(TEXTO DA PALESTRA A SER PRONUNCIADA NO CLUBE DA AERONÁUTICA, RIO DE JANEIRO, EM 4 DE AGOSTO DE 2015)
Vivemos, no Brasil, tempos de perplexidade, diante da crise
sistémica em que afundou o “presidencialismo de coalizão” que, a bem a verdade,
deveria ser chamado de “clientelismo presidencialista”, ou, como afirma César
Maia, de “encilhamento geral” dos poderes.
O fato de não ter sido feita, em tempo, a reforma política, que garantiria uma
representação de baixo para cima conduziu, ao longo dos últimos 27 anos, à
crise sistémica que agora vivenciamos. O nosso tecido político ficou esgarçado
em 32 partidos, a maior parte deles nanicos e sem que nenhum conseguisse fazer
surgir a almejada maioria sem a interferência do Executivo. Abriu-se, assim, a
porta para alianças de legenda espúrias e para a negociata continuada de
benefícios a partir do orçamento (como as “emendas parlamentares”), provindos
das manipulações que o Executivo passou a fazer para obter a maioria necessária
à governança. Mas uma maioria que, como se observa na história destes anos,
notadamente durante o ciclo lulopetista, converteu-se em vulgar negociata em
torno ao orçamento e ao tesouro, usado e abusado pelos governantes de plantão,
sem o menor constrangimento.
Não é de hoje este mal. Já a chamada “política dos
governadores”, no início do ciclo republicano, anunciava, na administração
Campos Sales (1898-1902) que o que se buscava era uma acomodação segundo os
interesses das oligarquias estaduais, sem que interessasse um átimo o
aperfeiçoamento da representação. Mas o descaso de décadas é agravado hoje pela
urgência que o Brasil experimenta, em época de turbulências globais, para
manter a casa em ordem.
Não se administra um país com 200 milhões de habitantes, da
mesma forma em que se gerencia o quintal de um latifúndio. Ora, infelizmente a
mentalidade que grassou na nossa história republicana foi exatamente essa
tacanha praxe que ora assistimos, alicerçada na falta de visão ampla, de
imediatismo, de sem-vergonhice. Tudo patrocinado legalmente pelo nosso
bacharelismo republicano, useiro e vezeiro na prática legiferante para encobrir
a realidade e para “deixar como está para ver como é que fica”. Viramos uma
monstruosa formalidade cartorial que a todos engana com o consentimento passivo
da Nação e a zelosa vigilância dos Poderes Públicos. Porque nos contentamos com
os ritos processuais, esquecendo-nos do que é substantivo. Sem heroísmos
quixotescos, a massa dos brasileiros virou uma grande pornochanchada
sanchopanzesca, que tudo almeja menos a dignidade cidadã e as mudanças em
profundidade.
O noticiário dos últimos meses em torno à amplitude do
Segundo Mensalão, ao ensejo das investigações desenvolvidas pela operação Lava
Jato surpreende-nos, a cada semana, com novas revelações bombásticas em torno
ao tamanho do saque praticado contra a Nação. Se o Mensalão I já tinha deixado
perplexa a opinião pública, o Mensalão II tem características verdadeiramente
escatológicas, tal o tamanho do estrago feito nas contas públicas a partir da
má utilização do dinheiro dos brasileiros pela via da gestão criminosa das
estatais e dos bancos oficiais. Não foi apenas a Petrobrás que afundou no
contexto do roubo praticado à luz do dia e com todas as características de
“operação planejada”. Entraram na lista da ocupação pelo cupinzeiro petista as
demais estatais, notadamente a Eletrobrás.
A própria credibilidade do Brasil no cenário internacional mergulhou
nas águas imundas da corrupção desenfreada. Os empréstimos bilionários
praticados pela alta administração petista via BNDES, para favorecer governos
estrangeiros compradores de obras superfaturadas, executadas por empreiteiros
corruptos a mando da Presidência da República, já abalam a imagem do país no
exterior e acabaram deitando por terra a tradição de seriedade da nossa
diplomacia.
O PT acabou mergulhando o Brasil na tradição das piores banana republics, de que teremos dificuldade
em sair sem fazermos, antes, um grande esforço de autocrítica e de reconstrução
das instituições. Pelo que se vê das últimas decisões do governo Dilma, no
sentido de mandar o ajuste fiscal às favas para livrar a cara do PT, de Lula e
dela própria na operação “Lava Jato”, estamos no pior dos mundos possíveis. O
Ministro Levy ficou paralisado pela estratégia petralha. E, em que pese o
convite feito pelo Lula ao PSDB para que “desse uma mãozinha” ao governo
petista na atual enrascada, Fernando Henrique teve uma atitude firme e digna de
um estadista. O PT que arque com o desastre da sua péssima administração! Essa
foi a mensagem do ex-presidente.
A roubalheira não é de milhões de reais. A ladroagem já beira
a cifra do trilhão. Quando a caixa de pandora da engenharia da corrupção
patrocinada, na última década, pelo Partido dos Trabalhadores e Associados
tiver sido completamente aberta, poderemos ver o tamanho do desastre, que
infelizmente já está sequestrando o bem-estar dos nossos filhos e netos e
engordando as contas bancárias de Lula et
caterva no exterior. A começar, claro, pelos mais pobres, em cujo nome a
petralhada organizou a máquina de desviar dinheiro público para benefício
próprio.
Como escrevia Suely Caldas: “Na crise em que o governo do PT mergulhou o País, a tendência
está mais para cancelar o programa (“Minha casa, minha vida”) do que para
recuperar o que foi perdido. Justificativa real: os mais pobres são a faixa de
renda onde o governo mais gasta, pois o subsídio é elevado, e é também onde o
desemprego chega mais forte e a inadimplência passa a ser inevitável. É sempre
assim: por ser a parcela mais vulnerável da população, os pobres são os
primeiros a ser punidos, quando fracassam ações de governos irresponsáveis, que
saem por aí distribuindo ilusões, sonhos para alguns, que logo se transformam
em pesadelos para todos. Foi assim também com o Fundo de Financiamento
Estudantil (Fies) e o Ciência Sem Fronteiras. E os brasileiros andam
perguntando qual será o próximo. O Mais Médicos? O Bolsa Família?”.
