O Imperador Chinês recebe o Rei da Malásia. (Foto: Museu de cera Melaka, Malásia). |
Foi tão poderosa a presença
desses Estados hidráulicos que os dois grandes Impérios Ocidentais que o mundo
conheceu na Antiguidade, o de Alexandre o Grande, e o Império Romano, sofreram
definitivamente a influência despótica dos patrimonialismos hidráulicos,
mediante a incorporação de práticas absolutistas, tanto da parte do jovem
general macedônio quanto dos Césares romanos. Somente séculos depois (a partir de 1400)
apareceram os Estados contratualistas, aqueles que, ao ensejo da luta de
classes, deram lugar aos modernos Estados nacionais, que solidificaram a prática
da representação como forma de garantir a participação dos cidadãos na res publica, mantendo clara
diferenciação entre esfera pública e privada.
Max Weber denominou a primeira
forma de organização política, relativa aos Estados de modalidade hidráulica,
como “Estado das autoridades”, contraposta ao “Estado Contratualista”,
denominado por ele de “Estado do povo”. Ora, a herança que chegou até nós, na
América Latina, do velho despotismo ibérico pós-feudal, foi a dos Estados
Patrimoniais, intermediada, na Península Ibérica, pelos oito séculos de
dominação muçulmana que deu ensejo a Estados mais fortes do que a sociedade, na
modalidade concentrada e familística de poder que vingou nos Califados de
Sevilla e Granada, que somente foram desmontados pelas monarquias espanhola e
portuguesa após séculos de combate contra o invasor muçulmano, tendo os
cristãos, vencedores, copiado os modelos de poder concentrado e familístico típico
das organizações hidráulicas patrimonialistas. O vencido, no caso os mouros, do
ângulo da gestão pública, terminou impondo o seu modelo despótico ao vencedor.
Algo semelhante, conforme destaca
Wittfogel, aconteceu no oriente da ilha européia, no Principado de Moscou, que
somente conseguiu se ver livre da dominação despótica da Horda Dourada de
Gengis Khan, copiando os procedimentos centralizadores dos invasores asiáticos
e anexando a imensa extensão dos seus territórios na Eurásia, ao ensejo da derrota
definitiva dos mongóis por Ivã IV o Terrível (que foi czar da Rússia entre 1547 e 1584).
O Patrimonialismo é, portanto,
fenômeno político de longa data e somente conhecendo a sua história será
possível elaborar um roteiro que vise ao seu desmonte. Reza o ditado espanhol
que “más sabe el diablo por viejo que por diablo”. Aplicado o princípio ao caso
sobre o qual refletimos, o Estado Patrimonial, este é possuidor de rotinas
administrativas que potencializam as suas forças, de modo a se autoperpetuar
quando surgem dificuldades. É uma espécie de DNA que preserva a essência
patrimonialista, em que pese as dificuldades que apareçam no horizonte.
Wittfogel lembra que foi o economista americano John Maurice Clark quem
formulou o princípio vigente nos Estados Patrimoniais da “racionalidade
administrativa variável”. Estes, quando colocados numa situação de insegurança
em decorrência da atuação de forças que ameacem a sua estabilidade, promovem
reformas limitadas, dirigidas apenas a esconjurar o perigo de extinção da
dominação patrimonialista. Mas, uma vez desmontado o risco, as coisas voltam às
antigas praxes de privatização do poder por parte da elite dominante. Era o
princípio getuliano presente nos mandamentos de gestão que o velho líder são
borjense utilizava nos momentos de crise: “deixar como está para ver como é que
fica”, e “não fazer inimigos que não se possa converter em amigos”.
Ora, com o PT em risco de ser
banido do poder está em funcionamento algo semelhante. Lula mostrou-se amplo
conhecedor da dialética patrimonialista e tece as linhas do roteiro que leve à
salvação, mesmo que temporária, da máquina petista. Isso dá ensejo a uma
guerrilha de desgaste que não soluciona os problemas, mas que possibilita uma
dose de oxigênio necessária para manter as coisas como estão, mesmo que o
conjunto da gestão regrida. Convenhamos que o inimigo encontra-se acima: é o
Estado mais forte do que a sociedade. Com Dilma ou sem Dilma, ele está bem de
saúde. Mas já seria um passo à frente a saída de Dilma e do PT do poder.
Nessa longa batalha contra o
Estado patrimonial, Antônio Paim lembrava, na sua obra A querela do estatismo,
que deveriam ser identificados quatro segmentos na análise do Estado
patrimonial brasileiro: militares, tecnocratas, burocracia tradicional e classe
política. Na época em que o mestre escrevia a sua análise (1978), os dois
primeiros segmentos contrapunham-se aos outros dois. A dinâmica para tirar
força ao Estado Patrimonial estaria ligada, portanto, a uma prevalência desses
segmentos na vida política. Hoje as coisas estão um pouco mais complexas. A
primeira diferença corre por conta de algo que em 78 não aparecia claramente: a
organização da sociedade civil e a sua reação contra o estatismo vigente. Hoje
essa constitui uma quinta variável e é por aí, a meu ver, que deve se
vislumbrar o caminho para pôr limites ao reforço do Estado mais forte do que a
sociedade.
Caro Prof. Ricardo,
ResponderExcluirgostaria de lhe dizer que, após a leitura do texto,
tenho a nítida percepção de que o sr. reconhece a
existência de uma elite governante ad eterno no Brasil.
E estamos de pleno acordo sobre este ponto. Porém,
a vinculação da existência desta elite ao patrimonialismo,
e a tese de desmonte do mesmo, não me parecem confiáveis
e nem sequer necessárias. Estas ideias não passam pela
navalha de Okham.
Um abraço do seu amigo Pitt.
Caro Pitt, bom te reencontrar por aqui! Continúa frequentando o meu blog, é ganho para mim ouvir as opiniões dos meus caros ex-alunos! Você está em boa companhia: a tua posição é a do Raymundo Faoro, para quem o Patrimonialismo é indestrutível. Bom, eu já concordo com a opinião do professor Antônio Paim e do sociólogo Simon Schwartzman, para os quais o Patrimonialismo pode-se aproximar do modelo de Estado contratualista e, em certas circunstâncias (como as ocorridas com a Espanha e Portugal) evoluir até uma modalidade democrática e representativa de Estado...Abraço grande!
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