É
possível sair do Patrimonialismo, ou seja, da forma familística de gerir o
Estado? Se, como propõem estudiosos do tema, aprofundarmos no caso da Rússia,
um dos mais antigos Estados Patrimonialistas do Planeta, algumas lições podem
ser extraídas dessa experiência, levando em consideração que o mencionado país
conseguiu sair inteiro da dissolução da antiga União Soviética, passou a
liderar um novo processo de reorganização das antigas Repúblicas sob seu
domínio e, nas últimas décadas, deu passos importantes em direção a uma
economia de mercado, trazendo para o controle de tecnocratas a serviço do
Estado, empresas públicas que tinham caído em mãos da antiga nomenclatura, constituída em nova
oligarquia alheia a uma visão modernizadora.
É
claro que parece difícil a Rússia atual sair desse estágio de reestatização,
dada a forma agressiva e centralizadora como se consolidou o processo sob a
liderança despótica de Putin e do aparelho de inteligência da antiga polícia
política. Anote-se, porém, com justiça, que esta liderança conseguiu vitórias
importantes também no plano internacional, peitando os Estados Unidos no caso
da Síria, e a Comunidade Europeia nos eventos que se sucederam, ao longo do
último ano, na Ucrânia.
Já
Gilberto Freyre apontava para a necessidade de conhecer melhor a Rússia, dadas
as semelhanças existentes entre o Brasil (a “Rússia dos Trópicos”) e o imenso
país dos Czares. Do ângulo europeu, o eminente sociólogo Otto de Habsburgo
recomendava aos estudiosos, no final do século passado, que para compreender o
que estava acontecendo na agonizante União Soviética, conhecessem melhor o
exemplo de abertura efetivado no Brasil, bem como em alguns outros países
latino-americanos, notadamente no México, a fim de que entendessem como se
concretizava a instância modernizadora num meio patrimonialista.
Destaquemos
algumas semelhanças evidentes entre a Rússia e o Brasil: os dois são países
continentais com tendência a se fecharem econômica e culturalmente; vingaram,
em ambos, formas originárias de poder na sociedade, ancoradas num
patriarcalismo tradicional; sedimentou-se uma forte tradição imperial no
Czarismo russo e na nossa experiência monárquica; consolidou-se, em ambos os
contextos, uma frondosa burocracia presidida pelo Monarca ou pelo Czar com o
auxílio de uma nobreza de funcionários públicos; foi organizado, na Rússia e no
Brasil, poderoso instrumento estatal de cooptação, representado pela Guarda
Nacional no Império Brasileiro (sendo ela a maior organização burocrática patrimonialista
do Hemisfério Ocidental no século XIX)[1]
e pelo eficiente e temido estamento policial do imperialismo czarista e, posteriormente,
do Partido Comunista; concretizou-se, ademais, forte tradição modernizadora
desenvolvida no contexto de um cientificismo estatizante de inspiração
despótico-ilustrada: sabe-se, a respeito, que o médico cristão novo António
Nunes Ribeiro Sanches foi o inspirador das reformas modernizadoras empreendidas,
na segunda metade do século XVIII, no sistema de ensino luso-brasileiro pelo
Marquês de Pombal e, no Império Russo, pela czarina Anna Ivanovna.
Elenquemos
algumas outras semelhanças: a presença, ao longo do século XX, de forte tradição
jacobina identificada, na Rússia, com os bolcheviques e, no Brasil, com os
comunistas e os positivistas, sendo que ambos os grupos radicais adotaram as
teses de uma modernização entendida sob o viés do despotismo cientificista; o desenvolvimento
das Forças Armadas como estamento privilegiado e modernizador tanto na Rússia
dos Czares e dos Comunistas, quanto no Brasil dos ciclos imperial e republicano;
a presença de tradição megalomaníaca de obras hidráulicas e de construções
faraônicas sob a batuta do Estado empresário, tanto na Rússia quanto no Brasil,
com a adoção da retórica positivista como pano de fundo culturológico; a prática
ininterrupta de velhos expedientes de corrupção que assomam, inclusive, na
atualidade, ao redor das empresas estatais de petróleo e gás natural, na Rússia
e no Brasil; por fim, a retórica soteriológica da Santa Mãe Rússia e do Brasil
Grande, que aparece tanto nos ciclos imperial quanto republicano, em ambos os
países.
