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sexta-feira, 3 de agosto de 2018

O ESTADO FRATURADO

Este artigo, resumido, foi publicado na edição do dia 03 de agosto de 2018 do jornal O Estado de S. Paulo, pg. A2. [ https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-estado-fraturado,70002428256 ]

Prof. Denis Rosenfield (Foto: Zero Hora  / fundação Astrojildo Pereira)

A obra recentemente publicada  por Denis Rosenfield (O Estado fraturado - Reflexões sobre a autoridade, a democracia e a violência. Rio de Janeiro: Topbooks, 2018, 273 p.) é um balanço feito à luz da filosofia política e da sociologia, do drama vivido pelo Estado brasileiro nas últimas décadas, notadamente após o ciclo lulo-petista (2003-2016) que praticamente desmontou as instituições republicanas numa maré de corrupção, fisiologismo, infiltração ideológica marxista leninista e compadrio. A obra do professor Rosenfield analisa criticamente o momento mencionado, alargando a sua visão para as reformas que os Estados europeus sofreram ao longo do século XX, centrando a atenção na saga que a social-democracia percorreu nesse século. Em quatro capítulos (I - Democracia e autoridade, II - Autoridade estatal e retórica, III - O Positivismo e a política científica) e uma conclusão (A questão democrática) o autor desenvolve uma análise crítica e historiográfica que joga luz sobre os atuais momentos de perplexidade que se abatem sobre a Nação brasileira.

É deveras dramática a situação de anomia vivida pelo Estado brasileiro após o ciclo lulopetista. Tal situação é assim caracterizada pelo autor: "O resultado é evidente: a dissolução da autoridade pública e o enfraquecimento do Estado Democrático de Direito. Ou seja, em nome da democracia e dos direitos humanos, a própria democracia e os direitos humanos são pervertidos. A autoridade pública, por sua vez, vem a ser identificada ao exercício arbitrário da força. A violência fica franqueada aos particulares que não estão mais obrigados a seguir nenhuma lei, enquanto o Estado deve renunciar ao monopólio do exercício da força. Chega-se, paradoxalmente, a uma situação em que policiais não podem reprimir e juízes não podem punir. Criam-se, assim, condições de dissolução do Estado e, por via de consequência, da democracia. O próximo passo é a própria captura do Estado pelo crime organizado, seja em suas formas políticas,  seja em suas formas propriamente criminosas, como é o caso do Rio de Janeiro"(p. 29).

O desmantelamento institucional patrocinado por Lula e o PT produziu efeitos perversos para a economia do país. Eis a forma em que, sem meias-palavras,o autor denuncia o desmonte da economia nacional: "Do ponto de vista econômico, o país sofreu um processo de intervenção estatal progressiva na seara econômica, sobretudo a partir da segunda metade do segundo mandato do presidente Lula. O Estado foi apresentado como um Poder demiurgo capaz de qualquer realização, conquanto seus recursos fossem também apresentados como ilimitados. A coisa pública poderia ser vilipendiada, pois sempre haveria uma reparação estatal de tipo financeiro.A economia de mercado passaria, então, a ser conduzida por esses ditos representantes da vontade ilimitada, como se para tal tivessem sido eleitos. A Constituição e a lei seriam meros detalhes a serem considerados ou não, conforme as conveniências políticas e os interesses particulares. Na perspectiva da encenação política e, sobretudo, de sua retórica, as aparências democráticas seriam mantidas. De uma forma decidida, o Brasil acentuou os traços de seu capitalismo de compadrio, evoluindo, se assim se pode dizer, para um capitalismo de comparsas" (p. 78).

A síntese de todos os males encontra-se, segundo o professor Rosenfield, na morte do espírito público, que constituiu uma entropia fatal para as perspectivas do Brasil como Nação. A respeito, frisa o autor: "A noção de coisa pública desapareceu e veio a ser, mesmo, assim percebida pela sociedade. A classe política, em seu sentido genérico, passou a ser considerada como composta de criminosos e aproveitadores dos mais diferentes tipos. Em consequência, a imagem do Poder Legislativo foi, em muito, enfraquecida. Se uma questão se coloca a respeito deste Poder é a de que não mais exerce a função de representação política que deveria ser sua. Em termos institucionais, dir-se-ia que é um Poder que só mantém capacidade de decisão no que diz respeito aos interesses particulares e fisiológicos de seus membros. Não se pode dizer que eles mantenham, hoje, uma fatia da soberania, de decisão, salvo neste seu sentido muito particular de consecução de interesses particulares, desvinculados da cena pública" (p. 79).

