Dom Pedro II, Imperador do Brasil (Tela de Pedro Américo). |
Nada mais atual nos dias que o Brasil está vivendo,
caracterizados pela instabilidade política, do que a nova edição da obra
clássica de João Camillo de Oliveira Torres (1915-1973), A democracia coroada – Teoria
política do Império do Brasil, a ser publicada pela editora Resistência Cultural. Porque, em matéria de estabilidade, a
República representou justamente a negação desta qualidade, ao passo que o
Império conseguiu construir instituições duradouras.
Essa durabilidade decorreu de duas instâncias: de um lado, da
recuperação, pelos “Construtores do Império” (lembrando o título de outro
clássico de Oliveira Torres), da ideia de “Revolução Conservadora” instituída
pela Gloriosa Revolução Inglesa de 1688, mas que já tinha marcado presença na
realidade ibérica anteriormente a Locke, em decorrência da velha tradição
feudal que fazia do Rei guardião da estabilidade de tradições caras à
nacionalidade. [1] De
outro lado, da adoção de fundamentos doutrinários consentâneos com esse ideal,
identificados, em primeiro lugar, com o que se pode denominar de “liberalismo
telúrico ibérico”, que assoma nas obras dos pensadores políticos da neoescolástica
portuguesa e espanhola de início do século XVII, que manteve firme o ideal medieval
de “controle moral ao poder”. Em segundo lugar, esses fundamentos doutrinários
identificam-se com a teoria liberal-conservadora desenvolvida por Benjamin
Constant de Rebecque (1767-1830). Foi esta, sem dúvida, como fica provado na
obra de Oliveira Torres que ora apresento, a corrente de pensamento decisiva na
formatação das nossas Instituições Imperiais.
Desenvolverei nesta apresentação os seguintes itens: 1 – A
ideia de “Revolução Conservadora”. 2 – O ideal da soberania popular segundo Francisco
Suárez (1548-1617). 3 – O ideal da representação segundo Benjamin Constant de Rebecque
e a sua influência em Silvestre Pinheiro Ferreira (1769-1846).
1 – A ideia de
“Revolução Conservadora”.
João Camillo de Oliveira Torres considera que a independência
brasileira de 1822 somente pode ser compreendida à luz da categoria de
“Revolução Conservadora” que se sedimentou na Gloriosa Revolução britânica de
1688, mas que já estava presente quando da assinatura da “Magna Carta” (1215),
em plena Idade Média, como conquista do Magnum Concilium da nascente burguesia,
em face da Monarquia que se pretendia absoluta, com João Sem Terra (1166-1216).
A ideia de Monarquia Constitucional que emerge no final do século XVII,
insere-se nesse contexto.
O caráter indubitavelmente novo do movimento da Independência
brasileira consistiu na sua feição conservadora, ao ter sido efetivado a partir
da Monarquia, enquanto que os processos independentistas da América espanhola
ocorreram através da guerra contra a Metrópole. [2]
No início do capítulo I da sua obra, intitulado: “De Ourique
ao Ipiranga”, efetivamente, frisa Oliveira Torres: “A grande novidade do
movimento da independência do Brasil, que tornou radicalmente distinto e singular
na América uniformemente republicana (mais por ausência de dinastias que por
falta de vontade nos homens), consistiu no fato de já ser o Brasil um reino e
como tal permanecer. A condição monárquica do Estado brasileiro, em 1822, não
era um dado passivo, semelhante ao que se tem verificado em muitas ocasiões, na
passagem de certas monarquias, de absolutas a liberais. Os brasileiros não
conseguiram a Independência arrancando-a à força do Príncipe Regente; pelo
contrário: tiveram nele um aliado e companheiro. D. Pedro, de longa residência
no Brasil, sentia-se muito mais Chefe do Estado brasileiro do que futuro Rei de
Portugal. E os brasileiros correspondiam
a esta situação, demonstrando sincera disposição de aceitar o fato consumado da
monarquia tropical”.
E continua assim Oliveira Torres: “Se a Independência se fez
de modo todo especial pela monarquia, que espécie de monarquia era essa? Não é
possível o estudo da História do Brasil sem a análise dos nossos antecedentes
lusos. Esta continuidade amplia-se extraordinariamente com a permanência da
Dinastia; não houve solução de continuidade entre a Colônia e a Independência,
em virtude da lenta, segura e suave evolução traçada por D. João VI (1767-1826).
E como as realezas são naturalmente tradicionalistas, temos que procurar a
explicação do grito do Ipiranga numa história que principia na batalha de
Ourique. Para entendermos os nossos dois Pedros, temos de ver as ideias de seus
avós Afonsinos, Avizes e Braganças. Devemos procurar a noção precisa da
monarquia medieval, a portuguesa de preferência” [Torres, 1964: 25].
Oliveira Torres, se louvando dos escritos de Thomas Carlyle
(1795-1881) e de António Sardinha (1887-1925), destaca os seguintes aspectos
como característicos da realeza no seio do pensamento medieval europeu e, a
fortiori, português:
- i. TODA autoridade é expressão da justiça, porquanto somente pode haver uma fonte imediata de autoridade: a própria comunidade.
- ii. Não é o Príncipe que é superior, mas o Direito entendido como costume da comunidade.
- iii. A primeira forma da liberdade política é a supremacia do Direito, não como criação do Príncipe, mas como expressão dos hábitos e costumes da comunidade.
- iv. O Rei não está acima do Direito, mas sujeito a ele.
- v. A supremacia do Direito foi o primeiro elemento da concepção da liberdade política na Idade Média, porque deixava claro que o Rei possuía uma autoridade augusta, mas limitada.
- vi. A Realeza é uma dignidade destinada a ministrar a Justiça.
- vii. O poder do Rei é indiviso, mas limitado.
- viii. O Rei governa, a Nação administra-se. O Rei governa garantindo, pela distribuição da Justiça e a defesa do solo, a unidade necessária à segurança de todos. A Nação administra-se realizando os seus interesses na multiplicidade dos vários órgãos que legitimamente os exprimem.
- ix. É tão absurdo fazer dirigir o Estado por qualquer homem, como pôr o Rei à frente dos interesses locais nos diversos Concelhos.
- x. A autoridade real só intervém na hipótese de alguns dos organismos governamentais se chocarem, ou abusivamente invadirem a órbita dos outros. Obtido o equilíbrio, a autoridade do Rei volta a se recolher à sua esfera própria.
- xi. Deve ser adotada a prática da centralização política, junto com a da descentralização administrativa. Os antagonismos existentes entre municípios, corporações, estados provinciais, corpos intermediários, etc., equacionam-se graças à sua independência, no seio da descentralização administrativa.
- xii. O exercício dos procuradores dos Concelhos das Cortes constitui um legítimo elemento de representação.
- xiii. O Direito do Rei é o Direito do Reino, Os Reis não são coroados para sua utilidade, mas em benefício do Reino.
Todas estas características do exercício da Realeza tinham
valor no contexto do que poderíamos denominar, com Benjamin Constant, de
“democracia dos Antigos”. Chegada a Modernidade, apareceu um novo elemento: o
poder real evoluiu até formas de Absolutismo, notadamente na França e, nesse
clima, houve uma progressiva polarização entre o Poder Real e os poderes
emergentes do seio da Sociedade Civil. Nesse novo contexto, far-se-ia
necessário reformular a figura da Realeza, no contexto da inovação política que
possibilitou o regime contratualista nos novos Estados Nacionais emergentes
desse processo.
O primeiro pensador que concebeu essa transição foi John
Locke (1632-1804). Essa doutrina “whig” passou à cultura luso-brasileira pela
intermediação de Benjamin Constant de Rebecque. No item 3 desta apresentação, ao tratar da influência de Constant no
pensamento de Oliveira Torres, desenvolverei este aspecto.
2 – O ideal da soberania
popular segundo Francisco Suárez (1548-1617).
O cerne da
concepção política de Suárez encontra-se nas suas obras: De legibus ac de Deo Legislatore (1612) e Defensor Fidei contra Jacobum
Regem Angliae (1613) e consiste
na formulação do princípio da soberania
popular. Ela, segundo Suárez, repousa na “res publica” ou “corpo político”
e pode ser transferida por este para o soberano ou para um órgão representativo
da comunidade. Essa doutrina, difundida nas Universidades que a Espanha criou
nas suas colônias americanas, ensejou o primeiro surto moderno de liberalismo
autóctone, a partir do qual se iniciaram os movimentos independentistas dos comuneros (nas últimas décadas do século
XVIII) e da independência (nas primeiras décadas do século XIX). Sobre essa
base netamente ibérica iriam ser assimiladas, posteriormente, as idéias do
liberalismo anglo-saxão e francês. [3]
Os
constitucionalistas do Império adotaram os conceitos básicos de Suárez com uma
ressalva: a soberania, pelo fato de repousar na Nação, não pode ser transferida
ou transladada por ela a ninguém, mas apenas delegada. A respeito deste ponto, frisa Oliveira Torres: “Esta
teoria da delegação é muito importante, e mais ousada do que a da translação de Suárez e Vitória. Para os
mestres da Escolástica do Barroco, a ‘república’ transfere ao Príncipe o poder;
para a Constituição do Império, apenas lhe delega esse poder (...). Pimenta
Bueno, educado aos acordes generosos das doutrinas liberais, dizia claramente
que a soberania era ‘inalienável e imprescritível’, portanto intransferível. A
translação suareziana passaria, por certo, aos olhos do marquês de São Vicente,
como uma doutrina perigosa, que daria ao Estado um poder demasiado seguro,
mesmo com a famosa restrição que Suárez punha em seu pactum subjectionis, a do direito de rebelião em caso de tirania.
Para a Constituição, o Imperador, a Assembleia, os tribunais eram, apenas,
delegados da soberania nacional. Esta, de fato, era a doutrina” [TORRES, 1964:
78].
3 – O ideal da representação segundo
Benjamin Constant de Rebecque e a sua influência em Silvestre Pinheiro
Ferreira.
Em que pese
a influência recebida pelos constitucionalistas do império das doutrinas
políticas de Francisco Suárez, no entanto, quem mais influiu no surgimento das
instituições brasileiras, no início do século XIX, foi Benjamin Constant. O seu
pensamento constituiu o arquétipo que serviu de inspiração ao nosso mais
importante pensador político do período, Silvestre Pinheiro Ferreira, que na
análise efetivada por Oliveira Torres não tem o lugar de prelação que de fato ocupou
no processo histórico. Silvestre foi o inspirador das reformas empreendidas por
Dom João VI para transformar a monarquia luso-brasileira, de absolutista em
constitucional. Ele é, portanto, o pensador que antecede à geração que pensou
as instituições imperiais. Provavelmente a omissão mencionada na obra de
Oliveira Torres, corra por conta do fato de que tardiamente foram divulgadas as
obras de Pinheiro Ferreira no Brasil. Ora, isso foi feito ao ensejo da criação
do primeiro Curso de Pós-graduação em Pensamento Brasileiro, levada a cabo por
Antônio Paim na PUC do Rio de Janeiro, em 1973.
A doutrina liberal de Constant antecipou-se à
discussão dos grandes problemas com que se defrontou o Império do Brasil, na
tentativa de efetivar a consolidação do Estado nacional. Temas como a
representação, o controle moral ao poder, a limitação da soberania popular, a
monarquia como poder neutro, os
direitos inalienáveis de cidadão à vida, à liberdade e às posses, o sentido da
moderna democracia, foram objeto da análise do pensador francês. As suas teses,
aliás, ao mesmo tempo em que inspiraram Silvestre Pinheiro Ferreira e os
estadistas do Império, continuam tendo rara atualidade, como frisa um dos seus
mais importantes estudiosos contemporâneos, Tzvetan Todorov.
Essa
atualidade é paradoxal, pois emerge justamente da inaplicabilidade total da
concepção de Constant ao mundo da política real. "Mas é precisamente pelo
seu excesso e a sua impossível adaptação ao mundo moderno, frisa Todorov
[1997b: 17-18], que o pensamento constantiniano permanece interessante e forte.
Ele questiona um processo no momento mesmo em que vai se impor definitivamente.
Constant levanta premonitoriamente o espantalho do Leviatã incontrolável.
Certamente não é possível colocar toda a sua teoria em prática. Mas ela pode
servir como instrumento para medir o que resta de liberdade nas nossas
sociedades modernas. Entre o Estado anoréxico e o Estado bulímico, qual preferimos?
A partir de que momento um governo ultrapassa as suas prerrogativas? O
liberalismo constantiniano oferece uma grade de análise ou um paradigma, mais
do que uma série de receitas. Aplicáveis? No sentido estrito dos seus
princípios não o são, embora menos hoje do que no início do século XIX. Mas
esses princípios deveriam ressoar na nossa consciência cívica, pois os
mecanismos devoradores no seio de todos os poderes permanecem, eles ao menos,
sempre atuais".
