Pirâmide de Quéfren - Egito Antigo (Foto: Wikipédia). |
Joseph Stalin, modelo de déspota oriental, "Pai do Povo" |
O Século XXI está se revelando muito fecundo, no que tange à revivescência de antigos modelos políticos. Quando todo mundo achava que o velho "despotismo oriental" estava morto com a queda da União Soviética, eis que o "patrimonialismo bolivariano" expande o seu modelito até na Europa. Parece que o movimento "podemos", na Espanha, foi financiado pelos bolivarianos. E ressurge a modalidade mais brutal de despotismo hidráulico, com o Estado Islâmico, que gerou uma nova onda de terror e desestabilização política no Oriente Médio e na África. Em virtude disso, vale a pena lembrar o conjunto de conceitos que foram desenvolvidos pela sociologia weberiana a respeito do Patrimonialismo e do Despotismo Hidráulico.
Os
conceitos sociológicos fundamentais para entender o Estado Patrimonial foram
desenvolvidos basicamente por dois grandes pensadores alemães do século XX: Max
Weber (1846-1920) e Karl Wittfogel (1896-1988). Para entendermos o que se passa
na América Latina no plano político, com a presença diuturna de Estados
autoritários que tentam aberturas democráticas, mas que, volta e meia derrapam
novamente no autoritarismo, torna-se necessário lembrarmos alguns conceitos
básicos desses autores. É o que tentarei fazer nas próximas páginas, tendo como
ponto referencial a exposição sumária do pensamento de ambos os sociólogos.
O
Patrimonialismo contraposto ao Feudalismo, segundo Max Weber.
Max
Weber entende o Estado como “uma comunidade humana que pretende, com êxito, o
monopólio do uso legítimo da força dentro de um determinado território”.[1]
Portanto,
a noção básica de Estado, para ele, é a de violência legalizada. A política,
nesse contexto, pode ser definida como o conjunto de esforços feitos com vistas
a participar do poder ou a influenciar na divisão do mesmo, seja entre Estados,
seja no interior de um único Estado. O poder, para Weber, pode ser valorizado
em si mesmo, sem que necessariamente tenha que estar referido a outros fatores,
por exemplo, os econômicos. O Estado, suposta essa concepção da política e do
poder, só pode existir sob a condição de que os homens dominados se submetam à
autoridade continuamente reivindicada pelos que exercem a dominação. Surgem,
aí, estas questões: em que condições se submetem aqueles e por que? Em que
justificativas internas e em que meios externos se apóia essa dominação?
Weber
distingue três tipos puros de dominação legítima, que não se materializam,
enquanto tais, mas que podem caracterizar, em maior ou em menor grau,
misturando-se, as concreções históricas do Estado. Esses três tipos de
dominação são: a racional, a tradicional e a carismática. Na primeira, a
autoridade de quem exerce a dominação alicerça-se na crença da comunidade
respectiva na legitimidade da ordem estabelecida. Na dominação tradicional, a
autoridade alicerça-se na crença da comunidade em certas tradições que a
consagram. Na dominação carismática, a autoridade alicerça-se na crença da
comunidade no valor excepcional que para ela encarna uma determinada personalidade.
No
seio da dominação tradicional, Weber distinguiu dois tipos básicos: o
Patrimonialismo e o Feudalismo. No contexto deste último, prevalece o
“feudalismo de vassalagem ocidental”, cujo caráter fundamental reside no fato
de que o poder do nobre proprietário da terra (ou barão) não procede
diretamente do soberano, ensejando, assim, relações não de subordinação pura e
simples, mas de caráter contratual, que implicavam, evidentemente, numa
limitação do poder deste último. O exemplo mais puro deste tipo de feudalismo é
encontrado por Weber na Inglaterra, onde vários fenômenos concomitantes
contribuíram para a limitação do poder do monarca, entre os quais cabe
mencionar: a - a conservação da grande propriedade fundiária em mãos dos
barões; b - o papel desempenhado pela gentry (classe média
rural), que não se deixou burocratizar pelo príncipe; c - o poder
desenvolvido pelos juízes de paz; d - a participação dos notáveis no
governo, graças à instituição parlamentar; e - a redução, ao mínimo, da
administração burocrática, etc.
