Os sonhos de Dom Quixote - Gustavo Doré. |
Dom Quixote e os moinhos de vento - Gustavo Doré. |
Cervantes encarnou o liberalismo telúrico ibérico,
que aflora em outras figuras dessa cultura. Após os estudos de Alexandre
Herculano, Américo Castro, Martínez Marina, Ots Capdequí, Fidelino de
Figueiredo, Sampaio Bruno, etc., ficou claro que a tradição liberal é, na
Península Ibérica, mais antiga que a vertente patrimonialista e absolutista,
que veio se inserir na história dos povos espanhol e português como realidade
adventícia, posterior a essa inicial aspiração a um individualismo estóico e
libertário. A tradição contratualista visigótica deu expressão a essa velha
tendência independentista (belamente expressa nos Fueros Aragoneses), e
foi o ponto central das dores de cabeça de conquistadores alienígenas, como
Napoleão Bonaparte (1769-1821). O Imperador dos Franceses começou o seu rápido
declínio quando decidiu invadir os confins da Ilha européia, a Península
Ibérica e a Rússia. Defrontou-se com a tremenda capacidade de sobrevivência e o
patriotismo do povo russo e com a particular heroicidade da sociedade
espanhola, capaz de lutar até o último homem em prol da defesa da sua
independência e da liberdade. Os quadros de Goya que retratam os fuzilamentos
de 1812 dão prova dessa capacidade de luta heróica dos ibéricos contra o
invasor estrangeiro.
Se há um traço que marca a personalidade de Dom Quixote,
esse é a defesa incondicional que o herói cervantino faz da liberdade. O ponto
essencial do seu programa caveleiresco é a ética da honra, que se centra na
defesa da liberdade individual. Liberdade de ir e vir, liberdade de não ser
importunado pelos burocratas do rei, liberdade de amar e de folgar com os
amigos, liberdade para os cativos, liberdade das amarras contra-reformistas
expressas no direito filipino e nos preconceitos inquisitoriais.
A defesa incondicional da liberdade, tal é o leitmotiv
do belo discurso que Cervantes põe em boca de Dom Quixote, no Capítulo LVIII da
Segunda Parte da obra. Eis as palavras do herói cervantino quando deixa o
palácio dos Duques, após ser tratado por estes com todas as delicadezas e
afagos da alta nobreza: “A liberdade, Sancho, é um dos dons mais preciosos, que
aos homens deram os céus; não se lhe podem igualar os tesouros que há na terra,
nem os que o mar encobre; pela liberdade, da mesma forma que pela honra, se
deve arriscar a vida, e, pelo contrário, o cativeiro é o maior mal que pode
acudir aos homens. Digo isto, Sancho, porque bem viste os regalos e a
abundância que tivemos neste castelo, que deixamos; pois no meio daqueles
banquetes saborosos, e daquelas bebidas nevadas, parecia-me que estava metido
entre as estreitezas da fome; porque os não gozava com a liberdade com que os
gozaria, se fossem meus; que as obrigações das recompensas, dos benefícios e
mercês recebidas, são ligaduras que não deixam campear o ânimo livre. Venturoso
aquele a quem o Céu deu um pedaço de pão, sem o obrigar a agradece-lo a outrem
que não seja o mesmo Céu!”[1]
Comentando o discurso de Dom Quixote, escreveu Mário Vargas
Llosa o seguinte texto, em que destaca a inspiração liberal do nosso herói:
“Recordemos que o Quixote pronuncia esta louvação exaltada da liberdade ao
partir dos domínios dos anônimos duques, onde foi tratado a corpo de rei por
esse exuberante senhor do castelo, a encarnação mesma do poder. Mas, nos afagos
e mimos de que foi objeto, o Engenhoso Fidalgo percebeu um invisível espartilho
que ameaçava e rebaixava a sua liberdade, porque os não gozava com a
liberdade com que os gozaria, se fossem meus. O pressuposto desta afirmação
é que o fundamento da liberdade é a propriedade privada, e que o verdadeiro
gozo só é completo se, ao desfrutar, uma pessoa não vê recortada a sua
capacidade de iniciativa, a sua liberdade de pensar e de agir. (...) Não pode
ser mais claro: a liberdade é individual e exige um mínimo de prosperidade para