Constant,
junto com Madame de Staël (1766-1817), foi o precursor dos liberais doutrinários na França. A sua meditação trilhou o caminho
de moderação e de construção das instituições do governo representativo, que
caracterizaria aos demais liberais franceses ao longo do século XIX. Mas o
ponto central da reflexão e da pregação política deste autor foi a sua decisiva
defesa da liberdade, num meio, como o da França pós-revolucionária, que custava
a fazer uma opção por esse ideal. Acerca da marca deixada por ele no seio da
cultura política francesa, eis o que, em 1872, escrevia Édouard de Laboulaye (1811-1883)
no prólogo à segunda edição do Cours de Politique Constitutionnelle
de Constant [Laboulaye, 1872: vol I, I-II]:
"Em
1872, como em 1861, sob a República provisória como sob o Império, a França
busca as condições da verdadeira liberdade. Ela quer fundar um governo que
garanta a paz pública, dando uma sólida garantia a todos os interesses, a todos
os direitos. Acerca de todos esses pontos encontrar-se-ão em Benjamin Constant
soluções decisivas e confirmadas por uma experiência de cinquenta anos. Inimigo
do arbítrio e da violência sob todos os regimes, Benjamin Constant converteu-se
no mestre da ciência política para os amigos da liberdade. O seu Curso
de Política Constitucional é o manual mais completo, o guia mais seguro
para o estudante, o publicista, o legislador. Na escola de Benjamin Constant
sempre se aprende. Ninguém pode se afastar impunemente dela. O tempo consagrou
o equilíbrio das suas ideias. Ele cresceu e crescerá ainda mais na estima dos
homens, porque sempre defendeu a justiça, a moderação, a verdade. Nestes tempos
sentimos grande necessidade das suas lições e ouso dizer que jamais a
publicação dos seus escritos chegou em melhor momento. Tomara que possamos
aproveitar os seus conselhos e atingir, enfim, essa terra prometida que sempre
nos escapa!".
Constant,
como Madame de Staël, encarnou outro aspecto que seria caraterístico dos doutrinários: ser testemunha da razão
contra a opressão. O nosso autor apregoava a utilização, na defesa da liberdade
e das luzes, de todos os meios de que a civilização poderia fazer uso para
multiplicar o alcance da sua voz. No caso concreto dos intelectuais do século
XIX, tratava-se de utilizar, sobretudo, a imprensa. Eis o que Constant escrevia
acerca da missão esclarecedora que tinham os intelectuais (chamados por ele de missionários), na defesa da liberdade
contra a opressão, na obra De l'esprit de conquête et de l'usurpation:
"Por mais ativa que seja a inquisição, quaisquer que sejam as suas
precauções, os homens esclarecidos conservam sempre mil meios para se fazerem
entender. O despotismo somente vinga quando a razão se estiola na sua infância;
então ele pode frear o progresso da espécie humana e mantê-la refém de uma
duradoura imbecilidade. Mas, quando a razão é posta em marcha, ela se torna
invencível. Somente há um momento para proscrevê-la com sucesso; passado esse
momento, todos os esforços são vãos. Uma vez iniciada a luta intelectual, a
opinião se separa do poder e a verdade clareia em todos os espíritos.
Missionários dessa verdade eterna, se o caminho for interceptado, renovai os
esforços, redobrai o zelo. Que a luz apareça em todas partes! Apagada, que ela
brilhe de novo! Afastada, que ela volte! Que ela se reproduza, se multiplique,
se transforme! Que ela seja tão infatigável quanto a perseguição! Que uns marchem com coragem! Que outros se
introduzam com habilidade! Que a verdade
se expanda, tanto apregoada alto e bom som, quanto repetida em voz baixa! Que
todas as razões se coadunem, que todas as esperanças se reanimem, que todos
trabalhem, que todos sirvam, que todos vigiem. Não há prescrição para as ideias
úteis, diz um homem ilustre (Necker); não há pois prescrição para a
liberdade" [Constant, 1986: 230-231].
Mas essa
missão de ilustrar que os intelectuais têm, deveria estar vinculada, segundo
Constant, à inserção corajosa e real deles na vida pública. O doutrinário não poderia ser jamais um
homem de gabinete, um philosophe
trancafiado na sua torre de marfim. O
intelectual que iria transformar as instituições deveria se inserir na corrente
do poder para, a partir dela, civilizá-la. Emerge aqui um aspecto importante,
que será retomado pela tradição doutrinária e que chegará até os nossos dias na
meditação de Aron: o ideal de intelectual
engajado. Eis a forma em que Todorov ilustra esse importante aspecto da
meditação constantiniana: "Constant, e aí reside uma das suas grandes
originalidades, não quer renunciar a nenhuma dessas duas vias (a teórica,
inspirada em Rousseau e a histórica, tributária de Montesquieu). A sua reflexão
não é deduzida a partir de postulados abstratos; melhor, tendo ele mesmo
participado da vida política, busca teorizar o real vivido. Não haverá, pois,
lugar nele para essas ficções que Rousseau considerava úteis, o estado de
natureza ou o contrato social. A história é aqui objeto de pensamento, não
repertório de exemplos. Mas não se trata, no entanto, de renunciar aqui aos princípios: só num certo nível de
abstração, pensa Constant, o debate será fecundo; e o seu livro (Principes
de Politique) não é um programa de ação política, mas uma meditação que
permite compreender e julgar o mundo. Não a teoria de um lado e a prática de
outro; mas uma prática teorizada, uma teoria submetida constantemente ao teste
do real. Constant não é daqueles que se deixam inebriar pelas palavras. A
história e os princípios intemporais devem, pois, permanecer presentes, ambos,
o que nem sempre é fácil. Mas algumas das ideias mais fecundas de Constant,
como aquela do seu célebre confronto entre a liberdade dos Antigos e a dos
Modernos, levam consigo esse confronto" [Todorov, 1997b: 6].
Em que pese
a atualidade do pensamento de Constant, várias razões explicam o fato de a sua
obra ter sido apenas redescoberta, na França, em 1980. Tais motivos seriam,
entre outros, os seguintes: o caráter pouco sistemático dos seus escritos, a
agitada vida que levou o nosso autor e a particular evolução seguida pelas
instituições francesas ao longo do século XIX (cada vez menos inspiradas nos
princípios liberais e cada vez mais próximas do estatismo). Tzvetan Todorov
[1997b: 9-19] adiciona mais um motivo para o fato de a obra de Constant ter
passado despercebida do público leitor: o seu estilo não é grandiloquente, ele
é de uma claridade que o torna quase um professor, bem como um confidente do
homem de hoje. Para um século XIX acostumado aos arroubos dos heróis
românticos, e para um século XX polarizado pelas grandes marchas e contramarchas
das ideologias, convenhamos que o estilo do nosso autor é muito pouco
empolgante. Talvez o fato de, no final do século XX, ter a atenção dos editores
se voltado progressivamente para a história da vida privada, levou-os a
valorizar, no seu devido peso, uma obra escrita a partir das expectativas do
indivíduo. Constant fala para o homem do final do século XX, para o cidadão que
desconfia das grandes soluções ideológicas, para o pagador de impostos que se
preocupa com o tamanho do Estado e que viu de perto, nos totalitarismos, o
perigo do poder exercido sem freio moral.
Um
libertário de tempo integral. A atualidade de Constant justamente decorre dessa
sua defesa incondicional da liberdade contra o estatismo. A propósito deste
aspecto, escreve Todorov [1997b: 16-17]: "A teoria constantiniana da
limitação do poder representa a última etapa antes do anarquismo. O salário
estatal se converte no mínimo possível antes da sua extinção. Os únicos
domínios que o autor reconhece à autoridade pública são a segurança (exército),
a ordem (polícia) e os recursos necessários para pagar essas duas funções
vitais (impostos). O exército e a polícia devem, por sua vez, serem reduzidos,
para evitar que se possam converter no instrumento do abuso estatizante.
Constant enxerga no Estado uma espécie de hidra cujas cabeças, tão logo são
cortadas, ressurgem com mais força ainda; o poder segue por uma pendente
natural em direção ao seu alargamento infinito e prejudicial. A metáfora da
torrente é recorrente, contra a qual os diques e os tapumes nunca serão
resistentes o bastante, segundo o autor. Que barreiras suficientemente sólidas
podem ser previstas contra o agigantamento da onda estatizante? Constant
responde: a opinião e as garantias constitucionais. Quanto mais limitada for a
parte do poder, mais fácil é o seu controle, mais eficaz também o peso da
opinião. Isso pode parecer ridículo, mas Constant tem, por assim dizê-lo, fé na força das ideias e, consequentemente,
do escritor como eminência parda do
poder".
Desenvolverei
a seguir cinco itens, a saber: A - Benjamin Constant, defensor liberal da
França pós-revolucionária; B - O conceito de soberania popular limitada e a
crítica de Constant ao democratismo rousseauniano; C - O poder monárquico,
segundo Constant; D - A herança de Benjamin Constant na teoria da representação
de Silvestre Pinheiro Ferreira.
A – Constant,
defensor liberal da França pós-revolucionária.
O nosso
autor sempre fez profissão de fé liberal. Para ele, a defesa da liberdade
constituía um princípio inegociável. A propósito dessa convicção, escreveu em Princípios
de Política: "Afirmei, faz tempo, que na medida em que toda
Constituição é a garantia da liberdade de um povo, tudo quanto está dirigido à
liberdade é constitucional, e não o é quando a ignora; que estender uma
Constituição a tudo é multiplicar os perigos que a ameaçam rodeando-a de
escolhos; que na Constituição existem certos princípios fundamentais, que
autoridade nacional nenhuma pode alterar (...). Não será, pois, supérfluo
examinar a nossa Constituição, tanto no seu conjunto quanto nos seus detalhes,
posto que, referendada pelo sufrágio nacional, é passível de aperfeiçoamento.
Neste livro encontrar-se-ão, com frequência, não só as mesmas idéias, mas
também as mesmas palavras dos meus escritos anteriores. Daqui a pouco fará
vinte anos que me dedico aos temas políticos e sempre tenho professado as
mesmas opiniões e formulado os mesmos desejos. O que então pedia era a
liberdade individual, a liberdade de imprensa, o fim do arbítrio, o respeito
aos direitos de todos. Isso mesmo reclamo hoje com não menor zelo e mais
esperança" [Constant, 1970: 3-4].
O nosso
autor fazia-se porta-voz das teses básicas do liberalismo lockeano. Em primeiro
lugar, Constant destacava que a soberania radicava no povo ou na vontade geral.
É evidente que este reconhecimento implicava numa concepção limitada da
soberania, que não se poderia estender à interioridade das pessoas, ou de forma
contrária aos interesses dos indivíduos. No próximo item ilustrarei este
aspecto do pensamento de Constant. Em segundo lugar, o nosso pensador
considerava, de acordo às teses clássicas do liberalismo, que os indivíduos
possuíam direitos inalienáveis à vida, à liberdade e às posses, direitos esses
anteriores ao seu ingresso em sociedade. Justamente por isso ele achava que a
soberania, como expressão da vontade geral, deveria ser limitada, ou seja, em
consonância com a defesa desses direitos inalienáveis. Em terceiro lugar, o
nosso autor pensava que o interesse geral,
expressão do conjunto de interesses dos cidadãos, não era mais do que a
resultante da negociação entre os interesses individuais. Para ele, a
representação política, essencial para o funcionamento de um país moderno, era
a instituição que possibilitaria esse processo de negociação entre os
interesses individuais.
No seguinte
texto, tirado da sua obra Princípios de Política, ficava claro
o estreito entrelaçamento entre defesa dos interesses individuais dos cidadãos
e interesse geral. Vale a pena citar
completo o arrazoado do pensador francês, pois constitui uma das peças
clássicas da filosofia liberal na fundamentação do governo representativo:
"O que é o interesse geral senão a transação efetivada entre os interesses
particulares? O que é a representação geral senão a representação de todos os
interesses parciais, que devem transigir naquilo que lhes é comum? O interesse
geral é diferente, sem dúvida, dos interesses particulares, mas não lhes é
contrário. Fala-se sempre como se um ganhasse o que os outros perdem. O geral,
não é senão o resultado desses interesses combinados. Difere deles como um
corpo difere das suas partes. Os interesses individuais são aqueles que tangem
mais de perto os indivíduos. Os interesses dos distritos são aqueles que tangem
mais de perto estes. Ora, são os indivíduos e os distritos os que compõem o
corpo político. São, consequentemente, os interesses desses indivíduos e desses
distritos os que devem ser protegidos. Ao proteger todos eles, suprimir-se-á de
cada um deles aquilo que prejudica aos outros, disso resultando o verdadeiro
interesse público, que coincide com os interesses individuais, em virtude do
fato de que lhes foi tirada a possibilidade de se prejudicarem mutuamente. Cem
deputados nomeados por cem distritos de um Estado levam ao seio da assembleia
os interesses particulares, as preocupações locais de seus mandantes. Essa base
é útil para eles. Forçados a deliberarem juntos, logo tomam consciência dos
sacrifícios respectivos que são indispensáveis. Esforçam-se para diminuir a
extensão destes, e nisso reside uma das maiores vantagens da forma de sua
designação. A necessidade acaba sempre por uni-los numa transação comum, e
quanto mais fragmentadas tiverem sido as eleições, a representação adquire um
caráter mais geral. Se se invertesse a gradação natural, se se colocasse o
corpo eleitoral no cume do edifício, os nomeados por ele deveriam se pronunciar
no seu nome acerca de um interesse público cujos elementos desconhecem, ser-lhes-ia
solicitado conciliar interesses cujas necessidades foram ignoradas ou
desprezadas. Convém que o representante de um distrito atue como órgão do
mesmo, que não ceda nenhum dos seus direitos, reais ou imaginários, senão
depois de tê-los defendido. Convém que seja parcial na defesa dos interesses de
que é mandatário, porque se cada um é parcial nessa defesa, a parcialidade de
cada um, unida e conciliada, terá as vantagens da imparcialidade de todos"
[Constant, 1970: 46-47].
