(Este texto foi apresentado na VIII edição dos Colóquios Antero de Quental, realizada em São João del Rei - Minas Gerais, em Setembro de 2009)
Antônio Paim
Antes de mais nada, situo o que tenho em vista ao me referir ao liberalismo. Entendo que a doutrina liberal diz respeito, basicamente, ao governo representativo. Nesse particular, subdividiu-se, historicamente, no que se convencionou denominar de conservadorismo liberal e liberalismo social. Este último, especialmente na Europa, depois que o tradicional Partido Liberal Inglês aderiu à social democracia, encontra-se muito combalido.
Vou ater-me a esse aspecto - à organização do governo representativo -, embora não desconheça a relevância de que se reveste, em especial diante da atual crise financeira mundial, o liberalismo econômico, bem como a educação liberal.
Embora o Partido Social Democrata português possa ser qualificado como agremiação liberal conservadora, essa denominação é recusada por sua liderança, embora pertença à IDC-Internacional Democrata de Centro. No plano estritamente político, por certo pode-se afirmar que o liberalismo (como antes o definimos), não sobreviveu em Portugal.
No Brasil, temos uma situação paradoxal. Existe uma agremiação política assumidamente liberal, atual Democratas (no período anterior e desde a abertura política de 1985, com o nome de Partido da Frente Liberal – PFL). Contudo, no que respeita ao essencial - a organização do sistema eleitoral -, não tem sido capaz de promover a necessária adequação de nosso equivocadamente denominado “sistema proporcional”. No sistema proporcional consolidado, o eleitor vota numa lista pré-ordenada, enquanto no Brasil, embora exista uma lista partidária, pode escolher qualquer nome.
Pela primeira vez, nos 16 anos nos quais o tema esteve na ordem do dia do Congresso Nacional, conseguiu-se relativo consenso em torno dessa questão, na atual Legislatura (2006/2009). Inclinando-se a maioria pela adoção do financiamento público das campanhas eleitorais, a única forma de fazê-lo seria mediante a introdução da lista pré-ordenada. Entretanto, submetida a votos no ano passado, a providência foi rejeitada.
O governo reencaminhou ao Congresso os mencionados projetos (lista preordenada e financiamento público), a par de outras providências que permitiriam acabar com a permissividade eleitoral existente no país. Temos em vista a eliminação da representação dos partidos que não obtenham percentuais mínimos de votação e a proibição de coligações em eleições proporcionais (praxe que assegura a sobrevivência de partidos de aluguel). O país tem hoje em torno de trinta partidos políticos sendo que 18 com representação na Câmara dos Deputados. Nas últimas eleições parlamentares, o partido do governo (PT) alcançou apenas 17% das cadeiras na Câmara. No quadro atual, a base parlamentar do governo será sempre um saco de gatos.
Em que pese a iniciativa indicada e o peso dos que apoiariam a adoção da lista pré-ordenada, dada a preferência pelo financiamento público, não há maior probabilidade de sua aprovação dada a composição da base parlamentar do governo.
O sistema eleitoral permissivo existente no país, completa-se pela maneira como tem sido expandido o corpo eleitoral. Presentemente cerca de 70% da população têm direito a voto, sem qualquer exigência em matéria de escolaridade. Dentre os 126 milhões de eleitores, cerca de 60% são declarada ou virtualmente analfabetos. Os analfabetos são 7% do total; os que apenas lêem e escrevem, 17%, mais 35% que sequer completaram as primeiras quatro séries do primeiro grau.
Mais grave é o que nos revela a pesquisa resumida, por Alberto Carlos Almeida, no livro A cabeça do brasileiro (Record, 2007). Com base nos resultados conclui que grande parte da população brasileira é patrimonialista, não tem espírito público, sendo a favor da intervenção do Estado na economia, é tolerante com a corrupção e acha natural que o ocupante de cargo público use-o em benefício próprio. Dada a limitação de tempo, apresento em anexo uma indicação mais circunstanciada desse documento.