ser real. Porque quem é pobre e depende da dádiva ou da caridade, nunca é
totalmente livre”. [2]
A liberdade apregoada e defendida por Dom Quixote, é a que
hodiernamente chamamos de liberdade negativa. Trata-se de uma liberdade
não adjetivada, liberdade primária de ir e vir, essa liberdade que estimulou as
revoltas espanholas, portuguesas e ibero-americanas, nas denominadas
“conjurações”, seja dos comuneros espanhóis do século XVI, seja dos
nossos conjurados neo-granadinos ou mineiros de fins do século XVIII. Ora, a
liberdade primária defendida pelos conjurados latino-americanos é a de pensar e
agir, a de não serem taxados os cidadãos sem prévia negociação com a Coroa. A
propósito disto, afirma Vargas Llosa: “Que idéia da liberdade se faz Dom
Quixote? A mesma que, a partir do século XVIII, far-se-ão na Europa os chamados
liberais: a liberdade é a soberania de um indivíduo para decidir a sua vida sem
pressões nem condicionamentos, em exclusiva função de sua inteligência e
vontade. Quer dizer, o que vários séculos mais tarde um Isaias Berlin definiria
como liberdade negativa, a de estar livre de interferências e coações
para pensar, se exprimir e agir. O que reside no coração dessa idéia de
liberdade é uma desconfiança profunda em face da autoridade, dos desaforos que
pode cometer o poder, qualquer poder”.[3]
Essa liberdade negativa é também defendida por Sancho Panza.
Em face das complicadas tarefas de governador da Insula Barataria, o fiel
escudeiro prefere a vida simples de quem se contenta com o trabalho manual e o
alimento na hora certa; prefere essa vidinha aos luxos da corte e à complicada
ritualística da governança, que lhe exige, entre outras coisas, entrar em
combate com incômoda armadura que lhe impossibilita os movimentos, levar uma
surra monumental dos inimigos fictícios e se submeter à famélica dieta prescrita
pelos médicos, a fim de manter as aparências estetizantes do palco da política.
Eis o discurso com o qual Sancho dispõe-se a justificar a sua saída do poder,
para desfrutar a simples liberdade dos filhos de Deus: “Abri caminho, senhores
meus, e deixai-me voltar à minha antiga liberdade; deixai-me ir buscar a vida
passada, para que me ressuscite desta morte presente. Eu não nasci para ser
governador, nem para defender ilhas nem cidades dos inimigos que as quiserem
acometer. Entendo mais de lavrar, de cavar, de podar e de pôr bacelos nas
vinhas do que de dar leis ou defender províncias nem reinos. Bem está São Pedro
em Roma; quero dizer: bem está cada um, usando do ofício para que foi nascido.
Melhor me fica a mim uma fouce na mão,
do que um ceptro de governador; antes quero comer à farta feijões, do que estar
sujeito à miséria de um médico impertinente, que me mate à fome; e antes quero
recostar-me de Verão à sombra de um carvalho, e enroupar-me de Inverno com um
capotão, na minha liberdade, do que deitar-me, com a sujeição do governo, entre
lençóis de Holanda, e vestir-me de martas cevollinas. Fiquem Vossas
Mercês com Deus, e digam ao duque meu senhor que nasci nu, nu agora estou, e
não perco nem ganho; quero dizer: que sem mealha entrei neste governo, e sem
mealha saio, muito ao invés do modo como costumam sair os governadores de
outras ilhas; e apartem-se, deixem-me, que me vou curar, pois suponho que tenho
arrombadas as costelas todas, graças aos inimigos que esta noite passearam por
cima do meu corpo”.[4]
Dom Quixote, herói libertário. Mas, também, cavaleiro
andante que luta em prol da justiça. Encontramos, na escala axiológica do herói
cervantino, o culto insofismável a esses dois valores: liberdade, mas também
justiça (que hoje denominaríamos de democracia, no sentido de igualdade
perante a lei e ausência de privilégios). Dom Quixote, como fará Alexis de
Tocqueville três séculos mais tarde, bate-se por um liberalismo que concilia
defesa da liberdade e defesa da justiça/igualdade[5].
