Francisco Suárez (1548-1617) representa, no contexto
da Segunda Escolástica espanhola, o esforço mais sistemático em prol da busca
de um contato com a modernidade. A sua preocupação fundamental consistiu em
elaborar uma metafísica da substância compatível com a ciência moderna. Não
poderíamos entender a real dimensão do jesuíta Francisco Suárez, sem situá-lo
no contexto do rico movimento de renovação da filosofia espanhola nos séculos
XVI e XVII.
Acompanhando a consolidação da nova oikouméne ensejada pelo grande período
das navegações ibéricas dos séculos XV e XVI, surge na Espanha um movimento de
renovação intelectual que visa a dar fundamentação à nova ordem mundial, num
Império em que "não se põe o sol", como se dizia na época. O primeiro
grande esforço de renovação consistiu na formação, em Paris, de uma nova
geração de pensadores que passaram a sofrer a influência do nominalismo, a nova
filosofia que pretendia se abrir ao conhecimento do concreto e ao experimental,
em contraposição à contemplatio
medieval. Presididos pela figura pioneira do sacerdote toledado Jacobo Magnus,
que chegou a ser pregador na corte do rei francês Carlos VI no período compreendido
entre 1381 e 1422, encontramos, no final do século XV e ao longo do século XVI,
importantes filósofos de inspiração nominalista que recebem a sua formação em
Paris ou que sofrem a influência dessa escola. Mencionemos os nomes de alguns
deles: Andrés Limos, Agustín Pérez de Oliván, Alvaro Thomas (português),
Jerônimo Pardo, os irmãos Luis e Antonio Núñez Coronel, Gaspar Lax, Juan Dolz,
Juan Lorenzo de Celaya, Juan de Gélida, Juan de Oria, Gonzalo Gil, Bartolomé de
Castro, Juan Martínez Silíceo, Domingo de San Juan, Pedro Margalho (português),
Cristobal de Medina, etc. O nominalismo, nesses autores, corresponde geralmente
ao estabelecimento de uma teoria do conhecimento que possibilita a apreensão
experimental do mundo, mas que não exclui, de forma alguma, muito pelo
contrário a integra, a rica herança do humanismo, amalgamando-a com uma versão
mitigada do tomismo [Cf. G. Fraile,
Historia de la Filosofía Española, Madri: BAC, 1985, vol. I, p. 327 seg.].
Em Salamanca, onde desenvolveu boa parte da sua docência,
Francisco Suárez recebeu essa rica influência e teve oportunidade de
confrontá-la com duas tentativas de reedição do tomismo, de inspiração
tradicionalista com Domingo Báñez (1528-1604) e Juan de Santo Tomás (1589-1644)
e aberta a outras correntes filosóficas, incluída a escola nominalista, com
Francisco de Vitoria (1492-1546), Melchor Cano (1509-1560), Domingo de Soto
(1495-1560), Pedro de Sotomayor (1511-1564), Bartolomé de Medina (1527-1580) e
Luis de Molina (1536-1600). Diríamos que o problema com que se defrontava o
nosso autor, na sua cátedra na Universidade de Salamanca, era o de formular uma
nova filosofia que respondesse aos requerimentos da ciência moderna,
estabelecendo no entanto uma ponte entre o que havia de aproveitável na
metafísica do século XIII e no humanismo renascentista [cf. Fraile, Historia de la Filosofía Española, vol.
I, p. 380-384; J. Enes, verbete "Francisco Suárez", in: Lógos, Enciclopédia Luso-Brasileira de
Filosofia,Lisboa/São Paulo: Verbo, 1992: p.308-317].
Situada nesse contexto, a obra de Francisco Suárez
pode ser apreciada em toda a sua originalidade. O pensamento do filósofo
espanhol deve ser aglutinado em torno a três grandes pontos: metafísica,
antropologia filosófica e filosofia política. No que tange à metafísica, a obra
mais representativa de Suárez são as
suas Disputationes Metaphysicae,
escritas em 1597 e publicadas pela primeira vez em 1608. Com esta obra, o
pensador espanhol possui o mérito de ter sido o primeiro autor europeu em
formular uma sistematização metafísica rigorosa, aberta à ciência moderna,
portanto passível de explicar um mundo regido pela apreensão realista dos
fenômenos, abandonando a perspectiva universalista das metafísicas do século
XIII, que privilegiavam a idéia de substância ou quidditas, e que eram caudatárias da tradição, seja mediante o
ensino filosófico recorrendo unicamente à lectio
dos clássicos (Aristóteles e São Tomas), seja através da discussão de assuntos
rigorosamente emergentes da problemática teológica (nas chamadas quaestiones disputatae).