O
nosso cientificismo consolidou-se, a partir do período pombalino, tendo-se
colocado a figura do Estado empresário como garantidor da riqueza da Nação, bem
como da ordem social e política. Essa herança ilustrada e estatizante foi
repassada para os seguintes momentos modernizadores da nossa história, nas
reformas do Império ensejadas por Paranhos, ao redor da criação da Escola
Politécnica, na segunda metade do século XIX. Apareceu, também, essa herança
ilustrada na retórica positivista alicerçada no princípio de que “o poder vem
do saber” e se misturou ao messianismo comunista na síntese doutrinária de
comtismo e marxismo efetivada, nas primeiras décadas do século XX, por Leônidas
de Rezende.[2]
O
cientificismo estatizante inspirou, também, as reformas levadas a cabo pela
Segunda Geração Castilhista com Getúlio no poder, a partir de 1930. Tal
cientificismo foi sintetizado no princípio do “equacionamento técnico dos
problemas”, anunciado por Getúlio Vargas na campanha da Aliança Liberal em 1929.[3]
O regime militar (1964-1985) desenvolveu amplo programa de reformas alicerçado
numa versão estatizante de tecnocracia, ao redor do binômio: “democracia e
desenvolvimento” e tendo o BNDES como instrumento de cooptação do setor
produtivo para as grandes obras de infraestrutura rodoviária, energética e de
telecomunicações. Destaque-se que, tanto no ciclo getuliano quanto no período
militar, sedimentou-se uma prática política arquitetada nos laboratórios do
Centro do poder, que seria denominada pelo general Golbery de “engenharia
política”.[4]
De acordo com o princípio formulado por Comte e repetido por Marx de que “a
história se repete como farsa”, o modelo modernizador getuliano e do ciclo
militar foi adotado pelo PT nos seus doze anos de mandato, tendo dado ensejo a
forte presença estatal nos terrenos econômico, cultural e político. No primeiro
e no segundo casos, o BNDES funcionou como linha de atuação financeira do
Estado a fim de cooptar empresários para a ação modernizadora. Esta, no
entanto, ficou a ver navios no ciclo lulopetista, em decorrência da continuada
prática da corrupção, dirigida em boa medida para garantir a permanência
hegemônica do Partido do governo no poder, sem deixar de lado o enriquecimento
privado da liderança política. Com o segundo governo de Dilma, parece que
entrou em desgaste o modelo modernizador estatizante, o que não significa que o
Estado patrimonial tenha sofrido um desgaste significativo.
Vale
a pena anotar uma semelhança entre o regime militar e o ciclo lulopetista, em
relação ao que Lenine denominava de “golpe principal” a ser desferido contra o
inimigo. No caso, tanto os militares quando os petistas (pela boca de Lula)
identificaram esse inimigo com os liberais. Ainda me lembro do Lula,
presidente, discursando furibundo em Santa Catarina, e anunciando, veemente,
que era a hora de acabar com o Democratas, o Partido que, a seu ver, encarnava
todo o mal da herança liberal.
Quais
as condições para que, na atualidade, se abra uma perspectiva de efetivo
desmonte do Estado Patrimonial brasileiro? Isso decorre, numa primeira
instância, de vários fatores: em primeiro lugar, da presença de um setor
empresarial agressivo e independente que, com o aval de forças capitalistas
internacionais, garanta a produção de riqueza à margem das tentativas de
cooptação do Estado. Em segundo lugar, do empenho e da luta de uma oposição que
realmente consiga canalizar a insatisfação presente na sociedade brasileira (que
deu mostras de força nas manifestações multitudinárias de Junho de 2013). Em
terceiro lugar, da continuidade da investigação iniciada pelo Ministério
Público e a Polícia Federal ao ensejo do “Petrolão”, acompanhada da oportuna
ação da Magistratura e do Tribunal de Contas da União, bem como da fiscalização
eficiente das Agências Reguladoras, hoje infelizmente entregues aos partidos do
governo e da base aliada.
Em
quarto lugar, da atuação eficaz e continuada de Think Tanks que identifiquem os caminhos para as mudanças a serem
postas em prática pelos partidos oposicionistas, algo assim como o amplo
trabalho efetivado na Inglaterra pela intelligentsia
liberal-conservadora, que conduziu às reformas levadas a cabo por Margaret
Thatcher nos anos oitenta do século passado. Dessa tarefa criativa de índole
cultural, infelizmente estão ausentes as nossas Universidades, em geral
cooptadas pelo modelo de cientificismo descrito anteriormente e que, no terreno
social, propende pela instauração de vaporoso socialismo (de forma semelhante,
aliás, à que se concretizou na França sob a influência de Saint-Simon, Comte e
Durkheim).[5]
Em
quinto lugar, da continuidade do esforço de informação e de denúncia da
imprensa livre, em face da corrupção deslavada posta em prática pelo partido do
governo, com a cínica utilização das empresas estatais, notadamente da
Petrobrás. Em sexto lugar, last but not least,
da consolidação de um núcleo ativo e avançado de análise estratégica que
apresente, à sociedade e ao Estado, opções de transformação cultural, econômica
e política, num mundo cada vez mais agressivo, com países intermediários
lutando por atingir um nível de excelência no contexto internacional.