Esse é o maior crime que governante algum pode cometer contra
o seu povo: comprometer o bem-estar das futuras gerações! Lula e Companhia
ainda vão ser julgados pela História, pois a barra dos tribunais parece que se
afasta cada vez mais do eixo da criminosa empreitada. Empresários, tesoureiros
de partido, mulas, estafetas, laranjas, vários deles estão sentindo as agruras
da prisão. Mas, cabe perguntar: cadê os mandantes do crime? Parece infinita a
camada de teflon que os protege! Lula, Dilma e alguns dos mais estreitos
colaboradores parece que estão se safando...A presidenta não teve melindre em
negociar, no exterior, com o presidente do Supremo, uma forma de sair de
fininho das acusações de improbidade administrativa que a levariam ao
impeachment.
Em recente diálogo entre os mandachuvas da República
Petralha, o ex-senador Sarney, profundo conhecedor dos descaminhos da
privatização patrimonialista de recursos públicos, matou a charada para
libertar de vez os donos do poder da Operação Lava-Jato. O ex-presidente foi curto,
grosso e objetivo: o problema real consistiria em como barrar a tal operação
nos Tribunais Superiores. Esse parece ser o caminho para onde se encaminha a
engenharia da corrupção de petistas e associados.
Solução tipicamente patrimonialista: ninguém ouse atrapalhar
a vida dos donos do poder: na hora “H” eles conseguem se salvar mediante uma
aplicação da lei acomodada aos seus interesses. Não faltará um tribunal
superior que declare inválida toda a Operação Lava-Jato, “ficando tudo como
dantes no quartel de Abrantes”... É o fim
da picada, como reza o ditado popular! Tomara que, desta vez, isso não
aconteça, como infelizmente já aconteceu em oportunidades semelhantes nas
Operações “Sundown/Banestado” (2006), “Boi Barrica/Faktor” (2008), “Satiagraha”
(2008) e “Castelo de Areia” (2009).
A situação de crise sistémica obriga-nos à coragem de pensar.
A filosofia clássica foi sistematizada na Grécia dos sofistas, quando na altura
do século IV AC Atenas perdia a sua supremacia para os inimigos. Sócrates,
Platão e Aristóteles colocaram a questão da Paideia
no contexto da debacle das instituições. “A coruja de Minerva”, escrevia Hegel,
“levanta o voo quando as sombras da noite se aproximam”.
No caso brasileiro, quando tudo estava bem, quando a exportação
das nossas commodities era bem paga
nos mercados internacionais, a classe média só pensava em gastar o dinheiro
fazendo compras em Miami. Um amigo que
fez carreira no setor financeiro, dizia-me há alguns anos, na época das divisas
abundantes: “Lula não me tirou nada, pode falar o que quiser”. Hoje, com as
finanças públicas desmanteladas, com a economia estagnada, com os bolsos vazios
pela alta tributação e pela volta da inflação, esse meu amigo e o resto dos
brasileiros nos perguntamos, como o ator Jorge Dória fazia, diante das
falcatruas do filho adultescente: “Onde foi que eu errei?”
Desenvolverei neste artigo três itens para responder à
problemática que a atual conjuntura nos apresenta: 1 – Devemos retomar o estudo
da nossa História, para reconhecermos a origem dos males do presente, como
fizeram os Liberais Doutrinários na França, no século XIX. 2 – Qual é o caminho
metodológico para identificar os nossos valores fundamentais, ao longo da
história cultural brasileira? 3 – Quais são as contribuições mais importantes
na identificação do nosso Estado Patrimonial? Da exposição desses três itens
sairá a Conclusão que almejamos neste momento: o que fazer nas atuais
circunstâncias, para potencializar o trabalho de desmonte do Patrimonialismo no
Brasil?
1 – Devemos retomar o
estudo da nossa História, para reconhecermos a origem dos males do presente,
como fizeram os Liberais Doutrinários na França, no século XIX.
Erramos todos numa coisa: não desmantelamos as bases
axiológicas sobre as que se sedimenta o Estado Patrimonial, o verdadeiro
leviatã que sequestra as nossas esperanças. Ora, não se modifica um curso
histórico sem prévio conhecimento dele. O nosso Estado Patrimonial é obra de
séculos. Daí que devemos fazer um esforço no sentido de conhecer as raízes
históricas das nossas mazelas como Nação organizada politicamente. Compreender
a gênese do Estado Patrimonial brasileiro, eis a questão. Uma missão que outros
países cumpriram a contento, quando viram a débacle
das instituições.
Isso ocorreu, por exemplo, na França do século XIX, quando o
país emergia das horripilantes cenas da Revolução Francesa e do terror
jacobino. Os historiadores tomaram conta da operação de salvamento, com
François Guizot à testa. Retomando as pegadas do romantismo inglês que, através
do romance histórico de Sir Walter Scott passou a se remontar às origens da
Nação, os britânicos conseguiram pavimentar a estrada para a formatação das
novas instituições que, com a democratização do sufrágio, abriram o caminho
para a participação de todos os cidadãos na condução do Estado, mediante o
aperfeiçoamento do governo representativo, na segunda metade do século XIX. Os
pródromos iniciais desse processo foram devidamente estudados por Guizot na História
da Revolução na Inglaterra.
Compreendido o caminho seguido pelos Ingleses, a
intelligentsia francesa passou, com os liberais doutrinários, Guizot à testa,
ao estudo das raízes dos males que afetaram a França na trilha do absolutismo,
solidificado no século XVII com Luís XIV. Como desmontar o monstro absolutista,
o “mal francês” a que se referia John Locke quando, ainda jovem estudante de
medicina, viajou pela França?