Suárez parte do pressuposto (tipicamente moderno,
porquanto emergente de uma perspectiva antropocêntrica) de que, como ponto de
partida, a filosofia deve criar a sua própria metodologia e assinalar o âmbito
da sua validade, mediante a formulação de uma metafísica sistemática acorde
unicamente com as exigências lógicas da razão. Somente assim, pondera o
pensador espanhol, poderá ser empreendido, numa segunda etapa, com segurança e
rigor, o estudo da Teologia. A sua concepção aproximava-se mais da apreensão da
essência do concreto ou estidade (haecceitas), postulada pelos
nominalistas ingleses Duns Scott e Guilherme de Ockham. A respeito, frisa o
historiador das idéias G. Fraile: "Uma nota caraterística de Suárez é a
sua preocupação pelo real e concreto, evitando o conceitualismo e o
abstracionismo. Esforça-se por fazer uma filosofia realista, baseada nas coisas
tal como são, estudando-as em si mesmas e não em abstrações mentais. Por isso
insiste em que a metafísica não somente trata de conceitos, mas que versa sobre
seres reais. A idéia central da
metafísica suareziana consiste na contraposição entre dois grandes classes de
seres reais: o infinito e o finito, com a finalidade de estabelecer uma relação
de dependência essencial e total das criaturas em relação ao seu criador"
[Fraile, Historia de la Filosofía
Española, vol. I, ob. cit., p. 381]. O pensador espanhol deitou, assim as
bases para as metafísicas racionalistas do século XVII (de Descartes, Leibniz e
Espinosa).
No terreno da antropologia filosófica, as obras mais
importantes de Suárez são o tratado De
Anima (cujo manuscrito data de 1572, tendo sido editado em 1621) e De ultimo fine hominis ac Beatitudine
(publicado em 1613). Contrastando com a perspectiva teocêntrica medieval, que colocava
o homem numa dimensão eminentemente religiosa e universal, Suárez parte para
estruturar, alicerçado na sua metafísica da realidade concreta, uma
antropologia filosófica cujas duas notas caraterísticas seriam as seguintes: em
primeiro lugar, que responda a uma rigorosa experiência do que é o homem de
carne e osso, tal como se apresenta à experiência das ciências positivas e, em
segundo lugar, que explique as caraterísticas humanas diversificadas, que
estavam, na época, sendo postas em evidência graças às descobertas de novas
terras.
No que diz relação à primeira exigência, o pensador
salmantino parte com desassombro para a formulação de uma filosofia do homem
que reflita os conhecimentos que sobre a constituição humana emergem das
ciências positivas, notadamente da Medicina (Suárez discute, por exemplo, a
problemática da unidade corpo-alma, à luz da hipótese dos transplantes de
órgãos). No que tange à segunda exigência, o mestre espanhol interessou-se
sobremaneira pelo fenômeno humano em outras culturas, tendo destacado que o
norte das suas investigações no terreno era a sua razão experimental (per viam propriae inventionis), mais do
que a tradição, embora não rejeitasse os ensinamentos da filosofia medieval,
antes tentasse conciliá-los com o estado atual do conhecimento. Isso confere à
obra de Suárez no terreno antropológico uma grande originalidade, bem como uma
tensão conceitual relevante, fazendo dele um escritor dramaticamente ancorado
na modernidade.