O liberalismo telúrico quixotesco é, como o de Tocqueville, um liberalismo
social.
O Cavaleiro da Triste Figura, embora reconheça a
legitimidade dos poderes constituídos, desconfia dos seus excessos. Numa
Espanha presidida pelo Estado patrimonial dos Áustrias, Dom Quixote fica com um
pé atrás, em face da autoridade. Ela, como nos subúrbios das grandes cidades
brasileiras ou no nosso sertão, somente se fazia presente, na Espanha
cervantina, para tornar mais difícil a vida do desprotegido cidadão. Quando os
poderosos extrapolam os seus privilégios, utilizando uma legislação que, como a
filipina, privilegiava quem tivesse recursos contra os que não tinham nada, o
herói cervantino não duvida em favor de quem vai empunhar as suas armas: em
defesa dos fracos. Isso acontece, por exemplo, quando Dom Quixote desafia o
poderoso Juan Haldudo, que está açoitando um dos seus empregados que lhe
extraviou uma ovelha. Dom Quixote intervém, lança em riste, obrigando o rude
senhor a parar com a injusta punição.
A respeito desse episódio, afirma Vargas Llosa: “Como neste,
a novela está cheia de episódios em que a visão individualista e libérrima da
justiça conduz o temerário fidalgo a desacatar os poderes, as leis e os usos
estabelecidos, em nome do que para ele é um imperativo moral superior”.[6] A atitude libertária de Dom Quixote chega até
os limites da anarquia, quando o herói descobre que a autoridade exercida em
nome d’ El-Rei simplesmente escraviza sem contemplação e sem discernimento, em
que pese o fato de os delitos terem sido já expiados pelos condenados, que são
conduzidos para completar a sua pena nas galés. Ao libertar os doze cativos
(entre eles o famoso meliante Ginés de Passamonte), Cervantes coloca em boca do
seu personagem um alerta contra o excessivo rigor da autoridade: “porque dura
coisa me parece o fazerem-se escravos indivíduos, que Deus e a Natureza fizeram
livres”.[7]
Dom Quixote desconfia da autoridade, mas quer, ao mesmo
tempo, o mundo em ordem. Ora, a paz social deveria ser obra dos indivíduos
chamados por uma vocação especial – os cavaleiros andantes – a pôr ordem nas
coisas humanas, sem que fosse necessário atribuir essa tarefa aos burocratas
d’El-Rei, que certamente vão utilizar a parcela de poder que receberam para
escravizar os seus semelhantes. Cervantes apela para uma aristocracia da ordem,
que se contraponha ao exercício da autoridade régia. A respeito, escreve Vargas
Llosa: “O Quixote não acredita que a justiça, a ordem social, o progresso sejam
funções da autoridade, mas obra de indivíduos que, como os seus modelos, os
cavaleiros andantes, e ele mesmo, tenham chamado a si a tarefa de tornar menos
injusto e mais próspero o mundo em que vivem. Isso é o cavaleiro andante: um
indivíduo que, motivado por uma vocação generosa, lança-se pelos caminhos a
buscar remédio para tudo aquilo que anda mal no planeta. A autoridade, quando
aparece, em lugar de lhe facilitar a tarefa, torna-a difícil”.[8]
A Espanha cervantina, Realidade que se converte em
Mito.
A loucura de Dom Quixote, longe de ser esconjurada no
decorrer da narrativa cervantina, termina contaminando a obra. Os fatos reais
passam a uma segunda dimensão e tornam-se fantasia. Para curar a loucura do
herói, todos os que o rodeiam, a começar pelo bacharel Sansón Carrasco, assumem
um papel de ficção, a fim de, a partir desta, convencer o imaginoso manchego a
largar a cavalaria andante. Ora, acontece o contrário: todos passam a viver a
ficção quixotesca, o que termina dando à obra cervantina um inegável caráter
contemporâneo. Trata-se de uma ficção continuada à la Jorge Luis Borges, ou à
la Macondo: o furacão caribenho varre o mundo real e o transporta para a
dimensão da fantasia, em que todos os sonhos valem. Dom Quixote sai vencedor:
todos passam a compartilhar a loucura da fantasia. Até o prosaico Sancho começa
a acalentar o sonho como a melhor dimensão da realidade, ao se tornar
governador da Insula Barataria.