Tornava-se imperativo, de início, desmontar o novo modelo de
absolutismo, o democratismo rousseauniano, que tinha substituído, no final do
século XVIII, o absolutismo de um homem só do ciclo imediatamente anterior. A
Revolução Francesa, efetivamente, substituiu um despotismo, o do monarca
absoluto, por outro, o da tirania da maioria visado por Rousseau e os
Enciclopedistas.
Ora, como frisava Tocqueville em O Antigo Regime e a revolução,
a questão não seria de qual o caminho a tomar para substituir um absolutismo
por outro, mas de como sair do absolutismo na defesa da liberdade. Duas obras
ficaram como testemunho do empenho da intelligentsia francesa nessa empreitada:
A
História da civilização européia, desde a queda do Império Romano até a
Revolução Francesa de Guizot,
e Princípios
de Política, de Benjamin Constant de Rebecque.
É, portanto, de capital importância que compreendamos a
índole do nosso Patrimonialismo, bem como a escala de valores em que se
alicerça o comportamento da nossa sociedade em face desse tipo de dominação.
Autores vários desenvolveram trabalhos relacionados a esse tema. As mais
recentes contribuições brasileiras situam-se nos arraiais do pensamento liberal/conservador.
2 – Caminho
metodológico par identificar os nossos valores fundamentais, ao longo da
história cultural brasileira.
A
genealogia dos valores apreende-se, na história da cultura, pelo caminho da
indagação filosófica. Posto que os valores são os elementos existenciais de que
somos portadores para construirmos o mundo da Cultura, não poderá haver caminho
mais adequado na tentativa de identificar a nossa base axiológica, do que perguntarmos
pela forma em que se dá, entre nós, a reflexão filosófica, que se projeta sobre
a nossa estrutura ontognoseológica, explicitando as várias instâncias que a
integram. Para isso, podemos alargar a extensão da “Teoria tridimensional do
Direito” de Miguel Reale
ao mundo da cultura, em geral, e postularmos que, em face da história da mesma,
há três aspectos a serem levados em consideração: fatos, valores e normas.
Os
primeiros sedimentam-se no fluir constante das ações humanas, dando ensejo ao
pano de fundo de que se ocupa a historiografia. Os segundos constituem os
“ideais” que impulsionam os indivíduos a agirem, formando aquilo que Ortega y
Gasset
denominava de “crenças fundamentais” que estão presentes, como molas
propulsoras, em toda ação humana. As terceiras são as materializações dessa
dinâmica nas obras de Cultura, que foram identificadas, por Hegel, como
pertencendo a três vastos domínios representativos: arte, religião e filosofia,
e que, no terreno da formação das instituições, ensejam os universos da
economia, do direito e da política.
Ora, sendo
a ação humana entendida dentro dessa visão tridimensional, os valores
constituem a variante inspiradora e propulsora. Platão atribuía a “Eros” toda a
dinâmica da presença do homem no mundo. Os valores equivaleriam a esse mundo
arquetípico, tendo sido entendidos, por Max Scheler, como “entidades
ideio-afetivas” que estão na base de toda ação humana.
Embora se
possa entender a ação humana referida a esse contexto axiológico de uma forma
ampla que abarque, como faz Weber, o papel dos valores religiosos,
podemos centrar nossa indagação sobre os valores que inspiram a tipicidade
responsável dos atos humanos, aqueles referidos à moral. No contexto do neokantismo
tal pesquisa abre perspectivas amplas, como no caso da reflexão brasileira
encarregou-se de mostrar Antônio Paim.
À luz desta abordagem, poderíamos tipificar os “modelos éticos” encontradiços
na cultura brasileira.
Reale e
Paim mostraram que a criação filosófica obedece a uma problemática da qual
emergem os sistemas, presididos por uma ideia-mestra carregada de conteúdo
axiológico como Ideia-Força, que se destaca da perplexidade da meditação sobre
o ser do homem, tendo a força do arquétipo platônico. Tal marco
ontognoseológico é formulado como a chave do problema de que se ocupa a
meditação filosófica em determinado momento da história humana, referida a um
“Sitz-im-Leben” que exprime a concretude histórica da razão. Ora, a questão da
originalidade se joga toda aqui, destacando os aspectos específicos da resposta
dada pela razão perante a problemática assim formulada.
Miguel
Reale desenhou a metodologia que permite à meditação filosófica luso-brasileira
e ibero-americana caracterizar a sua originalidade, sem cair no extremo de uma
originalidade total, desvinculada da tradição filosófica ocidental. Essa
posição equilibrada é defendida também por outros pensadores brasileiros e
ibero-americanos como Paim ,
Alcides Bezerra ,
Luis Washington Vita ,
Augusto Salazar Bondy ,
Alejandro Korn ,
José Vasconcelos ,
José Carlos Mariátegui ,
Francisco Romero ,
Ernesto Mayz Vallenilla ,
Francisco Miró Quesada ,
Germán Marquínez Argote ,
Leopoldo Zea ,
etc.
Reale parte
do fato de que a criação filosófica contemporânea ocorre preferencialmente sob
a forma de meditação sobre problemas e não como formulação das grandes
perspectivas transcendente e transcendental (que já foram fixadas por Platão e
por Kant, respectivamente), ou como construção de sistemas (modalidade adotada
pela meditação filosófica ocidental até o final do século passado).
A partir
daí, Reale formula um método que permite a análise da meditação filosófica
brasileira e latino-americana como discussão de problemas, superando o vício do
engajamento apologético, que condena ou hipervaloriza autores, de acordo com as
preferências axiológicas do estudioso e vencendo, de outro lado, a atitude
puramente analítica, que reduz a filosofia ao estudo dos clássicos sem, contudo,
reconhecer aos pensadores brasileiros e latino-americanos a capacidade de
meditar sobre a própria realidade.