O pensador
francês considerava que a única forma de dar estabilidade política à França
pós-revolucionária consistiria em organizar a representação em duas Câmaras que
espelhassem os interesses da sociedade, uma Câmara alta, a dos Pares,
representativa da nobreza e que serviria de ponte com o trono, e uma Câmara
baixa, a dos interesses populares. De outro lado, o nosso autor cuidava de
imaginar, em detalhes, a forma em que deveria se proceder para organizar
territorialmente os distritos eleitorais, a fim de atrelar a representação às
circunscrições em que os cidadãos se sentissem representados. Boa parte da obra
Princípios
de Política é dedicada a esse debate. Constant defendia o voto direto,
porquanto somente a partir dele poderiam surgir autoridades com peso moral,
profundamente "enraizadas na opinião" [Constant, 1970: 42].
A grande
vantagem do sistema representativo, considerava Constant, consistia em que
possibilitava a aproximação entre as diferentes classes sociais, impedindo o
surgimento de odiosas oligarquias. A respeito, o nosso autor frisava que uma
das grandes vantagens do governo representativo consistia em que estabelecia
"relações frequentes entre as diversas classes da sociedade". Ora,
essa vantagem somente poderia ser conseguida mediante as eleições diretas.
"Esse tipo de eleição, frisava Constant, exige que as classes poderosas se
interessem constantemente pelas classes inferiores. Obriga à riqueza a
dissimular a sua arrogância e ao poder a moderar a sua ação, fazendo do
sufrágio do grupo menos opulento dos proprietários uma recompensa para a
justiça e para a bondade, um castigo para a opressão. Não se deve renunciar
gratuitamente a esse instrumento cotidiano de felicidade e de harmonia, nem
menosprezar tal causa de beneficência, que não sendo, no início, mais do que um
cálculo, logo se converte numa virtude habitual" [Constant, 1970: 48].
Em relação
à França pós-revolucionária, Constant registrava, com as seguintes palavras, a
precária situação em que ficou o país após o ciclo das conquistas napoleônicas:
"Numerosos exércitos levantam-se contra nós. Tanto os povos quanto os seus
chefes parecem cegos pelas suas lembranças. Os restos do espírito nacionalista
que os animava há dois anos tinge ainda com certo aspecto nacional o esforço
que deles se exige" [Constant, 1970: 4]. Ora, arrazoava o nosso autor, a
França só queria, nesse momento, se organizar pacificamente ao redor do monarca
por ela escolhido e com o governo que ela queria se dar, como tinham feito as
modernas nações europeias. "Hoje - afirmava - já não é a sua própria
pátria que esses povos defendem; atacam uma nação fechada nas suas fronteiras e
que não quer ultrapassá-las, uma nação que só reclama a sua independência
interior e o direito a se dar o seu próprio governo, como a Alemanha o tem
feito ao eleger Rodolfo de Habsburgo, Inglaterra ao chamar a casa de Brunswick,
Portugal ao dar a coroa ao duque de Bragança, Suécia ao eleger Gustavo Vasa;
numa palavra, da mesma forma que todas as nações europeias têm exercido (esse
direito) numa determinada época, geralmente a mais gloriosa da sua
história" [Constant, 1970: 4].
A França,
em que pese as aventuras absolutistas sofridas no passado, estava animada por
dois sentimentos: a liberdade e o ódio à subserviência a um poder estrangeiro.
A propósito, frisava Constant: "Todos nós sabemos que a liberdade não nos
pode vir do estrangeiro. Todos nós sabemos que qualquer governo que se
reorganize sob as suas bandeiras, opor-se-á aos nossos interesses e aos nossos
direitos". Assim como nas modernas sociedades a vida política é
constituída pelo confronto entre interesses individuais, do qual deve surgir a
negociação entre eles e a identificação do bem público, de maneira semelhante a
vida entre as nações é pautada pelo confronto entre os interesses delas, não
apenas pelos princípios que estão em jogo. Em relação a este ponto, escrevia:
"Ontem os nossos inimigos só faziam a guerra aos nossos princípios e hoje
a fazem aos nossos interesses, aos que o tempo, o hábito e inúmeras transações
têm identificado com os nossos princípios (...). Mas a experiência realizou-se,
os princípios são opostos, os interesses são contrários, os laços
romperam-se" [Constant, 1970: 5].
Parte da
animosidade das nações europeias contra a França, no sentir de Constant,
decorria da profunda alteração que a Revolução de 1789 ensejou nos hábitos
políticos, fazendo afundar o Ancien
Régime, cujas sombras ainda pairavam nos céus de algumas delas. A respeito
desse aspecto, escrevia: "Na verdade, os nossos inimigos têm pouca
memória. A linguagem que de novo utilizam derrubou os seus tronos há vinte e
três anos. Então como agora, atacavam-nos porque queríamos ter um governo
nosso, porque tínhamos libertado do dízimo o camponês, da intolerância o
protestante, da censura o pensamento, da prisão e do exílio arbitrários o
cidadão, dos ultrajes dos privilegiados o plebeu" [Constant, 1970: 5]. O nosso pensador deixava clara a sua
inspiração liberal, mas ao mesmo tempo destacava-se como um patriota, defensor
dos interesses de seu país no contexto internacional. Patriotismo e
liberalismo, duas notas que aparecem no ideário deste precursor dos doutrinários,
e que serão também leitmotivs de
doutrinários como Guizot e dos liberais que prolongaram essa tradição de
reflexão-ação na cultura política francesa, como Tocqueville e Aron.
B – O
conceito de soberania popular limitada e a crítica de Constant ao democratismo
de Rousseau.
Constant
pensava que só havia dois poderes: a força (ilegítimo) e a vontade geral
(legítimo). Era fundamental conceber de forma correta a natureza desta última,
a fim de determinar a abrangência da mesma. Se isso não fosse feito, a
tentativa de defesa da liberdade poderia simplesmente suprimi-la. A propósito, escrevia Constant: "O
reconhecimento abstrato da soberania do povo não aumenta em nada a soma de
liberdade dos indivíduos, e se lhe for atribuída uma abrangência indevida, pode-se
perder a liberdade apesar e contra esse mesmo princípio" [Constant, 1970:
8].
A
delimitação da soberania, pensava Constant, não podia ficar nas mãos dos que
exercem o poder, pois a tendência de todo governo constituído é a sua autopreservação.
A soberania, portanto, deve ser limitada desde fora do poder pela própria
sociedade. Ora, a soberania jamais pode ser entendida como ilimitada. Esse era,
para o nosso pensador, o grande defeito dos que a criticavam no Ancien Régime, identificando-a com o
absolutismo monárquico. Foram atacados os reis, mas não a fonte do despotismo,
que radicava na concepção inadequada de soberania, como algo sem limites.
Assim, o absolutismo de um ou de poucos foi substituído pelo de muitos, sem que
mudasse a forma de se entender a soberania. O nosso autor deixou clara a forma
limitada em que entendia a soberania, com as seguintes palavras: "Numa
sociedade fundada na soberania do povo, é evidente que nenhum indivíduo, classe
nenhuma, tem o direito a submeter o resto à sua vontade particular; mas é falso
que a sociedade, no seu conjunto, possua sobre os membros uma soberania sem
limites" [Constant, 1970: 9].
A soberania
deve ser limitada em si mesma. Ela abarca parcialmente o ser dos cidadãos,
ficando do lado de fora o que diga relação à independência e à existência do
indivíduo. Ultrapassar esse limite torna a soberania ilegítima. Nem interessa
se esse abuso é cometido por uma pessoa, um grupo, ou a maioria dos homens na
sociedade. Será sempre algo ilegítimo. A respeito, frisava Constant: "O
assentimento da maioria não basta em todos os casos para legitimar os seus
atos; há atos que é impossível sancionar. Quando uma autoridade pratica atos
semelhantes, não importa a fonte da que pretenda provir, não importa que se
chame indivíduo ou nação. Faltar-lhe-ia legitimidade, mesmo se tratando de toda
a nação e havendo um único cidadão oprimido" [Constant, 1970: 10].
O grosseiro
erro de Rousseau consistiu, frisava Constant, em ter imaginado uma Vontade Geral como poder ilimitado, que
terminava sacrificando, em nome da democracia, a liberdade que pretendera
defender. O filósofo de Genebra ignorou esta simples verdade: "o
assentimento da maioria não basta (...) para legitimar os seus atos". Vale
a pena citar completa a crítica efetivada por Constant ao democratismo
rousseauniano, pois ela servirá de base para as que serão levantadas no seio do
liberalismo francês, no decorrer do século XIX (com Guizot, Tocqueville e
outros) e ainda no século XX (com Aron, Peyreffitte, Revel, etc.).
Eis o teor
da crítica de Constant: "Rousseau ignorou esta verdade, e o seu erro fez
do seu Contrato social, tão frequentemente invocado em prol da
liberdade, o instrumento mais terrível de todos os gêneros de despotismo.
Definiu o contrato celebrado entre a sociedade e os seus membros como a
alienação completa e sem reservas de cada indivíduo com todos os seus direitos
em mãos da comunidade. Para nos tranquilizar acerca das consequências do
abandono tão absoluto de todas as partes da nossa existência em benefício de um
ser abstrato, diz-nos que o soberano, ou seja, o corpo social, não pode
prejudicar nem o conjunto dos seus membros, nem
cada um deles em particular; que ao se entregar cada um por completo, a
condição é igual para todos, e que ninguém tem interesse em torná-la onerosa
aos demais; que ao se dar cada um a todos, não se dá a ninguém; que cada um
adquire sobre todos os associados os mesmos direitos que ele lhes entrega, e
ganha o equivalente de tudo quanto perde, com mais poder para conservar o que
tem. Mas esquece que todos esses atributos preservadores que confere ao ser
abstrato que chama de soberano, resultam de que esse ser se compõe de todos os
indivíduos sem exceção. Ora, tão logo o soberano tiver de fazer uso do poder
que possui, ou seja, tão logo deva proceder a uma organização prática da
autoridade, não podendo o soberano exercê-la por si próprio, delega-a, e todos
esses atributos desaparecem. Ao estar necessariamente, pela sua própria vontade
ou à força, a ação que se executa em nome de todos à disposição de um só ou de
alguns, resulta que, ao se dar um a todos, não é verdade que não se dê a
ninguém; pelo contrário, dá-se aos que agem em nome de todos. Daí que, ao se
dar por completo, não se coloca numa condição igual para todos, já que alguns
se aproveitam exclusivamente do sacrifício do resto. Não é verdade que ninguém
tenha interesse em tornar onerosa a condição aos demais, posto que há
associados que estão por fora da condição comum. Não é verdade que todos os
associados adquirem os mesmos direitos que cedem; nem todos ganham o
equivalente do que perdem e o resultado daquilo que sacrificam é, ou pode ser,
o estabelecimento de uma força que lhes tira o que têm" [Constant, 1970:
10-11].
O próprio
Rousseau - frisa Constant - ficou tão impressionado com as consequências
decorrentes do seu conceito de soberania absoluta, que decidiu criar um
mecanismo para tornar impossível o exercício da mesma. Fez isso quando declarou
que "a soberania não podia ser alienada, nem delegada, nem
representada" [Constant, 1970: 11], abrindo assim caminho à
ingovernabilidade que tem afetado sempre aos sistemas alicerçados na ideologia
rousseauniana.
A defesa do
absolutismo por Thomas Hobbes, em meados do século XVII, antecipou a tese de
Rousseau sobre a soberania absoluta. Frisa a respeito Constant: "Hobbes, o
homem que erigiu de modo mais inteligente o despotismo como sistema,
apressou-se em reconhecer o caráter ilimitado da soberania, a fim de defender a
legitimidade do governo absoluto de um só. A soberania, diz Hobbes, é absoluta;
essa verdade sempre foi reconhecida, inclusive por aqueles que induziram à
sedição ou provocaram guerras civis. A sua intenção não era aniquilar a
soberania, mas transferir o seu exercício para outras mãos" [Constant, 1970:
11].
Os
espíritos absolutistas entendem os conceitos da política de forma a eles
traduzirem o seu ódio à liberdade e à limitação do poder. Para eles "a
democracia é uma soberania absoluta em mãos de todos; a aristocracia, uma
soberania absoluta em mãos de alguns; a monarquia, uma soberania absoluta em
mãos de um só. O povo pôde se desprender dessa soberania absoluta em favor de
um monarca, que então se converteu no seu legítimo possuidor" [Constant,
1970: 11-12]. O nosso autor resumiu em dois pontos as consequências dos
princípios por ele enunciados em relação à soberania.
Em primeiro
lugar, a soberania do povo não é ilimitada. Ela está delimitada pelo marco da
justiça e dos direitos dos indivíduos. A vontade de um povo não pode fazer com
que aquilo que é justo vire injusto e vice-versa.
Em segundo
lugar, pode-se afirmar que a demonstração clara de certos princípios constitui
a sua melhor garantia de aceitação universal. Ora, se reconhecermos que a
soberania tem limites, ninguém, em sã consciência, ousará reivindicar o poder
ilimitado. A história prova que "os atentados mais monstruosos do
despotismo de um só deveram-se, com frequência, à doutrina do poder ilimitado
de todos" [Constant, 1970: 17].
No que
tange à natureza do poder numa monarquia constitucional, Constant destacava que
até sua época reconheciam-se três poderes nas organizações políticas. Mas ele
considerava que estes deveriam ser cinco, a saber: o poder real, o executivo, o
poder representativo da continuidade, o poder representativo da opinião e o
judiciário.
Onde
residiriam esses poderes? Constant explicava esse ponto da seguinte forma:
"O poder representativo da continuidade reside numa assembleia
hereditária; o poder representativo da opinião, numa assembleia eletiva; o
poder executivo é confiado aos ministros; o poder judiciário, aos tribunais. Os
dois primeiros poderes fazem a lei; o terceiro providencia a sua execução
legal; o quarto aplica-a aos casos particulares. O poder real está no meio, mas
acima dos outros quatro, sendo, ao mesmo tempo, autoridade superior e
intermediária, sem interesse em desfazer o equilíbrio, mas, pelo contrário, com
o máximo interesse em conservá-lo" [Constant, 1970: 19-20].
