poder. Alguns reinos
de um governo absoluto não teriam feito tanto em prol da autoridade real que
este único ano de Revolução”. Assim
conclui Tocqueville a sua menção a Mirabeau: “(Isso) era entender a Revolução
como um homem capaz de dirigi-la!”
À frente de uma Câmara dos Deputados desmoralizada pela
corrupção lulopetista, Cunha conseguiu construir ampla maioria favorável à
aprovação do impeachment contra a presidente, fazendo, assim, com que o
Parlamento se tornasse caixa de ressonância da voz das ruas, nas
multitudinárias manifestações que percorreram o país desde Junho de 2013,
exigindo o fim da corrupção organizada e estimulada pelo Partido do Governo a
partir do Executivo. O deputado carioca não se abalou com os processos que
começaram a desabar sobre a sua cabeça: manteve firme o leme da nau
parlamentar, sem pestanejar e sem se impressionar com os xingamentos vindos da
praça pública e do próprio Congresso. Foi notável a sua calma diante dos gritos
dos desafetos na votação do impeachment, no dia 17 de Abril. E conduziu com mão
firme a histórica sessão até o término da votação. Convenhamos que
oposicionista algum ao governo Dilma conseguiu agir com tamanha coragem e
determinação.
É claro que Cunha utilizou também os seus dotes de esperto
timoneiro nas idas e vindas da Comissão de Ética da Câmara, jogando com
paciência e cálculo bem dosado, para esvaziar por repetidas vezes as investidas
dos seus colegas parlamentares, irritando sobremaneira a ala governista, que
não conseguiu ver aprovado o pedido de cassação do seu mandato, antes da
aprovação do impeachment. Conhecedor dos interesses ocultos dos seus colegas na
Câmara dos Deputados e tendo claro o complexo mapa do equilíbrio do poder nesta
quadra da história brasileira, o presidente da Câmara, ora deposto do seu cargo
por sentença do STF, protelou o quanto pôde o seu julgamento na Comissão de
Ética.
Não que Eduardo Cunha não tenha transgredido. Mas as
suspeitas da magistratura e de setores da sociedade contra ele ainda não se
confirmaram nem se tornaram julgamento consumado. Resta aos seus desafetos a
incômoda sensação de que, embora transgressor, colaborou decisivamente para a valorização
do Legislativo em face das amarras com que o lulopetismo ameaçou acabar com as
liberdades neste país. Vivo fosse, Bernard de Mandeville repetiria o bordão do
seu romance A fábula das abelhas (1714): “Vícios privados, virtudes
públicas”.
O que salta à vista desses episódios é que, em política, como
apregoava o doutrinário francês François Guizot (1787-1874), o homem público
tem de “escutar a massa” e não apenas a parcela que o ameaça ou que o adula. Se
há algo pelo que Cunha e Mirabeau serão lembrados, é pelo fato de terem agido,
na frente política, de olho naquilo que deveria ser a ação de homens públicos:
que decisões tomar para melhor responder ao que as massas esperam do poder em
determinada quadra histórica. No caso do paralelo que tracei nestas linhas, é
claro que Cunha e Mirabeau empanaram a sua imagem de homens públicos ao terem
defendido, também, interesses particulares escusos. Mirabeau era acusado pelos
seus colegas, os nobres, de uma vida dissoluta que os desmoralizava perante a
população, que já não aturava com paciência os excessos de uma corte constituída
por parasitas. Cunha tem sobre si a suspeita de ter recebidos polpudas propinas
decorrentes de atos de corrupção relacionados a desvio de dinheiro da
Petrobrás.
Considero que, na atual quadra da vida política brasileira, a
cassação de Cunha e a sua saída da vida pública, ajudarão a desanuviar o
horizonte tumultuoso que ora atravessa o Congresso, mormente depois da ópera
bufa da semana passada, interpretada pela regente Dilma, pelo seu
primeiro-violino Cardozo na AGU e pelo palhaço/pateta Maranhão na Presidência
da Câmara dos Deputados. A saída do padrinho de Maranhão, Eduardo Cunha,
tornou-se necessária, notadamente agora, quando defende a permanência do seu
pupilo à frente da Câmara dos Deputados.
Graças aos paradoxos que oferece, sempre, a política, Cunha e
Mirabeau saíram do palco pela porta dos fundos da cena política. Ao que consta,
Mirabeau morreu envenenado por algum dos seus muitos inimigos situados à esquerda
e à direita do palco político (lembremos que a dicotomia famosa foi inventada
na Revolução Francesa). Cunha foi vítima da metralhadora-giratória dos inúmeros
processos ensejados pela Justiça nesta conturbada quadra da história brasileira
que, felizmente, encara o combate a corrupção como política de Estado.
Se o PT já é coisa do passado, a onda de corrupção e de
descaro em face do dinheiro público deve virar também coisa do passado. Cunha,
em que pese o fato de ter colaborado decisivamente na instauração do processo
de impeachment, não poderá continuar na Câmara dos Deputados. A sociedade
brasileira perdeu a confiança na sua ação política, por conta das denúncias de
corrupção levantadas contra ele pelo Ministério Público.
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