Capa do livro de Ricardo Vélez Rodríguez resenhado nesta matéria |
Amigos, divulgo neste post a bela resenha que do meu livrinho "Patrimonialismo e a realidade latino-americana" (2006) fez o jovem acadêmico Lucas Berlanza. A resenha foi publicada no Portal do Instituto Liberal, edição de 31-07-2015. Fico muito contente com a atividade de uma nova geração de estudiosos do liberalismo que decidiu enfrentar o Estado Patrimonial brasileiro. Lucas Berlanza é uma prova disso.
Entre as
obras comercializadas pela loja do Instituto Liberal, encontra-se um item
reduzido em tamanho, mas que abre as portas a enormes possibilidades de
exploração das raízes brasileiras e latino-americanas. Da lavra do professor
Ricardo Vélez Rodríguez, colombiano e autor de inúmeras atividades acadêmicas
no Brasil, Patrimonialismo e a realidade latino-americana,
publicado em 2006, em tempos de reflexão sobre os rumos que temos a percorrer,
traz à tona importantes informações sobre o que nos trouxe até aqui. Vale a
pena chamar a atenção para esse trabalho sintético e valoroso, sobretudo quando o cientista político Bruno Garschagen, em seu best
seller Pare de acreditar no governo – por que os brasileiros não
confiam nos políticos e amam o estado, procura diagnosticar, com
um tom distinto, o mesmo problema.
Diante da
realidade de que o Brasil, bem como todo o continente, se encontra ainda refém
de uma cultura política muito voltada ao crescimento do Estado e à manutenção
de uma sociedade demasiado dependente dele, o professor Vélez Rodríguez
excursionou até as origens da colonização, a partir das metrópoles ibéricas
(Portugal e Espanha), para entender a nossa realidade. Nessa jornada, um dos
aspectos mais estimulantes do pequeno livro é a riquíssima presença de
indicações bibliográficas para o aprofundamento dos conceitos, em especial de
autores ligados às escolas sociológicas de Max Weber (1846-1920) e Karl
Wittfogel (1896-1988), que desenvolveram os conceitos fundamentais na
interpretação do que se denomina “Estado patrimonial”, marcado pelo
“patrimonialismo”.
De acordo
com Weber, o patrimonialismo é “aquela forma de dominação tradicional em que o
soberano organiza o poder político de forma análoga ao seu poder doméstico”. A
confusão entre os interesses particulares e a organização do Estado e de suas
atividades que marca o Estado patrimonialista se consolidou em Portugal,
segundo as perquirições do professor colombiano, desde a Revolução de Avis
(1385). Ele referencia o liberal português Alexandre Herculano (1810-1877), que
“destacou a ausência de feudalismo em Portugal”, sistema que, descentralizando
o poder, facilitou a que o Estado nacional posteriormente se configurasse em
uma negociação das diferentes instâncias de poder, com o surgimento autônomo de
uma burguesia – posteriormente industrial – e a concessão de poder da nobreza
para o monarca, com limitações claras e a organização de Parlamentos. Sem esse
momento histórico feudal, Vélez encontra em outro autor, Raimundo Faoro, a
explicação de que, em Portugal, “a nobreza e a burguesia jamais tiveram poder
suficiente para se contrapor ao poder inquestionável do monarca. Assim, os
nobres, mais do que de uma tradição que independesse da Coroa, dela recebiam o
prestígio, sendo praticamente funcionários do príncipe”. As principais
atividades econômicas e políticas se encontraram submetidas a esse jogo de
favores, formando uma imensa burocracia de “capacidade esclerosante”, no dizer
de Vélez. Apesar de ter havido a figura dos municipalismos administrativos erguidos
a partir do poder local dos senhores de terra (no Brasil, das sesmarias e das
capitanias hereditárias), formando o que Alexandre Herculano chamava de
“liberalismo telúrico”, logo esses mesmos senhores corromperam o processo e
tudo foi cooptado “pelo centralismo da Coroa, ao longo do período filipino, no
século XVII”. Em consequência desse legado, acabou se consolidando em terras
tupiniquins “um Estado mais forte do que a sociedade, em que o poder centrípeto
do rei, no período colonial, e do imperador ao longo do século XIX, ou do
Executivo, no período republicano, criou forte aparelho burocrático alicerçado
no sentimento de fidelidade pessoal”. Mais adiante, entraria ainda outro
ingrediente, o modelo de “Estado modernizador” do Marquês de Pombal, também objeto
de muita atenção no livro de Garschagen, e que, usando um conceito dos autores
Simon Schwartzman e Antônio Paim, Vélez chama de “patrimonialismo
modernizador”, em que o Estado centralizador incorpora os ditames e práticas da
ciência moderna, formando a gênese da tecnocracia burocrática, que despreza e
desencoraja a participação efetiva da sociedade na política.
