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terça-feira, 9 de dezembro de 2014

A RÚSSIA, A MODERNIZAÇÃO BRASILEIRA E A SAÍDA DO PATRIMONIALISMO

É possível sair do Patrimonialismo, ou seja, da forma familística de gerir o Estado? Se, como propõem estudiosos do tema, aprofundarmos no caso da Rússia, um dos mais antigos Estados Patrimonialistas do Planeta, algumas lições podem ser extraídas dessa experiência, levando em consideração que o mencionado país conseguiu sair inteiro da dissolução da antiga União Soviética, passou a liderar um novo processo de reorganização das antigas Repúblicas sob seu domínio e, nas últimas décadas, deu passos importantes em direção a uma economia de mercado, trazendo para o controle de tecnocratas a serviço do Estado, empresas públicas que tinham caído em mãos da antiga nomenclatura, constituída em nova oligarquia alheia a uma visão modernizadora.

É claro que parece difícil a Rússia atual sair desse estágio de reestatização, dada a forma agressiva e centralizadora como se consolidou o processo sob a liderança despótica de Putin e do aparelho de inteligência da antiga polícia política. Anote-se, porém, com justiça, que esta liderança conseguiu vitórias importantes também no plano internacional, peitando os Estados Unidos no caso da Síria, e a Comunidade Europeia nos eventos que se sucederam, ao longo do último ano, na Ucrânia.

Já Gilberto Freyre apontava para a necessidade de conhecer melhor a Rússia, dadas as semelhanças existentes entre o Brasil (a “Rússia dos Trópicos”) e o imenso país dos Czares. Do ângulo europeu, o eminente sociólogo Otto de Habsburgo recomendava aos estudiosos, no final do século passado, que para compreender o que estava acontecendo na agonizante União Soviética, conhecessem melhor o exemplo de abertura efetivado no Brasil, bem como em alguns outros países latino-americanos, notadamente no México, a fim de que entendessem como se concretizava a instância modernizadora num meio patrimonialista.

Destaquemos algumas semelhanças evidentes entre a Rússia e o Brasil: os dois são países continentais com tendência a se fecharem econômica e culturalmente; vingaram, em ambos, formas originárias de poder na sociedade, ancoradas num patriarcalismo tradicional; sedimentou-se uma forte tradição imperial no Czarismo russo e na nossa experiência monárquica; consolidou-se, em ambos os contextos, uma frondosa burocracia presidida pelo Monarca ou pelo Czar com o auxílio de uma nobreza de funcionários públicos; foi organizado, na Rússia e no Brasil, poderoso instrumento estatal de cooptação, representado pela Guarda Nacional no Império Brasileiro (sendo ela a maior organização burocrática patrimonialista do Hemisfério Ocidental no século XIX)[1] e pelo eficiente e temido estamento policial do imperialismo czarista e, posteriormente, do Partido Comunista; concretizou-se, ademais, forte tradição modernizadora desenvolvida no contexto de um cientificismo estatizante de inspiração despótico-ilustrada: sabe-se, a respeito, que o médico cristão novo António Nunes Ribeiro Sanches foi o inspirador das reformas modernizadoras empreendidas, na segunda metade do século XVIII, no sistema de ensino luso-brasileiro pelo Marquês de Pombal e, no Império Russo, pela czarina Anna Ivanovna.

Elenquemos algumas outras semelhanças: a presença, ao longo do século XX, de forte tradição jacobina identificada, na Rússia, com os bolcheviques e, no Brasil, com os comunistas e os positivistas, sendo que ambos os grupos radicais adotaram as teses de uma modernização entendida sob o viés do despotismo cientificista; o desenvolvimento das Forças Armadas como estamento privilegiado e modernizador tanto na Rússia dos Czares e dos Comunistas, quanto no Brasil dos ciclos imperial e republicano; a presença de tradição megalomaníaca de obras hidráulicas e de construções faraônicas sob a batuta do Estado empresário, tanto na Rússia quanto no Brasil, com a adoção da retórica positivista como pano de fundo culturológico; a prática ininterrupta de velhos expedientes de corrupção que assomam, inclusive, na atualidade, ao redor das empresas estatais de petróleo e gás natural, na Rússia e no Brasil; por fim, a retórica soteriológica da Santa Mãe Rússia e do Brasil Grande, que aparece tanto nos ciclos imperial quanto republicano, em ambos os países.