A propósito, frisa Salvador Castellote, na Introdução
à edição espanhola do De Anima [Commentaria uma cum quaestionibus in libros
Aristotelis De Anima, Madrid: Sociedad de Estudios y Publicaciones, 1978,
vol. I, p. LXXI-LXXII]: "A Antropologia filosófica fundamentaria as
ciências, não lhes dando. certamente, de forma literal, o método que deveriam
seguir, -- isso seria suprimir as
ciências --, mas exercendo uma função crítica, advertindo que todo o discurso
científico deve versar, em última instância, sobre a totalidade do homem. Destarte, seria talvez possível para a
Antropologia filosófica proporcionar hipóteses abstratas de trabalho
antropológico, deixando às ciências a sua concepção positiva E, de outro lado,
as ciências determinariam a Antropologia filosófica, fazendo-lhe entender que
não é possível conhecer bem o todo sem o conhecimento prévio das partes, da
mesma forma que é impossível integrar as partes sem um prévio conhecimento do
todo". O mestre espanhol sintetizava esse ponto de vista no seguinte
princípio: "De hominibus autem
obscurum est ad quam scientiam pertineant". Suárez emerge, assim, como
o primeiro formulador moderno de uma antropologia filosófica em diálogo com as
ciências positivas, abrindo caminho, assim, para a formulação ulterior, já no
século XVIII, com Hume e Kant, da filosofia como crítica das ciências.
A rica abrangência da antropologia filosófica
pensada por Suárez salta à vista no metafísico que no século XVII melhor
recebeu o seu benfazejo influxo: Gottlieb Wilhelm Leibniz. O pensador alemão
partiu para realizar o que Suárez tinha planejado: uma filosofia do homem
alicerçada numa metafísica teodiceica rigorosamente racional, em constante
diálogo com as ciências e aberta às novas manifestações culturais reveladas
pelos descobrimentos. É significativa dessa inspiração ecumênica a abertura de
Leibniz à cultura chinesa da sua época, estudada a partir do diálogo estreito
com os missionários jesuítas. Para o pensador alemão, seria possível tentar uma
amálgama criativa entre cristianismo e confucionismo, como forma de dotar o mundo
de dois pólos de moderação, que garantissem a paz universal e o progresso: a
Europa cristã, no Ocidente, e a China convertida ao cristianismo, mas sem
perder o élan moral do confucionismo,
no Oriente [cf. Leibniz, Writings on
China, tradução ao inglês, introdução e notas de D. J. Cook e H. Rosemont
Jr., Chicago: Open Court, 1994].
No que respeita à filosofia política, são
representativas duas obras de Francisco Suárez: De legibus ac de Deo Legislatore (1612) e Defensor Fidei contra Jacobum Regem Angliae (1613). O cerne da sua
concepção consiste na formulação do princípio da soberania popular que,
difundido nas Universidades que a Espanha criou nas suas colônias americanas,
ensejou o primeiro surto moderno de liberalismo autóctone, a partir do qual se iniciaram
os movimentos independentistas dos comuneros
(nas últimas décadas do século XVIII) e da independência (nas primeiras décadas
do século XIX). Sobre essa base netamente ibérica iriam ser assimiladas,
posteriormente, as idéias do liberalismo anglo-saxão e francês.
A respeito da concepção política de Suárez, escreveu
Alain Guy, na sua Historia de la
Filosofía Española [2a. edição, tradução de Ana Sánchez, Barcelona:
Anthropos, 1985, p. 113-114]: "A
análise do princípio de soberania é muito mais avançado (em Suárez) do que nos
autores anteriores. Aqui, o poder é dado por Deus a toda a comunidade política e não somente a tal ou qual pessoa.
Contra o cesarismo e os legistas, o maquiavelismo e o luteranismo, Suárez
elabora, em soma, a teoria da democracia, que aprofundou ainda mais no seu Defensor Fidei. A noção de pacto ou de
contrato social aparece já no doctor
eximius. A comunidade política é constituída a partir de um primeiro
consenso entre indivíduos ou famílias; ela pode delegar o poder a um grupo ou a
uma só pessoa, mediante um segundo pacto, que Deus deixa à nossa discrição. Por
regra geral a democracia, ou seja, o governo direto do povo pelo povo, será a
forma mais natural de governo, e não carece de uma instituição particular, pois
é conforme à espontaneidade do nosso ser. Mas pode ocorrer que não seja capaz
de exercer essa administração sem intermediário e que seja necessário recorrer
a um mandatário, investido então do poder público por transferência: este pode
ser um rei ou uma oligarquia. De todas as formas, a autoridade do governo fica
restrita a certos limites. Se o soberano abusar da sua potestas, converte-se num tirano, contra quem é legítimo lutar. Em
caso extremo, é permitido matá-lo, uma vez esgotados todos os meios para
induzi-lo ao arrependimento".
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