Como a incidência de tais opiniões reduz-se nas camadas com maior escolaridade, o autor nutre certo otimismo quanto ao futuro de nosso sistema político. Obviamente, deixou de levar em conta a realidade da maioria das nossas escolas de nível superior, notadamente no âmbito das ciências sociais, onde ainda viceja a vulgata pseudomarxista (na verdade uma cozinha mal digerida da tradição política autoritária, vigente na República, estruturada com base no comtismo).
É fora de dúvida que a população brasileira tem proporcionado inequívocas demonstrações de repúdio aos governos ditatoriais. Tivemos nos anos oitenta, o empolgante movimento denominado de “diretas já”. Ao longo desses vinte e tantos anos de abertura, as eleições constituem uma verdadeira festa cívica. Mas isto é muito pouco para sustentar qualquer otimismo, dada a manifesta fragilidade das instituições que tipificam o sistema democrático representativo.
A meu ver, não há maiores indícios de que possa sobreviver uma democracia sem partidos políticos. As duas experiências históricas patrocinadas pela República –a República Velha e o interregno democrático 1945/64 – louvavam-se precisamente dessa suposição e acabaram como se sabe.
Passo a palavra a Ricardo Vélez Rodriguez que talvez possa expressar melhor juízo.
Ricardo Vélez Rodríguez
Antônio Paim referiu-se, de forma clara, à questão da presença do Liberalismo em Portugal. Concentrarei a minha atenção no caso brasileiro. Vou partir de um esclarecimento que Benjamin Constant faz, em relação ao âmbito que deve ser levado em consideração quando falamos dos ideais liberais. Esse âmbito, para o mestre doutrinário, é triplo: político, econômico e cultural. São três vertentes cujas partes integrantes, irredutíveis umas às outras, não conseguem se desenvolver a contento, cada uma delas, sem a presença das outras duas. São como círculos que se tangem interceptando-se, sem se misturarem plenamente, mas também sem se separarem. O Liberalismo, no Brasil, tem sido inviabilizado, pela elite patrimonialista que governa, nos terrenos da política, da economia e da cultura.
Que a prática do liberalismo, do ângulo político, é periclitante, na nossa realidade, Antônio Paim já deixou claro na sua fala, por uma razão fundamental: a sociedade brasileira não cuidou, a contento, no ciclo republicano, de aperfeiçoar a prática da representação. Basicamente isso ocorreu por uma razão de fundo, de natureza axiológica: não foi mudada a ordem de valores que dá sustentação à política patrimonialista.
Na penosa transição do Império à República perdeu-se o elo da prática da representação política. O Império, graças à figura do Imperador e também aos “homens de mil” que o cercavam, equacionou a questão, como todos sabemos. Essa trajetória foi ceifada pelo positivismo que inspirou a aventura militar de 1889 e, ulteriormente, pelo castilhismo em ascensão, que acompanhou ao estabelecimento de um patrimonialismo explícito na gestão da República.
Era de se esperar que, nos últimos vinte anos de vida política, a questão da representação fosse devidamente equacionada, mediante uma reforma eleitoral que possibilitasse melhor vinculação entre eleitores e eleitos. O que terminou prevalecendo foi a preservação dos vícios do passado. A Constituinte de 1987, da qual emergiu a nova Carta de 88, deveria ter sido a oportunidade para debater, entre os políticos, a questão da representação. Mas essa oportunidade foi perdida, em função dos interesses fisiológicos do Congresso Constituinte, que legislou “olhando pelo retrovisor” do statu quo. Em assessoria prestada em 1987 pelo professor Paim e por mim ao senador José Richa, do Paraná, quando da Constituinte, lembro-me do arrazoado que faziam os Congressistas para não mexerem na questão do voto: “se todos nós fomos eleitos pelo sistema proporcional existente, para que modificá-lo adotando outro (o distrital)?” Destaque-se que o senador Richa era favorável à discussão da questão e à adoção dos distritos eleitorais... O panorama atual é o que todos conhecemos e que o prof. Paim muito bem sintetizou. Não vou, por isso, me deter mais neste ponto.