No seu
ensaio intitulado “A doutrina de Kant no Brasil”
o filósofo paulista já tinha destacado o fato de o pensamento kantiano ter tido
entre nós um desenvolvimento criativo, em estreita relação com a reflexão dos
pensadores sobre as circunstâncias particulares da história brasileira. O
criticismo kantiano, observa Reale no mencionado ensaio, não entrou no Brasil
simplesmente como cópia das idéias do filósofo de Königsberg (hipótese que
Clóvis Bevilacqua
tentou provar no seu trabalho dedicado à saga da doutrina kantiana em terras
brasileiras), mas penetrou de forma viva e criativa.
A respeito,
escreve Reale: “A doutrina de Kant, no que ela possui de perenemente vital, não
se presta a essas recepções fáceis nem pode ser convertida em um conjunto
cerrado de princípios. O criticismo é antes um método, uma atitude ou posição
espiritual. É um ponto de partida para a pesquisa criadora; mais uma forma de
inquietação e de crise estimativa do que de plenitude e suficiência. Daí
poder-se dizer que a presença de Kant, ao menos como motivo de filosofar,
constitui um sinal de densidade cultural, como certas roupagens vegetais
assinalam as terras ricas de húmus. A compreensão de Kant não permite, em
verdade, uma atitude ou forma cômoda de filosofar sem excessiva filosofia, sem
serem empenhadas a fundo as nossas mais subtis capacidades de inteligência em
um trabalho perseverante e metódico”.
A filosofia
clássica é, portanto, para o pensador paulista, não uma muralha que impede o voo
do espírito, mas antes uma trilha aberta, que nos convida a caminhar por ela,
iluminando, com os seus ensinamentos, a problemática que vivemos. Em relação a
esse posicionamento, Paim escreveu: “A filosofia é certamente um saber
especulativo, que se volta para uma problemática que, embora renovada através
do tempo, se tem revelado perene em contraposição à alternância dos sistemas.
Esses problemas, contudo, têm sempre a ver com a circunstância cultural. De
sorte que o caráter especulativo da filosofia não pode ser arrolado como
simples diletantismo, como se a filosofia não tivesse nenhum compromisso com a
temporalidade e as angústias de determinado momento da cultura de um povo”.
Em relação
à metodologia formulada por Miguel Reale para possibilitar a pesquisa da
história das idéias filosóficas, Antônio Paim escreveu: “O método sugerido por
Miguel Reale para a investigação da filosofia brasileira compõe-se dos
seguintes elementos: 1) identificar o problema (ou os problemas) que tinha pela
frente o pensador, prescindindo da busca de filiações a correntes que lhes são
contemporâneas no exterior; 2) abandonar o empenho de averiguar se o pensador
brasileiro interpretou adequadamente as idéias de determinado autor
estrangeiro, mais expressamente, renunciar ao confronto de interpretações e,
portanto, ao cotejo da interpretação do pensador brasileiro estudado com outras
interpretações possíveis, para eleger entre uma ou outra; e 3) ocupar-se
preferentemente da identificação de elos e derivações que permitem apreender as
linhas de continuidade real de nossa meditação”.
Convém
indagar, a esta altura da concisa exposição que desenvolvo acerca do pensamento
de Miguel Reale face à história das idéias, como fundamenta o filósofo paulista
a metodologia apontada. A meu entender, o nosso autor concebe a história das
idéias como um desdobramento da “reflexão crítico-histórica” por ele analisada
em Experiência
e Cultura.
No contexto
da original interpretação que o pensador paulista realiza da fenomenologia
husserliana, à luz da herança transcendental kantiano-hegeliana, ele destaca a
correlação in fieri do subjetivo e do
objetivo na subjetividade concreta.
“Em verdade” - frisa a respeito Reale - “se a consciência intencional se dirige
sempre para algo, visando à conversão de algo em objeto, e se este, enquanto objeto, não se distingue daquilo que se
oferece à consciência, não se pode considerar ‘puramente subjetivo’ o momento
culminante do processo eidético. Parece-me, ao contrário, que a ‘reflexão
fenomenológica’ é necessária e intrinsecamente subjetivo-objetiva, isto é, ontognoseológica, consoante terminologia
que julgo mais adequada para indicar o âmbito em que se dão todos os atos
cognoscitivos e as volições do homem em sua perene e dinâmica relação com a
natureza, assim como na trama de seus próprios conhecimentos e volições e do
percebido e querido por ‘um eu’ e ‘outro eu’. Na subjetividade transcendental
já está, por assim dizer, in nuce, a
experiência ontognoseológica, o processo de significações ou ‘intencionalidades
objetivadas’ que são a realidade da ‘cultura’. Consciência intencional ou
temporalidade ou historicidade, longe de serem antitéticas, são, pois,
expressões que se exigem e se complementam (...)”.
Ora, se
consciência intencional e historicidade são expressões dialéticas e
complementares, a “reflexão crítico-histórica” é, para Miguel Reale, o momento
culminante do processo ontognoseológico, que é, essencialmente, “reflexão
ambivalente”, no seio da qual “quanto mais se desvelam as fontes da
subjetividade mais se capta o sentido da objetividade”.
Somente assim, considera o nosso autor, é possível salvaguardar os dois
aspectos básicos destacados pela fenomenologia na dinâmica do conhecimento: o
da subjetividade e o da objetividade (“mundo do viver comum” e “mundo da
originariedade natural”).
É conhecida
a forma clara e contundente com que o nosso pensador aplica o conceito de
“reflexão crítico-histórica” ao filosofar, quando reflete sobre a doutrina da Lebenswelt husserliana. Para Miguel
Reale é claro que “nenhum conhecimento ou nenhuma Filosofia tem sentido fora do
diálogo da história, ou sem consciência da historicidade do homem e de suas
idéias, de sorte que o desconhecimento do valor da História equivale a abdicar
da Filosofia, da cultura e do sentido da própria vida” .
Esta concepção insurge-se contra a denominada por Husserl “Filosofia da
decadência” (Verfallphilosophie), que
pratica a “retirada do mundo” e que “espelha um fenômeno de massa” ao olvidar o
“espírito de responsabilidade pessoal e radical inerente ao ethos da autêntica Filosofia” .