A tarefa de reconstruir as instituições republicanas esfaceladas pela aventura criminosa do PT no poder foi precariamente cumprida pelo transitório governo Temer, em decorrência da presença, no seio do Estado, no atual cenário, de atores políticos comprometidos com a velha ordem de coisas. Essa presença ficou clara sobretudo no Parlamento, com a inspiração de não poucos congressistas no mais descarado fisiologismo, como moeda de troca para a aprovação das reformas necessárias. Essa pescaria em águas turvas viu-se agravada pela falta de espírito público de alguns integrantes do Ministério Público e do Judiciário, que extrapolaram em suas funções de combate à corrupção, movidos por mesquinhos interesses políticos e defesa de privilégios. Os eventos ocorridos na passagem de Rodrigo Janot pela PGR, bem como as confusas e contraditórias decisões do STF embaladas em rocambolesca retórica jurídica, terminaram jogando mais lenha na fogueira da crise institucional, com grave recado de insegurança jurídica, num momento em que era necessária firmeza no combate ao crime organizado e à corrupção. Esperava-se que os agentes do Estado passassem à sociedade uma mensagem de tranquilidade no funcionamento das instituições. Ocorreu todo o contrário e hoje nos ressentimos dessa insegurança, que abre as portas para a ação deletéria do condenado Lula e da sua turma. O imperativo categórico deles hoje consiste em tornar realidade o princípio de "quanto pior melhor".

Qual é a causa remota, situada na origem do Estado moderno, que, retomada na nossa tradição republicana, deu ensejo às atuais aventuras do populismo lulopetista, que se irmanam a outras desgraças vividas atualmente por povos latino-americanos, como o cubano, o venezuelano e o nicaraguense?

Para o professor Rosenfield, o caminho errado tomado no Brasil pelo PT e coligados decorre de uma deformação da tradição social-democrata, que já tinha acontecido em alguns países europeus ao ensejo do esforço de reconstrução no segundo pós-guerra. Tudo justificado pelo esforço dos governos nacionais para garantir às populações famintas a sobrevivência e o progresso econômico e social. A velha tradição liberal (que tinha animado aos sociais-democratas no início do século XX com as reformas comandadas na Alemanha por Edward Bernstein) foi sendo em parte posta de lado, dando ensejo a um estatismo que crescia sobre os direitos individuais. O professor Rosenfield lembra que para o liberalismo clássico lockeano, a defesa do indivíduo e dos seus direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à propriedade privada era um ponto sagrado. Esse aspecto, contudo, passou a ser relativizado no contexto europeu por parte de teóricos da social democracia e se espelhou também em concepções jurídicas que tiveram grande destaque como a veiculada pelo professor americano John Rawls ou na visão de socialismo democrático de líderes como o alemão Billy Brandt. 

De maneira semelhante, na tentativa em prol de garantir o bem-estar geral no seio do Welfare State, os nossos socialistas caboclos consideraram que o caminho deveria ser o do crescimento descontrolado do Estado, que seria o natural benefactor da sociedade e com cujas políticas públicas de distribuição de renda via "bolsa família" e outras iniciativas desse teor, garantir-se-ia o acesso de todos aos bens e serviços essenciais, bem como a aquisição da casa própria. O Estado de Bem-Estar Social poderia avançar com legitimidade sobre a propriedade dos cidadãos mais abastados, na tentativa de inaugurar uma nova classe média com os outrora marginalizados e pobres. 

O Estado inchado tinha legitimidade para isso, em decorrência das largas cifras eleitorais com que foi contemplado nas eleições de Lula e Dilma. Gozado como o Castilhismo, no Rio Grande do Sul, argumentava de forma parecida. Júlio de Castilhos e colaboradores defendiam-se, no início da República, da acusação de terem se desviado do constitucionalismo adotado na Carta de 1891, com a tradição estatizante que tornou todos os poderes públicos reféns do Executivo hipertrofiado. Ora, os reformadores castilhistas tinham legitimidade, pois tinham sido eleitos! 