A respeito dessa dimensão fantástica da obra, escreveu
Vargas Llosa, justamente destacando a contemporaneidade de Dom Quixote: “O
grande tema de Dom Quixote de la Mancha é a ficção, a sua razão
de ser e a forma como ela, ao se infiltrar na vida, vai modelando-a,
transformando-a. Assim, o que parece a muitos leitores modernos o tema borgiano
por excelência – o de Tlön, Uqbar, Orbis Tertius – é, na verdade, um tema cervantino
que, séculos depois, Borges ressuscitou, imprimindo-lhe um selo pessoal. A
ficção é um assunto central da novela, porque o fidalgo manchego que é o seu
protagonista foi tirado de lugar (...) pelas fantasias dos livros de
cavalarias e, acreditando que o mundo é como o descrevem as novelas de Amadises
e Palmerines, lança-se ele em busca de umas aventuras que viverá de forma
exemplar e sofrendo pequenas catástrofes. Ele não tira dessas más experiências
uma lição de realismo. Com a inamovível fé dos fanáticos, atribui a
encantadores perversos que as suas façanhas tornem sempre a se desnaturar e a
se tornarem falsas. No final, termina se saindo com a sua. A ficção vai
contaminando o vivido e a realidade vai gradualmente se acomodando às
excentricidades e fantasias de Dom Quixote”.[9]
Cervantes brinca com a fantasia. Os personagens da Segunda
Parte de Dom Quixote leram o Primeiro Volume da obra e aceleram o
processo de tornar a realidade ficção. Isso se dá a partir do capítulo 31 da
Segunda Parte, com a aparição dos famosos duques sem nome, que desdobram a
cotidianidade em fantasias teatrais; quando encontram as figuras de Dom Quixote
e Sancho são literalmente seduzidos pela irrealidade destes e tomam carona no
seu sonho. É então quando, no castelo dos duques, a vida vira ficção, fantasia,
jogo. Existe exemplo mais claro de realismo mágico? Nesse brincar com a
fantasia, Cervantes coloca num ponto de vista evanescente o narrador da
história, ou melhor, os narradores desta. Quem são esses narradores? São dois: o
misterioso Cide Hamete Benengeli, que não é lido diretamente, em virtude do
fato de o seu manuscrito se encontrar escrito em árabe. O segundo é um narrador
anônimo, que por vezes fala em primeira pessoa, mas que o faz usualmente do
ponto de vista omnicompreensivo de quem fala em terceira pessoa. Este segundo
narrador traduz ao espanhol e comenta a narrativa do primeiro.
A respeito deste artifício, escreve Vargas Llosa: “Esta é
uma estrutura de caixa chinesa: a história que os leitores lemos está contida dentro
de outra, anterior e mais ampla, que só podemos adivinhar. A existência desses
dois narradores introduz na história uma ambigüidade e um elemento de incerteza
sobre aquela outra história, a de Cide Hamete Benengeli, algo que
impregna as aventuras de Dom Quixote e Sancho Panza de um sutil relativismo, de
uma áurea de subjetividade, que contribui de forma decisiva a lhes dar
autonomia, soberania e uma personalidade original”.[10]
Nesse sumir a realidade na aventura da ficção literária,
Cervantes genialmente se insurge contra o gênero de “Livros de Cavalarias”,
substituindo o descomunal dos seus dragões, anões, serpentes, terras exóticas,
gigantes, castelos aquáticos (óbvios demais, por exemplo, na narrativa de
Chrétien de Troyes), pela crescente evanescência do universo humano na
perspectiva da loucura dos personagens principais, que toma de assalto a razão
