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quinta-feira, 30 de agosto de 2018

DA PROIBIÇÃO DO ÁLCOOL ÀS POLÍTICAS DE SEGURANÇA (Artigo publicado no jornal Gazeta do Povo, em 25/08/2018)


A Câmara Municipal de Londrina aprovou a lei do prefeito que proíbe o consumo de bebidas alcoólicas nas ruas da cidade. O texto sofreu modificação no Legislativo, proibindo a ingestão de álcool apenas no período noturno. Uma emenda deve fazer nova alteração quando o texto for discutido em segunda votação.

A notícia é positiva. Vai de encontro à busca do sossego. Chega de consumo indiscriminado de álcool à noite nas ruas, o que traz riscos à segurança dos cidadãos, à tranquilidade dos lares e à formação dos nossos jovens.

Considero, contudo, que os vereadores, o prefeito, os empresários e a sociedade deveriam pensar em políticas públicas mais arrojadas, para trazer redução verdadeira da violência. Por que não adotar, no município de Londrina, uma política de incentivo à cultura para afastar os jovens e adolescentes do consumo das drogas e do álcool? O remédio seria, como se fez na Colômbia nos últimos quinze anos e como se faz, hoje, na Finlândia, fomentar o lazer sadio das famílias e a educação básica de qualidade, a fim de combater na sua raiz o consumo de drogas.

Em Medellín, Bogotá e outras cidades que, na década de 80 do século passado, apareciam como os lugares mais violentos do mundo em decorrência do narcotráfico e da violência daí decorrente, os prefeitos adotaram a criação de parques / bibliotecas nas áreas mais perigosas da cidade, ali onde imperavam os traficantes e os membros das milícias.

O ponto de partida foi a identificação dos lugares onde os marginais mandavam. Foram identificados, inicialmente, 3 lugares em cada uma dessas cidades, ali onde a polícia não entrava. Comandos da Polícia e das Forças Armadas, sob a liderança do prefeito, entravam nesses lugares, após a inteligência policial ter identificado os meliantes e os prendiam. 120 dias após a intervenção, o prefeito entregava à comunidade um conjunto de obras denominado de parque / biblioteca que constava de: escola municipal com creche, quadra de esportes com campo de futebol, posto de saúde, delegacia policial, agência bancária e acesso ao transporte de massa (metrô em Medellín e “Transmilênio”, ou corredor de ônibus expressos em Bogotá).

O resultado da intervenção foi que em um ano a violência despencou: em Medellín chegou a cair 90 %. Em Bogotá caiu 60% no mesmo lapso de tempo. Um verdadeiro milagre, que levou os prefeitos a levar essa iniciativa para outros bairros das suas respectivas cidades. Hoje, os parques / biblioteca estão por todo lado, chegando a mais de dez regiões que se espalham nessas duas cidades. Estive em Medellín e Bogotá em 2007, com uma comitiva da Confederação Nacional do Comércio (que contava com 38 empresários), verificando os surpreendentes resultados obtidos. Era necessário ver para acreditar.

Pergunta que todo mundo faz: quem financiou essas obras? Resposta: foram feitas na modalidade de parcerias público-privadas, financiadas num 90% com recursos colombianos. Os outros 10% vieram de ajudas internacionais. Se levarmos em consideração que a Colômbia é um país mais pobre que o Brasil, a possibilidade real de financiamento de empreendimentos dessa modalidade em cidades brasileiras certamente é possível. Basta vontade política da sociedade e do governo. 

Nas cidades colombianas a iniciativa partiu das Câmaras de Comércio. Em Londrina a iniciativa talvez pudesse ser estimulada pela Associação Comercial.


quinta-feira, 16 de agosto de 2018

TERRA DE PROMISSÃO À VISTA


Estou incomodado com os comunas oportunistas que acham que os seus fajutos princípios de morte ao indivíduo e à liberdade vão ser aceitos mais uma vez. Não é que alguns intelectuais soi disants "socialistas civilizados" estão tentando vender sua maluca versão de que Lula & Comparsas roubaram porque são de direita, enquanto eles, os socialistas intelectuais puros, vão salvar o Brasil?

Pois bem: essa é uma das hipóteses levantadas pelo professor Luiz Werneck Vianna no seu artigo publicado no Estadão ("Terra à vista" 4 de agosto). O que acontece de verdade é o seguinte: Lula & Comparsas são de esquerda, da esquerda vulgar e comuna, e roubaram tanto que desqualificaram a esquerda dita moderada de Fernando Henrique Cardoso & Companhia e de outros segmentos messiânico-intelectuais.