O
Patrimonialismo é caracterizado por Weber como aquela forma de dominação
tradicional em que o soberano organiza o poder político de forma análoga ao seu
poder doméstico. Ao lado da organização do poder político segundo o modelo
doméstico, é igualmente essencial ao Patrimonialismo a estruturação do quadro
administrativo, através do qual se exerce a dominação. Quando esse quadro
recebe do soberano, ou conserva, com o consentimento dele, determinados poderes
de mando e as suas correspondentes vantagens econômicas, temos o que Weber
chama de dominação estamental.
A
expressão mais extremada da dominação patrimonial é, para Weber, a patriarcal,
que é caracterizada como pré-burocrática.
Nela, a autoridade não se baseia no dever de servir a uma “finalidade
impessoal e objetiva” (como acontece na dominação racional), obedecendo a
normas abstratas, mas justamente no contrário: na submissão ao pater-famílias,
em virtude de uma devoção rigorosamente pessoal. A expressão original do
patriarcalismo é a autoridade paterna no seio da comunidade doméstica. O
Patrimonialismo é uma extensão dessa autoridade tradicional para além das
fronteiras do lar, conservando o aspecto doméstico de uma administração não
racional e os traços privatizantes da autoridade unipessoal e do direito
costumeiro, sendo que no âmbito patrimonial, como frisa Weber, a submissão
pessoal ao senhor “garante como legítimas as normas procedentes do mesmo”.[2]
Weber
encontra no Antigo Egito, no Império Chinês e na Rússia Czarista três casos típicos
de dominação patrimonial. O Antigo Egito foi o primeiro regime
burocrático-patrimonial. Desenvolveu-se originariamente a base da clientela
real. A necessidade de uma política unitária, em decorrência das condições
físicas, levou a um aprimoramento burocrático mediante a ascensão da casta dos
escribas e a institucionalização do trabalho compulsório da população livre nas
obras públicas. O resultado desse modelo de dominação patrimonial é assim
caracterizado por Weber:
Todo
o território pareceu ser um só e único oikos (domicílio) real, junto ao
qual, como entidades aproximadamente equivalentes, existiam unicamente os oikos
(domicílios) dos sacerdotes do templo. E assim foi tratado, do ponto de vista
jurídico, pelos romanos. [3]
Além
dos trabalhos hidráulicos, feitos na China mediante um sistema de serviço
compulsório dos habitantes livres, Weber salienta a presença de um fator que
reforçou o Estado Patrimonial: a religião oficial. Esse papel foi desempenhado
pelo confucionismo, que dava base à virtude cardeal da piedade filial, não só
no meio doméstico, mas também no âmbito das relações de subordinação dos
funcionários em relação ao soberano, dos funcionários inferiores em relação aos
superiores e, principalmente, dos súditos perante o estamento burocrático e o
monarca. Em relação ao outro caso-tipo de dominação patrimonial, o Estado
russo, Weber salienta a supremacia do Czar, mediante a atomização da nobreza,
graças ao sistema de sinecuras criadas pelo soberano ao redor dos cargos tschin,
que estavam à testa do estamento burocrático e do exército.
Weber
enfatiza o caráter centrípeto do Patrimonialismo, que conduz a pôr em prática
medidas tendentes à concentração e à perpetuação do poder unipessoal do
monarca. Isso leva à valorização, no contexto patrimonialista, das funções
administrativas apropriadas ou controladas pelo soberano, como instrumentos que
garantem o seu poder. Por isso, sob esse ângulo, o Patrimonialismo colide
frontalmente com o Feudalismo, que promove a redução das funções burocráticas.