O nosso cientificismo consolidou-se, a partir do período pombalino, tendo-se colocado a figura do Estado empresário como garantidor da riqueza da Nação, bem como da ordem social e política. Essa herança ilustrada e estatizante foi repassada para os seguintes momentos modernizadores da nossa história, nas reformas do Império ensejadas por Paranhos, ao redor da criação da Escola Politécnica, na segunda metade do século XIX. Apareceu, também, essa herança ilustrada na retórica positivista alicerçada no princípio de que “o poder vem do saber” e se misturou ao messianismo comunista na síntese doutrinária de comtismo e marxismo efetivada, nas primeiras décadas do século XX, por Leônidas de Rezende.[2]

O cientificismo estatizante inspirou, também, as reformas levadas a cabo pela Segunda Geração Castilhista com Getúlio no poder, a partir de 1930. Tal cientificismo foi sintetizado no princípio do “equacionamento técnico dos problemas”, anunciado por Getúlio Vargas na campanha da Aliança Liberal em 1929.[3] O regime militar (1964-1985) desenvolveu amplo programa de reformas alicerçado numa versão estatizante de tecnocracia, ao redor do binômio: “democracia e desenvolvimento” e tendo o BNDES como instrumento de cooptação do setor produtivo para as grandes obras de infraestrutura rodoviária, energética e de telecomunicações. Destaque-se que, tanto no ciclo getuliano quanto no período militar, sedimentou-se uma prática política arquitetada nos laboratórios do Centro do poder, que seria denominada pelo general Golbery de “engenharia política”.[4]


De acordo com o princípio formulado por Comte e repetido por Marx de que “a história se repete como farsa”, o modelo modernizador getuliano e do ciclo militar foi adotado pelo PT nos seus doze anos de mandato, tendo dado ensejo a forte presença estatal nos terrenos econômico, cultural e político. No primeiro e no segundo casos, o BNDES funcionou como linha de atuação financeira do Estado a fim de cooptar empresários para a ação modernizadora. Esta, no entanto, ficou a ver navios no ciclo lulopetista, em decorrência da continuada prática da corrupção, dirigida em boa medida para garantir a permanência hegemônica do Partido do governo no poder, sem deixar de lado o enriquecimento privado da liderança política. Com o segundo governo de Dilma, parece que entrou em desgaste o modelo modernizador estatizante, o que não significa que o Estado patrimonial tenha sofrido um desgaste significativo.

Vale a pena anotar uma semelhança entre o regime militar e o ciclo lulopetista, em relação ao que Lenine denominava de “golpe principal” a ser desferido contra o inimigo. No caso, tanto os militares quando os petistas (pela boca de Lula) identificaram esse inimigo com os liberais. Ainda me lembro do Lula, presidente, discursando furibundo em Santa Catarina, e anunciando, veemente, que era a hora de acabar com o Democratas, o Partido que, a seu ver, encarnava todo o mal da herança liberal.

Quais as condições para que, na atualidade, se abra uma perspectiva de efetivo desmonte do Estado Patrimonial brasileiro? Isso decorre, numa primeira instância, de vários fatores: em primeiro lugar, da presença de um setor empresarial agressivo e independente que, com o aval de forças capitalistas internacionais, garanta a produção de riqueza à margem das tentativas de cooptação do Estado. Em segundo lugar, do empenho e da luta de uma oposição que realmente consiga canalizar a insatisfação presente na sociedade brasileira (que deu mostras de força nas manifestações multitudinárias de Junho de 2013). Em terceiro lugar, da continuidade da investigação iniciada pelo Ministério Público e a Polícia Federal ao ensejo do “Petrolão”, acompanhada da oportuna ação da Magistratura e do Tribunal de Contas da União, bem como da fiscalização eficiente das Agências Reguladoras, hoje infelizmente entregues aos partidos do governo e da base aliada.

Em quarto lugar, da atuação eficaz e continuada de Think Tanks que identifiquem os caminhos para as mudanças a serem postas em prática pelos partidos oposicionistas, algo assim como o amplo trabalho efetivado na Inglaterra pela intelligentsia liberal-conservadora, que conduziu às reformas levadas a cabo por Margaret Thatcher nos anos oitenta do século passado. Dessa tarefa criativa de índole cultural, infelizmente estão ausentes as nossas Universidades, em geral cooptadas pelo modelo de cientificismo descrito anteriormente e que, no terreno social, propende pela instauração de vaporoso socialismo (de forma semelhante, aliás, à que se concretizou na França sob a influência de Saint-Simon, Comte e Durkheim).[5]

Em quinto lugar, da continuidade do esforço de informação e de denúncia da imprensa livre, em face da corrupção deslavada posta em prática pelo partido do governo, com a cínica utilização das empresas estatais, notadamente da Petrobrás. Em sexto lugar, last but not least, da consolidação de um núcleo ativo e avançado de análise estratégica que apresente, à sociedade e ao Estado, opções de transformação cultural, econômica e política, num mundo cada vez mais agressivo, com países intermediários lutando por atingir um nível de excelência no contexto internacional.