A verdade nua e crua é que a esquerda brasileira está mortinha da silva. Como alternativa só nos resta a opção liberal-conservadora de defesa do indivíduo, de luta pela liberdade e a livre iniciativa, de preservação corajosa das nossas tradições cristãs. O conservadorismo liberal é a solução. Na atual campanha, com certeza, essa alternativa não é defendida nem por Alckmin, nem por Boulos, nem pela Marina, nem pelo Ciro, nem muitíssimo menos pelo Haddad (que já vestiu a fantasia de poste da vez do Lularápio).  Sejam honestos, senhores intelectuais ditos "progressistas". Não tergiversem a história. A esquerda mergulhou fundo junto com a roubalheira petista.

Todos aqueles que acreditaram no Lularápio estão desacreditados. Não venham dizer que o Lula roubou porque era conservador! Haja paciência! Não nos insultem acreditando que vamos engolir essa pérola "progressista". FHC e os tucanos pelo menos já desceram do muro e disseram, pela boca do seu chefe, que num segundo turno não terão problema em fazer aliança com os petistas, para derrotar os liberais e conservadores e dar sobrevida à esquerda larápia que saqueou o Brasil.

A esquerda está desprestigiada e o eleitorado busca opções ligadas ao liberal-conservadorismo, aquele de John Locke, de Immanuel Kant, de Edmund Burke, dos Patriarcas da Independência Americana, de Tocqueville, de Madame de Staël, de Constant de Rebecque, de Silvestre Pinheiro Ferreira, de José Bonifácio, dos nossos imperadores Dom Pedro I e II, dos estadistas do Império como o Visconde de Uruguai, de Assis Brasil, de Gaspar da Silveira Martins, de Rui Barbosa, de Miguel Reale, de Gilberto Paim, de Paulo Mercadante, do mestre Eugênio Gudin, de Og Leme, de Donald Stewart, de Hayek e Von Mises, de Roberto Campos, de Meira Penna, de Olavo de Carvalho, de Carlos Lacerda, de Antônio Paim e os seus discípulos como Ubiratan Macedo e de tantos outros que defenderam e ainda defendemos a liberdade com coragem e sem medo de confronto com os fantasmagóricos esquerdistas.

Os contornos da luta eleitoral que já está em curso vão se definindo aos poucos. Ficaremos do lado dos que, inspirados nas soluções liberal-conservadoras, apostam na defesa da liberdade e da tradição cristã no Brasil do século 21.

Temos, sim, "Terra à vista", não aquela embalada num pacote falsamente progressista e anunciada pelo professor Werneck Vianna, que oculta os vícios de sempre, de privatização do poder e das suas vantagens para poucos, mas aquela "Terra de promissão" que defende a liberdade para todos contra o estatismo, e que luta sem medo pela preservação dos valores mais caros da nossa tradição brasileira, republicana e cristã.

domingo, 5 de agosto de 2018

RECORDANDO RAYMOND ARON (1905-1983) - João Carlos Espada (Artigo publicado no jornal Observador, de Lisboa, em29-07-2018)


Recordando Raymond Aron (1905-1983) 

