I - BREVE
SINOPSE BIO-BIBLIOGRÁFICA
António Braz Teixeira nasceu em
Lisboa em 1936, cidade onde cursou a Faculdade de Direito e deu início à
carreira como docente universitário na Faculdade de Direito da Universidade de
Lisboa e depois na Universidade Autônoma e na Universidade Internacional.
Paralelamente à vida acadêmica, Braz Teixeira tem ocupado importantes cargos na
administração pública do seu país. Foi Secretário de Estado da presidência do
Conselho de Ministros em 1980, no governo Sá Carneiro, bem como Secretário de
Estado da Cultura no governo seguinte. Desempenhou também os cargos de Diretor
do Teatro Dona Maria II em Lisboa e de Vice-presidente do Conselho de Gerência
da Radiotelevisão Portuguesa (RTP), sendo desde 1992 Presidente da Imprensa
Nacional Casa da Moeda, onde tem desenvolvido amplo programa de edições de
obras de pensadores portugueses; nesse mesmo cargo criou uma coleção destinada
a divulgar obras significativas da cultura brasileira.
A obra de Braz Teixeira é muito
significativa no que tange à historiografia das idéias filosóficas e jurídicas
em Portugal, sendo considerado como um dos mais respeitados historiadores
portugueses das idéias na atualidade. Foi iniciativa sua, quando Secretário do
Estado da Cultura do governo português, a criação da revista
Cultura Portuguesa. Também foi de sua lavra a fundação de
Nomos - Revista Portuguesa de Filosofia do Direito e do Estado.
Braz Teixeira tem tido importante
destaque no que tange à efetivação do diálogo inter-cultural entre Portugal e o
Brasil. Foi um dos principais inspiradores para a criação, em 1991, em Lisboa,
do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira, que conta com a representação de
pensadores portugueses e brasileiros. A partir dessa entidade, Braz Teixeira
impulsionou decididamente a realização bianual, em Portugal, dos colóquios
"Tobias Barreto", com a finalidade de estudar os principais
pensadores brasileiros e as suas relações com a cultura portuguesa. Braz
Teixeira pertence à Sociedade Científica da Universidade Católica Portuguesa, à
Sociedade Portuguesa de Filosofia, à Academia das Ciências de Lisboa, bem como
à Academia Brasileira de Filosofia, como membro correspondente. Acha-se
vinculado de forma muito atuante ao Instituto Brasileiro de Filosofia, fundado
e presidido em São Paulo por Miguel Reale, tendo colaborado com numerosos
ensaios filosóficos e no terreno da historiografia das idéias na Revista
Brasileira de Filosofia, órgão do mencionado Instituto. Colabora
regularmente em outras publicações periódicas de Portugal e do Brasil como a
Revista Portuguesa de Filosofia, Espiral, Nova Renascença, Análise, Revista
Jurídica, Didaskalia, Reflexão, Ciências Humanas, Presença Filosófica, etc.
A obra de António Braz Teixeira
foi objeto de detalhado estudo no Brasil, no 7º Encontro dos Professores e
Pesquisadores da Filosofia Brasileira, realizado por Leonardo Prota no Centro
de Estudos Filosóficos de Londrina, em setembro de 2001. Relacionam-se, a
seguir, os trabalhos (ainda inéditos) que foram apresentados nesse evento:
1 - Trajetória de António Braz
Teixeira (Antônio Paim, do Instituto Brasileiro de Filosofia e do
Instituto de Humanidades). 2 - António Braz Teixeira e o movimento da
Filosofia Portuguesa (Ricardo Vélez Rodríguez, da Universidade Federal
de Juiz de Fora e do Instituto Brasileiro de Filosofia. Comentário a esta
apresentação feito por Constança Marcondes Cesar, da Universidade Católica de
Campinas). 3 - Filosofia da literatura na obra
de António Braz Teixeira (Mariluze Ferreira de Andrade e Silva, da
Universidade Federal de São João del Rei). 4 - Como António Braz Teixeira
entende a denominada Filosofia Luso-Brasileira (José Maurício de
Carvalho, da Universidade Federal de São João del Rei). 5 - Presença
da idéia de Deus na meditação de António Braz Teixeira e que lugar atribui à
Teologia (Tiago Adão Lara, da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Comentário a esta apresentação de Manuel Cândido, da Universidade de Lisboa). 6
- António Braz Teixeira, filósofo da saudade (Anna
Maria Moog Rodrigues, da Universidade Gama Filho). 7 - António Braz Teixeira, uma
filosofia do espírito (Paulo Alexandre Esteves Borges, da Universidade
de Lisboa). 8 - O pensamento jus-filosófico de António Braz Teixeira (Aquiles
Côrtes Guimarães, da Universidade Federal do Rio de Janeiro). 9 - Posicionamento
crítico de António Braz Teixeira diante das principais teorias do direito (Selvino
Antônio Malfatti, do Centro Universitário Franciscano de Santa Maria). 10 - problema da justiça em António Braz Teixeira (Ubiratan Borges de Macedo, da Universidade
Gama Filho). 11 - António Braz Teixeira e o pensamento krausista em Portugal (José
Esteves Pereira, da Universidade Nova de Lisboa e do Instituto de Filosofia
Luso-Brasileira). 12 - Braz Teixeira por ele mesmo (António
Braz Teixeira, do Instituto de Filosofia Luso-Brasileira).
No boletim do Centro de Estudos
Filosóficos de Londrina intitulado 7º Encontro Nacional de Professores e
Pesquisadores da Filosofia Brasileira, Leonardo Prota caracteriza da
seguinte forma a obra do nosso pensador:
"A trajetória filosófica de António Braz Teixeira pode ser resumida como
se segue. Sendo docente de disciplinas jurídicas (Direito Fiscal e Direito
Financeiro, inicialmente, passando depois para Filosofia do Direito e do
Estado) e, ao mesmo tempo, pertencendo ao chamado movimento da Filosofia Portuguesa, acabou voltando-se para o que ele mesmo denomina de pensamento filosófico-jurídico português.
Mais tarde, por suas ligações com o professor Miguel Reale e também devido à
presença no Brasil, desde a segunda metade dos anos setenta a meados da década
seguinte, de Eduardo Soveral, Francisco da Gama Caeiro (1928-1994) e Affonso
Botelho (1919-1996) - pessoas de seu círculo de relações -, interessou-se pelo que tem sido denominado de
filosofia luso-brasileira. Assim, sua
volumosa obra abrange tanto a filosofia do direito como o estudo das filosofias
portuguesa e brasileira. Acha-se caracterizada em Logos - Enciclopédia
Luso-Brasileira de Filosofia, editorial Verbo, vol. V, 1992), num
verbete do professor Paulo Borges (Da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa)" [Prota, 2001: 2].