A fim de controlar qualquer surto de dignidade (de autoridade baseada nos
sentimentos de independência e honra das camadas nobres), a dominação
patrimonial manipula as massas desprotegidas mediante o paternalismo de Estado,
ensejando assim o ideal do “pai do povo”, tão comum em contextos patrimoniais,
como o russo. Essa idéia associou-se à permanência do Patrimonialismo na época
moderna, pelo menos no Ocidente.
Outras
práticas patrimonialistas dirigidas ao fortalecimento do poder central do
monarca são as cargas tributárias, a concessão de sinecuras aos servidores
fiéis, o desmembramento da propriedade fundiária a fim de impedir o
fortalecimento da nobreza, a divisão de competências entre os funcionários
locais para que não acumulem poder excessivo, o emprego de funcionários
totalmente dependentes, a organização de exércitos armados e mantidos pelo
soberano (exércitos patrimoniais), a utilização, por parte do senhor
patrimonial, dos serviços de intermediação por delegação aos senhores territoriais
locais (no caso em que tivesse sido impossível a eliminação total da autoridade
deles), etc.
O
caráter de intermediação por delegação conferida pelo soberano patrimonial aos
senhores territoriais locais, bem como a feição dinâmica do seu relacionamento
com eles, são explicados por Weber nestes termos:
A
camada dos senhores territoriais locais exige, sempre (...), que o príncipe
patrimonial não atente contra o seu próprio poder patrimonial sobre os súditos,
ou o garanta diretamente. Por conseguinte, exige, sobretudo, a supressão de
qualquer intervenção dos funcionários administrativos do príncipe na esfera de
seu domínio, quer dizer, exige imunidade. Pela sua natureza, o senhor
territorial pretende ser a autoridade por meio da qual o soberano deva entrar
em relação com os súditos. À sua autoridade deve subordinar-se a
responsabilidade criminal e tributária dos mesmos. A ela deve ser confiado o
recrutamento militar, a arrecadação e a aplicação dos impostos. E como o senhor
territorial deseja aproveitar para si mesmo a capacidade de prestação (de
serviços) dos súditos (...), reduz, no possível, ou determina a parte que deve
corresponder ao soberano patrimonial.[4]
Exemplo
desse relacionamento – magnificamente ilustrado, aliás, por Oliveira Vianna[5]
em Populações meridionais do Brasil e em Instituições
políticas brasileiras – foi a administração colonial do Brasil.
A
utilização da força armada por parte do soberano patrimonial, é colocada por
Weber em estreita relação com os serviços extraordinários que podem ser
exigidos aos súditos, sendo, de outro lado, como já frisamos, um meio eficaz
para garantir a dominação. O “exército patrimonial” pode ser de muito diversa
procedência; essa tropa poderá compor-se de escravos dominados
patrimonialmente, arrendatários, colonos, jovens recrutados dos povos
submetidos, súditos recrutados por conscrição entre as massas camponesas,
etc. Oliveira Vianna faz uma detalhada
análise da forma em que o patronato rural brasileiro organizou verdadeiros
exércitos patrimoniais de mulatos, índios e mamelucos, para proteger o
latifúndio e ampliar os seus domínios.
Frisávamos
que a dominação tradicional, para Weber, abrange dois tipos fundamentais: o
Patrimonialismo e o Feudalismo. A distinção entre ambos, no entanto, não é
estática, mas dinâmica. Quer dizer: o trânsito das formas patrimoniais de
dominação às feudais realiza-se, através da presença de elementos que se
contrapõem ao poder unipessoal do príncipe, de forma que, historicamente,
organizações sociais como a inglesa que, em determinados períodos, estiveram
submetidas a uma dominação com fortes tendências patrimoniais podem, graças ao
desenvolvimento de forças sociais novas, evoluir até formas de caráter feudal.