  •  Diretor do Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa - espadajc@gmail.com
As Memórias de Raymond Aron foram agora publicadas entre nós, 35 anos depois da publicação original. Por que motivo foi Aron em França odiado pela esquerda e respeitado pela direita — mas à distância?
As Memórias de Raymond Aron acabam de ser publicadas entre nós pela editora Guerra & Paz. Como observei nas minhas sugestões de livros para férias, a publicação ocorre 35 anos depois da publicação original em França pela editora Julliard. O evento é sem dúvida digno de nota.
Espero que possa ser um sinal de que existem hoje entre nós mais admiradores de Raymond Aron do que havia na altura da sua morte, em Outubro de 1983, poucos meses depois da publicação das suas Mémoires. Nessa época, fui convidado pela RDP 2 (creio que era assim que se chamava) para coordenar um programa emitido ao longo de vários dias (talvez meia hora por dia, não me recordo exactamente) sobre a vida e a obra de Aron. Costumo dizer que foi um sinal de pluralismo radiofónico — mas também da escassez de admiradores de Raymond Aron entre nós.
Essa escassez era particularmente intrigante, uma vez que a nossa cultura política era sobretudo dominada pela influência da cultura política francesa — o que aliás aconteceu ao longo de quase todo o século XX (para dizer o mínimo). Mas a verdade é que o próprio Raymond Aron, sendo francês, nunca foi particularmente reconhecido em França. Odiado pela esquerda marxista, era por esse motivo respeitado pela direita — mas à distância.
As razões do ódio da esquerda marxista a Aron são relativamente simples e podem resumir-se no título da sua obra de 1955, O Ópio dos IntelectuaisTrata-se de uma eloquente crítica da mitologia das esquerdas de inspiração marxista: o mito da ‘esquerda’, o mito da ‘revolução’ e o mito do ‘proletariado’, culminando no mito do ‘determinismo histórico’. Juntamente com A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, de Karl Popper (publicado em inglês em 1945 e, entre nós, traduzido em… 1990, reeditado em 2012), O Ópio dos Intelectuais permanece uma das mais devastadoras críticas ao marxismo.
Mais interessantes são os motivos da desconfiança da direita francesa relativamente a Aron. No plano meramente político, esses motivos decorreram certamente da independência pessoal de Raymond Aron, que nunca foi um “incondicional” de qualquer partido, nem sequer do General De Gaulle. Tendo dirigido em Londres, durante a II Guerra, a revista da resistência Gaullista, La France libre, Raymond Aron mais tarde distanciou-se do General em várias ocasiões, sobretudo a propósito da animosidade gaullista relativamente aos EUA e a Inglaterra.
E este é talvez o ponto central da respeitosa distância da direita francesa relativamente a Aron: ele era visto como expressão da chamada “escola inglesa” na tradição cultural e política da França. Esta “escola” inclui autores famosos como Montesquieu, Guizot, Tocqueville e Elie Halévy. Pelo menos no caso de Tocqueville, Aron foi sem dúvida o grande responsável por ter-lhe devolvido em França a respeitabilidade de que a sua obra sempre desfrutou no mundo de língua inglesa.
Basicamente, Aron concordava com Tocqueville no contraste que este estabelecera entre a cultura política francesa e a cultura política de lingua inglesa. Este contraste assentava entre, por um lado, a histórica “oscilação da França entre a servidão e o abuso”, entre a contra-revolução e a revolução, e, por outro, a evolução gradual e parlamentar do mundo de língua inglesa.
Seria impossível resumir aqui os factores explicativos a que Tocqueville e Aron atribuíam este contraste entre o espírito revolucionário e contra-revolucionário da França e o espírito reformista dos povos de língua inglesa. Mas pelo menos dois factores devem ser recordados.
Em primeiro lugar, a limitação do poder do Estado e a primazia concedida à liberdade da sociedade civil sob a lei, na tradição de língua inglesa. Como observou Tocqueville, o fanatismo estatista jacobino contra o pluralismo da sociedade civil foi em grande medida um prolongamento, de sinal contrário e muito mais acentuado, do estatismo do Antigo Regime absolutista francês. Por contraste, o regime inglês assentava na limitação do poder do Estado desde a Magna Carta de 1215 — e a sua última revolução, de 1688, fora feita com o modesto propósito de restaurar essa tradição.
Em segundo lugar, o cepticismo dos povos de língua inglesa relativamente a teorias gerais, por contraste com o fascínio da cultura política francesa precisamente por teorias gerais e abstractas.
A conjugação destes dois factores é fatídica. Se a mais pequena diferença de opinião for interpretada como expressão de uma diferença fundamental entre doutrinas abstractas e incompatíveis; se o papel do Estado for entendido como o de uniformizar (ou talvez “ilustrar”, ou talvez “libertar”, ou talvez “doutrinar”) a sociedade civil, de acordo com a correcta doutrina abstracta; se estes dois factores se conjugarem, temos aqui a receita para aquilo que Aron e Tocqueville designavam como “o estéril conflito entre o Antigo Regime e a Revolução” ou para “a perpétua oscilação entre a servidão e o abuso”.
Raymond Aron não terá caído na tentação de fornecer uma contra-receita para contrariar a receita revolucionária das cultura políticas inflexíveis de inspiração francófona. Mas, em O Ópio dos Intelectuais, ele descreveu a cultura política reformista inglesa da seguinte forma:
 “O inglês é tentado a acreditar que ninguém fora da sua ilha feliz será capaz de jogar cricket ou o jogo parlamentar. É uma curiosa mistura de arrogância e modéstia, que talvez possa ter a sua recompensa: os povos da Índia, de África e de outros lugares, educados e emancipados pelos britânicos, vão continuar a jogar cricket e o jogo parlamentar” (p. 235 da edição inglesa).
PS:Acabo de ler numa notícia meteorológica do Daily Telegraph de Londres uma inesperada e não intencional homenagem a Raymond Aron. Parece que uma das mais graves consequências da onda de calor que tem afectado o Reino Unido foi a alteração sem precedentes do código de vestuário do MCC (Marylebone Cricket Club, de Londres): os sócios foram pela primeira vez, na centenária história do clube, autorizados a entrar sem vestir o casaco, enquanto no passado apenas ocasionalmente eram autorizados a tirar o casaco quando assistiam aos jogos — mas nunca a entrar no clube sem o casaco vestido.