II - O
MOVIMENTO DA FILOSOFIA PORTUGUESA
SEGUNDO BRAZ TEIXEIRA
Mais do que fazer uma exposição
exaustiva acerca do lugar que António Braz Teixeira ocupa no movimento da Filosofia Portuguesa, farei na minha
exposição um balanço acerca de como ele entende a meditação filosófica, se
louvando de conceitos desenvolvidos no seio da mencionada corrente. A fim de
ilustrar o tema central da minha exposição, desenvolverei quatro itens: 1)
Conceito de filosofia e de filosofias nacionais; 2) Caráter mediador da
antropologia filosófica; 3) A experiência religiosa e a corrente da Filosofia
Portuguesa e 4) A experiência jurídica e a filosofia do direito. Concluirei
destacando os aspectos mais marcantes do legado filosófico do nosso pensador.
1 - Conceito
de Filosofia e de Filosofias Nacionais
A filosofia não é para Braz
Teixeira discurso puramente abstrato, sem nenhuma relação com o homem concreto.
Para ele, o existencialismo e a fenomenologia deixaram claro que a meditação
filosófica abarca o homem na sua concreção histórica. A filosofia é, assim, lógos que surge no seio de uma nação,
fala uma linguagem, debruça-se sobre problemas específicos que desvelam o ser
humano. Essa contribuição dada pela filosofia contemporânea abriu as portas
para que o homem português, a quem se tinha negado num contexto racionalista a
vocação de pensar, descobrisse a sua identidade filosófica, traduzindo o viver
numa meditação projetada sobre a vida.
A respeito, o nosso autor
afirmava já em 1959, numa das suas primeiras obras: "Cabe ao pensamento
desenvolvido sob o signo existencial o mérito de ter afirmado e demonstrado,
contra as tendências excessivamente racionalistas de certo falso universalismo,
pretensamente utópico e ucrónico, a idéia da não existência de uma Filosofia
universal, desinserida de qualquer complexo espácio-temporal, mas antes da
existência de Filosofias nacionais, já que cada povo, enquanto especial
concepção do mundo e da vida, é já Filosofia
viva, expressão do seu particular modo de ser nacional, a que os
pensadores, intérpretes da situação histórico-cultural concreta do seu povo e
do seu tempo, dão superior forma racional. O português, a quem sucessivas
gerações, ligadas a um conceito excessivamente racionalista, abstracto e formal
de Filosofia, tinham negado um pensamento nacional, por congênita incapacidade
filosófica, começa a ser reabilitado, agora que a Filosofia procura concentrar
novamente sobre o real e a vida todas as suas atenções, valorizando-os em todos
os seus aspectos e, abandonando todas as pretensões de explicação sistemática e
total, por compreender, como Radbruch, que o
mundo não é divisível pela razão sem deixar resto, está interessada acima
de tudo pelo homem de carne e osso,
pela vida, pelo concreto, pela existência humana, pelo estar-no-mundo, pretendendo atingir, não a pseudo-lógica das idéias
claras, mas a lógica verdadeira, a da estrutura do vivente e da geometria
íntima da natureza, de que fala Maritain. A esta luz ressalta com notável
nitidez o caráter eminentemente
existencial da nossa Filosofia, dispersa na nossa poesia, na
nossa mística, na nossa teologia, na nossa literatura novelística e de viagens
e nas obras de intenção propriamente filosófica" [Teixeira, 1959: 9-10].
No epígrafe colocado no início da
obra de que foi extraída a anterior citação, A filosofia jurídica portuguesa
actual, Braz Teixeira cita as seguintes palavras do pensador espanhol
Ganivet: "La filosofía más importante de cada nación es la suya propia,
aunque sea muy inferior a las imitaciones de extrañas filosofías"
[Teixeira, 1959: 9].
Mas se a Filosofia caracteriza-se
pela sua inserção na história, no entanto também devemos reconhecer o seu
compromisso com a verdade. O nosso pensador faz suas as palavras de José
Marinho, quando afirma: "(...) a Filosofia é desenvolvimento de uma visão
autêntica do ser e da verdade numa situação concreta do homem e do pensar do
homem no espaço e no tempo" [apud Teixeira, 2000a: 32]. Em relação ao
compromisso com a verdade que caracteriza ao filosofar, escreve Braz Teixeira:
"A Filosofia não é, como os outros tipos de saber, um corpo de doutrina,
um acervo de conhecimentos ou um conjunto articulado de soluções ou de
respostas, mas um processo, uma actividade permanente de interrogação sobre o
próprio saber, seu valor e seus fundamentos. O que constitui a sua essência é a
busca constante e sempre recomeçada da verdade e não a sua posse. Não é um
saber feito, que possa transmitir-se e se vá adicionando, mas um conjunto
permanente de interrogações, nunca definitivamente respondidas em que cada
resposta que o filosofar a si próprio se dá é sempre uma resposta provisória,
que se converte em nova interrogação. Com efeito, enquanto a solução resolve,
dissolve, elimina ou suprime o problema, a resposta filosófica não é
solucionante, deixando irresoluto o problema e viva a interrogação. Daí que,
diversamente do que acontece com os restantes tipos de saber humano, a
Filosofia seja, essencial e radicalmente,
interrogativa, problemática e não
solucionante" [Teixeira, 2000a: 15-16].
A filosofia, para o pensador
português, possui esse caráter de irresolubilidade,
em virtude da sua dimensão aporética, que decorre da inadequação essencial
entre o ser e o pensar. Justamente porque a realidade transcende ao pensar,
aquela constitui-se, para o homem, em algo de misterioso, inesgotável pelo Lógos. Em relação a esse ponto, frisa o
nosso pensador: "A Filosofia é, assim, fundamentalmente, aporética, já que a sua actividade
interrogativa do real e do próprio pensamento a conduz à identificação e ao
tratamento das aporias, à verificação de que o pensamento e a realidade se não
identificam e de que nem tudo é pensável ou abarcável pela razão humana. É
precisamente daqui que surge a noção de incognoscível
ou de mistério, não como o que
contraria a razão ou o pensamento humano, mas como o que o excede,
ultrapassando a sua capacidade ou possibilidade de conhecimento ou compreensão.