Somente gostaria de dizer, ainda no que tange à variável política, que, se houve alguma coisa que continuou se firmando no panorama político brasileiro do ciclo republicano, foi a hipertrofia do Executivo, que já vinha de tempo atrás, com a adoção do modelo castilhista-getuliano, no que tange aos preconceitos para com a representação política e à substituição do modelo representativo pelo cooptativo. (Vale a pena lembrar o estribilho castilhista, cunhado por Germano Hasslocher, deputado gaúcho em fins do século XIX: “O sistema parlamentar é um sistema para lamentar”).
Ora, essa prática tem sido retomada com grande força nos últimos dois mandatos presidenciais. O Executivo tem-se esforçado, ao máximo, para substituir a nossa minguada representação política, por um sistema cooptativo que implica na valorização do assembleísmo de corte sindical, para passar à sociedade uma imagem de respeito aos interesses dos cidadãos. Isso tem acontecido no terreno da saúde, no da comunicação e nas questões sociais. O governo tem reforçado o assembleísmo em todos esses campos, chamando, para deliberar, quando se trata de legislar, conselhos ad hoc, como o Conselho Nacional de Saúde, ou a correspondente organização sindical, no caso da legislação sobre jornalismo, por exemplo, ignorando sumariamente que o Congresso é a instituição chamada, por sua natureza, para debater essas questões. No caso da demarcação da Reserva Raposa Serra do Sol, o Executivo ignorou sumariamente, na sua decisão em prol da criação da mencionada área em terras contínuas, parecer contrário do Parlamento. Para não falar da esdrúxula presença dos mal-chamados “movimentos sociais”, que têm sido criminosamente tolerados e até financiados pelo governo, a fim de criar uma série de praxes que sinalizem para novas opções, nos terrenos econômico e político, com lesão evidente do tesouro da Nação, da propriedade privada e da empresa capitalista, notadamente do agronegócio.
A mensagem que se passa para a sociedade é a seguinte: o Executivo conseguirá equacionar qualquer problema, com a ajuda dos seus conselhos sindicais. Remedo grosseiro do modelo tecnocrático que tinha sido instaurado por Getúlio, ao ensejo da adoção dos “Conselhos Técnicos Integrados à Administração”. No período getuliano, o Executivo, para equacionar qualquer problema e para legislar nos diferentes âmbitos da administração, solicitava ao seu conselho na área respectiva (educação, saúde, políticas sociais, etc.) a apresentação de soluções tecnicamente viáveis; o processo terminava com a escolha, por parte do Presidente da República, da solução que melhor lhe conviesse, com total marginalização da sociedade quanto à discussão política, no Parlamento, acerca das soluções apresentadas pelos técnicos. Esse modelo, no ciclo militar, (à luz da reforma constitucional de 1967), reduziu-se ao que passou a ser denominado de “petit comité”, na reunião dos ministros técnicos e os da casa com o general presidente, a famosa reunião das 9 horas.
Com o abandono do caráter técnico dos conselhos reunidos pelo Executivo, e a sua substituição pelas organizações sindicais e pelos “movimentos sociais”, voltamos atrás no modelo de “patrimonialismo modernizador”, consolidado no período getuliano e no ciclo militar, para um modelo atrasado de patrimonialismo predatório e sindical, em que campeiam o nepotismo, a irresponsabilidade fiscal, a improdutividade e as práticas mais deslavadas de clientelismo e corrupção.
Evidentemente que tudo não foi obra da dupla gestão petista. Já encontrávamos raízes de hipertrofia do Executivo na vida nacional, na prática política após a Constituição de 1988, que abriu espaço para a famigerada “medida provisória”. Quanto à deformação da representação, conferindo maior peso no Congresso aos Estados mais atrasados da Federação, o vício original encontra-se no Pacote de Abril (de 1977) do general Geisel. Vício que ainda não foi subsanado, em decorrência do protelamento da reforma política.