O grande sociólogo francês Raymond Aron (1905-1983) e a sua obra Memórias, que acaba de ser publicada pela Editora Guerra&Paz, de Lisboa.

sexta-feira, 3 de agosto de 2018

O ESTADO FRATURADO

Este artigo, resumido, foi publicado na edição do dia 03 de agosto de 2018 do jornal O Estado de S. Paulo, pg. A2. [ https://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,o-estado-fraturado,70002428256 ]

Prof. Denis Rosenfield (Foto: Zero Hora  / fundação Astrojildo Pereira)

A obra recentemente publicada  por Denis Rosenfield (O Estado fraturado - Reflexões sobre a autoridade, a democracia e a violência. Rio de Janeiro: Topbooks, 2018, 273 p.) é um balanço feito à luz da filosofia política e da sociologia, do drama vivido pelo Estado brasileiro nas últimas décadas, notadamente após o ciclo lulo-petista (2003-2016) que praticamente desmontou as instituições republicanas numa maré de corrupção, fisiologismo, infiltração ideológica marxista leninista e compadrio. A obra do professor Rosenfield analisa criticamente o momento mencionado, alargando a sua visão para as reformas que os Estados europeus sofreram ao longo do século XX, centrando a atenção na saga que a social-democracia percorreu nesse século. Em quatro capítulos (I - Democracia e autoridade, II - Autoridade estatal e retórica, III - O Positivismo e a política científica) e uma conclusão (A questão democrática) o autor desenvolve uma análise crítica e historiográfica que joga luz sobre os atuais momentos de perplexidade que se abatem sobre a Nação brasileira.

É deveras dramática a situação de anomia vivida pelo Estado brasileiro após o ciclo lulopetista. Tal situação é assim caracterizada pelo autor: "O resultado é evidente: a dissolução da autoridade pública e o enfraquecimento do Estado Democrático de Direito. Ou seja, em nome da democracia e dos direitos humanos, a própria democracia e os direitos humanos são pervertidos. A autoridade pública, por sua vez, vem a ser identificada ao exercício arbitrário da força. A violência fica franqueada aos particulares que não estão mais obrigados a seguir nenhuma lei, enquanto o Estado deve renunciar ao monopólio do exercício da força. Chega-se, paradoxalmente, a uma situação em que policiais não podem reprimir e juízes não podem punir. Criam-se, assim, condições de dissolução do Estado e, por via de consequência, da democracia. O próximo passo é a própria captura do Estado pelo crime organizado, seja em suas formas políticas,  seja em suas formas propriamente criminosas, como é o caso do Rio de Janeiro"(p. 29).

O desmantelamento institucional patrocinado por Lula e o PT produziu efeitos perversos para a economia do país. Eis a forma em que, sem meias-palavras,o autor denuncia o desmonte da economia nacional: "Do ponto de vista econômico, o país sofreu um processo de intervenção estatal progressiva na seara econômica, sobretudo a partir da segunda metade do segundo mandato do presidente Lula. O Estado foi apresentado como um Poder demiurgo capaz de qualquer realização, conquanto seus recursos fossem também apresentados como ilimitados. A coisa pública poderia ser vilipendiada, pois sempre haveria uma reparação estatal de tipo financeiro.A economia de mercado passaria, então, a ser conduzida por esses ditos representantes da vontade ilimitada, como se para tal tivessem sido eleitos. A Constituição e a lei seriam meros detalhes a serem considerados ou não, conforme as conveniências políticas e os interesses particulares. Na perspectiva da encenação política e, sobretudo, de sua retórica, as aparências democráticas seriam mantidas. De uma forma decidida, o Brasil acentuou os traços de seu capitalismo de compadrio, evoluindo, se assim se pode dizer, para um capitalismo de comparsas" (p. 78).