de todos os outros e dos próprios leitores. Valha, a respeito, a acertada
observação de Martín de Riquer, no seu estudo intitulado Cervantes y el
Quijote: “O certo é que Cervantes propôs-se satirizar e parodiar os
livros de cavalarias, a fim de acabar com a sua leitura, que ele considerava
nociva, e que, segundo demonstra a bibliografia, conseguiu plenamente o seu
propósito, pois depois de publicado o Quixote diminuem de forma
extraordinária, até desaparecerem totalmente, as edições espanholas de livros
deste gênero”.[11]
Cervantes, nessa genial aventura da imaginação, consegue
libertar os Livros de Cavalaria do ambiente de passado em que tinham
mergulhado, ao fazer do Cavaleiro da Triste Figura um modelo ético a ser
seguido pelo homem moderno. Trata-se de um ideal prometeico que torna ao herói
fonte irradiadora de amor incondicional, tomando o lugar que o Deus-Amor
ocupava no Cristianismo. No amor incondicional pela sua dama, o herói supera a
morte e se projeta para a eternidade. A propósito, escreve com muito bom senso
San Tiago Dantas, nesse seu magnífico ensaio intitulado Dom Quixote, um
apólogo da alma ocidental: “Pois Cervantes, segundo penso, concebeu o Dom
Quixote para extrair a Cavalaria da forma histórica em que vivera, e da
ingênua literatura fabulosa em que agonizava, e para lhe assegurar uma
ressurreição no mundo dos símbolos. Todo o Quixote prova que a
perenidade da Cavalaria não está nas suas exterioridades, mas no molde
espiritual invisível, que, depois de se haver modelado sobre ela, se separou de
seu corpo transitório. Eis porque a novela cervantina pode ser implacável com a
Cavalaria e os Livros de Cavalaria, para os quais aponta o caminho da morte, ao
mesmo tempo em que o espírito e a ética da Cavalaria entram pela sua mão no
clima da vida eterna”.[12]
Dom Quixote, modelo de herói moderno.
Terminarei a minha aproximação à obra cervantina ressaltando
este aspecto que faz de El Quijote o precursor da literatura
moderna, assim como Descartes (1596-1650) é o precursor da filosofia moderna
com o seu Discurso do Método. A essência da modernidade pode ser
condensada na seguinte idéia: o homem descobre a perspectiva antropocêntrica e
faz de si próprio o centro do cosmo. Ora, nesse antropocentrismo prometeico e
iconoclasta, o homem ousa representar Deus à sua imagem e semelhança. A melhor
expressão dessa ousadia a encontramos na Renascença Italiana. Não é, por acaso,
o belo afresco de Miguel Ângelo, na Capela Sixtina, o símbolo desse “fazer Deus
à sua imagem e semelhança?” Não é, como lembrava Ortega, a alma da Renascença,
esse instituir uma religião eminentemente teândrica, ao redor da “Imitação de
Cristo?” O Deus absconditus das Catedrais Góticas tinha ficado submerso
nas sombras do Mistério, ausente no sentimento que Rudolf Otto identificou como
o numinoso. O sagrado-absolutamente-outro falava pouco para o homem da
Renascença, que reinventa a experiência do mundo. Era necessário encarnar Deus no
mundo, fazê-lo partilhar da nossa humanidade, era preciso trazer o céu para cá
embaixo, torná-lo objeto da experiência humana. Não é essa a síntese da Divina
Comédia de Dante (1265-1321)? É possível, sim, viajar pelo além, como
quem descobre Novos Mundos. Esse é o roteiro essencial da metáfora do genial
precursor florentino do quatrocento, que imagina Paraíso, Purgatório e
Inferno a partir da perspectiva histórica da sua cidade.