É de capital importância salientar a importância da descoberta ensejada pelos
estudos de Weber: o moderno constitucionalismo europeu veio do
Feudalismo que, em alguns casos, conseguiu superar o Patrimonialismo. Assim
explicaríamos as democracias sociais do continente europeu e, logicamente, a
primeira materialização da democracia representativa na Inglaterra, após a
Revolução Gloriosa de 1688 e o advento da Monarquia Constitucional. Em outros países, no entanto, como na
Península Ibérica e no leste europeu, a história do Patrimonialismo seria mais
longa, projetando-se até os nossos dias.
Segundo
o próprio Weber[6]
salientou, a adoção do sistema representativo deve ser valorizada, como
modalidade de fixação dos limites em que se pode exercer a violência. Em outros
termos, o sociólogo alemão remete ao conceito de legitimação-dominação
no contexto do governo representativo, o único que permite passar de um Obrigkeitsstaat
(Estado das autoridades) de inspiração patrimonial, a um Volksstaat (Estado
do povo), que revive a tradição feudal de controle moral ao poder. Mas, para
isso, reconhece a necessidade de ser fortalecido o Parlamento, incumbindo-o de
funções de governo e de controle sobre o aparelho burocrático do Estado, e
colocando-o a salvo de vícios que poderiam esvazia-lo como, por exemplo, a
adoção de uma modalidade exclusivamente corporativa de representação.
O
Patrimonialismo é, portanto, passível de superação, se chegando até formas de
governo que adotem a democracia representativa. Podem surgir, no entanto,
elementos modernizadores que visem, apenas, aprimorar “de forma planejada a
capacidade tributária” do Estado, bem como criar monopólios que funcionem
racionalmente. Nesses casos, a atuação racionalizadora do Estado Patrimonial
torna-se semelhante à administração burocrática, sem chegar, contudo, à
superação do Patrimonialismo. O único motivo (que leva o soberano patrimonial a
aceitar esse tipo de atuação racional) é o perigo representado pela
concorrência de vários poderes patrimoniais inferiores. Nesse contexto, o poder
patrimonial busca se apoiar nos estamentos profissionais, a fim de conjurar o
risco de desestabilização do seu poder unipessoal.[7] Essa
parte da doutrina weberiana ensejou, no seio da sociologia brasileira, a
significativa contribuição representada pelo conceito de patrimonialismo
modernizador.
Patrimonialismo
e Despotismo Oriental, segundo Karl Wittfogel.
Este
autor ensejou, no seio do marxismo, uma ampla discussão ao redor do conceito de
despotismo oriental com a publicação, em 1957, de sua obra que leva o
mesmo título[8]
e que foi considerada, no mundo comunista, como assaz provocadora.[9] Marxista
alemão, no primeiro pós-guerra escreveu obras teatrais, bem como estudos de
sociologia geral e realizou pesquisas de história econômica e social da China
(campo no qual é considerado um dos pioneiros). Durante vários anos Wittfogel
foi disciplinado membro do Partido Comunista, tendo recebido de Trotsky, em
1923, a incumbência de estudar as características despóticas da Rússia
czarista. No entanto, Wittfogel preferiu pesquisar, diretamente na China, o
modelo asiático assinalado por Karl Marx e que foi denominado, posteriormente,
de “despotismo oriental”.
Durante
alguns anos, Wittfogel foi um dos especialistas do Komintern para assuntos do
Extremo-Oriente, tendo colaborado em importantes revistas. Como o próprio autor
confessa, desde 1920 as suas pesquisas sobre o despotismo oriental eram mal
vistas por Josef Stalin, que temia ver desmascarada, pelos próprios
intelectuais do Partido Comunista, a feição despótico-oriental que empolgara a
Revolução Bolchevique e o regime instaurado em 1917. Em 1931, após a publicação
da obra intitulada Economia e sociedade na China, Wittfogel foi
censurado pelo PC, no debate realizado em Leningrado sobre o modo de produção
asiático. Em 1933, o sociólogo alemão foi internado pelos nazistas num campo de
concentração. Libertado, empreendeu nova viagem de estudos na China
(1935-1937). Em 1938, quando Stalin condenou oficialmente a chamada “tese
geográfica”, que visava censurar a teoria asiática de Marx, Wittfogel
teve de se refugiar nos Estados Unidos, onde ensinou história chinesa na
Universidade de Washington (em Seattle), a partir de 1945 até sua morte,
ocorrida em 1988.