O nosso pensador já pressentia, sem dúvida, quando escrevia estas palavras em Experiência
e Cultura, o fenômeno de alienação protagonizado hodiernamente pela
moda analítica que se pratica nas corporações autistas e pseudo filosofantes,
em que infelizmente se converteram não poucos departamentos de filosofia das
Universidades brasileiras.
À luz da
“reflexão crítico-histórica” proposta por Miguel Reale, o filosofar brasileiro
teria, basicamente, duas tarefas: identificar os temas-chave da filosofia
ocidental e, em segundo lugar, refletir, à luz desse legado, sobre a própria
problemática histórica. Valeria aqui lembrar rapidamente a forma em que Hegel
entendia o estudo da filosofia, pois o nosso autor aproxima-se neste ponto do
filósofo alemão. Para o filósofo alemão se, por um lado, a análise das
filosofias nacionais e dos sistemas devia ser objeto de estudo da história da
filosofia, a inquirição, contudo, não parava aí. Momento fundamental da
dialética da razão era constituído, também, pela busca da identidade dela
consigo mesma, ao que só se poderia chegar mediante a integração das várias
filosofias nacionais e dos sistemas numa visão de conjunto que, revelando as
diferenças históricas, explicitasse, também, o fundo comum que as unia, a força
e a lógica do espírito humano na busca da sua identidade.
Ora, Miguel
Reale levou a cabo ambas as tarefas com indiscutível originalidade. Como lembrava
com propriedade Roque Spencer Maciel de Barros: “Miguel Reale desempenhou e
desempenha entre nós, e creio que também hoje, em Portugal, um papel semelhante
ao que Ortega y Gasset desempenhou em Espanha e no mundo ibérico em geral.
Diríamos que Reale se põe diante de cada autor estudado compreendendo que cada
um há de ser examinado não segundo padrões abstratos, mas com as ‘suas
circunstâncias’. ‘Tu es tu e a tua circunstância’, parece dizer a cada um o
filósofo brasileiro, disposto a situar-se diante dos problemas que o autor em
exame enfrentou, com as ferramentas de que dispunha e, se critica as suas
obras, fá-lo ‘de dentro’, da perspectiva do pensador estudado, com generosa
serenidade e simpatia, que combina com o rigor crítico”.
No seu
trabalho de diálogo filosófico com os autores, Reale fez da tolerância e do
pluralismo o clima de trabalho que soube comunicar ao Instituto Brasileiro de
Filosofia, criado por ele em 1949 e ao seu órgão, a Revista Brasileira de Filosofia.
Os que “amam a verdade alimentada pelo livre sopro das idéias” - frisa Reale
numa das suas últimas obras - “mister é que fortaleçam a sua posição pela
seriedade das pesquisas, pela meditação serena que é o âmago, a ‘intimidade’ da
filosofia (...). É claro que do diálogo filosófico não se exclui a veemência,
nem a paixão pela verdade, mas os caminhos da filosofia são os das convicções
livremente elaboradas e transmitidas, não se justificando a polêmica convertida
em razão do filosofar.”
O estudo
sistemático do pensamento brasileiro por parte do Clube da Aeronáutica é uma
resposta concreta da atual geração de estudiosos, no sentido de dar
prosseguimento ao trabalho de pesquisa da nossa identidade cultural, efetivado
por Reale. A retomada do rumo nesse contexto teórico deve-se, certamente, aos
herdeiros do Culturalismo sistematizado pelo pensador paulista. Faço referência
aqui, explicitamente, àquele que, pertencendo ao Clube da Aeronáutica, trouxe
para dentro deste espaço de cultura a metodologia de Reale, aplicando-a às
pesquisas desenvolvidas nas várias versões oferecidas, nos últimos anos, do
Curso de Pensamento Brasileiro. Refiro-me ao amigo e colega Francisco Martins
de Souza.
O caminho trilhado por Reale e pelos seus
discípulos na trilha da Escola Culturalista será, certamente, o norte que
guiará com segurança a busca pela nossa identidade axiológica. Ela deverá ser
buscada não na ação autoritária do Estado sobre os cidadãos, mas na defesa da
liberdade de pensamento do indivíduo, num contexto de tolerância intelectual,
como o aberto por Reale no Instituto Brasileiro de Filosofia.
3 - Contribuições mais importantes
na identificação do nosso Estado Patrimonial.
No esforço em prol de traçarmos um rumo alvissareiro para o
Brasil contemporâneo, tão importante quanto a compreensão dos valores da nossa
cultura nacional é a adequada compreensão do fenômeno do Patrimonialismo. Considero
fundamental destacar que a pesquisa nesse ponto tem sido desenvolvida por
várias gerações de estudiosos, a maior parte dos quais se situam no contexto
liberal-conservador. Em estudo publicado pelo Clube da Aeronáutica denominei
esse grupo de “Escola Weberiana Brasileira”,
pelo fato de os seus integrantes inspirarem-se na tipologia do Patrimonialismo
proposta por Max Weber em Economia
e Sociedade [46]
e completada por Karl Wittfogel na obra intitulada: O Despotismo Oriental. [47]
A partir dos anos 70, esses estudiosos recolheram o legado de Raimundo
Faoro que, em 1958, elaborou detalhada análise da formação social brasileira, à
luz do arquétipo weberiano de “patrimonialismo”, na obra intitulada: Os
donos do poder [48].
O livro de Faoro teve o mérito de advertir para essa hipótese na formação
social brasileira. O Estado não teria surgido como fruto de um consenso da
sociedade, mas teria se originado a partir da hipertrofia de um poder
patriarcal original, que alargou a sua dominação doméstica sobre territórios,
pessoas e coisas extrapatrimoniais, passando a gerir os negócios públicos como
propriedade familiar (ou patrimonial). Essa hipótese foi retomada por Simon
Schwartzman[49] na tentativa de
apreender o verdadeiro sentido da história política brasileira, sem
preconceitos apriorísticos. Schwartzman identificou os suportes sociais do
patrimonialismo, mas advertiu, igualmente, para a singularidade de que se
revestia: o seu caráter modernizador. Mais precisamente: em alguns momentos, o
patrimonialismo brasileiro teria assumido a liderança do processo de
modernização do país, razão pela qual não poderia exaurir-se nos limites do
patrimonialismo tradicional, cuja análise tinha sido feita por Max Weber.