O
positivismo do golpe republicano, que desembocaria no domínio igualmente
patrimonialista das oligarquias estaduais (os “clãs políticos”), e a “ditadura
científica” que inspira o castilhismo e o Estado Novo de Getúlio Vargas, bem
como o regime militar dos anos 60, 70 e 80, se alimentam dessa matriz, bem como
de outra concepção, a de “autoritarismo instrumental”. Tal como a define outro
autor com que Vélez dialoga em seu trabalho, Oliveira Vianna, esse tipo de
pensamento considera que “o liberalismo político seria impossível na ausência
de uma sociedade liberal e a edificação de uma sociedade liberal requer um
Estado suficientemente forte para romper os elos da sociedade familística”,
isto é, para combater o patrimonialismo – e, mais tarde, o socialismo e o
comunismo – e criar uma sociedade liberal-democrática avançada, um regime
autoritário que tutelasse o país seria o único caminho. Na prática, o século XX
assistiu a uma sucessão de trocas de grupos de poder sedimentados em mesclas
mais ou menos diversificadas dessas mesmas matrizes de pensamento social e de
percepção do Estado, a cujas teias de influência assistimos ainda hoje e tanto
ansiamos superar.
Assim
como o livro recém-lançado de Garschagen, Vélez também já reconhecia o valor do
esforço realizado durante o Segundo Reinado, com a elite política do
parlamentarismo entre 1841 e 1889. Ele lembra o elogio do primeiro-ministro
francês François Guizot a essa tentativa de experiência modernizadora, inspirada
“no liberalismo lockeano e na versão liberal-conservadora de Benjamin Constant
de Rebecque”, bem como admite a presença de atores políticos e filosóficos mais
associados à mentalidade liberal de matriz anglo-saxônica, como Rui Barbosa no
Brasil, sem necessariamente desprezar as bases culturais ocidentais da formação
ibérica e, consequentemente, também da América Latina (tal como destaca Alexis
de Tocqueville, pensador citado no livro e com quem Vélez tem afinidades
confessadas). No entanto, a tônica que nos conduziu até agora foi,
infelizmente, a da opção paralisante e limitadora pela persistência do
patrimonialismo.
Chegando
aos dias de hoje, Vélez retira de Paim uma análise sucinta e imperdível da
história do Partido dos Trabalhadores, apontando o governo de Lula como uma
fase de recrudescência do modelo estatista, e sua posição de centralidade no
esquema do continente, junto a Cuba e ao bolivarianismo chavista, via Foro de
São Paulo. A “ação deletéria” de setores da Igreja Católica no combate ao agronegócio
no Brasil e no apoio a movimentos como o MST, a presença das Forças Armadas
Revolucionárias da Colômbia, a integração dos movimentos de esquerda no poder
desses países para manter e aprofundar esse modelo atrasado, estão entre os
aspectos que Vélez aponta como desanimadores.
No entanto, ao fim do opúsculo,
Vélez relaciona alguns motivos que, naquele 2006, ele considerava animadores,
podendo fortalecer um movimento latino-americano rumo à superação das mazelas
patrimonialistas, que diferentes regimes, desde a monarquia colonial até o
socialismo lulopetista, vêm construindo – e sobre as quais vêm se ancorando.
Entre esses motivos, a “consolidação da democracia e da economia de mercado nos
principais países do Mercosul” e a influência dos países desenvolvidos. A
realidade subsequente ainda não confirmou esses últimos apontamentos. No
entanto, Vélez acredita que “Alexis de Tocqueville mostrou que o caminho para
iluminar a luta pela conquista da autêntica democracia nos nossos países
deveria ser o da defesa da liberdade para todos os cidadãos” e que, segundo o
mesmo pensador, “uma época mais ou menos distante chegará, em que os
sul-americanos formarão nações florescentes e esclarecidas”. Esperamos
sinceramente que isso seja verdade, e que nossos esforços de hoje sejam
cruciais na preparação dessa futura realidade. Para isso, reforçamos o que
destacamos ao começo: vasculhar o passado e entender como tudo começou é parte
do caminho inadiável para, de fato, darmos o impulso em frente.
Acadêmico
de Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, na UFRJ, e colunista do
Instituto Liberal. Estagiou por dois anos na assessoria de imprensa da
AGETRANSP-RJ. Sambista, escreveu sobre o Carnaval carioca para uma revista de
cultura e entretenimento. Participante convidado ocasional de programas na
Rádio Rio de Janeiro.
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