Poderíamos
terminar a exposição deste item destacando um aspecto dialético no pensamento
de Constant sobre a soberania: esta deve contemplar, ao mesmo tempo, os
indivíduos e a coletividade, a fim de estabelecer um liame entre a defesa dos
interesses individuais e o interesse público. Difícil conciliação. Mas essa
constitui a essência, para Constant, da vida democrática. Em relação a este
aspecto, escreve Todorov: "Constant, da sua parte, endereça ao poder uma
dupla exigência: ele deve ser legitimado tanto pela sua instituição como pelo
seu exercício. O povo permanecerá soberano; qualquer outra alternativa levaria
a se submeter simplesmente à força; mas o seu poder será limitado: deve se
deter nas fronteiras do indivíduo que será, no seu foro íntimo, o único
soberano. Uma parte da sua existência submeter-se-á ao poder público; outra
permanecerá livre. Não se pode pois regulamentar a vida em sociedade em nome de
um princípio único; o bem-estar da coletividade não coincide forçosamente com o
do indivíduo. O melhor regime não se satisfaz somente nem com a democracia, nem
com o princípio liberal que exige a proteção do indivíduo. Ele deve reunir
essas duas condições: essa é pois a democracia liberal. O equilíbrio é difícil,
e é por isso que o pensamento de Constant permanece sempre atual: o Estado
moderno mesmo é constantemente tentado a usurpar a liberdade dos
indivíduos" [Todorov, 1997b: 7].
C – O poder
monárquico segundo Constant.
Para
Constant, era necessário que houvesse, na estruturação do Estado, um poder neutro. A razão para postular esse
poder radicava na imperfeição humana. A propósito, frisava: "Dado que os
homens não obedecem sempre ao seu interesse bem compreendido, é necessário ter
a precaução de que o chefe do Estado não possa substituir na sua ação os outros
poderes. Nisso radica a diferença entre a monarquia absoluta e a
constitucional" [Constant, 1970: 20].
Ora,
seguindo a lição do seu mestre Jacques Necker (1732-1804), Constant considerava
que essa função de caráter moderador deveria corresponder ao monarca. "A
monarquia constitucional tem esse poder neutral na pessoa do chefe do Estado. O
verdadeiro interesse de tal chefia não consiste, de maneira nenhuma, em que um
dos poderes destrua o outro, mas em que todos se apoiem, se entendam e ajam de
acordo" [Constant, 1970: 20]. Levando em consideração a prática da
monarquia constitucional na Inglaterra, Constant achava que a função real era,
nesse contexto, eminentemente moderadora. A respeito escrevia: "Na
Inglaterra, não pode se fazer lei nenhuma sem o concurso da câmara hereditária
e da câmara eletiva. Não pode ser executado ato nenhum sem a assinatura de um
ministro, nem ser proferida sentença nenhuma sem o concurso exclusivo de
tribunais independentes. Mas uma vez que se tomou a precaução de que falo, vejamos
de que forma a Constituição inglesa faz uso do poder real para pôr fim a toda
luta perigosa e restabelecer a harmonia entre os demais poderes. Se a ação do
poder executivo resultar perigosa, o rei destitui os ministros. Se a da câmara
hereditária resultar funesta, o rei imprime-lhe uma nova tendência mediante a
instituição de novos pares. Se a da câmara eletiva se apresentar ameaçadora, o
rei faz uso de seu veto, ou dissolve
essa câmara. Enfim, se a própria atividade do poder judiciário se mostrar acintosa,
pelo fato de aplicar a atos individuais penas gerais demasiadamente duras, o
rei a modera mediante o exercício de seu direito de graça" [Constant,
1970: 20].
O nosso
autor considerava que o equilíbrio dado pela moderação exercida a partir do
monarca constitucional não se daria no seio de uma República, pois não haveria,
aqui, clara distinção entre as esferas do poder supremo e daquele que exerce as
funções executivas. "Um poder republicano que se renova periodicamente,
frisava, não é um ser aparte, não
impressiona em nada a imaginação, não tem direito à indulgência para os seus
erros, já que buscou o posto que ocupa e não tem nada mais precioso que
defender do que a sua autoridade, comprometida quando é atacado o seu
ministério, integrado por homens como ele e dos que sempre é solidário"
[Constant, 1970: 25]. Somente a monarquia constitucional garantiria a presença
do poder neutro, que exerceria as
funções moderadoras.
Eis a forma
em que o pensador completava o quadro desse poder: "A monarquia constitucional
oferece-nos, como já frisei, esse poder neutro, tão necessário para o exercício
normal da liberdade. O rei, num país livre, é um ser aparte, superior à
diversidade de opiniões, sem outro interesse que a manutenção da ordem e da
liberdade, sem poder jamais cair na condição comum, inacessível, portanto, a
todas as paixões que tal condição faz nascer e a todas as que a perspectiva de
a ela voltar alimenta no coração dos agentes que estão investidos de uma
potestade passageira. Essa augusta prerrogativa da realeza deve infundir, no
espírito do monarca, uma calma e, na sua alma, um sentimento de tranquilidade,
que não podem ser patrimônio de nenhum indivíduo situado numa posição inferior.
O monarca flutua, por assim dizer, por cima das agitações humanas e constitui
um grande acerto da organização política ter criado, no seio mesmo dos
dissentimentos sem os quais nenhuma liberdade é possível, uma esfera inviolável
de segurança, de majestade, de imparcialidade, que permite a eclosão desses
dissentimentos sem nenhum perigo, desde que não excedam certos limites, e sempre
que, quando aquela se anuncia, lhe ponha término por meios legais,
constitucionais e não arbitrários. Todo esse imenso benefício perde-se se o
poder do monarca for rebaixado ao nível do poder executivo, ou se for elevado
este ao nível do monarca" [Constant, 1970: 22].
Ficavam
superadas na instituição da monarquia como poder neutro, no sentir de Constant,
as velhas lembranças do rei-administrador de justiça, sentado debaixo de uma
árvore e rodeado dos seus súditos, que enxergavam nele uma espécie de enviado
dos deuses. A instituição régia, na prática da monarquia constitucional, se bem
que delimitou os poderes do soberano, deu-lhe, no entanto, um perfil de
salvaguarda da estabilidade política. A propósito, escrevia o nosso pensador:
"Muitas coisas que admiramos e que nos parecem impressionantes em outras
épocas são agora inadmissíveis. Representemos os reis da França fazendo justiça
ao pé de um carvalho; esse espetáculo nos emocionará e reverenciaremos esse
exercício augusto e simples de uma autoridade paternal. Mas, hoje, o que
acharíamos de um julgamento efetivado por um rei, sem o concurso dos tribunais?
A violação de todos os princípios, a confusão de todos os poderes, a destruição
da independência judicial, tão energicamente querida por todas as classes. Não
se constrói uma monarquia constitucional com lembranças e com poesia"
[Constant, 1970: 30].
A prática
da monarquia constitucional tirou do soberano a pecha de ser um poder
arbitrário e o revestiu, em compensação, de uma auréola moral que se sobrepõe à
luta rasteira pelo poder. Se os reis perderam funções políticas, conservaram,
no entanto, um acúmulo de funções que lhes assegura o respeito da sociedade, ao
torná-los a garantia viva da estabilidade das instituições.
Eis a forma
em que Constant elencava as prerrogativas régias na sua concepção liberal
moderada: "Numa Constituição livre restam aos monarcas nobres, formosas,
sublimes prerrogativas. Pertence-lhes o direito de conceder graça, direito de
uma natureza quase divina, que repara os erros da justiça humana ou os seus
rigores demasiadamente inflexíveis, que também são erros; pertence-lhes o
direito de investir os cidadãos distintos de uma ilustração perdurável,
guindando-os a essa magistratura hereditária que reúne o brilho do passado e a
solenidade das mais altas funções políticas; pertence-lhes o direito de nomear
os órgãos das leis e de garantir à sociedade o gozo da ordem pública e a
inocência da segurança; pertence-lhes o direito de dissolver as assembleias
representativas e preservar, destarte, a nação dos desvios dos seus mandatários, convocando novas eleições;
pertence-lhes a nomeação dos ministros, o que proporciona ao monarca a gratidão
nacional quando os ministros se ocuparem dignamente da missão que lhes foi
confiada; pertence-lhes, enfim, a distribuição de graças, favores, recompensas;
a prerrogativa de pagar com um olhar ou com uma palavra os serviços prestados
ao Estado, prerrogativa que dá à monarquia um tesouro inesgotável de opinião,
que faz de cada amor próprio um servidor e de cada ambição um tributário. Eis
aí certamente uma ampla carreira, atribuições imponentes, uma grande e nobre
missão; seriam maus e pérfidos os conselheiros que apresentassem perante um
monarca constitucional, como objeto de desejo ou de nostalgia, essa potestade
despótica sem limites, ou melhor, sem freio, equívoca porque ilimitada,
precária porque violenta e que pesaria de modo igualmente funesto sobre o
príncipe, a quem não pode menos de desviar, que sobre o povo, ao qual só pode
atormentar e corromper" [Constant, 1970: 30-31].
D - A herança de
Benjamin Constant na teoria da representação de Silvestre Pinheiro Ferreira
(1769-1846).
A doutrina política
de Constant de Rebecque foi a base sobre a qual o máximo expoente do
liberalismo de início do século XIX entre nós, Silvestre Pinheiro Ferreira,
deitou os alicerces da teoria da monarquia constitucional. Decorreu da
concepção do pensador francês a teoria ferreiriana do poder conservador, que, posta em prática pela Constituição Imperial
de 1824, transformou-se na instituição do Poder Moderador.
Pretendo, em
primeiro lugar, mostrar de que forma Silvestre Pinheiro Ferreira deitou os
alicerces teóricos da prática do governo representativo na nossa tradição
política. Em segundo lugar, é meu propósito ilustrar de que forma a
Constituição Imperial de 1824 constituiu a passagem segura da Monarquia
Absoluta para a Constitucional, preservando as instituições do Governo
Representativo, num contexto jurídico e político (decorrente do
patrimonialismo), em que se fazia necessário manter o centripetismo do Estado
ao redor do Poder Moderador, mitigado com a prática do parlamentarismo, a fim
de evitar os extremos do absolutismo e do democratismo. Este binômio, aliás, fez
implodir o mundo hispano-americano em múltiplas Repúblicas submetidas aos
azares do caudilhismo.
Serão desenvolvidos
três itens: a - Tradição libertária X tradição patrimonial na cultura
luso-brasileira. b - A contribuição de Silvestre Pinheiro Ferreira. c - A Carta
de 1824 e a prática do parlamentarismo.
Destacarei,
notadamente nos itens b e c, a forma em que Pinheiro Ferreira e
os estadistas do Império inspiraram-se em Benjamin Constant de Rebecque, para pensarem
e darem forma às instituições do governo representativo no Império, no contexto
da monarquia constitucional adotada por eles.
a - Tradição libertária X
tradição patrimonial na cultura luso-brasileira
Ficou claro, a
partir das análises de Max Weber (1860-1920), que os Estados modernos não
surgiram de forma unívoca, mas que a sua estruturação decorreu de um duplo
modelo: contratualista e patrimonial.
O primeiro modelo
consolidou-se, de acordo com Weber, ali onde houve uma experiência feudal completa:
na Europa Ocidental e nas Ilhas Britânicas. O segundo constituiu o arquétipo
que pautou o surgimento e estruturação do Estado, ali onde a experiência feudal
foi incompleta, ou substituída por práticas diretoriais oriundas do despotismo
oriental. Este foi o caso específico dos países que se situam nos confins da
Ilha européia e que, por isso mesmo, sofreram, ao longo da Idade Média, a
influência das invasões provenientes do extremo e do médio oriente. Os casos
paradigmáticos desta versão foram constituídos
pela Rússia (que sofreu as invasões da Horda Dourada de Gengis Khan) e pela
Península Ibérica (que entre 710 e 1490 ficou submetida, em boa extensão do seu
território, à dominação muçulmana).
O modelo
contratualista foi caracterizado por Weber [Cf. 1944, I: 226-227; 235-236;
240-244; 267-272; 276-278. Weber, 1944, IV: 131-251] como aquele em que o
Estado surge a partir da negociação e do pacto entre as classes que lutam pela
posse do poder. Esse modelo vingou, como já foi anotado, na Europa Ocidental e
nas Ilhas Britânicas, tendo dado ensejo, no século XX, à prática do
parlamentarismo e ao aparecimento, na administração pública, de uma burocracia
racional. Foram influenciados por esse modelo os países que, embora não tendo
experimentado o feudalismo de vassalagem, sofreram no entanto a influência do
liberalismo anglo-saxão, como Estados Unidos, Canadá e outros pertencentes à Commonwealth.
Já o modelo
patrimonial foi caracterizado por Weber como aquele em que o Estado surge a
partir da hipertrofia de um poder patriarcal, que estende a sua dominação
doméstica sobre territórios, pessoas e coisas extrapatrimoniais, que são
administrados como se fossem propriedade familiar (patrimonial) do governante.
Weber, e também Karl Wittfogel (1896-1989) [cf. Wittfogel, 1977] estenderam,
nos seus estudos, a vigência do modelo de Estado patrimonial para além das
fronteiras do mundo moderno, arrolando sob esse conceito-tipo os antigos
Estados hidráulicos (o Egito dos Faraós, o Império chinês, notadamente sob a
dinastia Liao, os Califados árabes, os Impérios pré-colombianos inca e asteca,
etc.).