Trata-se, pois, do domínio, não do irracional por defeito, por contrário à
razão, mas do irracional por excesso (Leonardo
Coimbra), do que, ultrapassando a razão, só é acessível por via mística, por
inspiração angélica ou por revelação divina" [Teixeira, 2000a: 27].
O caráter aporético do filosofar não invalida, antes pressupõe a capacidade
da razão de apreender o real numa primeira visão intuitiva, denominada por José
Marinho de visão unívoca. Firma-se, a
partir desta, a dimensão teórica da filosofia. Assim caracteriza o nosso autor
essa dimensão: "Sendo a Filosofia pensamento reflexivo ou especulativo, e
sendo este actividade própria da razão,
que se exerce, discursivamente, através do raciocínio,
não pode esquecer-se, no entanto, que não só a razão humana se não garante a si
própria enquanto órgão de conhecimento ou de pensamento, pressupondo sempre a
sua actividade um prévio acto de crença,
por um lado na racionalidade do real e, por outro, na capacidade da razão para
se apreender a si e para compreender a realidade, como ainda, que o raciocínio
ou a actividade cognoscente da razão tem sempre como condição ou pressuposto
uma intuição ou uma primordial visão, assim como se nutre do outro da
razão, seja sensação, imaginação ou crença e das múltiplas formas de experiência, sendo, nessa medida, razão experimental, razão aberta ao outro de si, ao não racional,
tantas vezes erradamente confundido ou identificado com o irracional. Assim, em sua radicalidade ou como saber radical, a
Filosofia é sempre teoria, no seu
originário e tradicional sentido, isto é,
intuição intelectual, contemplação de
idéias, visão espiritual do invisível ou teoria do ser e da verdade. De igual
modo, a compreensão da realidade ou
do ser e da sua verdade que todo o pensamento filosófico procura alcançar
depende sempre de uma prévia apreensão
intuitiva, sensível ou trans-sensível, daquilo a que José Marinho chamou visão unívoca" [Teixeira, 2000a:
27-28].
O caráter situado do filosofar,
que o nosso autor já tinha apontado na sua obra de 1959, A filosofia jurídica portuguesa
actual, é destacado de forma mais completa num dos seus últimos
escritos, na segunda edição de Sentido e valor do direito.
Repitamos as suas palavras, que constituem decantada expressão do pensamento de
Braz Teixeira nos últimos anos: "Actividade humana, a Filosofia é, como o
próprio homem, ser do tempo, radicada e dinâmica, interrogação permanente a
partir de uma situação concreta, de uma circunstância
definida, está indissoluvelmente ligada a uma língua, a uma tradição, é um
movimento espiritual num espaço-tempo que não é homogéneo e uniforme mas
múltiplo e diverso, como o ser individual de cada filósofo. Daí que, sendo
embora una na busca da verdade, a Filosofia seja múltipla e diversa na
variedade dos seus caminhos, pois, se são imutáveis os enigmas com que se
defronta, é sempre outro o movimento do pensamento que pensa e interroga,
pensando-se e interrogando-se também a si. Por outro lado, se a Filosofia é
actividade ou processo da razão que se interroga a partir de uma intuição ou
visão a que sempre regressa ou a que sempre se refere, está também sempre
condicionada pela língua em que o filósofo pensa, já que não há pensamento sem
palavra nem linguagem, ainda que este não se pretenda comunicar pela fala ou
pela escrita (...). Deste modo, não pode haver verdadeiro pensamento filosófico,
enquanto discurso racional, sem palavras nem linguagem" [Teixeira, 2000a:
30-31].
Na trilha desta reflexão, a
filosofia reveste-se, no sentir de Braz Teixeira, das caraterísticas culturais
da língua em que está expressa, ganhando assim o colorido nacional em que se
encontra situada. Todo discurso filosófico refere-se, na modernidade, a esse
contexto, fora do qual sairia da história. A respeito, o nosso autor escreve:
"Ora, as palavras de cada língua contêm virtualidades especulativas
próprias, que não só permitem, por vezes, dilucidar ou esclarecer melhor certos
problemas a que outras só dificilmente acedem (como acontece, por exemplo, com
a distinção entre ser e estar ou ser e ente que o
português, o castelhano e o italiano fazem, mas que não existem em francês ou
em inglês), ou penetrar mais fundamente em certos sentimentos mais complexos ou
mais intensamente vividos ou experimentados (por exemplo, a saudade luso-galaica, a ilusión castelhana, a dor romena, a Sehnsucht germânica ou a morriña
galega). Assim, se o pensamento filosófico autêntico é sempre universal,
porque demanda o uno essencial do ser e da verdade, nas suas formas e nas suas
expressões é também, sempre, individual e nacional, dado o carácter radicado e
situado de todo o pensar e agir humanos" [Teixeira, 2000a: 31-32].
Posto que expressa em língua
nacional, a filosofia reveste-se, em cada uma delas, de gêneros literários
diversos. O pensador português lembra, a respeito, que Julián Marías na obra intitulada Ensayos de teoría [Madrid,
1954, apud Teixeira, 2000a: 33] identificou catorze formas literárias válidas
do discurso filosófico ocidental. Isso testemunha a riqueza da meditação
filosófica, que é suscetível de ser vertida em múltiplas formas de expressão,
dependendo da personalidade e dos pendores literários de cada pensador. Em
relação a essa variedade, frisa Braz Teixeira: "Diferentemente do que,
muitas vezes, se diz ou do que uma análise superficial poderia levar a
concluir, a Filosofia não só não constitui um género literário como não tem uma
forma própria e única de exprimir o seu discurso, quando adopta a forma escrita
para comunicar o pensamento pensado pelos filósofos. Na verdade, basta atentar
com mediana atenção na história da Filosofia ocidental, para concluir, de
imediato, que esta tanto se tem expressado através do poema ou da forma poética (Parménides, Lucrécio, Nietzsche,
Teixeira de Pascoaes), como do diálogo,
de estrutura teatral ou não (Platão, Cícero, Leão Hebreu, Berkeley, Leibniz,
Leonardo Coimbra), do aforismo
(Heraclito, Pascal, José Marinho), como da máxima
ou reflexão, geralmente de índole
ou intenção moral (Epicteto, Marco Aurélio, La Rochefoucauld, Matias Aires), da
autobiografia (Santo Agostinho, Dom
Duarte, Descartes), como do ensaio
(Bacon, Locke, Maine de Biran, António Sérgio), do tratado (Aristóteles, Espinosa, Hume, Wittgenstein) como do comentário (Averróis, São Tomás de
Aquino, Pedro da Fonseca), da suma
(São Tomás, Pedro Hispano, Ockam), como do sistema
(Hegel, Comte, Cunha Seixas, Leonardo Coimbra)" [Teixeira, 2000a:
32-33].
