Este é o título do mais recente livro do Dr. Arsênio Eduardo Corrêa, brilhante advogado paulista e membro do Instituto de Humanidades. A obra, publicada em Londrina por Edições Humanidades, em 2009, consta de 126 páginas. Constitui importante contribuição para o melhor conhecimento da forma em que se deu o início da denominada “política dos governadores” posta em execução por Campos Sales (1841-1913), quando da sua passagem pela Presidência da República (entre 1898 e 1902).
Arsênio Corrêa dividiu a sua obra em quatro partes: I – Campos Sales e a implantação do modelo político adotado na República Velha. II – Na vazante da “maré cheia liberal” emergem correntes autoritárias. III – O pensamento político de Campos Sales. IV – Epílogo.
O autor destaca que duas foram as marcas registradas dos três primeiros governos republicanos (presididos sucessivamente por Deodoro da Fonseca, Floriano Peixoto e Prudente de Morais): instabilidade crescente e autoritarismo. Tal circunstância decorreu da ruptura ensejada com a queda do Império e o abandono das instituições do governo representativo no novo ciclo histórico. “A opção por uma república federativa, nos moldes americanos, – frisa o autor – levou o governo a adotar a teoria da descentralização. Portanto de uma prática organizacional de mais de meio século (...), saltamos no escuro para uma nova organização política e administrativa” [pg. 16].
Como ministro da Justiça do Governo Provisório, Campos Sales tentou dar estabilidade à administração (presidida pelo velho Marechal Deodoro, bastante doente), mediante a tese da responsabilidade compartilhada do Chefe do Executivo e os seus ministros, nos atos de governo. No mandato de Prudente de Morais, que seguiu ao bonapartista governo de Floriano Peixoto, a instabilidade aumentou, na medida em que o Presidente da República ficou refém do Partido Republicano Federal, sendo que o chefe deste, nas palavras de José Maria Belo, tornou-se “uma espécie de condestável da República” [pg. 28].
As instituições republicanas, no Brasil, passaram a sofrer das mesmas contradições que enfrentou a Terceira República francesa: acirrada disputa entre o Executivo e o Parlamento, como destacava José Maria Belo: “O poder do Congresso e o poder do Presidente da República harmonizavam-se apenas nos artigos constitucionais; na realidade, não se entenderiam nunca” [História da República, 6ª edição, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 151].
A “política dos governadores”, posta em execução por Campos Sales ao longo do seu mandato presidencial (1898-1902), foi a resposta dada pelo mandatário a essa crônica instabilidade. Antônio Paim sintetizou assim a essência daquela: “A peça-chave dessa política consistia em delegar à Mesa da Câmara, composta pela Chefia do Executivo, a atribuição de reconhecer os diplomas dos parlamentares. Às eleições concretas se substituía a ata da apuração, confeccionada na Capital da República a partir do único critério de assegurar maioria sólida ao governo, sem maiores compromissos com o evento real. Viu-se então representantes eleitos que perdiam seus votos na confecção da ata e toda sorte de chicana. Tudo isto mediante simples arranjo no Regimento da Câmara dos Deputados, intocada a Constituição” [A querela do estatismo, 1ª edição, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978, p. 62].
Arsênio Corrêa caracterizou a “política dos governadores” como um expediente pragmático do governo para garantir a unidade política e a estabilidade, sem intervir direto nos Estados, mas manipulando o mecanismo de legitimação das eleições, privilegiando os interesses do Executivo e do Partido Republicano, ao seu serviço. Eis a caracterização efetivada pelo autor: “A política dos governadores foi, portanto, a unidade política estabelecida por Campos Sales, que pressupunha a não intervenção nos Estados. Isso trouxe a perda de importância das eleições, consolidando as situações estaduais, cuja legitimidade era equivalente à da União. É forçoso reconhecer que assegurou estabilidade política. Naturalmente, às custas da legitimidade da representação, vale dizer, do abandono do espírito que presidiu à estruturação das instituições de tal governo, no Segundo Reinado. Ali, o foco estava na determinação dos interesses que deveriam ser representados. E, subseqüentemente, a avaliação sucessiva da capacidade respectiva de assegurar-lhe legitimidade. Agora o foco mudava completamente de direção: assegurar o livre exercício do poder, excluída a possibilidade de negociação fora dos círculos que tivessem comprovado sua fidelidade ao sistema republicano. Somente o Partido Republicano tinha autorização de funcionamento e, portanto, de participar dos pleitos em que era admitida a disputa” [pg. 61].