Hoje o Brasil não conta com um centro de análise estratégica. Já houve isso no ciclo militar, quando a Escola Superior de Guerra traçava as linhas mestras do nosso pensamento estratégico. Tudo foi desmontado de forma suicida pela liderança civil que tomou conta da Nova República. [6] Somente ficou em pé, com a qualidade que o caracterizava, o Instituto para o Estudo das Relações Internacionais, IPRI, do Itamaraty, hoje ao que parece esvaziado das suas antigas funções pela liderança lulopetista.

Da presença interativa dos fatores apontados pode ocorrer um processo de renovação cultural, mediante a substituição de antigos valores em que se enraízam as tradições do cientificismo pombalino e do preconceito contrarreformista contra a riqueza. Lembremos com Ortega y Gasset que os mitos não morrem de fora para dentro, mas de dentro para fora. As tradições pombalina e contrarreformista somente poderão ser derrubadas mediante a substituição dos valores em que se alicerçam, por nova escala axiológica que defenda a liberdade individual como valor supremo, junto com a valorização do trabalho produtivo e da riqueza.

Como se pode ver, é impostergável uma reentrada no cenário cultural brasileiro, da filosofia liberal-conservadora, hoje apenas estudada em Think Tanks que, certamente, não são levados em consideração pelos donos do poder, embora apresentem uma atividade invejável. Dentre estes valha mencionar quatro: o Instituto Liberal, o Instituto Liberdade, o Instituto Mises e a rede Resistência Cultural, todos com forte presença editorial, bem como na internet e nas redes sociais. No plano das ações efetivadas por entidades estrangeiras, menciono uma de grande importância: os seminários promovidos regularmente, há duas décadas, pelo Liberty Fund, em colaboração com o Instituto Liberal do Rio de Janeiro e São Paulo e o Instituto Liberdade de Porto Alegre.

A entrada maciça de cultos evangélicos, ao longo das últimas décadas, certamente está transformando o pano de fundo cultural da sociedade brasileira, em direção a uma valorização da liberdade individual e do enriquecimento. Mas ainda precisa ser derrubada a estrutura do mito cientificista pombalino em que se apoia boa parte da nossa intelectualidade que, nas Universidades públicas notadamente, assina manifestos a favor da manutenção do status quo do estatismo e das sinecuras concedidas à nomenclatura sindical que tomou conta do meio acadêmico.






[1] Por volta de 1850, a Guarda Nacional arregimentava nada menos do que 250.000 homens livres, numa época em que o Exército do Império mal contava com 13.000 efetivos. Cf. URICOECHEA, Fernando. O minotauro imperial. São Paulo: Duas Cidades, 1978.
[2] Cf. PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 1ª. Edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.
[3] Cf., da minha autoria: “Tradição modernizadora e Aliança Liberal”, in Aliança Liberal: documentos da campanha presidencial. 2ª. Edição. Brasília: Câmara dos Deputados, 1983.
[4] Cf. SILVA, Golbery do Couto e, general. Geopolítica do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1981.
[5] Cf. PAIM, Antônio. Marxismo e descendência. 1ª. Edição, Campinas: Vide Editorial, 2009.
[6] Tanto a China quanto a Rússia contam, hoje, com uma rede importante de centros de estudos estratégicos. Na China foram identificados por estudiosos alemães nada menos que 1.400 centros desse tipo. Sem a proliferação chinesa, os russos contam também com uma excelente rede de centros de análise estratégica, sendo um dos mais destacados o Instituto Russo para Estudos Estratégicos, que participa, junto com Universidades americanas e europeias da organização da International Universities Networking Conference que agendou, para 2015, ampla programação a ser realizada em Moscou, São Paulo, Washington e Dubai. O Brasil, nesse contexto, pratica o voo às escuras em matéria de relações internacionais, o que termina conduzindo ao populismo de baixo nível que se assenhoreou da nossa política de relações exteriores no ciclo lulopetista.

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