Coube a Antônio Paim [50] a
tentativa de dar um passo à frente, buscando inserir a variante modernizadora
na tradição que remonta a Pombal (cujo papel foi inteiramente subestimado na
análise de Faoro). Segundo Paim, a proposta weberiana deve ser entendida à luz
do espírito geral da obra do sociólogo alemão, vale dizer, tomando-a como
roteiro para a investigação de uma realidade e não como uma operação de simples
enquadramento. Paim retoma, assim, a idéia de Weber de que os conceitos
sociológicos (como os de Patrimonialismo e Feudalismo) são apenas tipos ideais para
serem referidos à realidade e reformulados à sombra dela.
Wanderley Guilherme
dos Santos [51]
propôs a categoria de autoritarismo instrumental como síntese expressiva
do patrimonialismo brasileiro. Trata-se da idéia de que o Estado
patrimonial brasileiro, ao assumir a feição modernizadora, pode evoluir no
sentido da construção das instituições modernas (liberais). Wanderley Guilherme
indica como exemplo dessa proposta a obra de Oliveira Vianna.
Três contribuições caracterizam a evolução mais
recente da análise efetivada, à luz da sociologia weberiana, acerca do Estado
Patrimonial no Brasil: em primeiro lugar, as pesquisas desenvolvidas por José
Osvaldo de Meira Penna ao longo das últimas quatro décadas e centralizadas nas
suas obras: Psicologia do subdesenvolvimento [52],
Em berço esplêndido [53],
O Brasil na idade da razão [54],
A utopia brasileira [55],
O Dinossauro [56],
Opção preferencial pela riqueza [57]
e Decência já [58]. Nessas obras, Meira Penna analisa, em
profundidade, a estrutura cartorial do patrimonialismo brasileiro, mergulhando
nas suas raízes culturais, notadamente no estudo do substrato de psicologia
coletiva que caracteriza à Nação brasileira.
As minhas obras intituladas: Castilhismo, uma
filosofia da República [59],
O Castilhismo [60],
Oliveira Vianna e o papel modernizador do Estado brasileiro, [61]
Estado, cultura y sociedad en la América Latina, [62]
Patrimonialismo e a realidade latino-americana, A análise
do Patrimonialismo através da literatura latino-americana
e O Republicanismo brasileiro
foram dedicadas a realizar uma aproximação entre os tipos ideais
weberianos e as categorias propostas por Oliveira Vianna para o estudo da
formação do Estado modernizador brasileiro. Mostrei que a tipologia do
patrimonialismo foi a base sobre a qual foram organizados os Estados nas
antigas colônias espanholas e no Brasil, tendo dado ensejo a uma cultura
vinculada à ética contrarreformista, contrária ao progresso e à consolidação da
democracia representativa, em que pese o fato da preexistência, na Península
Ibérica, de antiga tradição contratualista de feição libertária.
Significativa contribuição hodierna da escola
weberiana no Brasil é constituída pelas pesquisas levadas a termo por Antônio
Paim, a partir do ano 2000, acerca dos desdobramentos culturais e políticos do
Estado Patrimonial brasileiro, ao ensejo da ascensão das correntes marxistas no
cenário institucional do país. Essa nova vertente da pesquisa sobre o
Patrimonialismo concentrou-se nas seguintes obras: Momentos decisivos da
história do Brasil [66],
O relativo atraso brasileiro e sua difícil superação [67],
O Socialismo Brasileiro (1979-1999) [68], A
escola cientificista brasileira, [69] Para
entender o PT [70] e Marxismo
e descendência.
À luz do arcabouço conceitual esboçado pelos
estudiosos que configuram a Escola Weberiana Brasileira, poderíamos resumir
assim, o mais recente capítulo do Patrimonialismo no ciclo lulopetista. Escrevia sir Francis Bacon, um dos
ícones do empirismo inglês, na sua obra intitulada: Novum Scientiarum Organon (1620),
que a experiência humana possui momentos privilegiados, aqueles em que os
segredos da natureza revelam-se, por instantes, perante a lente dos cientistas.
Considerava que alguns fatos constituíam instantiae
ostensivae (instâncias reveladoras,
ou casos em que as estruturas da natureza estariam no seu máximo de
manifestação). Esses seriam os momentos de insight
das leis que comandam o cosmo.
Os brasileiros estamos assistindo, nos eventos do Petrolão, a
uma dessas raras circunstâncias na evolução do nosso secular Estado
Patrimonial. A opinião pública não vê todas essas instâncias, mas paga a conta.
O contribuinte que o diga. Sente já no seu bolso os desmandos da empresa
patrimonialista, montada passo a passo, com paciência de sindicalista que
assiste à assembleia para, esvaziada pelo cansaço, aprovar a greve almejada. No
caso do Petrolão, esta seria a última etapa, a mais visível, de aparelhamento
do sistema produtivo por uma ávida elite preparada para a função de
privatiza-lo tudo em benefício da burocracia estatal presidida pelo Partido.
Demétrio Magnoli sintetizou bem a essência do atual Patrimonialismo
lulopetista: “O Estado lulista é um conglomerado de interesses
privados. Nele se acomodam a elite patrimonialista tradicional, a nova elite do
poder petista, grandes empresas associadas aos fundos de pensão, centrais
sindicais chapa-branca e movimentos sociais financiados pelo governo”.