2 - Caráter
mediador da Antropologia Filosófica
A antropologia filosófica, no
sentir do nosso pensador, ganhou um lugar de destaque na hodierna meditação
ocidental. Isso em decorrência da evolução das próprias ciências, que
conseguiram se ver livres do estreito cientificismo do século XIX, bem como do
fato de a meditação filosófica ter superado os limites do racionalismo, por
força da crítica vivificante ensejada pela fenomenologia, a filosofia dos
valores e o existencialismo. "Para esta nova situação especulativa
contribuiu, em não pequena medida -
frisa Braz Teixeira - a crise ou a derrocada do sistema de idéias, valores e
crenças filosóficas e científicas que havia constituído o substrato cultural em
que assentou a vida espiritual da segunda metade do século XIX. Desencadeada
pelos novos caminhos da microfísica, da biologia e da psicologia e pelas
correntes de pensamento que, em oposição ao positivismo, ao evolucionismo e ao
monismo materialista que àqueles, em geral, andou associado, essa crise veio
não só demonstrar as insuficiências e as contradições dos modelos
epistemológicos fundados nas ciências do mundo sensível e do minorado conceito
de razão de que partiam ou que nelas estava pressuposto, como chamar a atenção
para a especificidade e a irreductibilidade do mundo da vida e da psique à
matéria e ao mundo inorgânico, para a autônoma e superior realidade do
espírito, para o valor gnósico da intuição, da imaginação e do sentimento, para
as fecundas e essenciais relações entre a razão e o impropriamente chamado
irracional, para o indivíduo singular e concreto, o homem de carne e osso, de que falava Unamuno" [Teixeira, 1993:
79].
A antropologia centro-européia,
no entanto, percorreu caminho diferente do trilhado pela meditação antropológica
em Portugal. Naqueles países ficou restrita à análise fenomenológica e terminou
dando ensejo à formulação de ontologias regionais. Em Portugal, no entanto,
graças especialmente à corrente da Filosofia
Portuguesa, a antropologia filosófica abriu-se a uma visão metafísica
projetada sobre um pano de fundo cósmico e escatológico, de que a meditação de
José Marinho, Álvaro Ribeiro, António Quadros, Afonso Botelho e Leonardo
Coimbra são exemplos vivos.
Fazendo uma síntese do espírito
que anima hoje à antropologia filosófica da corrente em apreço, escreve Braz
Teixeira: "No que à filosofia portuguesa respeita, a sua indagação no
domínio da antropologia filosófica ou metafísica tem dado preferência aos
problemas da origem, liberdade e destino do homem, do mal, da morte e da
imortalidade, a uma teoria dos sentimentos que não se detém na sua
fenomenologia ou na sua dimensão psicológica ou meramente afectiva, mas atende
às suas conexões cósmicas e ao seu significado unitivo e resgatante, e em que
ocupam lugar primordial o amor e a saudade, a alegria e a dor e que a graça
divina coroa e enleva, às questões relativas à formação e à educação do homem,
não descurando nem esquecendo o carácter sexuado do ser humano. Deste modo, se
a antropologia filosófica contemporânea tende, noutros países e noutros povos
do nosso continente, a circunscrever-se a uma dimensão humanista e fechar-se
numa finitude temporal e mundana, a filosofia portuguesa tem revelado uma dupla
abertura e um duplo horizonte, simultaneamente cósmico e escatológico, pois
sabe, como o lembrou Leonardo Coimbra, que o homem é um ser criado em natureza para se fazer em liberdade, pelo que não é uma inutilidade num mundo feito, mas o
obreiro de um mundo a fazer" [Teixeira, 1993: 81].
A filosofia, para Braz Teixeira,
está situada historicamente, em virtude do caráter temporal do homem. A
dimensão ôntica deste condiciona a sua meditação sobre o real. Ora, como o ser
humano pensa fundamentalmente em base aos problemas com que se defronta, a
meditação filosófica está condicionada por essa perspectiva problemática. A
Antropologia Filosófica é, destarte, a perspectiva mediadora entre a teoria, a
prática e a dimensão estética, estabelecendo, de outro lado, o nexo entre a
natureza e o espírito. A respeito, escreve o pensador português: "Quem
interroga ou defronta os problemas é, porém, sempre o homem, que é a si mesmo e
por si mesmo que interroga, pelo que a questão antropológica, a pergunta sobre
o que é o homem, qual a sua origem e destino, sobre o valor e sentido da sua vida
e do seu agir, se lhe impõe como tão essencial e radical, como a interrogação
sobre o ser em que o próprio homem está imerso e de que participa. Sendo
essencialmente metafísica, a Antropologia Filosófica é mediadora
entre a razão teórica, a razão prática e a razão estética, estabelece a necessária articulação entre o mundo
da natureza e o mundo do espírito, liga-se, por um lado, à Teodicéia ou à Ontoteologia
e à Cosmologia e, por outro, à Ética, à Filosofia da Religião, à Filosofia
da História, à Filosofia da Arte
e à Filosofia do Direito, enquanto
interrogação filosófica sobre a essência, o sentido e o valor do existir e do
agir do homem no mundo e das suas criações espirituais" [Teixeira, 2000a:
30].
Decorrente do valor especial
conferido à Antropologia Filosófica, a experiência constitui a porta através da
qual podemos penetrar no interior da razão humana. Haverá tantas áreas em que
possamos nós, humanos, plasmar a nossa concepção de mundo, quantas forem as
possibilidades da experiência do mundo. O nosso pensador considera que a
revalorização do conceito de experiência
constitui um dos grandes achados do pensamento contemporâneo. Ela é,
basicamente, dos seguintes tipos: estética, ética, religiosa, científica e
jurídica. Em relação a este ponto, escreve Braz Teixeira no seu belo ensaio
intitulado Experiência jurídica e ontologia do direito [Teixeira, 1987:
24]: "O conceito de experiência,
limitado pela filosofia moderna, em especial a partir dos séculos XVII e XVIII
ao domínio sensorial e empírico, ao campo das chamadas ciências naturais ou
experimentais, viu-se restituído, no nosso tempo, à sua dimensão própria, pelo
reconhecimento da existência de outras formas igualmente válidas e legítimas de
experiência que o pensamento medieval conhecera e adequadamente valorizara,
como a experiência estética, a experiência ética e a experiência religiosa, tal como a experiência científica, modos e
expressões da actividade una e indivisível do espírito. Nesta linha de
pensamento, natural seria que viesse também a reconhecer-se a existência e a
especificidade da experiência jurídica,
entendida como conhecimento de algo dado no mundo jurídico, de um objecto que
se apresenta à nossa mente sem qualquer intervenção dela na sua constituição ou
interpretação".