Wittfogel,
como marxista, interessou-se pela análise acerca do modelo de produção
asiática, que sempre constituiu motivo de grande perplexidade para os
partidários daquela doutrina, porquanto sugere que o modelo desses modos de
produção (em que se baseavam para afirmar a substituição do capitalismo pelo
socialismo), somente poderia ser aplicado à Europa. Se a doutrina da seqüência
histórica dos modos de produção (escravagismo, feudalismo, capitalismo,
socialismo) não se revestisse de universalidade, então as famosas previsões
marxistas quanto à marcha inexorável da humanidade para o socialismo ver-se-iam
minadas pela base. Além disto, sendo o Estado uma criação da sociedade, como
poderia dar-se o fato – expresso precisamente no modelo asiático – de que se
tenha criado um Estado mais forte do que a sociedade? Radicalizando dessa forma
a questão, Wittfogel iria identificar a origem do Estado mais forte do que a
sociedade, nos grupos sociais que se formaram em torno das áreas irrigadas.
No
detalhado estudo que o sociólogo alemão dedicou à questão, o essencial consiste
no fato de que a agricultura irrigada estabelece um tipo de propriedade que não
se pode transmitir por herança ou, em outros termos, que não se pode fracionar.
Esse tipo de propriedade exigiu um sistema defensivo contra as populações
circunvizinhas sujeitas às intempéries naturais, bem como trabalhos regulares
de conservação e toda uma administração centralizada. Esses fatores ensejaram
instituições políticas extremamente estatizadas e submetidas a um poder central
de tipo patrimonial e absolutista. Ao fazer essa identificação, Wittfogel
automaticamente ultrapassava a camisa de força em que o marxismo pretendera
enquadrar a realidade, retomando a melhor tradição da sociologia alemã,
iniciada por Weber.
As
mais representativas manifestações das sociedades hidráulicas apareceram,
segundo Wittfogel, na Índia, na China, no Meio Oriente e, no continente
americano pré-colombiano, na América Central, no México e no Peru. Além disto,
tais formas de organização social foram transplantadas a outras civilizações.
Exemplo ilustrativo dessa incorporação de estilos governamentais despóticos
(áreas geográficas que Wittfogel denomina de zonas marginais ou submarginais,
em relação aos centros de economia hidráulica) são os traços encontradiços na
Rússia pré-mongol e o processo ulterior de introdução do despotismo oriental
naquela região do mundo, independentemente do desenvolvimento da agricultura
irrigada. Tal foi o caso, também, de Bizâncio, dos califados árabes (incluída a
Península Ibérica durante os oito séculos de dominação muçulmana), da Turquia
otomana, etc.
Essas
influências, no entanto, bem como a que, no decorrer do século XVI, proveio da
Turquia otomana, não foram as responsáveis pela perda de identidade feudal da
Rússia de Kiev. A influência decisiva, que destruiu a fidelidade kieviana e
deitou os alicerces do Estado despótico de Moscóvia e da Rússia pós-moscovita,
foi ensejada pela dominação tártara, no decorrer do século XIII até 1480,
quando Ivã III tornou o Principado de Moscou independente da dominação da Horda
Dourada. Embora vencidos pelos russos no século XV, os tártaros imprimiram à
sociedade da Rússia fortes tendências centralizadoras e estatizantes, num
contexto despótico, como os recenseamentos para fins tributários, a tendência a
diminuir o poder dos nobres tornando-os funcionários públicos, a diminuição da
propriedade fundiária em poder daqueles e o aumento das propriedades
territoriais do Estado. Para Wittfogel, é claro que o desenvolvimento cada vez
mais estatizante seguido pelo Estado russo ao longo dos séculos XIV, XV e XVI,
foi conseqüência da longa dominação oriental que tinha sofrido e que o tornava
“pelas suas instituições organizativas e aquisitivas, comprometido com o
caminho do estatismo despótico, baseado no serviço ao Estado”.[10]
Tudo isso aconteceu na Rússia de uma forma submarginal, sem que fosse
necessário o desenvolvimento de uma economia hidráulica e conservando, durante
vários séculos, muitas aparências feudais.