A síntese de todos os males encontra-se, segundo o professor Rosenfield, na morte do espírito público, que constituiu uma entropia fatal para as perspectivas do Brasil como Nação. A respeito, frisa o autor: "A noção de coisa pública desapareceu e veio a ser, mesmo, assim percebida pela sociedade. A classe política, em seu sentido genérico, passou a ser considerada como composta de criminosos e aproveitadores dos mais diferentes tipos. Em consequência, a imagem do Poder Legislativo foi, em muito, enfraquecida. Se uma questão se coloca a respeito deste Poder é a de que não mais exerce a função de representação política que deveria ser sua. Em termos institucionais, dir-se-ia que é um Poder que só mantém capacidade de decisão no que diz respeito aos interesses particulares e fisiológicos de seus membros. Não se pode dizer que eles mantenham, hoje, uma fatia da soberania, de decisão, salvo neste seu sentido muito particular de consecução de interesses particulares, desvinculados da cena pública" (p. 79).

A tarefa de reconstruir as instituições republicanas esfaceladas pela aventura criminosa do PT no poder foi precariamente cumprida pelo transitório governo Temer, em decorrência da presença, no seio do Estado, no atual cenário, de atores políticos comprometidos com a velha ordem de coisas. Essa presença ficou clara sobretudo no Parlamento, com a inspiração de não poucos congressistas no mais descarado fisiologismo, como moeda de troca para a aprovação das reformas necessárias. Essa pescaria em águas turvas viu-se agravada pela falta de espírito público de alguns integrantes do Ministério Público e do Judiciário, que extrapolaram em suas funções de combate à corrupção, movidos por mesquinhos interesses políticos e defesa de privilégios. Os eventos ocorridos na passagem de Rodrigo Janot pela PGR, bem como as confusas e contraditórias decisões do STF embaladas em rocambolesca retórica jurídica, terminaram jogando mais lenha na fogueira da crise institucional, com grave recado de insegurança jurídica, num momento em que era necessária firmeza no combate ao crime organizado e à corrupção. Esperava-se que os agentes do Estado passassem à sociedade uma mensagem de tranquilidade no funcionamento das instituições. Ocorreu todo o contrário e hoje nos ressentimos dessa insegurança, que abre as portas para a ação deletéria do condenado Lula e da sua turma. O imperativo categórico deles hoje consiste em tornar realidade o princípio de "quanto pior melhor".

Qual é a causa remota, situada na origem do Estado moderno, que, retomada na nossa tradição republicana, deu ensejo às atuais aventuras do populismo lulopetista, que se irmanam a outras desgraças vividas atualmente por povos latino-americanos, como o cubano, o venezuelano e o nicaraguense?

Para o professor Rosenfield, o caminho errado tomado no Brasil pelo PT e coligados decorre de uma deformação da tradição social-democrata, que já tinha acontecido em alguns países europeus ao ensejo do esforço de reconstrução no segundo pós-guerra. Tudo justificado pelo esforço dos governos nacionais para garantir às populações famintas a sobrevivência e o progresso econômico e social. A velha tradição liberal (que tinha animado aos sociais-democratas no início do século XX com as reformas comandadas na Alemanha por Edward Bernstein) foi sendo em parte posta de lado, dando ensejo a um estatismo que crescia sobre os direitos individuais. O professor Rosenfield lembra que para o liberalismo clássico lockeano, a defesa do indivíduo e dos seus direitos inalienáveis à vida, à liberdade e à propriedade privada era um ponto sagrado. Esse aspecto, contudo, passou a ser relativizado no contexto europeu por parte de teóricos da social democracia e se espelhou também em concepções jurídicas que tiveram grande destaque como a veiculada pelo professor americano John Rawls ou na visão de socialismo democrático de líderes como o alemão Billy Brandt. 

De maneira semelhante, na tentativa em prol de garantir o bem-estar geral no seio do Welfare State, os nossos socialistas caboclos consideraram que o caminho deveria ser o do crescimento descontrolado do Estado, que seria o natural benefactor da sociedade e com cujas políticas públicas de distribuição de renda via "bolsa família" e outras iniciativas desse teor, garantir-se-ia o acesso de todos aos bens e serviços essenciais, bem como a aquisição da casa própria. O Estado de Bem-Estar Social poderia avançar com legitimidade sobre a propriedade dos cidadãos mais abastados, na tentativa de inaugurar uma nova classe média com os outrora marginalizados e pobres. 

