O cruel ditador sírio Bachar-el-Assad, com essa estranha figura de fuinha comprida, não engana mais ninguém: faz jus à tradição de despotismo oriental que está nas raízes da história dessa parte do mundo. Ao ensejo da “Primavera Árabe” foram caindo, como peças de dominô, os vários ditadores do lado africano do Mediterrâneo, bem como outros déspotas do Oriente Médio. Mas o único a permanecer, até agora, incólume, é o ditador sírio. Não porque o seu regime goze de ostensivo apoio popular. Mas porque, embora pertencente à minoria alauíta, ou talvez precisamente por isso, se escorou de forma decidida na utilização das armas para esmagar os movimentos de contestação ao seu governo. Nada que dure cem anos. Estou mais para a opinião de Barack Obama de que a questão síria não é se vai cair o ditador ou não, mas quando.
O apoio russo e chinês ao governo sírio, no seio do Conselho de Segurança das Nações Unidas, decorre mais de cálculo estratégico das duas potências, no complexo xadrez do poder mundial. Ora, esse cálculo começará a sinalizar em outra direção, no momento em que a soma de desvantagens para os dois garantidores do regime sírio seja maior do que as vantagens calculadas inicialmente. Sem dúvida que uma das razões que pesa no apoio da Rússia e da China, diz relação às questões internas que os descontentes de origem muçulmana, nos dois países, têm colocado ao longo das últimas décadas. Uma posição favorável à Síria é uma mensagem direta a esses opositores: nem o Kremlin, nem Pequim estão dispostos a tolerar excessos das minorias muçulmanas, podendo adotar medidas de força contra elas, como as que Bachar-el-Assad tem posto em prática na Síria. (Medidas, aliás, tão brutais quanto as adotadas, anos atrás, por Russos e Chineses contra Chechenos e Uigures, respectivamente). Trata-se, sob este viés, de mais um desdobramento do despotismo oriental, que está na comum origem de Chineses, Russos e Sírios. “Dios los cria y ellos se juntan”. Poder-se-ia aplicar o ditado espanhol ao caso.
Mas lembremos um pouco a história da Síria, a fim de compreender melhor esse caráter violento dos alauitas (a minoria à qual pertencia Hafez Assad, o anterior mandatário, bem como o seu filho e hoje presidente, Bachar). No segundo milênio antes de Cristo já eram conhecidos pela sua violência os Hititas, que dominavam no que hoje é a Síria e a Anatólia (uma região da Turquia). O Império Hitita constituía uma das três grandes potências do mundo nos séculos XIV e XIII antes de Cristo (sendo as outras duas o Egito e a Babilônia). Ficou famosa na história a batalha de Kadesh entre Hititas e Egípcios, na qual as tropas de Ramsés II foram vencidas pelo príncipe hitita Hattosilis. O Faraó, que controlava rigorosamente a informação passada pelos seus escribas aos construtores oficiais, mandou que a versão fosse outra, ordenando um conjunto de inscrições que narravam encarniçado combate, em que os egípcios faziam alarde da sua magnanimidade para com os vencidos, tendo o Faraó recebido no seu harém a filha do soberano hitita Hattosilis III, a fim de selar a paz.
Um segundo momento memorável nessa história de despotismo foi o protagonizado por Seleuco, um dos “diádocos” (assim chamados os generais de Alexandre, que passaram a se distribuir o seu vasto império após a morte dele, em 312 a. C.). Famoso pela sua crueldade para com os inimigos e aqueles que lhe fizessem oposição, esse general fundou o vastíssimo Império Selêucida, que se estendia do Mar Egeu até o Afeganistão, tendo como capital a cidade de Antioquia. Memorável pela sua crueldade para com os judeus foi um dos sucessores de Seleuco, Antíoco IV Epífanes, que governou entre 175 e 164 a. C., e que mereceu ser citado pelo profeta Daniel em decorrência da “abominação desoladora” (Daniel 9, 26-27) que praticou em Jerusalém, ao destruir o templo e assassinar centenas de judeus, em 167 a. C.
Entre 64 a. C. e o ano de 637 da nossa era, a Síria foi província romana, uma das mais importantes por sinal, dado o seu caráter conflituoso. A relevância das províncias do Império era medida pelo número de legiões nelas sediadas. Ora, a Síria era uma das mais significativas, dado que nela permaneciam três legiões, sendo apenas superada pela Gália e a Germânia (com quatro legiões cada). A importância da Síria pode-se avaliar, também, pelo fato de um dos seus governadores, o general africano Septimio Severo, ter virado Imperador, em crudelíssimo golpe perpetrado pelas suas legiões contra os outros pretendentes ao trono, em 193. Ficaram famosas as perseguições dos governadores da Síria contra os cristãos, no primeiro século, que deram ensejo à reação doutrinária de São João no seu cifrado escrito com que culmina a Bíblia, o Apocalipse, no qual o Império Romano é comparado à “besta que vem do mar” (Apo. 13, 1).
Em 637, a Síria foi conquistada pelos muçulmanos e passou a sediar a mais importante unidade política destes, o Califado de Damasco, presidido pela dinastia dos Omíadas, muito menos tolerantes que os seus rivais da Dinastia Abácida, que terminaram se impondo em 750, tendo fundado em Bagdá a capital do seu Império. Lembremos que foram Tarik e Mussa, os capitães de Al Walid, califa de Damasco, os que efetivaram a sangrenta expedição do Norte da África, que culminou com a conquista da Península Ibérica pelos sarracenos, em 711. Mais adiante, em 1171, Saladino terminou unificando o mundo islâmico ao redor do Principado da Síria e do Egito.
A Síria foi incorporada ao Império Otomano (1299-1922). No final da Primeira Guerra Mundial, com a derrubada deste, o país passou ao domínio da França, que terminou privilegiando a minoria dos alauítas (de inspiração xiita), como forma de se contrapor ao movimento independentista árabe dos sunitas. Nos anos 70, Hafez Assad tornou-se presidente da Síria. O seu partido Baath atraiu muitos alauítas como militantes, devido aos seus ideais igualitaristas. O fato de constituir uma minoria na Síria fez dos alauítas, no poder, governantes extremamente violentos com a oposição. A inspiração xiita dos alauítas explica, de outro lado, a aproximação que o governo sírio teve, ao longo dos últimos trinta anos, com o regime dos Aiatolás do Irã. Explica, também, o favorecimento aos grupos terroristas praticado pela Síria. Tanto o radicalismo xiita quanto a longa história de violência que acabamos de expor, explicam a política de despotismo que o atual presidente sírio, Bachar-el-Assad, põe em prática, ao esmagar os seus opositores.
Elucidante explicação histórica que faz entender a situação atual de crueldade a qual a acompanhou aolongo do tempo.
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