No
decorrer do século XX, as mais completas materializações do despotismo asiático
foram, sem sombra de dúvida, a Rússia e a China, as duas maiores expressões do
Estado Patrimonial. A temida “restauração asiática” foi, para Wittfogel, o
traço marcante que encarnou o totalitarismo russo, e que esvaziou de qualquer
conteúdo democrático o regime instaurado a partir da Revolução de 1917. A
respeito, o sociólogo alemão escreve:
Eis
o terrível segredo da revolução que Lenine concebeu e realizou. Para inúmeros
intelectuais e operários em muitos países, essa revolução era um chamado à
pregação do Socialismo na Rússia: um chamado a lutar por esse Socialismo e, se
fosse necessário, a morrer por ele. O que acontece quando essa revolução perde
a sua bandeira, o seu poder unificador? O que acontece se se comprova, segundo
as próprias palavras de Lenine, que essa revolução conduz, não ao Socialismo,
mas a uma nova forma de despotismo oriental? Quem, com exceção dos
privilegiados, aceitaria morrer pela restauração asiática?[11]
Referindo-se
ao quadro natural da sociedade hidráulica, Wittfogel salienta que as relações
entre homem e natureza nunca foram estáticas. Muito pelo contrário, o homem
sempre transformou a natureza que o rodeava. Ele, frisa Wittfogel,
Não
deixa jamais de agir sobre o meio natural. Ele o transforma constantemente. E
utiliza forças novas todas as vezes que os seus esforços o fazem ter acesso a
empresas de nível superior. (...) Em condições institucionais iguais, a
diferença do meio sugere e permite – ou exclui – o desenvolvimento de formas
novas de tecnologia, de subsistência, de poder social.[12]
O
potencial hidráulico das regiões da terra pobres ou carentes de água
atualiza-se em condições históricas bem específicas. Tais condições dão-se no
momento em que o homem aprende a utilizar os processos de reprodução do mundo
vegetal, materializando a possibilidade da agricultura, em regiões dotadas de
recursos hídricos independentes das chuvas. É assim como surge a
hidro-agricultura, ou uma agricultura de irrigação de grande escala. Semelhante
atividade iria exigir administração centralizada, mais precisamente, a direção
estatal. É então quando aparecem, no sentir de Wittfogel, “reunidas as
condições favoráveis a formas despóticas de governo e sociedade”. Os registros
históricos, por ele compulsados, evidenciam que o homem tende a um modo de vida
especificamente hidráulico como reação a um meio pobre em água, num contexto em
que se ache suficientemente desenvolvida a propriedade privada, longe da
influência dos centros poderosos de agricultura pluvial.
Para
Wittfogel é claro o seguinte princípio: em condições históricas iguais, diferenças
naturais fundamentais causam, eventualmente, fortes diferenças institucionais.
Esse princípio aplica-se aos casos em que o trabalho humano se desenvolve num
meio de agricultura pré-industrial, com recursos hídricos diferentes das
chuvas. Levando em consideração que, para a produção agrícola, são necessários
elementos como plantas úteis, terra arável, umidade conveniente, temperatura
apropriada e uma configuração adequada do terreno, a ação humana deve remediar
a ausência de um desses fatores essenciais. Quando falta o fator umidade, a
única solução é o trabalho coletivo, a fim de fazer frente à falta de água.