O Estado inchado tinha legitimidade para isso, em decorrência das largas cifras eleitorais com que foi contemplado nas eleições de Lula e Dilma. Gozado como o Castilhismo, no Rio Grande do Sul, argumentava de forma parecida. Júlio de Castilhos e colaboradores defendiam-se, no início da República, da acusação de terem se desviado do constitucionalismo adotado na Carta de 1891, com a tradição estatizante que tornou todos os poderes públicos reféns do Executivo hipertrofiado. Ora, os reformadores castilhistas tinham legitimidade, pois tinham sido eleitos! 

O Estado teria legitimidade, inclusive, para desmontar qualquer oposição que setores liberais e conservadores tentassem fazer. As propostas de controle social da mídia elaboradas por militantes no governo, como Franklin Martins achava, pareciam perfeitamente justificáveis. Os petistas foram eleitos, logo tinham legitimidade para acuar as classes mais favorecidas. Essa carta branca está na origem não só das politicas sociais estatizantes desenvolvidas pelos petistas, mas também nas iniciativas menos santas de comprar adesões de outros partidos políticos no Congresso, dando ensejo ao Mensalão. Ora, como os salvadores da Pátria eram eles, poderiam também cooptar, via empréstimos generosos do BNDES, setores do empresariado, a fim de fazer crescer os "campeões de bilheteria", que, de outro lado, garantiriam ao partido do governo polpudas comissões com obras sobrefaturadas. Empréstimos do BNDES a governos estrangeiros que se mostrassem favoráveis às pretensões hegemônicas do PT eram plenamente justificáveis. Os militantes petralhas poderiam até comprometer com desvios bilionários a saúde financeira de uma próspera estatal como a Petrobrás. Essa foi a origem do Petrolão denunciado pela Operação Lava-Jato.

Considero, contudo, que o arrazoado do professor Rosenfield não foi completo. Faltou analisar a fonte primeira dessa tentativa estatizante surgida no seio do pensamento social-democrata e dos partidos socialistas em geral. Lembro a propósito que o precursor dos doutrinários, Benjamin Constant de Rebecque, (na obra Principes de Politique applicables à tous les Gouvernements - Version de 1806-1810, prefácio de Tzvetan Todorov, introd. de Étienne Hoffmann, Paris: Hachette, 1997) colocou o dedo na ferida quanto atribuiu a Jean-Jacques Rousseau a torta ideia de que a soberania popular não tem limites por ter emergido da "vontade geral". Essa é, no meu entender, a causa da deturpação do sentido do republicanismo brasileiro, como deixei exposto em duas obras de minha lavra: Castilhismo, uma filosofia da República (2a. edição, apresentação de Antônio Paim, Brasília: Senado Federal, 2010) e O Republicanismo Brasileiro (Londrina: Instituto de Humanidades, 2012, edição digital). 

Ora, quando os Positivistas derrubaram a Monarquia fizeram-no a partir da convicção de que o poder estabelecido não tem limites pelo fato de encarnar a "vontade geral", em decorrência do fato de terem sido balizadas as instituições republicanas na ciência. A aplicação sistemática desse princípio positivista à política nacional ocorreu por obra de Getúlio Vargas, que foi quem materializou a ideia da  ausência de limites para a soberania, herdado do castilhismo sul-riograndense. O Estado brasileiro getuliano tornou-se uma entidade todo-poderosa e mais forte do que a sociedade, pelo fato de ter ancorado na ciência aplicada mediante os Conselhos Técnicos Aplicados à Administração. Essa é a causa de todos os nossos males de deformação do espírito republicano, que Alexis de Tocqueville definia como "O reino tranquilo da maioria", enquanto que no Brasil passou a identificar-se com  "O reino intranquilo da minoria".

À luz do Estado tecnocrático todo-poderoso justificar-se-iam todas as medidas excepcionais tomadas pelos donos do poder para financiar as operações do lulopetismo, como as pedaladas fiscais. E se explica, assim, de outro lado, a desfaçatez lulista que acha que não deve prestar contas a ninguém pelo fato de ter sido eleito pela maioria dos eleitores. Ora, a soberania é limitada e se restringe à gestão do Estado no sentido de preservar os direitos inalienáveis dos cidadãos, que continuam gozando dos seus direitos à vida, à liberdade e às posses, pois sobre eles não tem nenhum poder a "vontade geral" expressa no voto. Esta só se refere à organização, pelos governantes eleitos, das Instituições, com a finalidade de garantir os direitos inalienáveis dos cidadãos, que em nenhum momento podem ser espoliados deles.