O efeito produzido pelo arranjo autoritário foi a desvalorização da representação e a instabilidade, que conduziriam diretamente à adoção, mais adiante, do modelo de ditadura republicana criado por Castilhos no Rio Grande do Sul. O autor ilustrou esses aspectos negativos da seguinte forma: “Os efeitos das novas regras estabelecidas no Regimento Interno da Câmara revelaram-se devastadores. A primeira vez em que se deu sua aplicação, em 1900, sob Campos Sales, (com a atuação da) Comissão instituída a partir da Mesa Cessante, deixaram de ser reconhecidos 74 mandatos, cerca de 35% do total (o Parlamento se compunha de 212 representantes). O caso extremo deu-se na Câmara eleita em 1912: 91 mandatos deixaram de ser reconhecidos, 43% do total. Criou-se, assim, uma falsa estabilidade, na medida em que exigia fosse desfigurada a representação. Ainda que a Constituição fosse mantida e submetidos ao Parlamento os freqüentes estados de sítio, a providência tornou-se a ante-sala do longo ciclo autoritário vivido pela República brasileira” [p. 61].
A formulação da “política dos governadores” por Campos Sales alicerçava-se no democratismo rousseauniano, de que o mencionado homem público era tributário, como, aliás, a geração de jovens bacharéis formados no Largo de São Francisco, na segunda metade do século XIX. Segundo Arsênio Corrêa, Campos Sales deixou-se seduzir pelo ideal do caudilhismo militar em que era muito rica a tradição política hispano-americana, claramente professado por Quintino Bocaiúva, um dos mais atuantes propagandistas das idéias republicanas e que integrou, junto com Campos Sales, o primeiro gabinete republicano. Com essa geração de bacharéis que chegavam à vida pública, salvo contadas exceções como o calejado liberal Rui Barbosa, passou a prevalecer, como marco teórico que daria vida às instituições republicanas, o democratismo rousseauniano, em substituição às idéias liberais de Locke, Constant de Rebecque, Guizot e Tocqueville, em que tinham se formatado as instituições imperiais. O abandono da questão da representação de interesses dos cidadãos era apenas o corolário dessa opção teórica.
À luz do espírito de Rousseau foi aclimatada, pela elite bacharelesca à cuja testa situou-se Campos Sales, a concepção que tinha vingado no século XIX, na França, nos ciclos do republicanismo bonapartista (1799-1804), do Primeiro Império (1804-1814), da Segunda República (1848-1851) e do Segundo Império (1852-1870). Efetivamente, os dois Napoleões (tio e sobrinho) forjaram nova teoria da representação, inspirada no ideal da “vontade geral” do filósofo de Genebra, nos seguintes termos: 1) O governante (presidente eleito, primeiro cônsul ou imperador) é o verdadeiro representante da “vontade geral” da Nação. 2) Os corpos colegiados são legitimados, como representantes secundários da “vontade geral”, pelo primeiro mandatário. 3) As eleições são apenas mecanismos secundários para provisão dos corpos colegiados, que passarão a desempenhar apenas funções técnicas (elaborar o orçamento, por exemplo), sendo que toda a questão de legislar e governar cabe ao Executivo, ajudado pelo Conselho de Estado, que é integrado, basicamente, por técnicos escolhidos a dedo pelo primeiro mandatário. 4) Quando as eleições são praticadas para eleger os mandatários nos ciclos republicanos (como quando Luís Napoleão assumiu a Presidência da República, em 1848) legitimam um poder que não pode ter limites e que é republicano pelo fato de ter sido eleito.
A fim de situar esse modelo no contexto em que foi gerado, vale a pena analisar os seus aspectos fundamentais. Jacques Necker (1732-1804), ministro das Finanças de Luís XVI e pai de Madame de Staël (1766-1817), analisou detalhadamente a Constituição de 22 Frimário, ano VIII (1800), que sagrou um modelo de República autoritária, presidida pelos três Cônsules, sendo Bonaparte o que de fato exercia o poder [cf. Chevallier, Histoire des Institutions et des Regimes Politiques de la France de 1789 à nos jours, 1977, p. 105-108]. O pai de Madame de Staël considerava que, não tendo sido estabelecida, nessa Constituição, uma verdadeira representação dos interesses populares no Parlamento, a eleição não tinha nenhum sentido e as instituições republicanas careciam de autenticidade. A propósito, escrevia Necker: "A primeira circunstância que chama a atenção ao examinar esta Constituição é que, num Governo denominado de Republicano, nenhuma porção dos poderes políticos, nenhuma, realmente, foi confiada à Nação. No entanto, não apenas nas Repúblicas mistas ou puramente democráticas, mas também nas Monarquias moderadas, o povo concorre à nomeação do Corpo Legislativo, à nomeação das autoridades que determinam os seus sacrifícios. Vemos na Inglaterra os Membros da Câmara dos Comuns eleitos pela Nação. Vemos na Suécia uma ordem de Burgueses, uma ordem dos Camponeses comporem o Poder Legislativo; e sob a Monarquia Francesa o Terceiro Estado nomeava Deputados às Assembléias Nacionais. Uma tal prerrogativa, a mais importante de todas, foi substituída por uma ficção no novo código político da França. Concede-se ao Povo um direito de indicação que não significa nada para ele e que aborrecerá ao Governo se esse direito for respeitado" [Necker, Dernières vues de politique et de finance, offertes à la Nation Française par M. Necker, Paris: Bibliothèque de France, 1802, vol. I, p. 1-2].