Apesar
da importância atribuída aos fatores naturais, a aparição da economia
hidráulica não é algo que acontece de maneira determinística. Pois a história,
frisa Wittfogel, ofereceu sempre “uma escolha autêntica e o homem nunca foi o
instrumento passivo de uma forma irresistível e unilinear, mas um ser que
pensa, que participa ativamente da criação do seu futuro”.[13]
Pressuposta essa liberdade humana fundamental, o autor salienta que os modelos
de agricultura hidráulica consolidam-se quando uma comunidade de pioneiros
descobre importantes reservas de água numa região fértil, mas carente de
irrigação. Em decorrência das exigências técnicas para o controle da água,
esses grupos humanos ensejam um processo institucional que conduz muito além do
ponto de partida. Os seus sucessores organizam colossais estruturas políticas e
sociais. E fazem isso com o sacrifício de inúmeras liberdades. Essa é a remota
origem do Estado hidráulico.
Wittfogel
considera que, nas sociedades regidas por um Estado hidráulico, encontram-se
estas características: uma divisão específica do trabalho, intensificação da
agricultura e desenvolvimento da cooperação em larga escala. A divisão do
trabalho abrange vários tipos de atividade, como trabalhos preparatórios e de
proteção para garantir a irrigação, bem como trabalhos pesados e indústria
pesada que visam garantir a distribuição de água, mediante a construção de
reservatórios e canais em grande escala. A divisão do trabalho, nas sociedades
hidráulicas, abarca também outras atividades como o estabelecimento do
calendário e o desenvolvimento da astronomia, ligada ao controle das águas.
Encontra-se, também, uma série de trabalhos não hidráulicos (enormes estruturas
defensivas, caminhos, palácios, capitais, túmulos e templos), cujas
características essenciais são o estilo monumental (Grande Muralha chinesa,
Pirâmides Astecas ou do Antigo Egito, etc.) e a significação estratégica para a
defesa do Estado.
Referindo-se
ao caráter estatal da economia hidráulica, frisa Wittfogel: “O poder do Estado
hidráulico sobre os trabalhadores é maior do que o poder das empresas
capitalistas”.[14]
Isso porque o funcionamento das obras exigidas pela economia hidráulica
necessitava de um fundo de organização que (abarcasse) o conjunto, ou, pelo
menos, os nódulos dinâmicos da população do país. Em conseqüência, os
administradores desse modo de organização preparam-se de uma forma excepcional
para a administração do poder supremo.[15]
Assim,
o Estado hidráulico desempenha numerosas funções organizativas e produtivas,
sendo o único motor dos grandes empreendimentos de preparação e de proteção e
dirigindo grandes empresas industriais não hidráulicas. No entanto, Wittfogel
salienta que o Estado hidráulico difere dos Estados totalitários modernos, pelo
fato de que ele se baseia na agricultura e só dirige uma parte da economia do
país. Difere, outrossim, dos Estados liberais baseados na propriedade privada
industrial pelo fato de que, sob a forma original, cumpre funções econômicas no
contexto do trabalho servil. Trata-se de um Estado mais forte do que a
sociedade. Tal fato afeta a esta de forma profunda, pois ao controlar não só as
construções hidráulicas, mas também as relações de trabalho, esse Estado
desenvolve um controle social que termina por impedir a iniciativa e o poder da
sociedade, impedindo às forças não governamentais de contrabalançarem o poder
hidráulico centralizado. A respeito, o sociólogo alemão frisa:
A
essas forças rivais faltam os direitos à propriedade e a força organizacional
que, na Antiguidade grega e romana, bem como na Europa medieval, estiveram na
base do poder das forças não governamentais. Nas civilizações hidráulicas, os
detentores do poder impediram o fortalecimento organizacional de todos os
grupos não governamentais. O Estado chegou a ser mais forte do que a
sociedade.[16]
Bibliografia
PAIM, Antônio. A
querela do estatismo. 1ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro,
1978.
SOFRI, Gianni.O modo
de produção asiático. História de uma controvérsia marxista. (Tradução
de Nice Rissone). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 109.
VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Patrimonialismo
e a realidade latino-americana. Rio de Janeiro: Documenta História,
2006.
VIANNA, Francisco José de
Oliveira. Populações meridionais do Brasil e Instituições políticas
brasileiras. 1a. Edição num único volume. (Antônio Paim,
organizador). Brasília: Câmara dos Deputados, 1982.
WEBER, Max. “A política
como vocação”. In: Ensaios de Sociologia. (Tradução de Waltensir
Dutra). 4a. Edição, Rio de
Janeiro: Zahar, 1979, p. 98 e seguintes.
WEBER, Max. Economía
y sociedad. (Tradução ao espanhol a cargo de José Medina Echavarría, et
alii). 1a. Edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica,
1944, 4 volumes.
WEBER, Max.
“Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída. Uma contribuição à
crítica política do funcionalismo e da política partidária”. In: Weber, Max, Textos
selecionados. (Tradução de Maurício Tragtenberg). 2a. Edição. São Paulo: Abril
Cultural, 1980, pg. 1-85. Coleção Os Pensadores.
WITTFOGEL, Karl. Oriental despotism. A
comparative study of total power. Chicago University Press,
1957, 2a. Edição, 1959. Foi consultada a edição francesa intitulada: Le
despotisme oriental. Étude comparative du pouvoir total. (Versão de Micheline Pouteau). Paris:
Minuit, 1977.
[1]
Weber, Max. “A política como vocação”. In: Ensaios de Sociologia. (Tradução
de Waltensir Dutra). 4a.
Edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 98.
[2]
Weber, Max. Economía y sociedad. (Tradução ao espanhol a cargo de
José Medina Echavarría, et alii). 1a. Edição em espanhol. México:
Fondo de Cultura Económica, 1944, vol. IV, p. 131.
[3] Weber, Max. Economía y
sociedad. Ob.
cit., vol. IV, p. 175-178. É interessante observar como Weber já
assinalava um aspecto que posteriormente foi desenvolvido por Karl Wittfogel: o
dos condicionamentos geográfico-hidráulicos da dominação patrimonial. Contudo,
Weber não chegou a analisar em profundidade essas variáveis, salientando,
unicamente, a sua concorrência junto aos outros elementos que integram a
tipologia ideal da dominação estatal-patrimonial.
[4] Weber, Max. Economía y
sociedad. Ob.
cit., vol. IV, p. 188-189.
[5]
Cf. Vianna, Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil
e Instituições políticas brasileiras. 1a. Edição num único
volume. (Antônio Paim, organizador). Brasília: Câmara dos Deputados, 1982.
[6]
Weber, Max. “Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída. Uma
contribuição à crítica política do funcionalismo e da política partidária”. In:
Weber, Max, Textos selecionados. (Tradução de Maurício
Tragtenberg). 2a. Edição. São
Paulo: Abril Cultural, 1980, pg. 1-85. Coleção Os Pensadores.
[7]
Cf. Weber, Max. Economía
y sociedad,
ob. cit., vol. I, p. 249-252.
[8] Wittfogel, Karl. Oriental
despotism. A comparative study of total power. Chicago
University Press, 1957, 2a. Edição, 1959. Foi consultada a edição francesa
intitulada: Le despotisme oriental. Étude comparative du pouvoir
total. (Versão de Micheline
Pouteau). Paris: Minuit, 1977.
[9]
Cf. Sofri, Gianni.O modo de produção asiático. História de uma
controvérsia marxista. (Tradução de Nice Rissone). Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1977, p. 109.
[10] Wittfogel, ob. cit., p. 269.
[11] Wittfogel, ob. cit., Introdução. P.
IV.
[12] Wittfogel, ob. cit., p. 24.
[13] Wittfogel, ob. cit., p. 31.
[14] Wittfogel, ob. cit., p. 66.
[15] Wittfogel, ob. cit., p. 42.
[16] Wittfogel, ob. cit., p. 69.
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