A caraterística
fundamental das formações políticas patrimoniais é, segundo Wittfogel, o fato
de constituírem Estados mais fortes do que a sociedade. Nelas, o poder político
não é entendido como instância pública, como busca do bonum commune, como res publica, mas como res privata ou coisa nossa.
Há uma confusão radical entre público e privado. Weber e também Wittfogel
anotaram outras caraterísticas típicas dos Estados Patrimoniais: neles surge,
como instância auxiliar do soberano, um
estamento burocrático pré-racional, porquanto não pautado por regras
impessoais, mas alicerçado na fidelidade pessoal. De outro lado, a lei não
exprime uma ordenação que vale para toda a sociedade, mas apenas constitui
casuísmo a ser utilizado pela autoridade central a seu bel prazer. A sociedade,
outrossim, comporta-se de forma passiva e insolidária, sendo a única força a
autoridade do soberano absoluto, que é invocada para solucionar qualquer
pendência. A religião, que na Europa feudal constituiu instância de poder
espiritual irredutível ao imperium,
no contexto patrimonial passa a ser cooptada pelo poder temporal.
O Estado português,
já desde a Revolução de Avis (1385) [Cf. Faoro, 1958: I, 39-72] consolidou-se
como Estado patrimonial. Alexandre Herculano [1914: I] destacou a ausência de
feudalismo em Portugal e a forma em que os príncipes cristãos, que venceram os
sarracenos, passaram a administrar o Reino como propriedade particular, tendo
sido, nesse ponto, contaminados pela cultura política muçulmana. Lúcio de
Azevedo (1855-1933), na sua obra Épocas de Portugal econômico
[Azevedo, 1978], identificou o Reino de Portugal como empresa do Rei, que
presidia inicialmente uma monarquia agrária, para se tornar depois
"Mercador de mercadores". O mercantilismo da empresa ultramarina
esteve indissociavelmente ligado à caraterística centrípeta e privatizante do
exercício do poder monárquico. Raymundo Faoro, no seu clássico estudo de 1958,
intitulado Os donos do poder,
analisou detalhadamente a forma em que se consolidou o estamento burocrático da
monarquia portuguesa, alicerçado esse processo na fidelidade pessoal ao
monarca, na progressiva substituição da nobreza de sangue pela de funcionários
públicos, na submissão da burguesia à empresa do Rei, bem como na incorporação
do direito romano, a partir da ação decisiva do Mestre de Avis. Oliveira
Vianna, no magistral estudo intitulado Introdução à história social da economia
pré-capitalista no Brasil [Vianna, 1958], mostrou claramente que o comportamento da nobreza decadente
portuguesa pautou-se, a partir dos "fumos da Índia", pelos critérios
da improdutividade e do consumo suntuário, ensejando assim a forte tendência
orçamentívora que a caracterizou.
O Brasil herdou de
Portugal a estrutura patrimonial do Estado. Esse fato tem sido estudado, além
de Raymundo Faoro (que foi o pioneiro, no meio brasileiro, nesse tipo de
análise), por Simon Schwartzman [1982], Antônio Paim [1978], Fernando
Uricoechea [1978], Wanderley Guilherme dos Santos [1978] e José Osvaldo de
Meira Penna [1988].
Mas se o Brasil
herdou de Portugal a estrutura e a tradição patrimonial do Estado, herdou
também a luta que se travou, ao longo de séculos, no seio das sociedades
ibéricas, entre o estatismo centrípeto e a tradição consuetudinária e
libertária do antigo direito visigótico. Weber, aliás, já tinha chamado a
atenção para o fato de que sociedades presididas por Estados patrimoniais
pudessem abarcar, no seu seio, tradições contratualistas, que entrariam em
atrito com o caráter centrípeto das instituições políticas e que, dinamizadas
em virtude de processos endógenos e exógenos, poderiam fazê-las progredir até
formas de tipo contratualista. A evolução de Espanha e Portugal nas últimas
três décadas do século XX corresponderia a um processo desse tipo.
Convém destacar que
Weber reconhece também a possibilidade de involução de sociedades de caráter
contratualista para sociedades de tipo patrimonial, em virtude do predomínio da
tendência autocrática e do esfacelamento da solidariedade social. Esse seria o
caso ocorrido na Rússia, a partir da adoção dos processos diretoriais, de
origem mongólica, pelo Principado de Moscou (no século XIII) [cf. Thambs, 1979:
8] .
Essas duas
tradições, a patrimonial-tuteladora e a libertária, são bem antigas. A
primeira, a patrimonial [cf. Vélez, 1984: 81-136], deita raízes, como já foi
explicado, no duradouro e profundo influxo que exerceu, na Península Ibérica, a
cultura muçulmana, com a sua tendência centrípeta e paternalista em política. A
dominação dos Califados árabes, entre 710 e 1490, certamente foi responsável
pela incorporação às práticas administrativas dessa carga de nepotismo, de
clientelismo, de indiferenciação entre público e privado, que vieram a
florescer na América Latina no conhecido fenômeno do caudilhismo.
Trata-se,
evidentemente, de uma tradição cultural paradoxal, que de um lado renovou a intelligentsia ibérica com o legado das
Universidades de Córdova e Toledo, nos brumosos confins da Idade Média, mas
que, no terreno político, revelou-se claramente despótica, até o ponto de
pretender cooptar a variável religiosa como raison
d'État do absolutismo. É o que aconteceu na Espanha e em Portugal sob a
dominação dos Áustrias, ao ensejo da tutela exercida sobre o catolicismo,
considerado pelos soberanos espanhóis como religião de cruzada, destinada a
reforçar o Império no contexto da Contra-Reforma, fato que levou o pensador
português Fidelino de Figueiredo a caracterizar as políticas estatizantes de
Carlos V e Filipe II como instauradoras de uma "alfândega cultural"
[cf. Figueiredo, 1959].
A tradição
libertária é, contudo, mais antiga e se filia ao direito consuetudinário de
origem visigótica, que veio a florescer nas "cartas de foral" e na
vida municipal, tão fortemente enraizada nas práticas políticas ibéricas. Essa
é a tradição que permitiu o renascimento das instituições do governo
representativo e a prática da democracia parlamentar na Espanha e em Portugal,
no final do século XX, de forma a se integrarem esses países plenamente à
Comunidade Européia. Testemunho bastante antigo dessa tradição libertária é
dado pelos Foros Aragoneses, na fórmula recitada pelo justiça-mor no ato de
coroação do Rei: "Nós, que valemos cada um quanto vós e que juntos valemos
mais do que vós, vos fazemos nosso Rei e Senhor, com a condição de que
conserveis nossos foros e liberdades, ou se não, não!" [Jaramillo Uribe,
1974: 104, nota].
Foi essa tradição
libertária que inspirou os príncipes cristãos, no início do século VIII, na
luta da reconquista, que se estendeu até
o final do século XV. Apesar de que os cristãos tivessem se deixado contaminar
pela cultura política muçulmana, conforme foi referido acima, no entanto
preservaram-se, nas práticas políticas ibéricas, elementos fundamentais da
tradição libertária. Esse núcleo poderia ser identificado com a valorização das
Câmaras Municipais, cuja origem remonta, segundo Martínez Marina, às Cortes
medievais. "O autenticamente tradicional em Castela -- escreve Ots
Capdequí [1968: 10] sintetizando o pensamento liberal de Martínez Marina -- tinha
sido a existência de um regime político que descansava igualmente na autoridade
dos monarcas e na pujança autônoma das cidades, representadas nas altas esferas
do governo pelos seus procuradores, que tiveram parte ativa e destacada nas
reuniões das Cortes. O contrário dessas boas tradições democráticas foram os
ideais absolutistas, exaltadores sem freio do poder pessoal dos Reis, que
introduzimos na Espanha, como em outros povos da Europa Ocidental, com a adoção
do Direito Romano Justiniano, e que chegaram a culminar no governo político da
nação, com a entronização infeliz das dinastias estrangeiras". A tradição
municipalista foi portadora do ideal libertário e contribuiu eficientemente, ao
longo dos séculos, para mitigar a tradição patrimonialista.
Tão forte foi a
presença da tradição liberal municipalista na mentalidade política ibérica, que
chegou a inspirar um dos mais importantes teóricos da Segunda Escolástica, o
jesuíta Francisco Suárez que, na sua obra De legibus ac de Deo legislatore,
publicada em 1613, defendia a idéia da soberania popular [cf. Gallegos
Rocafull, 1946: 37-56]. Com razão escreve o historiador colombiano Jaime
Jaramillo Uribe, se referindo à repercussão dessas idéias no meio
ibero-americano: "Não era (...) absolutamente necessário o contato com as
correntes do pensamento francês e inglês do século XVIII, para que fossem
divulgadas, nas últimas gerações neogranadinas da época colonial, as idéias de
soberania popular, de poder limitado por normas jurídicas e de livre eleição
dos governantes pelo povo, porque essas idéias eram patrimônio comum do
pensamento escolástico espanhol e da escola do direito natural, ambos estudados
nas Universidades coloniais desde o século XVII. De tal espírito estava
impregnada a geração dos precursores da Independência -- inclusive a educação
de Nariño, o tradutor dos Direitos do Homem -- e ainda na
primeira geração republicana" [Jaramillo Uribe, 1974: 103-104].
Em relação à
presença, no meio colonial brasileiro, da tradição municipalista ibérica,
escreveu a historiadora Mury Lydia [1973: 46]: "Entre as instituições
dignas de menção, encontram-se as câmaras
municipais. Herdeiras das vereanças ibéricas e dos parlamentos municipais e
comunas europeus, vieram manter aqui a noção viva da representação popular e da
ascendência da deliberação no processo político -- bem como a da decisão
pluripessoal no jurídico (...). Já se observou, com razão, que as atribuições
oficias daquelas câmaras superavam, mesmo, às das municipalidades
contemporâneas, pois inclusive enfeixavam competências hoje correspondentes às
do Ministério Público. Realmente, certas experiências, então trazidas e
mantidas, como a da eleição de juízes --
indireta e oligárquica, embora --, foram muito interessantes e a situação era
suficiente para poder-se dizer, hoje, que o município colonial foi embrião de
nossas estruturas políticas e sociais posteriores".
A Constituição
Política do Império do Brasil, de 25 de março de 1824, ao definir no Título I,
artigo 3º que "O (...) governo é monárquico hereditário, constitucional e
representativo" [Brasil, 1948: 35], afastou-se da feição patrimonial do
Estado e se aproximou da tradição libertária, tendo dado ensejo à prática do
parlamentarismo. Os fundamentos filosóficos dessa mudança estão na obra de
Silvestre Pinheiro Ferreira, como será ilustrado a seguir.
b - A contribuição de Silvestre Pinheiro Ferreira.
A grande
contribuição de Pinheiro Ferreira consistiu em ter deitado as bases que
possibilitaram o trânsito pacífico, no Brasil, da monarquia absoluta para a
constitucional, o que correspondeu à mitigação da tradição
patrimonial-tuteladora pela libertária-contratualista.
Antônio Paim
sintetizou da seguinte forma a atuação do pensador português: "Com a
Revolução Constitucionalista do Porto e sua repercussão no Brasil, decide o
Monarca entregar a chefia de seu governo a Silvestre Pinheiro Ferreira, em
fevereiro de 1821, que nele acumula as pastas de Exterior e de Guerra. Nessa
condição regressa com o Monarca a Portugal, afastando-se do governo em 1823, em
vista dos propósitos absolutistas que logo se configurariam. Coube, portanto,
ao ilustre pensador a espinhosa missão de efetuar o trânsito da monarquia
absoluta para a constitucional, e em meio a clima de todo desfavorável, lutando
contra os que apenas ganhavam tempo e somente desejavam a volta da situação
antiga e, simultaneamente, cuidando de isolar o radicalismo" [Paim, 1983:
55].
Analisarei a
concepção política de Silvestre Pinheiro Ferreira, me detendo no que tange à
sua teoria da representação. Antes, contudo, convém salientar com Vicente
Barretto que a sua obra "constituiu marco fundamental na história do
pensamento político português e brasileiro. O estadista e pensador português
desenvolveu de forma sistemática, pela primeira vez em língua portuguesa, a
teoria do Estado liberal constitucional. Encontramos nos seus diversos livros a
preocupação de construir uma teoria política que, antes da Independência do
Brasil em 1822, servisse de fonte inspiradora para a reforma das instituições
da monarquia luso-brasileira e, depois da separação do Brasil de Portugal,
constituísse o modelo para a organização política de ambos os países"
[Barretto, 1976: 11].
Em dez itens
poderíamos resumir a concepção liberal moderada de Silvestre Pinheiro Ferreira,
que buscava garantir o exercício da liberdade, num contexto jurídico que
permitisse a organização constitucional do Estado [cf. Paim, 1979: 11-17;
Barretto, 1976: 11-18]:
Base moral do pacto
político. - Pinheiro Ferreira retomou a tese, defendida por
John Locke no seu Segundo Tratado sobre o governo civil (1689) [cf. Locke, 1965],
da antecedência dos direitos naturais individuais aos direitos da sociedade.
Esta surgiu, precisamente, para garantir os direitos naturais à vida, à
liberdade e às posses. O ponto de partida do pensador português era, portanto,
nitidamente liberal e haveria de informar toda a sua restante concepção
política.
Finalidade imediata
da sua teoria política: reestruturar a monarquia para salvá-la e fortalecê-la.- Pinheiro
Ferreira, em face dos extremos do
democratismo jacobino (que conduziu à Revolução e ao Terror, na França), e do
absolutismo monárquico (que tanto sangue fez verter na Península Ibérica),
optou decididamente pela hegemonia do Estado entre os demais grupos sociais e
pela sua reformulação no contexto da Monarquia Constitucional, conforme tinha
sido pensada pelos publicistas franceses do período da Restauração, notadamente
por Benjamin Constant de Rebecque.