3 - A
experiência religiosa e a corrente da Filosofia Portuguesa
O nosso autor dedica especial
atenção ao estudo de dois tipos de experiência, entre os mencionados: a
religiosa e a jurídica. Quanto à primeira, Braz Teixeira considera que
relaciona-se com a vivência do mistério,
da apreensão intuitiva do fato de que há mais mundos do que este apreendido
pela experiência sensível. A religiosa constitui a experiência fundamental, já
que ela permite superar o estreito racionalismo, aderindo a uma concepção
elevada de razão, aberta à realidade na sua mais numinosa plenitude.
Dessa experiência, por outro
lado, parte toda a concepção da denominada Filosofia
Portuguesa. Eis a forma em que o pensador explicita o seu ponto de vista a
respeito: "Importa, antes de mais, partir de um conceito de razão que
exceda os limites de um racionalismo fechado e formalista, apoiado unicamente
nas ciências do mundo sensível e numa noção redutoramente empírica de
experiência, e se abra ao essencial e irrecusável valor e significado gnósico
da sensação, da intuição, do sentimento, da imaginação e da crença, reconheça
que há mais mundos para além daquele
que os sensos nos revelam e admita que a experiência humana assume múltiplas
formas, desde aquela em que se fundam as ciências, até à experiência estética,
que as figuras e formas simbólicas propiciam, à experiência ética, que
transcende a lei, norma e mandamento, para encontrar nos valores e nos
princípios o seu centro ou o seu objecto, e à experiência religiosa, que,
partindo do numinoso dos mitos, ascende à sublimidade do sagrado e do divino ou
se eleva à união mística. Necessário é, também, atender a que a mais autêntica
origem da interrogação filosófica se não encontra no espanto ou na admiração
perante a multiplicidade dos seres e a imensidão cósmica, pois que ambos são
ainda do domínio meramente psicológico e limitadamente humano, mas sim no plano
ontológico mais radical do enigma ou
do mistério, no qual e pelo qual todo
o ser e toda a verdade, em instantânea visão, simultaneamente, se ocultam e patenteiam
ao espírito do homem" [Teixeira, 1993: 11]. De outro lado, convém destacar
que a preocupação com o problema da dor insere-se no contexto teodiceico da
meditação portuguesa contemporânea [Cf. Teixeira, 2000b: 7-15].
A partir do conhecimento do enigma ou do mistério forma-se em nós a idéia de Deus, que passa a se constituir
no núcleo que dá sentido a tudo quanto existe e deita os alicerces do
filosofar. A respeito escreve Braz Teixeira: "A idéia de Deus é o primeiro
princípio e fonte de todo o princípio que confere sentido e valor a tudo quanto
existe e possibilita o próprio filosofar, como amoroso e interminável esforço
pela sabedoria que é, em si, o mesmo espírito divino que, sendo a eterna e
absoluta plenitude, só por analogia pode ser pensado pela razão humana.
Singularidade do pensamento português tem sido o descobrir e revelar a profunda
relação que une Deus, o mal e a saudade e, ao mesmo tempo, mostrar que foram
outorgados à liberdade humana, assistida pela graça divina, os meios para
minorar ou vencer o mal e contribuir para restaurar aquela original e fraterna
harmonia entre todos os seres, para que está ordenada toda a criação"
[Teixeira, 1993: 12].
A busca incondicional do absoluto
constitui, no sentir de Braz Teixeira, não apenas um tema de indagação teórica
mas é, como já foi salientado, a causa originante do filosofar. Diríamos mais:
que a problemática teodiceica é o leitmotiv
das preocupações existenciais do homem comum, bem como o ponto de partida para
a indagação filosófica. Isso constitui marca caraterística da cultura em
Portugal. "No português, escreve Braz Teixeira no seu ensaio intitulado O
problema do mal na filosofia portuguesa contemporânea, a ânsia
desmedida de absoluto, causa tão freqüente de seus sucessos e fracassos, a
apetência de regresso a uma perdida harmonia e perfeição, de que emerge a
saudade, como já D. Francisco Manuel o vira, choca-se dramaticamente com a
realidade brutal e agressiva do mal nos homens e no mundo. A possibilidade de
existência de Deus, suma Bondade e sumo Bem, e a realidade insofismável do mal,
eis o que, desde o plano do mais desatento viver quotidiano até ao da mais
séria e responsável especulação, é para ele causa de inquietação e
perplexidade. De tal atitude e problema dá sinal o seu pensamento, com tão
funda ressonância, desde a heresia priscilianista aos nossos dias, que por eles
acentuadamente se singulariza no quadro do filosofar europeu, como tem já sido
notado por alguns dos seus mais esclarecidos intérpretes" [Teixeira, 1964:
16].
O nosso pensador faz referência
específica, neste ponto, a Álvaro Ribeiro e José Marinho. Embora estes
pensadores, bem como outros importantes representantes da corrente da Filosofia Portuguesa (como Leonardo Coimbra, Sant'Anna Dionísio, Antônio
Quadros e Afonso Botelho) tenham salientado o caráter religioso-metafísico do
povo, inspirador da meditação filosófica em Portugal, estudiosos de outras
latitudes, em épocas passadas, salientaram também essas caraterísticas,
referindo-as ao homem peninsular. Madame de Staël, por exemplo, na sua obra Dix
années d'exil tinha dito acerca da Rússia que "os laços da nação
consistem na religião e no patriotismo" [Staël, 1996: 304], tendo
encontrado profundas semelhanças entre esse povo e os ibéricos (em decorrência
do valor atribuído em ambas as culturas ao fator religioso). A escritora
francesa chegava ao ponto de dizer que os russos eram os "castelhanos do
norte" [Staël, 1996: 258].