O Estado teria legitimidade, inclusive, para desmontar qualquer oposição que setores liberais e conservadores tentassem fazer. As propostas de controle social da mídia elaboradas por militantes no governo, como Franklin Martins achava, pareciam perfeitamente justificáveis. Os petistas foram eleitos, logo tinham legitimidade para acuar as classes mais favorecidas. Essa carta branca está na origem não só das politicas sociais estatizantes desenvolvidas pelos petistas, mas também nas iniciativas menos santas de comprar adesões de outros partidos políticos no Congresso, dando ensejo ao Mensalão. Ora, como os salvadores da Pátria eram eles, poderiam também cooptar, via empréstimos generosos do BNDES, setores do empresariado, a fim de fazer crescer os "campeões de bilheteria", que, de outro lado, garantiriam ao partido do governo polpudas comissões com obras sobrefaturadas. Empréstimos do BNDES a governos estrangeiros que se mostrassem favoráveis às pretensões hegemônicas do PT eram plenamente justificáveis. Os militantes petralhas poderiam até comprometer com desvios bilionários a saúde financeira de uma próspera estatal como a Petrobrás. Essa foi a origem do Petrolão denunciado pela Operação Lava-Jato.

Considero, contudo, que o arrazoado do professor Rosenfield não foi completo. Faltou analisar a fonte primeira dessa tentativa estatizante surgida no seio do pensamento social-democrata e dos partidos socialistas em geral. Lembro a propósito que o precursor dos doutrinários, Benjamin Constant de Rebecque, (na obra Principes de Politique applicables à tous les Gouvernements - Version de 1806-1810, prefácio de Tzvetan Todorov, introd. de Étienne Hoffmann, Paris: Hachette, 1997) colocou o dedo na ferida quanto atribuiu a Jean-Jacques Rousseau a torta ideia de que a soberania popular não tem limites por ter emergido da "vontade geral". Essa é, no meu entender, a causa da deturpação do sentido do republicanismo brasileiro, como deixei exposto em duas obras de minha lavra: Castilhismo, uma filosofia da República (2a. edição, apresentação de Antônio Paim, Brasília: Senado Federal, 2010) e O Republicanismo Brasileiro (Londrina: Instituto de Humanidades, 2012, edição digital). 

Ora, quando os Positivistas derrubaram a Monarquia fizeram-no a partir da convicção de que o poder estabelecido não tem limites pelo fato de encarnar a "vontade geral", em decorrência do fato de terem sido balizadas as instituições republicanas na ciência. A aplicação sistemática desse princípio positivista à política nacional ocorreu por obra de Getúlio Vargas, que foi quem materializou a ideia da  ausência de limites para a soberania, herdado do castilhismo sul-riograndense. O Estado brasileiro getuliano tornou-se uma entidade todo-poderosa e mais forte do que a sociedade, pelo fato de ter ancorado na ciência aplicada mediante os Conselhos Técnicos Aplicados à Administração. Essa é a causa de todos os nossos males de deformação do espírito republicano, que Alexis de Tocqueville definia como "O reino tranquilo da maioria", enquanto que no Brasil passou a identificar-se com  "O reino intranquilo da minoria".

À luz do Estado tecnocrático todo-poderoso justificar-se-iam todas as medidas excepcionais tomadas pelos donos do poder para financiar as operações do lulopetismo, como as pedaladas fiscais. E se explica, assim, de outro lado, a desfaçatez lulista que acha que não deve prestar contas a ninguém pelo fato de ter sido eleito pela maioria dos eleitores. Ora, a soberania é limitada e se restringe à gestão do Estado no sentido de preservar os direitos inalienáveis dos cidadãos, que continuam gozando dos seus direitos à vida, à liberdade e às posses, pois sobre eles não tem nenhum poder a "vontade geral" expressa no voto. Esta só se refere à organização, pelos governantes eleitos, das Instituições, com a finalidade de garantir os direitos inalienáveis dos cidadãos, que em nenhum momento podem ser espoliados deles.

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