Iniciativa da
reforma política a partir da Coroa.- Esta ideia de Pinheiro Ferreira orientava-se
a impedir que se fizessem as reformas pela via revolucionária. Os desmandos
acontecidos na Revolução Francesa decorriam, no sentir do pensador português,
do fato de se ter perdido o controle sobre os acontecimentos. Pinheiro Ferreira
defendia ardentemente a luta contra o imobilismo e contra qualquer forma de
regresso às instituições absolutistas. Mas o caminho que assinalava era,
basicamente, o das reformas promovidas a partir do Estado.
Criação do governo
pela Constituição. - Este ponto constituía a pedra angular das reformas
políticas propostas por Pinheiro Ferreira. O pensador português seguiu, nesse
aspecto, o pensamento liberal de Thomas Paine [1961: 420], para quem "uma
Constituição não é um ato de governo, mas de um povo constituindo um governo; e
o governo sem Constituição é poder sem direito". O constitucionalismo
representou, na verdade, no contexto da evolução histórica do liberalismo, a
tentativa de institucionalização jurídica da teoria política lockeana [Cf.
Macedo, 1987: 33-44].
Existência de cinco
poderes: o eleitoral, o legislativo, o judicial, o executivo e o conservador. - Pinheiro
Ferreira inspirou-se, sem dúvida, nos cinco poderes propostos por Benjamin
Constant de Rebecque, nos seus Princípios de Política (1815) [Cf.
Constant, 1970: 18-31]. O "Poder Neutro" de Constant seria denominado
pelo filósofo português de "Poder Conservador" e inspiraria o
"Poder Moderador" da Constituição do Império do Brasil de 1824. A sua
finalidade consistiria em restabelecer o equilíbrio, no momento do choque dos
demais poderes.
Problema principal
da reforma política: a representação. - Pinheiro Ferreira
retomou aqui a tradição liberal lockeana. O pensamento constitucional do
estadista português tinha quatro grandes preocupações: definição dos direitos
individuais, fixação dos limites ao poder estatal, estruturação equilibrada dos
poderes governamentais e, fundamentalmente, a representação política. A função
desta consistiria, no sentir de Vicente Barretto, em "através do voto ou
da representação virtual (do Imperador), fazer com que os problemas sociais e
políticos fossem debatidos por uma elite" [cf. Barretto, 1976: 17].
Não há dúvida de
que é liberal (à la John Locke e à la Benjamin Constant) a inspiração
política de Silvestre Pinheiro Ferreira. Detenhamo-nos um pouco na sua teoria
da representação. O pensador português não duvidava de que os males que
afetavam ao Reino de Portugal nas duas primeiras décadas do século XIX, decorriam
do seu afastamento da verdadeira tradição liberal-contratualista no terreno
constitucional. Não foram os franceses os que fizeram afundar a Península
Ibérica quando da invasão napoleônica, mas a rapacidade dos ineptos Ministros
de Espanha e Portugal, que administravam corruptamente o Estado mergulhando-o
na bancarrota.
Eis as palavras que
Silvestre Pinheiro Ferreira dirigia a dom João VI, em carta escrita no Brasil,
em 1814: "Não foram os franceses os que precipitaram a Península no
abismo, em que se acha: eles nada mais fizeram do que apoderar-se sem honras e
sem glória de uma fácil presa, que os ministros de V. A. R. e os de seu augusto
sogro [Fernando VII da Espanha], parte por perfídia, parte por inépcia,
apresentaram sem defesa à sua rapacidade. Eu não remontarei a épocas mais
antigas do que o ano de 1790. Não foram estes ministros os que de vinte anos a
esta parte não cessaram de esgotar o real erário com o pagamento das dívidas de
tantos dissipadores? Não foram eles os que a título de melhor administração
sobrecarregaram com inúteis juntas, mesas e inspeções a real fazenda que, à
sombra destes corpos imorais, imunes por sua natureza, se viu mais dilapidada
do que antes? Não foram eles os que, com escárnio dos estrangeiros e insensato
desperdício das rendas públicas, desfiguraram a marinha e o exército com uma
tão numerosa quanto imperita oficialidade? Não foram eles os que a peso de
ouro, ajustaram um ou outro general estrangeiro para organizar os exércitos de
V. A. R. e em nada mais cuidaram para impedir a decadência, em que todo o mundo
os via precipitarem-se com a monarquia?" [Pinheiro Ferreira, 1976: 28].
Mas se a inépcia e
a corrupção do absolutismo eram as culpadas pela negativa situação dos países
ibéricos, era também causa responsável o vício do democratismo revolucionário, em que eles tinham descambado, à
sombra da Constituição espanhola, inspiradora da Revolução Constitucionalista
do Porto (1820). A respeito escreve Pinheiro Ferreira: "Se governos tais
como o de Espanha e provavelmente o de Portugal não fossem condenados pelo
democratismo das suas constituições a serem o ludíbrio de partidos incapazes de
razão e de sistema, mui fácil seria à Península, não digo já resistir, mas até
fazer passar à Santa Aliança toda a vontade de se intrometer nos seus negócios
internos" [Pinheiro Ferreira, 1976: 74].
Qual seria o
caminho para sair dos males presentes? Somente um: institucionalizar o sistema representativo. A adoção deste
correspondia, para Silvestre Pinheiro Ferreira, não a uma quebra das tradições
portuguesas, mas à retomada da mais sadia de todas elas: a tradição contratualista, que fazia do Rei mandatário da Nação,
única depositária da soberania. Em detalhada exposição histórica no seu Manual
do Cidadão em um Governo Representativo, Pinheiro Ferreira destaca que
a tradição mais antiga, a que acompanha Portugal desde a sua consolidação como
Nação independente, é a da soberania popular que delega o poder no Rei, mas que
não duvida em tirá-lo dele nos momentos em que o Monarca esquecer a busca do
bem comum.
Concluindo a sua
exposição, escreve o pensador português: "Não há povo algum na Europa,
exceto o espanhol, onde a origem da monarquia seja mais popular, e os limites
da realeza mais bem estabelecidos do que no português. (...) Fica, pois,
provado, além de outros muitos documentos da história portuguesa, pela Ata das Cortes de 1641, no reinado de
dom João IV, e pela Exposição
remetida ou autorizada por dom Pedro II, não só a verdadeira origem, mas as
condições essenciais do poder monárquico em Portugal; e que neste reino o
princípio da soberania do povo tem prevalecido sobre a doutrina do chamado direito divino, doutrina falsa e
subversiva enquanto considerada como imediata origem do poder civil. Por esta
ocasião é de notar que o princípio da soberania do povo foi expressamente
reconhecido e adotado pelos dois primeiros reis da casa de Bragança; que foi
depois renegado por outros monarcas da mesma dinastia, tornando-se absolutos; e
ultimamente foi restabelecido por dom Pedro I, outro príncipe da mesma dinastia
e imperador do Brasil, no artigo 12 da constituição daquele império onde se
diz: Todos os poderes políticos no
Império do Brasil são delegações da Nação" [Pinheiro Ferreira, 1976:
154-156, nota].
Pinheiro Ferreira
considerava que somente a adoção do sistema
representativo permitiria ao Brasil superar os males que afetavam Portugal,
vítima, sucessivamente, do absolutismo e do democratismo. Eis as palavras com
que o nosso autor inicia o seu Manual do Cidadão em um Governo
Representativo: "O Projeto de código constitutivo que hoje
publicamos é a pura expressão das opiniões políticas que de quarenta anos a
esta parte havemos constantemente professado. Consultados em 1814 pelo monarca,
a quem naquela época estavam confiados os destinos da nação, sobre o meio de
atalhar os males de que o reino estava ameaçado, dissemos sem rebuço que a
adoção do sistema representativo era o que unicamente podia obstar à iminente
catástrofe da monarquia" [Pinheiro Ferreira, 1976: 107].
Feita a defesa
incondicional da soberania popular e do sistema
representativo, os restantes pontos da teoria da representação revelam
também a mais ortodoxa inspiração no liberalismo lockeano e na interpretação
elaborada por Benjamin Constant, a que já fizemos referência na parte inicial
deste capítulo. A representação é, fundamentalmente, de interesses [cf. Pinheiro Ferreira, 1976: 121]. Para que a
representação seja autêntica, é necessário a sua vinculação a uma base
territorial definida, bem como a sua institucionalização permitindo a
representação das várias ordens de interesses presentes na sociedade; o nosso
autor defendia a divisão do território em cantões (proposta que deu ensejo aos
distritos eleitorais do Império). A respeito dessas exigências da
representação, escreve: "O que importa, pois, determinar é a extensão do
território que, em regra geral, é de presumir que os conhecimentos do deputado
possam abranger na sua especialidade. Ora, nós entendemos que todo o homem é
capaz de representar e conhecer, mesmo em todos os pormenores, não a província,
mas decerto o cantão onde é domiciliado. De onde se segue que cada cantão deve
mandar ao congresso um deputado por cada um dos três estados, comércio,
indústria e serviço público" [Pinheiro Ferreira, 1976: 133].
No que tange às
várias ordens de interesses a serem representados, Pinheiro Ferreira frisa:
"O que, porém, distingue essencialmente o nosso método do que vulgarmente
está recebido, é que nós exigimos em cada deputado a especialidade de
conhecimentos requerida para bem representar cada uma das três sortes de
interesses relativos às três seções de que se deve compor o congresso
legislativo; enquanto nos métodos vulgares cada eleitor escolhe, sem saber, que
condições deve reunir o candidato. Por isso, vemos que os interesses dos
diferentes estados são mui imperfeitamente representados nos congressos de
quantas nações se presumem viver debaixo do regime constitucional; pela simples
razão que a lei não dirigiu a atenção do eleitor afim de que ele se
concentrasse no círculo de seus conhecimentos, e procurasse entre as pessoas do
seu mesmo estado as mais capazes de representar os respectivos interesses
[Pinheiro Ferreira, 1976: 133-134].
O Congresso deve
representar todos os interesses presentes na sociedade. A respeito, Pinheiro
Ferreira escreve: "O Congresso deve ser dividido em três seções (...).
Destas seções duas são destinadas a representar os interesses especiais do
comércio e da indústria, e a terceira os interesses gerais de todas as classes,
à qual por isso daremos o nome de estadística.
Para cada uma das três mencionadas seções deve ser eleito um deputado por
cantão, sendo eleitores os cidadãos aí estabelecidos, e que em razão de seus
empregos ou profissões pertençam àquela das sobreditas ordens de interesses,
que o deputado tem de representar, quer ele pertença à seção do comércio, quer
à da indústria. Quanto à seção da estadística
não se faz diferença de profissão ou emprego" [Pinheiro Ferreira, 1976:
136].
O pensador
português considerava que a principal vantagem do sistema representativo
surgido das eleições, consistia na conquista da verdadeira estabilidade
política. Contrariamente ao preconceito dos espíritos absolutistas, que
criticavam a democracia representativa pelo fato de ensejar a instabilidade
política decorrente dos contínuos pleitos eleitorais, Pinheiro Ferreira achava
que a história prova exatamente o contrário: ali onde se concretizou a
institucionalização da representação a partir das eleições, conquistou-se a
verdadeira estabilidade política e a paz social, como nos Estados Unidos. A respeito
escreve o nosso autor: "Bastaria citar o exemplo dos Estados Unidos da
América setentrional para mostrar quanto é falsa a asserção dos perigos
inerentes ao sistema eletivo" [Pinheiro Ferreira, 1976: 165].
O pensador
português deixa claro, evidentemente, que pode haver pleitos eleitorais
viciados. Daí a grande importância que confere à elaboração de uma apropriada
legislação eleitoral, que impeça as fraudes, ou que o processo democrático
termine sendo manipulado por uma minoria, como no caso extremo do democratismo.
Refletindo acerca das medidas que devem ser tomadas para salvaguardar os
pleitos eleitorais, escreve: "Uma observação, que não podemos passar em
silêncio vem a ser: que as comoções populares de que as eleições têm sido
algumas vezes acompanhadas, tiveram origem nos defeitos em que elaboravam os
métodos para esse efeito adotados. Mas desde que estes forem fundados nos
princípios que havemos desenvolvido na conferência em que tratamos da teoria das eleições, os erros que se
introduzirem (porque o erro é inevitável em toda a instituição humana) serão
tão fáceis de reconhecer como de reparar. Quando as eleições não forem o
monopólio de alguns, mas sim o direito de todos; quando nenhum cidadão capaz de
emitir voto com conhecimento de causa puder ser excluído, nem dispensado de o
fazer; quando todo o cidadão que reunir as condições de elegibilidade
requeridas for necessariamente objeto de votação, e esta se fizer por via de
uma simples remessa de listas, com a maior independência e publicidade, sem tumulto,
confusão, nem surpresa, todo o acesso à intriga será impossível, pois é
evidente que não se pode intrigar à face de toda a gente" [Pinheiro
Ferreira, 1976: 165-166].
Uma vantagem
adicional para a institucionalização de regimes representativos a partir do
sufrágio popular, é a garantia que daí decorre, no que tange ao zelo dos
administradores da coisa pública. À pergunta: "Por que se fazem as
eleições anualmente?" o nosso autor responde: "Há para isso duas
razões: 1ª porque a experiência tem provado que mesmo as eleições feitas com o
maior escrúpulo nem sempre correspondem à expectação; 2ª porque a dependência
em que ficam os administradores dos votos dos seus (eleitores) em uma
determinada época, é a única verdadeira garantia de zelo com que hão de cumprir
as suas obrigações" [Pinheiro Ferreira, 1976: 138].