A primeira conseqüência da
adoção, por parte da Filosofia Portuguesa, do mencionado ponto de
partida teológico, é a crítica à razão que pretendeu, sob a inspiração do
racionalismo iluminista, se constituir em juíza e senhora da verdade. A
propósito, frisa Braz Teixeira: "Como, porém, o problema de Deus é
indissociável do problema do Logos, a crítica filosófica à idéia tradicional da
divindade é acompanhada por uma paralela dissolução do conceito iluminista de
uma razão clara e segura de si, que recusa todo o negativo e todo o irracional,
primeiro através da interrogação sobre os limites da própria razão e sobre o
seu saber de si, e, depois, pela admissão progressiva do irracional que
recusara, tanto do irracional entitativo, como do irracional cognitivo, e, por
fim, pela sua abertura a outras formas gnósicas, como a intuição, a imaginação
ou a crença" [Teixeira, 1993: 16].
Em decorrência desta avaliação
crítica da razão, as questões antropológicas deságuam em questões teológicas,
sendo o problema do mal a indagação central da antropologia na Filosofia Portuguesa. Em relação a esse ponto, escreve o nosso pensador,
sintetizando a evolução da meditação filosófica em Portugal nos séculos XIX e
XX: "No pensamento português contemporâneo, a análise filosófica da idéia
de Deus foi acompanhada por uma paralela revisão do conceito de uma razão clara
e segura de si, que repele todo o irracional, seja mal seja erro (como é ainda a de Amorim Viana), primeiro,
pela interrogação sobre os limites da mesma razão (Antero de Quental) e,
depois, pela admissão do próprio irracional, quer como racional entitativo (com
Sampaio Bruno e a admissão do mal como o positivo e o plenamente real), quer
com a consideração do erro como irracional cognitivo (Leonardo Coimbra),
quer, por fim, com o fazer depender todo
o pensamento do enigma e com o considerar recíproca e complementarmente implicadas
as noções de visão unívoca e de cisão (José Marinho). Este processo de
paralelo desenvolvimento do debate filosófico sobre a idéia de Deus e o
conceito de razão não poderia, naturalmente, deixar de projectar-se também
sobre o modo de defrontar a grande aporia que o mal suscita: como conciliar, no
plano especulativo, a sua existência com a omnipotência e a bondade divinas?
Daí que, no pensamento português dos séculos XIX e XX se assista a uma radical
alteração na atitude filosófica perante o mal, que depois de haver sido
longamente pensado como problema,
passou a ser visto como enigma que
leva o homem a interrogar-se sobre si próprio e sobre a cisão em que o mal se
dá ou manifesta, quando não já como mistério.
Ou seja, de algo exclusivamente humano, que poderia ser resolvido ou superado
pelo pensamento ou pela razão do homem, negando a sua essencial realidade e
convertendo-o em ilusória aparência ou privação, o mal ascendeu ao reino divino
e converteu-se em algo inegavelmente real que, no entanto, por exceder a
capacidade da razão humana, é incognoscível, tornando-se, por isso, inviável toda a ontologia do mal e limitando-se à sua fenomenologia, ao conhecimento dos modos como se manifesta na vida
e no agir dos homens o saber que sobre ele é possível" [Teixeira, 1993:
62].
No contexto da crítica à
tendência racionalista atrás apontado, a meditação portuguesa, no sentir de
Braz Teixeira, passa a se polarizar ao redor das seguintes questões: a idéia de
Deus, o problema do mal, o conceito de razão e as relações entre razão e fé,
filosofia e religião e filosofia e ciência [cf. Teixeira, 1971: 355-373]. Se a
meditação filosófica se polarizou em Portugal em torno às questões teológicas,
isso não significa, contudo, que esteja fechada a porta para um diálogo criativo
com a meditação brasileira, claramente formulada numa perspectiva
fenomenológica e crítica. Valha aqui o alerta de tolerância e abertura
intelectual dado pelo nosso pensador no prefácio à sua obra O
pensamento filosófico de Gonçalves de Magalhães [Teixeira, 1994: 15]:
"Cabe ter presente (...) que a historiografia filosófica, no caso
vertente, a do pensamento luso-brasileiro, só terá a ganhar com os contributos,
por modestos que sejam, dos diversos pontos de vista, já que não se trata aqui
de estabelecer ou definir qualquer ortodoxia interpretativa ou uma visão
dogmática, monolítica e definitiva, mas sim daquele diálogo especulativo sempre
em aberto e sempre sujeito a revisão em que consiste toda a actividade
hermenêutica".
4 - A
experiência jurídica e a filosofia do direito
A experiência jurídica constitui
o outro tipo de experiência que, junto com a religiosa, merece especial atenção
do nosso autor. Diferentemente desta, que se abre à escatologia e à
transcendência, como acabamos de ver, a experiência jurídica projeta-se sobre o
mundo e sobre os conflitos entre as pessoas. É definida por Braz Teixeira, no
seu ensaio intitulado Experiência jurídica e ontologia do direito
[Teixeira, 1987: 27], no qual o pensador português sintetiza os aspectos
essenciais da sua filosofia do direito, que expôs de maneira sistemática na
obra, já citada, Sentido e valor do direito. Introdução à filosofia jurídica [cf.
Teixeira, 2000a]. Eis a definição de experiência jurídica, no primeiro dos
escritos mencionados: "A experiência jurídica aparece-nos constituída por
um conjunto, complexo mas unitário, de dados, de que se destaca, em primeiro
lugar, a sua estrutura antinómica, a
natureza ou dimensão conflitual das relações jurídicas, o envolver uma questão
prática, um problema referente à conduta, em que existe um conflito entre
diversos sujeitos, que carece de ser resolvido ou composto, de ser satisfeito,
de modo a obter a paz social. Este tipo particular de experiência (...)
revela-se constituído por dados que se referem não só a pessoas e a realidades
da vida ou coisas do mundo, como também a valorações, a necessidades e
pretensões, envolvendo questões concretas que é necessário resolver ou decidir.
É por isso que constituem dados imediatos da experiência jurídica, por um lado,
os conflitos de interesses e, por
outro, o critério de valor - o
sentido do justo e do injusto - a que se recorre para a respectiva solução. E
também aqui a sua estrutura antinómica se revela, agora no confronto entre o
sentimendo de justiça, que fornece o critério de valor em que se baseia a
solução dos conflitos e a necessidade de fundamentar racionalmente essa mesma
solução, de encontrar razões ou argumentos que a justifiquem" [Teixeira,
1987: 27-28].