Não é de hoje o
projeto dessa empresa patrimonialista, que teve etapas memoráveis. Em todas elas,
a ciência aplicada foi posta serviço da burocracia estatal, a fim de garantir a
eficiência na racionalização da empresa do rei ou do primeiro mandatário. Foi
assim nas reformas pombalinas, na segunda metade do século XVIII, quando o
marquês de Pombal amarrou o sistema produtivo ao redor dos Monopólios Reais,
fora dos quais ninguém conseguiria sobreviver. Assim aconteceu nas reformas
modernizadoras do Império, com o Monarca como centro da atividade econômica,
colocando sob o seu tacape aqueles que quisessem se apresentar como empresários
independentes do Trono. As agruras sofridas pelo visconde de Mauá, um dos
nossos próceres do livre empreendedorismo, estão aí para provar a eficiência do
projeto patrimonialista. Assim aconteceu no ciclo modernizador do getulismo,
com as reformas ensejadas pela elite gaúcha comandada com mão de ferro pelo
próprio Getúlio Vargas, com o auxílio dos jovens intelectuais que integravam a
Segunda Geração Castilhista, com Lindolfo Boeckel Collor à frente, tendo
previamente sido cooptada a jovem elite tenentista no Clube 3 de Outubro. Assim
ocorreu no ciclo militar ao redor da proposta modernizadora em andamento nos
terrenos econômico e social, pensada no petit
comité que reunia, ao redor do General Presidente, a elite tecnocrática e
militar, responsável por traçar o andamento da máquina pública rumo ao Brasil
Grande.
O lulopetismo tentou
copiar esse esquema de modernidade ao redor do Estado empresário,
racionalizando ao máximo a máquina tributária, centralizando as receitas em
favor da União (com detrimento de Estados e Municípios), utilizando como mão
distribuidora de recursos entre os empresários cooptados o BNDES que partiu,
também, para aliciar fidelidades internacionais no Hemisfério Sul, (na África e
na América Latina), na tentativa de dar vida essa nova diplomacia que está
acabando de desmontar a primorosa máquina construída, na aurora da República,
pelo Barrão do Rio Branco no Itamaraty. O mecanismo foi o mesmo do ângulo
econômico: tudo centralizado ao redor dos Monopólios oficiais, dentre os que se
destacam a Petrobrás e a Eletrobrás. O modelo modernizador lulopetista
assemelha-se, assim, ao posto em prática por Vladimir Putin, no seio do secular
patrimonialismo russo, com a hegemonia das empresas produtoras de gás e
petróleo. Proveniente do meio sindical, Lula caprichou no sentido de dominar
completamente os fundos de pensão das estatais.
Fazem-se sentir hoje
os efeitos práticos dessa política patrimonialista: enriquecimento rápido dos
agentes públicos (garantida a sua segurança nas sombras da nossa complexa
legislação, que coloca sobre todos a espada de Democles da insegurança
jurídica, mas que para os amigos do rei constitui garantia de que nada
acontecerá com eles). Vide as penalidades muito diferentes impostas no
julgamento do Mensalão: pesadíssimas para os que foram cooptados no setor
privado pelo turbilhão de dólares na cueca e nas malas gordas de notas,
levíssimas para os arquitetos dos malfeitos
(para utilizar a terminologia do agrado da presidente Dilma).
A maciça divulgação
dos feitos da ladroagem estão sensibilizando a opinião pública de que há algo
de errado na estrutura do nosso Leviatã. Foi de tal grau a tsunami da corrupção
que inundou o quintal do dia a dia do cidadão comum. Enquanto itens básicos da
saúde pública faltam nas Unidades de Pronto Atendimento, a elite larápia tem
pronto atendimento de primeiro mundo no Hospital Albert Einstein, o mais caro
do país. Enquanto já começa a sobrar calendário e a faltar dinheiro na metade
do mês no bolso dos contribuintes, os dólares desviados sobram nas contas
milionárias da petralhada e dos empresários corruptos. Enquanto a sociedade
almeja por transparência na prestação de contas, a presidência da República é
pródiga em enrolação e em contradições veiculadas pelos porta-vozes oficiais.
Enquanto se esperava que o Ministério da Justiça cumprisse com o seu papel de
facilitador para que a Justiça operasse livre e célere, converteu-se em guiché
de reclamos dos larápios e em janela por onde assomam os feitores dos
desmandos, que buscam pressionar politicamente os magistrados honestos.
Tomara que de todo
esse movimento de confusa agitação surja uma análise aprofundada sobre as
causas das nossas mazelas: o Estado Patrimonial e o seu cérebro, instalado hoje
confortavelmente na Presidência da República e nos gabinetes dos burocratas de
Brasília.
Conclusão
Nesta confusa situação de desmonte e realinhamento
das instituições republicanas quais são as perspectivas que se descortinam? O
Estado patrimonial brasileiro entrou em colapso, à sombra do acirramento dos
seus vícios potencializados pelo Partido dos Trabalhadores e o Lulismo. Em meio
ao nevoeiro dos fatos, podemos enxergar, no entanto, duas saídas, à luz das
variáveis que tenho analisado nesta exposição.
Em primeiro lugar, encontramos uma proposta
arquitetada pelos estudiosos do Patrimonialismo. É possível, sim, elaborar uma
agenda para superar os entraves de séculos, decorrentes da feição privatizante
do Estado por clãs e patotas. O caminho para acabar com o peso do
Estado-faz-tudo potencializado pelo Executivo consiste em diminuir a sua força
de aliciamento, mediante a suspensão das “emendas parlamentares”, que se
tornaram a torneira por onde o Presidente da República repassa benesses ao
Legislativo, com a finalidade de manter a sua dominação corrupta sobre os
demais Poderes e sobre a sociedade.
Trata-se de uma opção que é enxergada por Antônio
Paim nas suas mais recentes abordagens, que visam a enfraquecer a crença
popular no Estado como pai de todos profundamente enraizada na mentalidade
popular.
Essa providência e outras (como a discussão concreta acerca das privatizações)
vão se encaixando no sentido de fortalecer o papel dos cidadãos e o seu
relacionamento com o Poder Legislativo, mediante a adoção de mecanismos que
aproximem eleitor de eleito e garantam a adequada representação de interesses
(e o voto distrital seria peça-chave dessa saída, não se descartando, a meu
modo de ver, num futuro relativamente próximo, a saída parlamentarista). Esses
fatores, somados, levariam certamente a um arrefecimento do Patrimonialismo na
gestão do Estado.