A Construção
dos canais de comunicação entre a sociedade e o poder conseguir-se-ia
mediante a representação, que faria com que as instituições políticas
correspondessem às relações sociais. Esse era o caminho que Silvestre Pinheiro
Ferreira enxergava para vencer o perigo da guerra civil. A respeito escrevia em
1834: "Sobre o meio de atalhar os males de que o Reino estava ameaçado,
dissemos sem rebuço que a adoção do sistema representativo era o que unicamente
podia obstar à iminente catástrofe da monarquia" [Pinheiro Ferreira, 1976:
107].
No relacionado à teoria da dupla representação, Constant de
Rebecque tinha formulado a existência de uma dupla representação: da continuidade (desempenhada pela assembleia
hereditária) e da opinião
(desempenhada pela assembleia eletiva). De outro lado, o Rei, para o publicista
francês, era independente do Poder Executivo [cf. Constant, 1970: 19-24]. Em
Pinheiro Ferreira, em que pese a influência recebida de Constant, encontramos
uma reformulação desses princípios: de um lado, a dupla representação consistia na representação virtual, exercida pelo Monarca e que não dependia de
eleições, e a representação dos
interesses dos estados sociais (comércio, indústria e serviço público),
proveniente das eleições. A representação virtual espelhava os interesses permanentes da Nação (ou
seja, salvaguardava aquelas exigências sem as quais -- como no caso da defesa
da soberania -- desapareceria o corpo político), ao passo que a representação dos estados sociais
espelhava os interesses mudáveis da sociedade. De outro lado, Pinheiro Ferreira
[cf. 1976: 144-145] conferia ao Monarca o privilégio de ser o chefe supremo do
Poder Executivo. Mas, de acordo com os princípios que tinham sido desenvolvidos
por Constant, o pensador português preservava o rei de ser objeto da luta
política ou das invejas da sociedade, em virtude do caráter de
"inimputabilidade" de que a pessoa do monarca estava revestida.
Quanto ao caráter
nacional e não individual da dupla representação, para Pinheiro
Ferreira tanto a representação virtual do Monarca, quanto a relativa aos
estados sociais, não era individual mas nacional, o que significava que o
representante não defendia os interesses de cada eleitor individualmente. A
respeito escreve Vicente Barretto: "Tanto no Brasil, como em Portugal, o
Estado continuava a ser o centro da vida política nacional e as reformas
propostas, ainda que com justificativas liberais, terminavam sempre no aperfeiçoamento
das instituições estatais. O patronato político brasileiro subsistiria em
função do Estado, não se encontrando
caraterísticas individualistas em suas manifestações liberais" [Barretto, 1976: 18].
Em relação à ideia
da relação entre civilização e dependência no terreno das relações
internacionais, Pinheiro Ferreira elaborou interessante teoria acerca da
interdependência das Nações. O cerne dessa teoria foi expresso assim pelo
estadista português: "E, portanto, pode-se dizer, que o máximo de
civilização é inseparável do máximo de dependência: tanto em extensão de
artigos de que se precisa, como pelo grande número de homens e países, cujo
concurso se torna necessário" [Pinheiro Ferreira, 1970: 281].
O pensador português
considerava, no entanto, que havia uma diferença na dependência das nações
ricas e das nações pobres. A das primeiras era positiva e consistia no pleno
funcionamento da economia de mercado livre, que evitava o monopólio ao aceitar
a pluralidade de fontes produtoras. Os três princípios de economia
internacional, obedecidos pelas nações ricas, eram os seguintes: "a) Não
depender de outra Nação para bens que interessem essencialmente à própria
existência; b) não depender de outra Nação de modo que não se possa por outro
meio conseguir os bens por ela fornecidos; c) dar preferência no mercado à
Nação melhor compradora dos produtos primários ou industriais" [Pinheiro
Ferreira, 1970: 281].
Como fundamento
desta teoria da interdependência, o pensador português desenvolveu uma espécie
de eudemonismo moral, válido tanto
para os indivíduos quanto para as Nações. Vicente Barretto sintetizou da
seguinte forma esse aspecto do pensamento de Pinheiro Ferreira: "Para o
autor das Preleções filosóficas a felicidade era entendida como a
predominância de gostos sobre as dores encontradas na vida humana. Tanto nos
indivíduos, como nas Nações, a felicidade, que se busca, pode ser avaliada
levando-se em conta a suficiência de meios, que protegem os indivíduos e as
Nações; e em meios que possibilitam o aumento do número e variedade dos prazeres. A riqueza e opulência, individual
ou nacional, é atingida quando se combinam as duas condições referidas, ficando
assim o indivíduo ou a sociedade aptos a superar a adversidade e desenvolver,
plenamente, as suas potencialidades" [Barretto, 1976: 12-13].
José Esteves
Pereira, o mais importante estudioso contemporâneo da obra de Pinheiro
Ferreira, caracterizou da seguinte forma a singular concepção moral deste
autor, que oscila entre o espiritualismo (de inspiração leibniziana) decorrente
da moral cristã e o mais puro benthamismo: "No autor se recupera uma
matriz que sublinha o primado da personalidade e adivinha o enfrentamento com a
transcendência. Quanto a este último aspecto, segundo o autor, das ciências que
têm por objecto as faculdades do espírito acedemos àquelas que nos permitem
entender um sistema geral do mundo. Deparamos, neste caso, com a nítida
inspiração leibniziana (O presente está prenhe de futuro) que também o motiva para
uma mathesis universal (Pasigrafia), constituindo a meditação sobre o mundo o
enfrentamento com a criação e a necessidade de uma Teologia Natural que coroará
o relacionamento entre a realidade física e espiritual do homem abrindo-se ao
mistério e à revelação. Mas, esta abertura à transcendência que passa pela
aceitação de uma moral fundada no decálogo, nem por isso deixa de admitir,
também, o princípio utilitarista, como em Bentham, do maior bem para o maior
número através de uma consideração dos móbeis da acção e dos resultados
experienciais de prazer e de dor. É certo, porém, que o teor empirista do
utilitarismo de Silvestre Pinheiro Ferreira tem um alcance espiritual inegável.
Tratava-se de promover uma pedagogia intencionada a, em época de definição teórica
do liberalismo, reconduzir a palavra a uma precisão sintáctica e pragmática
para o aperfeiçoamento espiritual, social e político, mediando o entendimento
da perenidade e da transcendência dos valores com as possibilidades de uma
sociedade que se procurava para lá do puro formalismo dos direitos individuais
e do amor próprio excessivo ou egoísta. Neste sentido, talvez se perceba a admissão, não
incontestavelmente conflitual, entre a esfera moral de matriz transcendente e
uma ética de acção liberal de base solidarista, que as suas reflexões sociais
indiciam aproximando-o do krausismo (embora o seu empirismo e sensualismo de
base pareçam dificultar tal aproximação)" [Pereira, 1995: 40].
c - A Carta de 1824 e a prática do parlamentarismo.
A Constituição
Política do Império do Brasil de 25 de março de 1824, no seu Título V,
Capítulos I e II, estabeleceu o Poder Moderador nos moldes cogitados por
Silvestre Pinheiro Ferreira. Lembremos os aspectos fundamentais: "O Poder
Moderador é a chave de toda a organização política, e é delegado privativamente
ao Imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para
que, incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e
harmonia dos mais poderes políticos. (...) A pessoa do Imperador é inviolável e
sagrada: ele não está sujeito a responsabilidade alguma" [Brasil, 1948:
42]. O Imperador exerce o Poder Moderador nomeando os senadores vitalícios, a
partir das listas tríplices surgidas das eleições provinciais, convocando a assembleia
geral extraordinária, sancionando os decretos e resoluções da assembleia geral,
aprovando e suspendendo interinamente as resoluções dos conselhos provinciais,
prorrogando ou adiando a assembleia geral, dissolvendo a Câmara dos Deputados,
nos casos em que o exigir a salvação do Estado, nomeando e demitindo os
Ministros de Estado, suspendendo os Magistrados, etc. O Imperador é, outrossim,
o chefe do Poder Executivo e o exercita
pelos seus Ministros de Estado” [Brasil, 1948: 42].
O conjunto de leis
denominado de "Regresso", em 1841, corrigiu os excessos de
desconcentração do poder e de exagerada autonomia provincial do período
regencial, consubstanciados no Ato Adicional de 1832 [cf. Brasil,
1948: 50] e deu ensejo ao período de maior estabilidade política da história
brasileira. O princípio formulado por Bernardo Pereira de Vasconcelos, de que
"é preciso deter o carro da revolução", lembra muito bem a convicção
dos constituintes de Filadélfia, que reagiram, pela boca de Jefferson, contra a
"retórica utópico-democrática" que ameaçou deitar por água abaixo a
unidade das 13 ex-colônias americanas, após o excessivo federalismo dos
"Artigos da Confederação". Lá como no Brasil, o equilíbrio entre o
princípio hobbessiano da unidade e da centralização do poder e o princípio
lockeano da defesa da liberdade mediante a representação, seria a fórmula
salvadora.
Enxergadas as
instituições imperiais à luz do hodierno parlamentarismo, é evidente que
impressiona o acúmulo de poderes de que gozava o Imperador. Esses poderes
centravam-se, fundamentalmente, no exercício do Poder Moderador e no fato de o
Imperador ser o chefe do Executivo. O exercício da função moderadora permitia
ao soberano prorrogar ou adiar a assembleia geral (integrada pelo Senado e pela
Câmara dos Deputados), dissolver a Câmara e convocar imediatamente outra que a
substituísse. Moderando o exercício do Poder Legislativo, controlando, de outro
lado, a Polícia e a Magistratura, acúmulo enorme de poderes descansava nas mãos
do Imperador. A Guarda Nacional, a maior organização pré-burocrática de homens
livres do Hemisfério Ocidental [Cf. Uricoechea, 1978], que em 1851
arregimentava 250 mil pessoas livres, cooptadas pelo Imperador, era o
instrumento básico, típico instituto do Poder Patrimonial, para ganhar qualquer
eleição. Daí o famoso sorites do senador Nabuco de Araújo: "O Poder
Moderador pode chamar a quem quiser para organizar ministérios: esta pessoa faz
a eleição, porque há de fazê-la e esta eleição faz a maioria" [cit. por
Torres, 1968: 18]. A centralização, pelo Imperador, dos poderes de polícia e de
controle sobre a magistratura, decorreu da reforma do Código de Processo
(1841). "Graças a essas medidas -- frisa João Camillo de Oliveira Torres
-- foi possível ao Governo Imperial implantar a sua autoridade sobre todo o
território nacional" [Torres, 1968: 59].
Tratava-se, sem
dúvida, de uma prática de democracia induzida, como se o Imperador chamasse a
ganhar as eleições aqueles que garantissem o funcionamento das Instituições.
Heitor Lyra pretendia desmontar assim o sorites de Nabuco, destacando, no
entanto, o caráter induzido já apontado: "Este raciocínio era, sem dúvida,
exato, quer dizer, todas as suas proposições de fato se verificavam. Mas,
convinha indagar: era por culpa do Imperador? Por culpa da Constituição? Ou por
culpa da escassa cultura das massas eleitorais? Se as proposições que formavam
o 'sorites de Nabuco' se verificavam de fato, uma delas, pelo menos, de direito, era falsa e tirava, assim,
ao sorites, todo o fundamento legal. Os presidentes de Província, dizia Nabuco,
faziam as eleições. De fato, assim era: os presidentes de Província faziam bem
as eleições, a mando e sob o controle dos Gabinetes, que fabricavam eles mesmos
as Câmaras, as quais, teoricamente, os deviam sustentar. Mas onde estava o
fundamento legal da atribuição que se arrogavam os presidentes de Província, de
fazerem as eleições?" [cit. por Torres, 1968: 18].
A razão que
justificava este modelo de exercício programado e vertical das eleições era,
portanto, a fragilidade do tecido social num meio eivado de práticas
familísticas. Oliveira Torres identificou com clareza essa razão: "O drama
do Império, que pouca gente sentia na época e que muitos até hoje não
compreenderam, residia, exatamente, no fato de quererem que as práticas da
democracia representativa à inglesa (nascida num país industrializado e de
forte concentração demográfica) vigorassem num país cuja população era escassa
e rala, quase toda espalhada pelos campos, vivendo em função da autoridade semifeudal
dos senhores de terras" [Torres, 1968: 31].
Em que pese o fato
do poder concedido ao Imperador, é válida, contudo, esta afirmação: o Segundo
Reinado (1842-1889) deitou as bases para a prática da representação política,
uma representação dos interesses de proprietários, comerciantes e funcionários
públicos, é bem verdade, alicerçada no voto censitário (como, aliás, tinha
acontecido na Inglaterra e no resto da Europa Ocidental, ao longo dos séculos
XVII a XIX), mas que se encaminhava à ampliação da base social a ser
representada. Convém enumerar aqui os aspectos em que a Constituição Imperial
de 1824 e a legislação subsequente (até 1889), contribuíram à valorização e ao
alargamento da representação e dos direitos dos cidadãos. Esses aspectos são os
seguintes:
i.