O nosso autor destaca o caráter cultural da realidade jurídica, criação
humana referida a valores, princípios ou ideais, inserida no contexto da
historicidade em que se desenvolve a vida do homem. Eis a maneira em que Braz
Teixeira sintetiza esse aspecto do direito, de forma muito próxima, aliás, a
como Miguel Reale interpreta essa realidade, no contexto do seu conhecido
culturalismo, que constitui o marco da teoria
tridimensional do direito. "Como realidade cultural, - frisa Braz
Teixeira - o Direito não pertence ao mundo físico nem biológico, em que impera a
causalidade e o determinismo, nem ao domínio psíquico, nem sequer ao dos seres
ideais, em que se situam as realidades lógicas e matemáticas, pois enquanto
estas são intemporais e abstractas, o direito é concreto, variável no tempo e
no espaço e, como realidade humana, é profundamente marcado pela temporalidade
e pela historicidade essenciais ao próprio homem. Como criação cultural, o
Direito não é um dado, uma realidade pré-existente que o homem encontre no
mundo ou na natureza, nem uma realidade estática, mas sim espírito objectivado, projecção espiritual do homem, algo que está
aí para ser pensado, conhecido e vivido e cuja existência depende, por isso, da
relação cognitiva e vivencial que o homem com ele estabelece e mantém, a qual
lhe dá vida e conteúdo e actualiza, dinâmica e criadoramente, o sentido que
nele está latente e lhe é conferido pela referência a valores, princípios ou
ideais" [Teixeira, 1987: 29].
Braz Teixeira considera que o
Direito, enquanto realidade cultural, objetiva-se em normas, "constituindo uma ordem reguladora da conduta ou do
agir humano na sua interferência inter-subjectiva, na sua convivência ou na sua
vida social"; refere-se, assim, à atividade prática do homem e não à
atividade teorética e pressupõe, fundamentalmente, a liberdade, "porquanto só enquanto o homem é livre no seu agir,
quando pode escolher o seu comportamento e optar entre diversas condutas
possíveis, tem sentido que se lhe ordene que aja de certo modo e se
responsabilize e puna pelo desrespeito pela ordem recebida ou imposta. Assim, o
seu domínio próprio é o da liberdade de
agir, cujo exercício e manifestação exterior regula e disciplina, visando
estabelecer uma ordem nessa mesma conduta, definida a partir de princípios,
valores ou ideais que se entende ou pretende deverem conformar o agir humano.
Ao Direito, como realidade cultural, é, pois, inerente um sentido ou um conteúdo
axiológico, uma relação entre a liberdade e determinados valores,
princípios ou ideais" [Teixeira, 1987: 29-30].
Importante contribuição dá Braz Teixeira à
reflexão acerca da forma em que são atualizados os valores no contexto da
experiência jurídica. Nesse particular, atribui grande importância ao papel do
magistrado, aquele que tem a missão de tornar vivo o valor da justiça. A
respeito, escreve o nosso pensador: "Deve notar-se que, do ponto de vista
da Justiça, é mais decisiva a aplicação da lei, porquanto é então que, em
concreto, o Direito se realiza e o próprio de cada um se afirma e define, o
que, obviamente, não impede um juízo sobre a justiça ou a injustiça da lei em
si. Desta conclusão uma outra deriva: a de que é mais decisivo o papel do juiz
do que o do legislador, da jurisprudência do que da lei. De igual modo, o
costume, como mediador mais direto do que a lei entre o sujeito e a norma, pela
sua menor abstração e generalidade, pela sua origem mais vivencial do que
racional-voluntária, mais coletiva do que individual, poderá garantir melhor do
que aquela uma solução justa. Por outro lado, esta visão da Justiça vem pôr a
claro a inadequação do modo de entender a sentença como mero processo
lógico-formal, como um raciocínio silogístico e chamar a atenção para que o
dizer o Direito - a jurisdição - do
caso concreto, o juízo de legalidade
que o juiz profere é condicionado, precedido e,
em larga medida, determinado por um juízo
de justiça, de natureza intuitivo-emocional, ditado pelo sentimento da
justiça" [Teixeira, 1986: 128].
O Direito, de outro lado,
considera nosso autor, tenta regular ou ordenar a conduta relacionada à
condição social do homem, às relações
com os outros homens e com as coisas, "na medida em que estas últimas
relações possam interessar ou afectar os outros". O Direito possui,
portanto, o caráter de realidade social
e de bilateralidade, ao envolver as
relações interpessoais, "implicando direitos e deveres de uns perante os
outros". O Direito é, além disso, uma realidade
social heterónoma, "uma vez que a regulamentação ou a ordenação da
conduta que se propõe estabelecer é imposta do exterior aos sujeitos, por um
outro sujeito dotado do poder de estabelecer e impor critérios, regras ou
normas de conduta ou de comportamento" [1987: 30].
Na análise que o nosso autor
realiza do Direito como ordem normativa ressaltam, de um lado, a sua extensa e
profunda cultura jurídica e, de outro, o sábio equilíbrio de quem muito
refletiu sobre a problemática humana do ângulo da solução dos conflitos à luz
do ideal de justiça. Além dos seus clássicos estudos no terreno da filosofia do
direito, é conhecida, também, a importantíssima contribuição dada por Braz
Teixeira no terreno do direito fiscal e tributário [Cf. Teixeira, 1967; 1969],
ou no da teoria do Estado [cf. Teixeira, 1955; 1956], especificamente no que
diz relação à guerra e ao papel das corporações. Não vou me alargar mais na
análise deste aspecto do pensamento de Braz Teixeira. Gostaria de destacar
apenas que, no terreno da historiografia das idéias sociais e jurídicas,
espelha-se de modo claro a sensatez e o equilíbrio que animam a reflexão do
nosso pensador [cf. Teixeira, 2001a: 177-191], bem como a sua indiscutível
atualização, segundo transparece no seu ensaio intitulado A justiça no pensamento
contemporâneo [cf. Teixeira, 2001b]. Outras comunicações neste encontro
destacarão com mais profundidade e pertinência a importante contribuição de
Braz Teixeira neste terreno.
