Os burocratas de Bruxelas tomaram uma decisão ruim em face do
plebiscito de 24 de Junho que confirmou a saída da Inglaterra da Comunidade
Européia. Como frisou o presidente da Comissão que preside a União, a entidade
cobrará caro a saída dos Ingleses, a fim de que o evento sirva como lição aos
remanescentes 27 países membros. Não será uma separação amigável, mas um
divórcio litigioso. Quem quiser sair pagará um preço caro, em termos de perda
de vantagens comerciais e de benefícios para os seus cidadãos. A decisão do centro
do poder de Bruxelas pode, de momento, estancar a corrida para fora da União. Mas
não acabará com os problemas, porque o que mais incomodava aos súditos da
Rainha Isabel era a prepotência de Bruxelas, que baixa normas e age à vontade
como se fosse dona da bola.
Lembremos que a Magna Carta, há oitocentos anos, visava a
controlar, na Inglaterra, a autoridade real, inclusive no relativo à fixação de
impostos, tradição que foi confirmada em várias oportunidades como em 1689,
quando da proclamação do “Bill of Rights”. Os Americanos, na sua briga contra a
Metrópole, em meados do século 18 adotaram o princípio de “No Taxation without
Representation”, que se inspirava nessa antiga tradição.
Ora, os excessos de poder de Bruxelas incomodavam aos
Britânicos, que são particularmente sensíveis diante da autoridade em geral.
Como lembrava o redator da revista The Economist (“Revolucionários
improváveis”, O Estado de S. Paulo, 26-06-2016, pg. A12) comentando o Brexit,
os Ingleses sempre foram meio anarquistas em relação aos poderes constituídos.
O escritor George Orwell, que se tornou famoso pelo seu clássico 1984,
referindo-se às canções populares dos soldados na 1ª Guerra Mundial, escrevia:
“O único inimigo que chegava a ser nomeado nas letras era o sargento”.
Convenhamos que, em termos de obrigações, a Grã Bretanha fez
o dever de casa durante o tempo da sua permanência na Comunidade Europeia:
saneou as contas públicas, baixou a inflação, desenvolveu programas eficientes
de controle ao terror e à insegurança, além de pagar rigorosamente em dia as
suas contas com a União. Ora, não era isso exatamente o que outros membros da
Eurozona fazem, ao permitir o gasto público descontrolado e favorecer elites econômicas
corruptas (como aconteceu na Grécia), que comprometeram a realização das metas
exigidas por Bruxelas. Além do mais, a questão dos refugiados apresenta-se como
uma variável difícil de ser equacionada por um país, como a Inglaterra, já
sobrecarregado de imigrantes.
O pragmatismo dos Ingleses sempre olhou com desconfiança para
a ausência de controles sobre o poder central vigente no Continente europeu.
John Locke, em pleno século 17, quando da sua viagem pela França absolutista de
Luís XIV, referia-se às práticas autoritárias desse país como o “mal francês”,
utilizando ironicamente uma expressão que, nos meios médicos, referia-se à
sífilis que pululava entre os dissolutos súditos da Corte de Versalhes. O “mal
francês” era, portanto, duplo: a sífilis, de um lado e, de outro, o estatismo.
Se o filósofo prussiano Gottfried Leibniz pensou no século 17
a integração europeia construída verticalmente ao redor do absolutismo francês,
com o auxílio da Grande Armée, no século seguinte outro pensador da mesma
origem, Immanuel Kant, pensou a integração europeia em termos que remetiam à assimilação
das Luzes no Continente. Na sua Paz perpétua (1795) Kant imaginava
uma Europa unida por um pacto federativo entre os seus integrantes, ao redor de
um modelo de democracia alicerçada no direito
cosmopolita que, incorporando as exigências da moral social, buscasse
evitar a guerra mediante a implantação de regimes compatíveis com a liberdade. Essa é a base filosófica da Comunidade
Europeia. Kant não acabava com as diferenças entre as várias unidades. Deixava
em aberto a solução daquelas, ao ensejo da negociação em torno aos problemas
que fossem surgindo, sem cair no jesuitismo de tocar para baixo do tapete as
diferenças mediante a “restrictio mentalis”, mas enfrentando-as com coragem.
O grande legado da Comunidade Européia foi ter afastado o
perigo da guerra entre os seus membros, a par de ter efetivado ousado plano de
progresso econômico consolidando o maior mercado comum do Planeta. Contudo,
como frisava Lourival Sant’Anna (“Repensar a Democracia”, O Estado de São Paulo,
26-06-2016, p. A13), “(...) o processo de tomada de decisões sobre um número
cada vez maior de questões foi se afunilando e centralizando em Bruxelas. Com o
passar dos anos, os cidadãos europeus foram sentindo que decisões que afetam
suas vidas são tomadas por burocratas – ou eurocratas
– de outros países, reunidos em uma cidade distante e sem nenhum contato com
suas realidades”.
Durão
Barroso, ex-presidente da Comissão Europeia, no Estoril Political Forum, promovido em Lisboa pelo Instituto de
Estudos Políticos da Universidade Católica Portuguesa, frisou em 29 de Junho: "Portugal e os outros países têm de ver a União Européia não como uma potência externa, mas como sendo parte ativa da UE. Se continuarmos sistematicamente a usar a UE como bode expiatório, não vamos a lado nenhum (...). Se continuarmos sistematicamente a nacionalizar os sucessos e a europeizar os fracassos, então teremos um problema".
Acontece que o desemprego que afeta aos
trabalhadores das indústrias inglesas e que motivou o seu voto favorável ao
Brexit, foi condicionado pelas medidas da União Européia. Esperar para ver se o
bom senso volta a prevalecer em Bruxelas, e se o pragmatismo inglês encontra
uma saída negociada que salve a colaboração com a União Européia, mesmo que
redefinida em termos diferentes.
Tenho um artigo semelhante em Reflexão, "Brexit, uma tradição anglo-saxônica" (www.selvinomalfatti.blogspot.com.br). Só faço uma avaliação um pouco diferente. No fundo concordam, só o meu é visto sob o ponto de vista da União Europeia e este da Inglaterra.
ResponderExcluir...aS NOSSAS ANÁLISES SE COMPLEMENTAM, CARO SELVINO. OBRIGADO PELO COMENTÁRIO. ABRAÇO GRANDE.
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