Reconhecimento do Poder Legislativo como
"delegado (pela Nação) à assembleia geral", integrada pela câmara dos
deputados e a câmara dos senadores. As funções da assembleia geral eram
claramente definidas no Título IV, Capítulo I da Constituição de 1824 e entre
elas figuravam: tomar juramento ao Imperador, ao Príncipe Imperial, ao Regente
ou Regência; eleger a Regência ou Regente e marcar os limites de sua
autoridade; reconhecer o Príncipe Imperial como sucessor ao trono; resolver as
dúvidas sobre a sucessão da Coroa; instituir exame da administração anterior,
quando da morte do Imperador ou quando da vacância do trono, "e reformar
os abusos nela introduzidos"; escolher nova dinastia, em caso de extinção
da imperante; fazer leis, interpretá-las, suspendê-las e revogá-las; velar pela
guarda da Constituição, e promover o bem geral da Nação; fixar anualmente as
despesas públicas, e repartir a contribuição direta; fixar anualmente as forças
de mar e terra; conceder ou negar permissão para a entrada de forças estrangeiras
dentro do Império ou dos portos dele; autorizar o governo para tomar
empréstimos; regular a administração dos bens nacionais e decretar a sua
alienação; criar ou suprimir empregos públicos, etc.
ii.
Reconhecimento da inviolabilidade dos membros de cada
uma das Câmaras pelas opiniões que proferissem no exercício de suas funções,
bem como da sua imunidade durante a respectiva deputação.
iii.
Institucionalização do Conselho de Estado
"composto de conselheiros vitalícios, nomeados pelo Imperador"
(Título V, Capítulo VII, art. 137). Os conselheiros deveriam ser ouvidos sempre
que o Imperador fosse exercer o Poder Moderador. Eles seriam responsáveis pelos
conselhos que dessem, quando fossem opostos aos interesses do Estado. Acerca da
forma como funcionou o Conselho de Estado, escreve Oliveira Torres: "O
Conselho de Estado não seria, como pensaram os alarmados liberais mineiros de
1842, a concentração da oligarquia conservadora, mas um tribunal político
admirável, no qual tinham assento gregos e troianos, que diziam ao Imperador o
que ele devia ouvir, nem sempre, talvez, o que gostasse de ouvir. E com isto
tivemos a única experiência que o mundo conheceu de participar a oposição,
conservada a sua condição oposicionista, na direção da coisa pública” [Torres,
1968: 60]. Tão significativa foi a atuação do Conselho de Estado na tarefa de
moldar a opinião do Imperador, que chegou a ser chamado de "o quinto
poder" [cf. Rodrigues, 1978].
iv.
Funcionamento das câmaras eletivas "em todas
as cidades e vilas ora existentes, e nas mais que para o futuro se criarem
(...), às quais compete o governo econômico e municipal das cidades e
vilas" (Tit. VII, cap. II, art. 167-168). Essa disposição vinha equilibrar
o centralismo contido no poder do Imperador de nomear os presidentes das
Províncias (Tit. VII, cap. I, art. 165).
v.
Reconhecimento da "Inviolabilidade dos
direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que tem por base a
liberdade, a segurança individual e a propriedade" (Tit. VII, art. 179).
vi.
Abolição de "todos os privilégios que não
forem essencial e inteiramente ligados aos cargos para utilidade pública"
(Tit. VII, art. 179, par. 16).
vii.
Aperfeiçoamento da representação e alargamento do
voto, mediante as reformas eleitorais: a de 1846 (que organizava o eleitorado
permanente); a de 1855 (que organizava os distritos eleitorais) e a de 1881, a
famosa Lei Saraiva (que adotava o sistema da eleição direta). Expressão do
cuidado com que o Imperador tratava a questão do voto e da representação é o
seguinte trecho da Fala do Trono de
1º de fevereiro de 1877: "Na execução da nova lei que regulou o processo
eleitoral, a expressão do voto popular tivera plena liberdade e, no decurso da
eleição, não fora perturbada a ordem pública. Conviria, entretanto, examinar se
as disposições da mesma lei asseguravam suficientemente a desejada e possível
pureza da eleição, base fundamental do sistema representativo" [cit. por
Barretto, 1982: 75]. A Lei Saraiva, de 1881, viria culminar esse processo de
aperfeiçoamento da representação, pois como escreve Vicente Barretto,
"viria consagrar o estabelecimento final das instituições liberais no
Império. Passava o regime a ser fundado na
eleição direta e censitária, onde todos os participantes do processo
político, os cidadãos ativos,
encontravam-se em igualdade de condições jurídicas para escolher os
governantes, desde que satisfeitas as exigências econômicas para participar do
processo político" [Barretto, 1982: 77-78].
viii.
O
equilibrado revezamento de liberais e conservadores no poder, graças à ponderada
atuação do Poder Moderador. Ao longo do reinado de dom Pedro II, entre 1840 e
1889, somaram ao todo 36 gabinetes, sendo que os conservadores permaneceram no
poder 26 anos e os liberais 18. Calógeras escreveu a respeito desse fato, no
seu livro Da Regência à queda de Rosas: "Ritmicamente, alternavam-se
em prazos de cinco a seis anos, com um máximo, para os conservadores, de 10
anos no período de 1868 a 1878" [cit. por Tapajós, 1963: 374].
ix.
A presença atuante de uma elite de homens públicos,
formados ao redor de dom Pedro II e que constituíram a elite de homens de 1000, que permitiram fazer surgir, num contexto
de cultura patrimonialista e privatizante, o ideal do bem público e que, a
partir daí, construíram o sentimento de Nação, num amplo processo de paideia política [cf. Barros, 1973].
Esses homens de 1000 -- frisa
Oliveira Vianna -- caracterizavam-se pela sua "inata vocação ao bem comum
da Nação" e eram "homens que aborrecem a avareza (...) como os da
vocação mosaica. Conselheiros, senadores, ministros, altos dignitários da
Coroa, eles passaram pela administração (di-lo a história do Império) nutridos
do sentimento do seu dever público, impregnados do desejo de bem servir ao
país, colocando os interesses da Nação e o cumprimento das suas obrigações
cívicas acima dos seus interesses pessoais e de família, e mesmo de partido.
Todos eles timbravam -- como os
cavalheiros do antigo regime -- em
morrer pobres e de mãos limpas. Todos eles eram trabalhados pelo fogo dessas
preocupações, dessas absorventes preocupações do patriotismo e do serviço
público" [Vianna, 1982: 582].
Conclusão
Essa elite ensejou
importante reflexão de cunho filosófico-jurídico, que contribuiu decisivamente
para firmar e desenvolver as Instituições imperiais. Eis algumas das mais
representativas contribuições teóricas: Pimenta Bueno (Direito público brasileiro,
1857); Domingos José Gonçalves de Magalhães, visconde de Araguaia (Fatos
do espírito humano, 1858; A
alma e o cérebro, 1876; Comentários e pensamentos, 1880); Paulino José Soares de Sousa,
visconde de Uruguai (Ensaio sobre o direito administrativo, 1862); Affonso d'Albuquerque Mello (A
liberdade no Brasil, 1864);
Brás Florentino Henriques de Souza (Do poder moderador, 1864; Dos responsáveis nos crimes de
liberdade de exprimir os pensamentos, 1866); José Soriano de Souza (Compêndio
de filosofia, 1867; Lições
de filosofia elementar racional e moral, 1871; Estudos de filosofia do direito, 1880); Américo Brasiliense (Os
programas dos partidos e o II Império, 1878); M. Sá e Benevides (Elementos de filosofia do direito, 1884); Tavares Bastos (Cartas
do solitário, 1862); etc.
Weber previu que
era possível evoluir de sociedades marcadas pela tradição patrimonial, até
sociedades de tipo contratualista. No caso ibérico, isso se tornou possível
graças a causas exógenas (a influência da tradição liberal anglo-saxônica, por
exemplo), ou endógenas (a retomada de tradições de inspiração libertária e
contratualista na Península Ibérica, ao longo do século XX). A evolução do
mundo ibérico e ibero-americano ao longo dos últimos trinta anos (o
amadurecimento da democracia representativa e a modernização da economia na
Espanha, em Portugal, no México, na Argentina, no Brasil, no Chile, etc.)
parece sugerir que esse processo de abertura pode ser dinamizado a partir da
sociedade, tendo por base um novo pacto político e sob a inspiração de uma nova
Constituição ou de reformas constitucionais significativas.
O que ocorreu no
Brasil no século XIX insere-se neste contexto. O Império do Brasil e as
instituições do governo representativo que lhe eram inerentes constituíram-se a
partir de nova concepção do Estado, no terreno do direito constitucional, sob a
inspiração de Constant de Rebecque e dos doutrinários como Guizot. Essa
concepção, no entanto, como destacou Silvestre Pinheiro Ferreira, não era
alheia à cultura luso-brasileira, porquanto retomou a tradição de defesa da
liberdade presente no antigo direito visigótico, sem, contudo, esbarrar no
extremo do democratismo. Essa tradição, reforçada pelo conceito de soberania
elaborado pelos filósofos do século XVII (entre os quais sobressai a figura do
padre Francisco Suárez), veio ser vivificada pela abertura de Pinheiro Ferreira
à filosofia liberal, nas versões moderadas de Locke e de Constant.
O efeito dessa
magna obra criativa foi o Império do Brasil, uma nação organizada nos moldes do
que Simon Schwartzman [1982] e Antônio Paim [1978] convencionaram em chamar de patrimonialismo modernizador ou neopatrimonialismo, em que a variável da
democracia representativa constituía elemento essencial do processo, apesar do
evidente centripetismo do Estado.
A marcha
modernizadora do Estado patrimonial brasileiro no período republicano, em
decorrência do primado exercido pela filosofia positivista, abandonou as
preocupações com a democracia representativa e acirrou o centripetismo do
executivo hipertrofiado, no modelo de ditadura científica implantado por Júlio
de Castilhos e seus seguidores, no Rio Grande do Sul (entre 1891 e 1930) [cf.
Vélez, 2000]. Esse modelo seria aplicado a nível nacional por Getúlio Vargas, a
partir de 1930.
As atuais ambiguidades
da política brasileira, ainda às voltas com a síndrome arcaizante do estatismo
que teima em se manter, explicam-se em boa medida pelo abandono da tradição
liberal que o Império soube preservar, graças à têmpera de teóricos da talha de
Silvestre Pinheiro Ferreira e de estadistas como dom Pedro II ou o visconde de
Uruguai.
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[1] No ato de coroação do Soberano, segundo os “Fueros
Aragoneses”, o Justiça-mor, em representação dos Senhores Feudais, empossava o
Rei com a seguinte fórmula ritual: "Nós, que
valemos cada um quanto vós e que, juntos, valemos mais do que vós, vos fazemos
nosso Rei e Senhor, com a condição de que conserveis nossos foros e liberdades,
ou se não, não!" [Jaramillo Uribe, 1974: 104, nota].
[2]
Destaquemos que o diferente caminho adotado no processo de Independência pela
América espanhola decorreu do fato de a Corte de Madri não ter respondido, à
altura, às exigências dos fatos históricos. Quando da invasão das tropas de
Napoleão Bonaparte (1769-1821) à Espanha, os hispano-americanos consideraram
essa circunstância uma quebra da soberania espanhola e decidiram se tornar
independentes de uma Monarquia que tinha virado refém do invasor estrangeiro. O
Cabildo de Santafé de Bogotá, por exemplo, (e o de outras capitais, como Buenos
Aires e Cidade do México), pronunciou o Grito de Independência em 1810, após
não ter recebido resposta da Corte de Madri ao convite que os neogranadinos
tinham formulado a Fernando VII (1784-1833), para que transferisse a sede da
Monarquia para Santafé, enquanto durasse a invasão francesa do Reino espanhol.
Circunstâncias semelhantes rodearam a proclamação da Independência no México,
onde a liderança política tentou instaurar uma monarquia nacional com o general
Agustín Itúrbide (1783-1824), coroado Imperador em 1822 com o nome de Agustín I
e fuzilado, dois anos depois, pelos revoltosos republicanos. Em Buenos Aires, a
monarquia portuguesa cogitava inaugurar um reinado peninsular presidido por
Dona Carlota Joaquina de Bourbon (1725-1830), filha do rei espanhol deposto
Fernando VII, e esposa de Dom João VI (1767-1826), soberano do Reino Unido de
Portugal, Brasil e Algarves. Lembremos que a elaboração de um plano estratégico
para deslocar a sede da Monarquia Portuguesa para uma das Colônias datava do
século XVII, sendo a opção brasileira uma das hipóteses cogitadas pelos
estrategistas portugueses.
[3] A respeito
da concepção política de Suárez, Alain Guy escreveu: "A análise do
princípio de soberania é muito mais avançado (em Suárez) do que nos autores
anteriores. Aqui, o poder é dado por Deus a toda
a comunidade política e não somente a tal ou qual pessoa. Contra o cesarismo e
os legistas, o maquiavelismo e o luteranismo, Suárez elabora, em soma, a teoria
da democracia, que aprofundou ainda mais no seu Defensor Fidei. A noção de pacto ou de contrato social
aparece já no doctor eximius. A
comunidade política é constituída a partir de um primeiro consenso entre
indivíduos ou famílias; ela pode delegar o poder a um grupo ou a uma só pessoa,
mediante um segundo pacto, que Deus deixa à nossa discrição. Por regra geral a
democracia, ou seja, o governo direto do povo pelo povo, será a forma mais
natural de governo, e não carece de uma instituição particular, pois é conforme
à espontaneidade do nosso ser. Mas pode ocorrer que não seja capaz de exercer
essa administração sem intermediário e que seja necessário recorrer a um
mandatário, investido então do poder público por transferência: este pode ser
um rei ou uma oligarquia. De todas as formas, a autoridade do governo fica
restrita a certos limites. Se o soberano abusar da sua potestas, converte-se num tirano, contra quem é legítimo lutar. Em
caso extremo, é permitido matá-lo, uma vez esgotados todos os meios para
induzi-lo ao arrependimento" [GUY, 1985: 113-114].
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