Hoje
o Brasil não conta com um centro de análise estratégica. Já houve isso no ciclo
militar, quando a Escola Superior de Guerra traçava as linhas mestras do nosso
pensamento estratégico. Tudo foi desmontado de forma suicida pela liderança
civil que tomou conta da Nova República. [6]
Somente ficou em pé, com a qualidade que o caracterizava, o Instituto para o
Estudo das Relações Internacionais, IPRI, do Itamaraty, hoje ao que parece
esvaziado das suas antigas funções pela liderança lulopetista.
Da
presença interativa dos fatores apontados pode ocorrer um processo de renovação
cultural, mediante a substituição de antigos valores em que se enraízam as
tradições do cientificismo pombalino e do preconceito contrarreformista contra
a riqueza. Lembremos com Ortega y Gasset que os mitos não morrem de fora para
dentro, mas de dentro para fora. As tradições pombalina e contrarreformista
somente poderão ser derrubadas mediante a substituição dos valores em que se
alicerçam, por nova escala axiológica que defenda a liberdade individual como
valor supremo, junto com a valorização do trabalho produtivo e da riqueza.
Como
se pode ver, é impostergável uma reentrada no cenário cultural brasileiro, da
filosofia liberal-conservadora, hoje apenas estudada em Think Tanks que, certamente, não são levados em consideração pelos
donos do poder, embora apresentem uma atividade invejável. Dentre estes valha
mencionar quatro: o Instituto Liberal, o Instituto Liberdade, o Instituto Mises
e a rede Resistência Cultural, todos com forte presença editorial, bem como na
internet e nas redes sociais. No plano das ações efetivadas por entidades
estrangeiras, menciono uma de grande importância: os seminários promovidos
regularmente, há duas décadas, pelo Liberty
Fund, em colaboração com o Instituto Liberal do Rio de Janeiro e São Paulo
e o Instituto Liberdade de Porto Alegre.
A
entrada maciça de cultos evangélicos, ao longo das últimas décadas, certamente
está transformando o pano de fundo cultural da sociedade brasileira, em direção
a uma valorização da liberdade individual e do enriquecimento. Mas ainda
precisa ser derrubada a estrutura do mito cientificista pombalino em que se
apoia boa parte da nossa intelectualidade que, nas Universidades públicas
notadamente, assina manifestos a favor da manutenção do status quo do estatismo
e das sinecuras concedidas à nomenclatura sindical que tomou conta do meio
acadêmico.
[1]
Por volta de 1850, a Guarda Nacional arregimentava nada menos do que 250.000
homens livres, numa época em que o Exército do Império mal contava com 13.000
efetivos. Cf. URICOECHEA, Fernando. O minotauro imperial. São Paulo:
Duas Cidades, 1978.
[2]
Cf. PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 1ª. Edição, Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1978.
[3]
Cf., da minha autoria: “Tradição modernizadora e Aliança Liberal”, in Aliança
Liberal: documentos da campanha presidencial. 2ª. Edição. Brasília:
Câmara dos Deputados, 1983.
[4]
Cf. SILVA, Golbery do Couto e, general. Geopolítica do Brasil. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1981.
[5]
Cf. PAIM, Antônio. Marxismo e descendência. 1ª. Edição, Campinas: Vide Editorial,
2009.
[6] Tanto
a China quanto a Rússia contam, hoje, com uma rede importante de centros de
estudos estratégicos. Na China foram identificados por estudiosos alemães nada
menos que 1.400 centros desse tipo. Sem a proliferação chinesa, os russos
contam também com uma excelente rede de centros de análise estratégica, sendo
um dos mais destacados o Instituto Russo para Estudos Estratégicos, que
participa, junto com Universidades americanas e europeias da organização da
International Universities Networking Conference que agendou, para 2015, ampla
programação a ser realizada em Moscou, São Paulo, Washington e Dubai. O Brasil,
nesse contexto, pratica o voo às escuras em matéria de relações internacionais,
o que termina conduzindo ao populismo de baixo nível que se assenhoreou da
nossa política de relações exteriores no ciclo lulopetista.
excelente!
ResponderExcluirMAM