Digamos, para terminar esta parte dedicada à ausência de uma política liberal, que o abandono da representação, substituída pela cooptação da sociedade pelo Executivo hipertrofiado e contando com a ajuda dos seus Conselhos, configurou o modelo posto em prática em 1804 pelo imperador Napoleão Bonaparte, com a criação do seu famoso Conseil d´État, que empolgou a troupe dos cientificistas franceses, encabeçada por Saint-Simon e Augusto Comte, que se encarregaram de teorizar sobre ela e erguê-la como modelo acabado de civilização. Pela mão desses dois pensadores, os líderes republicanos, chefiados pelos castilhistas, passaram a implantar o modelito da “ditadura científica”, ao longo da República Velha e ulteriormente ao ensejo das reformas getulianas...Longa vida seria dada, assim, ao despotismo ilustrado republicano, que conta, hoje, com aliados de peso, inclusive dentro do próprio Legislativo. O Senador Cristovam Buarque, por exemplo, diante das irregularidades denunciadas na gestão do Senado Federal, propõe plebiscito nacional para saber se a sociedade quer a extinção dessa Casa Legislativa... Lembremos que proposta semelhante tinha sido feita por Júlio de Castilhos, no final do século XIX, com a finalidade de substituir o Senado por uma Assembléia Nacional que seria controlada pelo Presidente e pelo Partido Republicano Sul-rio-grandense...Ora, se é para moralizar, a extinção não é a solução, mas sim a moralização das práticas dos membros do Legislativo, mediante a aplicação da lei. É curioso que ninguém cogita, hoje, de extinguir o Executivo, de onde surgiram a falcatrua do Mensalão e outras práticas non sanctas de lesão aos cofres públicos...
O modelo cooptativo no terreno político, foi acompanhado, na República brasileira, pelo colbertismo econômico. Já se prenunciava esse fenômeno na retomada, pela intelligentsia republicana, do modelo pombalino do Estado empresário que garante a riqueza da Nação. Não foi esse o cerne da obra de Aarão Reis, de 1918, intitulada Economia política, finanças e contabilidade? O modelo pombalino seria posto em prática, na política de encampação de empresas particulares, notadamente as dedicadas ao transporte público, pelos governos castilhistas, no Rio Grande do Sul, entre 1891 e 1930. A Segunda Geração Castilhista, sob a batuta de Getúlio e de Lindolfo Collor, desenhou os traços gerais de uma política econômica que emergiria da presença do Estado construtor da infra-estrutura necessária à industrialização, em Volta Redonda e, ulteriormente, já na última passagem de Getúlio pelo poder, na década de cinqüenta do século passado, no surgimento da empresa estatal de petróleo, ao som do slogan de “o petróleo é nosso”.
De lá para cá, os surtos modernizadores sempre estiveram fortemente marcados pela presença do Estado empresário, tanto no Plano de Metas de Juscelino, quanto na ação modernizadora dos regimes militares, entre 1964 e 1985. Significativo é o fato de que, no início do período militar, o Brasil contava com aproximadamente 90 empresas estatais, sendo que, no final do governo Figueiredo contavam-se 490. Após um breve período de privatizações que se concentrou, sobretudo, nos governos de Fernando Henrique Cardoso, o estatismo na economia entrou para valer nas duas gestões petistas, como todos conhecemos, sendo retomado o BNDS como motor do desenvolvimento, inclusive com abertura para financiamento de obras nos países vizinhos. A crise financeira em que o mundo mergulhou a partir do ano passado abre, certamente, um novo capítulo de centralização patrimonialista na economia brasileira, com a proposta de estatização da banca e de empresas até agora competitivas, como a Embraer. Liberdade empresarial, livre iniciativa, propriedade privada, tudo vai para o saco sem fundo do odiado neoliberalismo. As práticas econômicas liberais são hoje ameaçadas, no Brasil, por políticas sociais que estimulam a dependência dos cidadãos em face do Estado paternalista (bolsa família e similares). Quando a popularidade do primeiro mandatário começa a cair nos índices de popularidade, pirotécnicas operações policiais são deflagradas pelo Ministério da Justiça e pelo Ministério Público contra empresários, com a ajuda eficaz de alguns juízes, para deixar bem claro, aos olhos da sociedade, quem é o verdadeiro inimigo: não o são, certamente, os ministros corruptos, os militantes que transgridem a lei e depredam patrimônio público e privado, os parlamentares e os burocratas cooptados pelo Executivo nos crimes do mensalão...