Ora, na atual quadra de disritmia institucional,
fica clara a reação conservadora de amplos setores do Congresso (de que se
tornou porta-voz o presidente da Câmara dos Deputados), inspirada nas críticas
da sociedade à ação deletéria do governo, bem como nas propostas moralizantes
da bancada evangélica. Seja qual for o caminho que os fatos tomem nos próximos
meses, não há dúvida de que se trata de uma reação proveniente da sociedade
civil, que encontra repercussão no senso de sobrevivência de muitos deputados e
senadores. Querendo ou não, significativos setores de ambas as casas
legislativas passaram a se tornar porta-vozes dos desejos da sociedade, no
sentido de ver refreada a maré montante da pretensa hegemonia do PT e
coligados. Dou como exemplo a aprovação, pelo Senado, da adoção do voto
distrital proposta pelo senador José Serra. As reformas em curso que transitam
pelo dialético caminho das várias Comissões Parlamentares de Inquérito vão
nesse sentido.
Esta variável poderá desaguar num quadro de
reformas significativas, tanto dos Partidos quanto da gestão do Estado. A
operação Lava Jato está a mostrar que amplos segmentos do Ministério Público e
da Magistratura alinham-se no sentido de depurar as práticas republicanas, indo
de encontro à busca de um reforço da Representação exigida pela sociedade, a
que aludi anteriormente. Para que essa ampla tarefa prospere seria necessário
que a intelligentsia brasileira apresentasse propostas coerentes. Políticos
calejados como César Maia vêm a possibilidade concreta de, ao redor dessa
agenda renovadora, se constituir um movimento de “união nacional”, que nos
tirasse do atual atoleiro.
Aqui se abriria espaço para um trabalho construtivo de grande importância a ser
efetivado pelo núcleo de pesquisadores em Pensamento Brasileiro do Clube da
Aeronáutica, haja vista que entre os seus membros contam-se cientistas
políticos, sociólogos, professores e juristas de nomeada.
Em segundo lugar, desponta no horizonte das nossas
esperanças uma ideia-matriz herdada das várias gerações de pensadores
liberal-conservadores em que é rica a nossa tradição política: vale a pena
lutar pela Liberdade! Esta não é um ornamento constitucional de última hora. A
luta pela Liberdade confunde-se com as origens da nacionalidade, tanto em
Portugal quanto no Brasil. Ela foi, desde o início dos nossos tempos como
nações organizadas, o fogo que aqueceu os corações dos homens que lutaram pela
dignidade e pela defesa dos direitos inalienáveis à vida, à liberdade, às
posses, tanto por parte de intelectuais de nomeada como Alexandre Herculano,
que trouxe para Portugal a benfazeja influência dos doutrinários franceses,
quanto do ângulo da nossa história, que se confunde, nos seus primórdios, com a
tarefa de que se desincumbiram Dom João VI, Silvestre Pinheiro Ferreira, Dom
Pedro I, Dom Pedro II, o visconde de Uruguai Paulino Soares de Sousa, bem como
os demais estadistas que pensaram os fundamentos da representação no Brasil.
A magna tarefa de pensar o país, efetivada pela
Escola Culturalista com Miguel Reale e Antônio Paim à testa, e continuada hoje
pelas jovens gerações que em blogs e portais aplicam os princípios do humanismo
cristão liberal-conservador às atuais circunstâncias,
insere-se nesse ideal de luta pela liberdade nas instituições republicanas,
retomando a tarefa de arautos que já se foram como Rui Barbosa, Assis Brasil,
Gaspar da Silveira Martins, Milton Campos, Carlos Lacerda, Miguel Reale,
Roberto Campos, Gilberto Ferreira Paim, Donald Stewart, Og Leme, José Guilherme
Merquior, Roque Spencer, Ubiratan Macedo e tantos outros. Vale, sim, a pena
lutar pela liberdade. Vale, sim, a pena criticar com denodo o estatismo
patrimonialista e a sem-vergonhice descarada que tomou conta do país no longo
consulado lulopetista. Vale, sim, a pena erguer uma voz de indignação em face
das tramoias da esquerda totalitária enraivecida e arrogante, que esvaziou os
cofres da nação para se locupletar às custas dos menos favorecidos que prometia
redimir. Vale, sim, a pena trabalhar em prol de formular as linhas mestras de
um desenvolvimento capitalista ordeiro e a serviço de todos os brasileiros!
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A respeito da
possibilidade de conversar com Dilma, Fernando Henrique já tinha dito no início
deste ano que não falaria se se tratasse de um conchavo para eludir
responsabilidades. Na época, o ex-presidente falou: “O governo pode vir a recuperar a iniciativa, mas não vai
recuperar com ministro enrolando na televisão. A resposta da reforma política
não é crível. A saída é ir mais fundo nas investigações e reconhecer: erramos.
Quantas vezes não disse que errei por não ter ajustado o câmbio antes de 1998?
Tinha mil razões para dizer porque não ajustei, mas não importa. Não se pode
fugir da responsabilidade histórica. (...) Sobre se aceitaria um convite da
presidente para conversar, o ex-presidente ressaltou que não recusaria, mas que
teria que ser em público, pois "não é hora para conchavo'': “Nunca recusei
chamado de ninguém para conversar. Nem da Dilma. Agora o momento não é de
conchavo. Se a presidente achar que é momento de chamar, deve ser público. Não
se pode conversar sem pauta. Não sei se ela tem força convocatória, porque não
tem que chamar só a mim. Tem que ampliar. Agora temos que digerir, todos nós,
esse processo todo e ver o que vai acontecer nas próximas semanas. Vamos ver se
o governo vai pagar o preço de correr mais fundo esse processo de
estabelecimento das responsabilidades.”
[O Globo, 13/04/2015]
(consultado em 28/07/2015).
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