Chamarei a atenção, finalizando
este item, para a concepção de Braz Teixeira acerca da sociedade como
pluralidade de interesses em conflito, regulados pelo Direito na busca do bem
comum, preservando a liberdade e à luz do valor justiça. Eis, a seguir, uma bela síntese feita pelo nosso autor,
acerca da sua concepção (que poderíamos chamar de culturalista e liberal)
da realidade e da experiência jurídicas: "As normas em que se objectiva o
Direito constituem uma ordem, num
duplo sentido: por um lado, formam um conjunto ordenado a partir dos
princípios, valores ou ideais de cuja visualização ou interpretação são
objectivada expressão; por outro, procuram ordenar,
rectificar ou tornar direita ou recta a
vida social, a convivência entre os homens, as suas relações, substituindo por
uma ordem o caos a que a desordenada conduta individual inevitavelmente
conduziria, no seu jogo de egoísmos e na luta em que o mais fraco sucumbiria ao
arbítrio do mais forte. A ordem que o Direito visa instituir, porque referida a
valores, princípios ou ideais, não é uma ordem neutra ou indiferente, mas sim
uma ordem justa, uma ordem concreta definida a partir do
princípio ou valor justiça, que é,
precisamente, aquele que dá sentido e conteúdo ao Direito na sua essencial
dimensão axiológico-cultural. Partindo da justiça, como princípio, valor ou ideal, o Direito é, pois, o meio de que o homem se serve para
alcançar uma adequada ordenação da sua conduta social, com o fim de coordenar o exercício da liberdade
de cada um com a liberdade dos restantes, realizando, deste modo, o bem comum
da sociedade política" [Teixeira, 1987: 34-35].
Conclusão
A meditação de António Braz
Teixeira apresenta-nos, sobre o pano de fundo de uma concepção da Filosofia
entendida na sua dupla dimensão de contemplação diuturna da verdade a partir do
horizonte histórico do homem, um amplo painel da realidade humana estudada sob
o ângulo da experiência. Se, do ponto de vista metafísico em que se projeta a
experiência religiosa, o nosso autor faz verter a sua reflexão na temática da
que passou a ser conhecida como corrente da Filosofia
Portuguesa, polarizada pela idéia de
Deus e de mistério insondável (na trilha da revelação cristã), do ponto de
vista da sua reflexão sobre a experiência jurídica, pelo contrário, a meditação
do nosso autor passa a se projetar sobre o horizonte humano do agir no mundo e
das relações inter-pessoais, com os conflitos a que dá lugar essa realidade
(apreendida no contexto da experiência fenomenal).
Aparece, assim, no pensamento de
Braz Teixeira, a meu modo de ver, uma dupla vertente: mística e fenomenológica.
A primeira, que é condicionada por uma retomada da idéia medieval de
experiência, como decorrência da vivência de uma realidade transcendente que
nos é revelada numa manifestação que vem de cima, a partir de uma tradição
escatológica preexistente e com predomínio do argumento de autoridade. É a
dinâmica dos mitos fundadores da meditação filosófica, que tanto seduziu o
pensamento de autores como Adolpho Crippa, Eudoro de Souza ou Vicente Ferreira
da Silva, no panorama cultural brasileiro. A "teologia filosófica"
destes, como aliás destaca Braz Teixeira, aproxima-se da meditação portuguesa
[cf. Teixeira, 1998b: 390-401].
A segunda vertente é condicionada
pelo conceito hodierno de experiência, aberta ao mundo dos fenômenos e
pressupondo a função crítica da razão como "faculdade ordenadora do
real", para repetir as palavras do filósofo de Königsberg. O mundo do
direito, para o mestre português, é fundamentalmente o que nos é dado pela
nossa experiência fenomenal do mundo e das lutas entre os interesses
contrapostos das pessoas, apreendido tudo isso à luz ordenadora do valor
justiça, de que a razão jurídica é portadora, a fim de garantir a civilização e
o convívio pacífico entre os homens.
Dupla perspectiva que, inserida
no pensamento do mesmo autor, torna-se paradoxal, do ângulo da busca de um
princípio unificador na sua obra. A primeira perspectiva, ao inspirar a
historiografia das idéias empreendida com dedicação e grande espírito de
sistema pelo nosso autor, terminou dando ensejo a uma versão do pensamento
brasileiro que se contrapõe à nossa tradicional forma de abordarmos as questões
da história das idéias no contexto da perspectiva transcendental kantiana, aliada
à temática da filosofia como problema herdada de Hartmann, Rodolfo Mondolfo e
dos nossos mestres culturalistas, Miguel Reale e Antônio Paim. A escolha da
perspectiva transcendente não impediu ao nosso autor, no entanto, de elaborar
uma ampla e objetiva caracterização de outras correntes da meditação
portuguesa, diferentes da vertente em que ele se situa, como é o caso da
fenomenologia [cf. Teixeira, 1998a: 5-20].
A segunda perspectiva, ao se
aproximar da realidade social do ângulo pluralista da diversidade de interesses
em conflito, e ao tentar uma solução à luz do Direito como criação cultural,
aproxima-se muito da nossa metodologia culturalista de análise filosófica. A
meditação antropológica seria, talvez, o elo que uniria, no pensador português,
ambas as perspectivas apontadas, a julgar pela oportuna observação de Paulo
Borges: "(Braz Teixeira) constata assim, nos vários rumos do pensamento
português, a profunda relação entre a reflexão sobre o direito e a justiça e as
concepções antropológico-metafísicas dos autores, nos quais denota uma razão
que não se presume de uma suposta autonomia antes comprometida com a situação singular e concreta do sujeito
humano, na abertura à experiência intuitiva, afectiva e crente" [Borges,
1992: 42].
Resta-nos realizar uma análise
desassombrada da obra de Braz Teixeira, a fim de, sine ira ac studio, melhor compreendermos a sua posição no mundo da
meditação luso-brasileira, obedecendo sempre ao critério de rigor crítico e de
modéstia epistemológica expresso pelo mestre português, no prefácio da sua obra
Espelho
da razão [Teixeira, 1997: 10]: "Cabe agora aos investigadores e
historiadores da filosofia brasileira avaliar em que medida é adequado o
caminho que segui e são pertinentes as hipóteses interpretativas aqui propostas,
com aquela serena simpatia intelectual que é condição de toda verídica
compreensão filosófica".
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- TEIXEIRA, António Braz [2001b]. "A justiça no pensamento contemporâneo". Manuscrito inédito.
[Este texto foi publicado na Revista Brasileira de Filosofia e no Proyecto Ensayo, da Universidade de Georgia]
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