No plano da cultura, o trabalho de verdadeiro desmonte das instituições republicanas praticado pelas duas últimas administrações é deveras lamentável e equivale, como diria o professor Miguel Reale, à instauração da “revolução cultural” gramsciana entre nós. Tudo conduz ao descrédito das instituições republicanas. Só vale o que contribuir para o estabelecimento da hegemonia da classe trabalhadora (leia-se: do novo peleguismo sintonizado com as pretensões do Executivo). Ajuda importante é dada, nesse contexto de desmonte do estado de direito, pelo Conselho Indigenista Missionário e pela Pastoral da Terra, que abençoam claramente as ações abusivas do MST e dos demais movimentos sociais. Em lugar de ter-se consolidado, no Brasil de hoje, séria política educacional que garanta a educação para a cidadania das novas gerações, os textos escolares trazem para as crianças verdadeiras lições de radicalismo ideológico, repassando-lhes, quando não erros garrafais – como denunciado recentemente pela imprensa, no terreno da geografia – verdadeiros absurdos de preconceito que tentam induzir ao racismo e ao acirramento dos conflitos sociais. Das 37 medidas que integravam o PAC Educação – examinadas detalhadamente, em 2007, por comissão do Conselho Técnico da Confederação Nacional do Comércio – foi extraída a seguinte conclusão: tudo conduz a uma política descosturada, que tem como pano de fundo o preconceito contra a liberdade de ensino (a escola particular é simplesmente banida). Assim as coisas, é evidente que A cabeça do brasileiro (para mencionar o título da obra de Alberto Carlos Almeida, citada pelo professor Paim na sua fala), conduz, necessariamente, ao título de outra obra desse autor: Por que Lula?
Antônio Paim - ADENDO – Notícia mais circunstanciada
do livro A cabeça do brasileiro
Roberto DaMatta nasceu em 1936, sendo natural de Niterói. Fez curso de pós-graduação em antropologia social no Museu Nacional, seguindo a carreira universitária, nessa mesma instituição. Concluiu o doutorado, em idêntica área, na Universidade de Harvard, Estados Unidos. Foi professor visitante nas Universidades norte-americanas de Berkley e Notre Dame. É co-editor da revista Current Antropology e do Anuário Antropológico, este publicado regularmente pela Editora Tempo Brasileiro.
De início ocupou-se de etnografia, com base em pesquisas desenvolvidas junto às comunidades indígenas remanescentes no Médio Tocantins. Seu primeiro livro de sociologia, uma autêntica novidade, intitulou-se Carnavais, malandros e heróis (1979). A hipótese básica, então apresentada, seria desenvolvida em outras obras, entre estas O que faz o Brasil, Brasil? -1984, e A casa e a rua-1987. Registra uma grande presença na imprensa periódica.
Aquela hipótese básica seria utilizada para empreender uma ampla pesquisa, dirigida por um de seus discípulos, Alberto Carlos Almeida, que se ocupa, desde há muitos anos, da denominada Pesquisa Social Brasileira. Teve o mérito de apresentá-la em poucos conceitos, de fácil compreensão, sem empobrecer a riqueza originária. Seus resultados foram divulgados no livro A cabeça do brasileiro (Editora Record, 2007).
Almeida ressuscitou uma antiga dicotomia, o confronto entre arcaico e moderno, revestindo-o de grande vivacidade.
No Brasil, o arcaico é identificado com o que DaMatta comprovou ser a nossa característica central: “um país hierárquico no qual a posição social e a origem são fundamentais para definir o que se pode e o que não se pode fazer; para saber se a pessoa está acima da lei ou se terá de cumpri-la.” A comprovação empírica dessa identificação não deu lugar à discussão que, supostamente, deveria ocorrer inevitavelmente. Foi bloqueada como tudo quanto, no plano teórico ou ideológico, contraria a elite burocrática, a serviço da qual se têm colocado sucessivos segmentos da intelectualidade.