Pois bem: Cervantes apropria-se dessa perspectiva
antropocêntrica e ergue um ideal ético para o homem moderno: o da pessoa-amor,
que ama incondicionalmente e que, ao redor desse amor-doação constrói o seu
mundo, ou melhor, faz evanescer o mundo real na névoa da metáfora continuada da
loucura quixotesca. A fonte (neo-platónica e judaica) que inspira esta
perspectiva heróica é indubitável, e é o próprio autor quem a identifica no
prólogo do Quixote, onde Cervantes escreve: “Se vos meterdes em
negócios de amores, com uma casca de alhos que saibais da língua toscana
topareis em Leão Hebreu, que vos encherá as medidas”.[13]
O filósofo judeu-espanhol, falecido na Itália em 1535, foi, com a sua clássica
obra Diálogos de Amor, a voz inspiradora da loucura amorosa de
Dom Quixote. Um pouco mais adiante, o mesmo pensador inspiraria um outro gênio
do século XVII, o filósofo luso-holandês Baruch Espinosa (1632-1677). Intuiu
com propriedade o genial Unamuno essa reviravolta ontológica, quando, na sua Vida
de Don Quijote y Sancho, escreveu: “Dom Quixote amou a Dulcinea com
amor acabado e perfeito, com amor que não corre atrás do deleite egoísta e
próprio; entregou-se a ela sem pretender que ela se entregasse a ele. Lançou-se
ao mundo a conquistar glória e louros, para ir logo depositá-los aos pés da sua
amada”.[14]
Nesse ato prometeico de criar um novo homem a partir da
vontade de amar, ou como diz Ortega nos seus Estudios sobre el amor,
no seio do “enamoramiento”, Cervantes antecipa o Kant (1724-1804) da Fundamentação
da metafísica dos costumes com a sua ética do dever, emergente das
profundezas subjetivas da liberdade transcendental, e prenuncia o Schopenhauer
(1788-1860) de O mundo como vontade e representação. Cervantes
supera, de outro lado, as duas formas de amor moderno desenvolvidas ao redor do
Doutor Fausto e de Don Juan. Efetivamente, o Doutor Fausto, na versão belamente
perenizada por Goethe (1749-1832), é movido por uma paixão titânica que tudo
dissolve e que, como frisa San Tiago Dantas, “é infiel, pois em meio às
satisfações perfeitas do amor, no peito do homem titânico medra o desejo de
libertar-se”.[15] O
herói cervantino supera, outrossim, o modelo do amor de Don Juan Tenório que,
no sentir de Unamuno, ter-se-ia dedicado a seduzir com a mirada a sua dama, a
fim de “possuí-la e saciar nela o seu apetite, não mais do que por amor a
gozá-la e apregoá-lo; Dom Quixote, não. Dom Quixote não foi de galã a El Toboso
a enamorá-la, mas saiu ao mundo a fim de conquistá-lo para ela”.[16]
Uma última observação: nessa doação incondicional à amada,
Dom Quixote supera as vicissitudes do amor, liberta-se por completo dos seus
limites. O herói cervantino conquista a plena liberdade. Nas palavras de San
Tiago Dantas, “Assim como se liberta da constante e fatal sedução da aventura
amorosa, Dom Quixote se liberta do ciúme. A entrega amorosa, sobretudo a
entrega que ainda não conseguiu se satisfazer, isto é, ser recebida pela pessoa
amada, assume um sentido unilateral que acaba por assemelhá-la ao Ser Divino”.[17]
Como Sancho estranhasse o fato de Dom Quixote ordenar a
todos aqueles que libertava que fossem se prostrar diante da amada Dulcinea, o
Cavaleiro da Triste Figura o repreendeu com as seguintes palavras: “Que néscio
e que simplório que és! (...). Pois tu não vês que tudo isso redunda em sua
maior exaltação? Porque deves saber, que nestas nossas usanças de cavalaria é honra
grande ter uma dama bastantes cavaleiros andantes que a sirvam, sem que os
pensamentos deles se abalancem a mais do que unicamente servi-la só por ser ela
quem é, sem aguardarem outro prêmio de seus muitos e bons desejos senão o ela
contentar-se de os aceitar por cavaleiros seus”.[18]
Essa incondicional
dedicação do herói à amada, foi interpretada pelo realista Sancho como uma
entrega em mãos do Absoluto. Eis a forma em que o singelo escudeiro interpreta
a louca paixão do seu senhor, aproximando-a da doação total de inspiração
evangélica: “Essa coisa já eu ouvi em sermões: que se há-de amar a Deus por si
só, sem que nos mova a isso esperança de glória, nem medo de castigo”.[19]
Entrega absoluta à amada que constitui a técnica do heroísmo
quixotesco. “O herói, – frisa San Tiago Dantas – confia em Deus e em si mesmo,
conserva a alma isenta de mescla e da satisfação de apetites, mas ainda lhe
falta o meio de agir, a técnica. Essa técnica é, afinal, a essência do heroísmo
quixotesco; podemos defini-la como o dom de si mesmo. Entregar-se a si mesmo,
fazer do próprio ser um simples mediador da obra que tem diante dos olhos,
desaparecer nessa obra, consumir-se e enterrar-se nela como a semente no solo,
eis o savoir faire do cavaleiro, eis o que o Quixote nos ensina, do
primeiro ao último dos seus instantes”.[20]
Não será essa lição de desprendimento heróico e de
idealismo, o exemplo de que mais precisamos, nós brasileiros, sumidas as nossas
instituições nas baixas e putrefatas águas da corrupção generalizada e do
clientelismo rasteiro, nesta hodierna etapa da cultura patrimonialista, que
tudo coloca a serviço de interesses clânicos e mesquinhos? Hoje, como ontem, O
Quixote representa – repitamos aqui as palavras de Ivan Tourgueneff
(1818-1883) – “ante todo a fé; a fé em algo eterno, imutável, na verdade,
naquela verdade que reside fora do eu, que se não entrega facilmente, que quer
ser cortejada e à qual nos sacrificamos, mas que acaba por se render à
constância do serviço e à energia do sacrifício”.[21]
[2] Mario Vargas Llosa, “Una novela
para el siglo XXI”. In: Miguel de Cervantes, Don Quijote de la Mancha. (Edição
do IV Centenário. Estudos introdutórios de Mario Vargas Llosa, Francisco Ayala
e outros). Madrid:
Alfaguara / Real Academia Española / Asociación de Academias de la Lengua
Española, 2004, pg. XIX.