Ora, nenhuma estabilidade institucional poderia advir de um tal regime. Tratava-se de uma República de faz-de-conta, modelo da que, no final do século XIX, os Castilhistas instaurariam no Rio Grande do Sul. Tudo girava ao redor do único poder verdadeiramente forte: o general Bonaparte. A feição dessa pseudo República foi resumida perfeitamente por Jean-Jacques Chevallier, com as seguintes palavras: "Uma fachada de sufrágio universal (simples direito de apresentação). Uma fachada de assembléias: o Senado, o Tribunato, o Corpo Legislativo. No governo uma fachada de três cônsules, sendo que o poder repousava realmente no Primeiro Cônsul. Na tarde em que o texto constitucional foi solenemente promulgado nas ruas de Paris, as pessoas perguntavam: O que há na Constituição? E a resposta era a seguinte: Há Bonaparte. O referendum sobre um texto constitucional tinha fatalmente virado um plebiscito sobre um homem" [Chevallier, ob. cit., p. 107]. A propósito dessa enorme encenação, escreveu Necker: "Mostraremos agora que toda essa organização é ao mesmo tempo motivo de irritação para a massa geral dos Cidadãos, bem como um atentado aos seus direitos, um estorvo para o Governo e um constrangimento prejudicial para o bem do Estado" [Necker, ob. cit., p. 4-5].
O modelo de representação previsto pela Constituição bonapartista do ano VIII constituía uma caricatura da prática do verdadeiro parlamentarismo. Os cidadãos habilitados para votar segundo as normas oficiais (cinco milhões, calculava Necker, sobre uma população de mais de vinte milhões de Franceses), nos seus respectivos cantões indicariam as pessoas que, segundo o seu critério, pudessem desempenhar cargos públicos. Daí sairia uma massa de cinco mil homens aptos para receberem do Senado Conservador, formado à revelia da Nação, a responsabilidade de administrar a máquina do Estado. Seria uma representação às avessas, que personificaria os interesses de Bonaparte e da sua burocracia, deixando de lado os reais interesses dos cidadãos. "Essas listas de elegibilidade - frisava Necker [ob. cit., p. 10-11] - teriam pouca credibilidade, ao reduzir cinco milhões de homens a cinco mil, sem nenhuma das precauções que garantem ao menos um sentimento de interesse, um grau formal de atenção a essa grande ação política".
Este modelo de representação às avessas foi posto em prática, com grande sucesso, por Napoleão III, ao longo da Segunda República (1848-1851) e do Segundo Império (1852-1870), com uma inovação: a prática corriqueira do plebiscito, a fim de dar um verniz de legitimidade democrática às decisões tomadas pelo dono do poder. Sabemos de que forma Napoleão III abusou dessa modalidade de governo, tipicamente ditatorial, fato que levou Victor Hugo a escrever: “Não, esse homem não raciocina; tem necessidades, tem caprichos, tem de os satisfazer. São vontades de ditador” [Napoleão – O pequeno. Tradução de Márcia Aguiar, São Paulo: Ensaio, 1996, p. 108]. Quando a oposição questionava a legitimidade do Presidente-ditador e, após 1852, do Imperador, este lembrava que tinha sido eleito em 1848 como Presidente com 5,5 milhões de votos e que dois plebiscitos com mais de 95% dos votos legitimaram a sua auto-nomeação, primeiro como Cônsul (em dezembro de 1851) e logo como Imperador (em novembro de 1852).
Que o modelo de pseudo-representação rousseauniana posto em marcha por Napoleão Bonaparte e pelo seu sobrinho Luís Napoleão ainda está vigente, o provam as atuais circunstâncias dos populismos latino-americanos, que fazem uso e abuso do mecanismo da re-eleição e do plebiscito na Venezuela, na Bolívia, no Equador, na dança do tango-populista pelo casal Kirschner, na Argentina, e nas pretensões de terceiro mandato presidencial na Colômbia e no Brasil. Isso para não falar na arquiditadura cubana, velha de meio século. Vida longa para o despotismo republicano e para o modelo reacionário de legitimação que foi posto em prática por Campos Sales no Brasil, na virada do século XIX para o XX!
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