Por entender que se trata de algo essencial, vou procurar sintetizá-la.
A pesquisa em apreço comprova que a maioria da população brasileira recorre ao que DaMatta denominou de jeitinho brasileiro, isto é, admite que regras essenciais para a sobrevivência da sociedade podem ser violadas. Estabelecendo-se uma certa gradação nesse “jeitinho” chega-se a conclusões espantosas. Por exemplo: “Para a população de baixa escolaridade, que apóia a quebra de regras patrocinada pelo “jeitinho brasileiro”, há também uma tendência em mostrar-se tolerante com a corrupção. Para muitas dessas pessoas, não há “esquecimento” das denúncias; elas simplesmente não são importantes.” (pág. 27)
Essa verificação correlaciona-se diretamente com a tese defendida pelos autores que tipificam o Estado brasileiro como Estado Patrimonial. Neste tipo de estrutura estatal, a alta burocracia e parte da elite política consideram que podem lidar com seus recursos como se fossem uma propriedade particular. Como mostramos precedentemente, Simon Schwartzman identifica tanto o processo histórico de sua constituição como a respectiva base social.
Nessa direção, a pesquisa dirigida por Alberto Carlos Almeida permite-lhe concluir que grande parte da população brasileira é patrimonialista, não tem espírito público, sendo a favor de mais intervenção do Estado na economia. Entre outras, as perguntas a seguir indicadas facultam as mencionadas conclusões. Antes de apresentá-las, cabe destacar a pertinência do planejamento adotado, tendo em vista a verdadeira feição do contexto social.
A metodologia adotada levou em conta a realidade brasileira no que respeita à escolaridade da população, que seria o parâmetro central na subdivisão do universo a ser pesquisado. Tiveram um peso mais ou menos proporcional os contingentes populacionais que tinham freqüentado até a quarta série isto é, o antigo primário (25% do universo pesquisado); da quinta à oitava séries, isto é, o atual primeiro grau (23%) e o ensino médio (31%). Os analfabetos e os que concluíram o ensino superior tiveram peso menor, respectivamente 9% e 12%.
A escolha em apreço tem muito a ver com a distribuição de nossa população, segundo os níveis de escolaridade. O grau de instrução do eleitorado brasileiro, na oportunidade da última eleição (2006) --equivalente a 125,8 milhões de pessoas, isto é, 70% da população--, apresentava-se deste modo: analfabeto, 7%; lê e escreve, 17%; primeiro grau incompleto, 35%. Temos portanto que cerca de 60% dos detentores do direito de voto, possuidores de título eleitoral, são virtualmente analfabetos.
A faixa subseqüente distribui-se deste modo: primeiro grau completo, 8%; segundo grau incompleto, 17%; segundo grau completo, 11%; superior incompleto, 2%; superior completo, 3%.
Damos a seguir idéia sumária dos resultados da pesquisa.
As pessoas pertencentes aos grupos situados abaixo daqueles que freqüentaram a escola até à oitava série, em proporção superior a 50%, consideram certo o “jeitinho brasileiro”. Têm-no na conta de errado 52% dos que concluíram o ensino médio e 67% daqueles com nível superior.
No que respeita à aceitação da tradicional hierarquização da sociedade, foram feitas perguntas deste tipo: admissão de que a empregada assista televisão na sala; uso de elevador social; forma de tratamento do patrão (você ou senhor). O propósito era encontrar maneira de fazer as perguntas de modo o mais claro possível.
Constatou-se que as pessoas com menor escolaridade aceitam parte das liberalidades, mas continuam chamando o patrão de senhor.
Nesses grupos de menor escolaridade aparece contingente que considera legítimo usar, em benefício próprio, o cargo público que ocupe. O mesmo ocorre em relação à presença do Estado na economia. É espantoso também verificar que, quanto mais baixa a escolaridade, mais pessoas se apresentam favoráveis à censura a programas da TV que façam críticas ao governo.