[4]
Dom Quichote de la Mancha, ob. cit., Segunda Parte,
cap. LIII, pg. 279.
[5]
Cf. Alexis de Tocqueville. A democracia na América. 2a.
Edição. (Tradução e introdução e notas de Neil Ribeiro da Silva). Belo
Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1977, pg. 329.
[6]
Mario Vargas Llosa, “Una novela para el siglo XXI”, ob. cit., pg. XX.
[7] Miguel de Cervantes, Dom
Quichote de la Mancha. Ob cit.,
Vol I, Cap. XXII, pg. 131.
[8] Mario Vargas Llosa, “Una novela
para el siglo XXI”, ob. cit., pg. XX.
[9] Mario Vargas Llosa, “Una novela
para el siglo XXI”, ob. cit., pg. XV-XVI.
[10] Mario Vargas Llosa, “Una novela
para el siglo XXI”. Ob. cit., pg. XXIII-XXIV.
[11] Martín de Riquer, “Cervantes y
el Quijote”. In: Miguel de Cervantes, Don Quijote de la Mancha. (Edição
do IV Centenário. Estudos introdutórios de Mario Vargas Llosa, Francisco Ayala
e Martín de Riquer; notas de Francisco Rico. Posfácio de José Manuel Blecua, Guillermo Rojo, José Antonio Pascual,
Margit Frank e Claudio Guillén). Madrid: Alfaguara, Real Academia
Española, Asociación de Academias de la Lengua Española, 2004, pg. LXV.
[12]
San Tiago Dantas, Dom Quixote, um apólogo da alma ocidental.
(Apresentação de Marcílio Marques Moreira). Brasília: Editora da Universidade
de Brasília, 1979, pg. 36.
[13]
Miguel de Cervantes, Dom Quichote de la Mancha. Ob cit., Vol I, Prólogo, pg. 10. Os Diálogos de
Amor de Leão Hebreu, inicialmente publicados na Itália, eram bem
conhecidos na época de Cervantes.
[14] Miguel de Unamuno. Vida
de Don Quijote y Sancho. Madrid: Alianza Editorial, 2004, pg. 94.
[15] San Tiago Dantas, Dom
Quixote, um apólogo da alma ocidental, ob. cit., pg. 78-79.
[16] Unamuno, Vida de Don
Quijote y Sancho, ob. cit., pg. 94.
[17]
San Tiago Dantas, Dom Quixote, um apólogo da alma ocidental, ob.
cit., pg. 76.
[18]
Miguel de Cervantes, Dom Quichote de la Mancha. Ob cit., Vol I, cap. XXXI, pg. 200.
[19]
Miguel de Cervantes, Dom Quichote de la Mancha. Ob. cit., ibid.
[20]
San Tiago Dantas, Dom Quixote, um apólogo da alma ocidental, ob.
cit., pg. 60.
[21] Tourgueneff, apud Luis Astrana
Marín, “Cervantes y El Quijote”, ob. cit., pg. LXXVII.
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