Em síntese, as pessoas com superior e nível médio completos são contrárias a certos comportamentos (enquanto os segmentos que não completaram o ensino médio são a favor), a exemplo dos seguintes: “jeitinho brasileiro; “você sabe com quem está falando?”; tratar a coisa pública como se fosse algo particular de cada um. Os dois grupos se distinguem em relação a outros comportamentos. Os de mais alta escolaridade são antifatalistas, tendem a não acreditar ou dar importância ao destino; confiam mais nos amigos; são a favor de que as pessoas colaborem com o governo no zelo pelo espaço público; contra a lei do talião (por exemplo: estupro de preso que tenha praticado tal crime, pelos companheiros de cela); a favor de comportamentos sexuais diversificados; contra a intervenção do Estado na economia; contra a censura.
Transcrevo o essencial da conclusão.
Alberto Carlos Almeida esclarece que a intenção fundamental da pesquisa era averiguar, até que ponto o comportamento cotidiano de nossa população seria compatível com a prática democrática, tendo em mente a resposta negativa de Roberto DaMatta. Afirma em resposta: “Nossa pesquisa mostrou que Roberto DaMatta está essencialmente correto. O Brasil é hierárquico, familista, patrimonialista e aprova tanto o “jeitinho brasileiro” quanto um amplo leque de comportamentos similares. Porém, uma qualificação importante precisa ser feita. O país não é monolítico, é uma sociedade dividida entre o arcaico e o moderno.”
Prossegue: “Se DaMatta estiver certo, a herança cultural portuguesa, com seu peso de 500 anos, leva o Brasil a ser culturalmente muito diferente dos Estados Unidos, em particular quanto a aspectos relevantes da vida social, como o respeito à lei. Assim, mesmo que a escolaridade dos brasileiros aumente muito, as mudanças de visão de mundo, culturais e ideológicas resultantes seriam pequenas face ao legado ibérico. O Brasil continuaria bastante distinto de países anglo-saxões, como Estados Unidos e Inglaterra.”
Alberto Carlos Almeida considera, entretanto, que, os resultados da pesquisa levam-no a confiar em que a elevação dos níveis de escolaridade aproximará a cultura brasileira de outras culturas, inclusive as dos países anglo-saxões.
O trabalho liderado por Alberto Carlos Almeida é de extrema relevância. Naturalmente será lícito discordar do seu otimismo quanto à possibilidade de superação desse estado de coisas, pela simples elevação dos contingentes que concluam o ensino médio e o superior. Nesse particular, aliás, basta ver a composição do eleitorado brasileiro, antes apontada, para tornar-se patente que a grande prioridade é o Ensino Fundamental. Esse nível escolar atua de modo perverso, na contra-mão da tarefa que lhe compete: tornou-se o grande alimentador dos baixos níveis de escolaridade vigentes no país.
O patrimonialismo brasileiro é uma estrutura estatal que tem revelado ser mais forte que a sociedade. O esforço teria que ser desenvolvido nesta direção: reduzir o seu poder. Há muita coisa que poderia ser feita. Em primeiro lugar, atender à grande aspiração nacional no que se refere ao fortalecimento da Federação. E, em segundo, desfazer o nó de que resultou da industrialização com base na substituição de importações. Para tanto, basta substituir, na distribuição de incentivos e acesso a financiamentos oficiais, a obrigatoriedade dos chamados “índices de nacionalização” pelo princípio da parceria permanente com empresa estrangeira. Desde que se estenda à tecnologia, isto é, nos torne partícipes do processo correspondente (norma que, adotada no governo FHC, tem sido ignorada pelo governo petista).
Essa discussão somente irá prosperar se os resultados da pesquisa, de Alberto Carlos Almeida, forem levados a sério. É compreensível, portanto, que o patrimonialismo brasileiro, na pessoa daqueles que movem os seus cordéis, tenha tratado de silenciá-la.
O presente texto aponta aquele que é, e será, o maior empecilho ao avanço do Brasil como nação; à falta de aceitação de que é extremamente necessário para o Brasil o fortalecimento de um partido de centro-direita, mormente o DEM. De um partido que tenha como bandeira os avanços conquistados pelas idéias liberais, no que tange à seu tríplice aspecto.
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