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quarta-feira, 13 de maio de 2015

UM VELHO MODO DE DOMINAÇÃO POLÍTICA: O PATRIMONIALISMO OU O DESPOTISMO HIDRÁULICO

Pirâmide de Quéfren - Egito Antigo (Foto: Wikipédia).


Joseph Stalin, modelo de déspota oriental, "Pai do Povo"

O Século XXI está se revelando muito fecundo, no que tange à revivescência de antigos modelos políticos. Quando todo mundo achava que o velho "despotismo oriental" estava morto com a queda da União Soviética, eis que o "patrimonialismo bolivariano" expande o seu modelito até na Europa. Parece que o movimento "podemos", na Espanha, foi financiado pelos bolivarianos. E ressurge a modalidade mais brutal de despotismo hidráulico, com o Estado Islâmico, que gerou uma nova onda de terror e desestabilização política no Oriente Médio e na África. Em virtude disso, vale a pena lembrar o conjunto de conceitos que foram desenvolvidos pela sociologia weberiana a respeito do Patrimonialismo e do Despotismo Hidráulico.

Os conceitos sociológicos fundamentais para entender o Estado Patrimonial foram desenvolvidos basicamente por dois grandes pensadores alemães do século XX: Max Weber (1846-1920) e Karl Wittfogel (1896-1988). Para entendermos o que se passa na América Latina no plano político, com a presença diuturna de Estados autoritários que tentam aberturas democráticas, mas que, volta e meia derrapam novamente no autoritarismo, torna-se necessário lembrarmos alguns conceitos básicos desses autores. É o que tentarei fazer nas próximas páginas, tendo como ponto referencial a exposição sumária do pensamento de ambos os sociólogos.

O Patrimonialismo contraposto ao Feudalismo, segundo Max Weber.

Max Weber entende o Estado como “uma comunidade humana que pretende, com êxito, o monopólio do uso legítimo da força dentro de um determinado território”.[1]

Portanto, a noção básica de Estado, para ele, é a de violência legalizada. A política, nesse contexto, pode ser definida como o conjunto de esforços feitos com vistas a participar do poder ou a influenciar na divisão do mesmo, seja entre Estados, seja no interior de um único Estado. O poder, para Weber, pode ser valorizado em si mesmo, sem que necessariamente tenha que estar referido a outros fatores, por exemplo, os econômicos. O Estado, suposta essa concepção da política e do poder, só pode existir sob a condição de que os homens dominados se submetam à autoridade continuamente reivindicada pelos que exercem a dominação. Surgem, aí, estas questões: em que condições se submetem aqueles e por que? Em que justificativas internas e em que meios externos se apóia essa dominação?

Weber distingue três tipos puros de dominação legítima, que não se materializam, enquanto tais, mas que podem caracterizar, em maior ou em menor grau, misturando-se, as concreções históricas do Estado. Esses três tipos de dominação são: a racional, a tradicional e a carismática. Na primeira, a autoridade de quem exerce a dominação alicerça-se na crença da comunidade respectiva na legitimidade da ordem estabelecida. Na dominação tradicional, a autoridade alicerça-se na crença da comunidade em certas tradições que a consagram. Na dominação carismática, a autoridade alicerça-se na crença da comunidade no valor excepcional que para ela encarna uma determinada personalidade.

No seio da dominação tradicional, Weber distinguiu dois tipos básicos: o Patrimonialismo e o Feudalismo. No contexto deste último, prevalece o “feudalismo de vassalagem ocidental”, cujo caráter fundamental reside no fato de que o poder do nobre proprietário da terra (ou barão) não procede diretamente do soberano, ensejando, assim, relações não de subordinação pura e simples, mas de caráter contratual, que implicavam, evidentemente, numa limitação do poder deste último. O exemplo mais puro deste tipo de feudalismo é encontrado por Weber na Inglaterra, onde vários fenômenos concomitantes contribuíram para a limitação do poder do monarca, entre os quais cabe mencionar: a - a conservação da grande propriedade fundiária em mãos dos barões; b - o papel desempenhado pela gentry (classe média rural), que não se deixou burocratizar pelo príncipe; c - o poder desenvolvido pelos juízes de paz; d - a participação dos notáveis no governo, graças à instituição parlamentar; e - a redução, ao mínimo, da administração burocrática, etc.

O Patrimonialismo é caracterizado por Weber como aquela forma de dominação tradicional em que o soberano organiza o poder político de forma análoga ao seu poder doméstico. Ao lado da organização do poder político segundo o modelo doméstico, é igualmente essencial ao Patrimonialismo a estruturação do quadro administrativo, através do qual se exerce a dominação. Quando esse quadro recebe do soberano, ou conserva, com o consentimento dele, determinados poderes de mando e as suas correspondentes vantagens econômicas, temos o que Weber chama de dominação estamental.

A expressão mais extremada da dominação patrimonial é, para Weber, a patriarcal, que é caracterizada como pré-burocrática.  Nela, a autoridade não se baseia no dever de servir a uma “finalidade impessoal e objetiva” (como acontece na dominação racional), obedecendo a normas abstratas, mas justamente no contrário: na submissão ao pater-famílias, em virtude de uma devoção rigorosamente pessoal. A expressão original do patriarcalismo é a autoridade paterna no seio da comunidade doméstica. O Patrimonialismo é uma extensão dessa autoridade tradicional para além das fronteiras do lar, conservando o aspecto doméstico de uma administração não racional e os traços privatizantes da autoridade unipessoal e do direito costumeiro, sendo que no âmbito patrimonial, como frisa Weber, a submissão pessoal ao senhor “garante como legítimas as normas procedentes do mesmo”.[2]

Weber encontra no Antigo Egito, no Império Chinês e na Rússia Czarista três casos típicos de dominação patrimonial. O Antigo Egito foi o primeiro regime burocrático-patrimonial. Desenvolveu-se originariamente a base da clientela real. A necessidade de uma política unitária, em decorrência das condições físicas, levou a um aprimoramento burocrático mediante a ascensão da casta dos escribas e a institucionalização do trabalho compulsório da população livre nas obras públicas. O resultado desse modelo de dominação patrimonial é assim caracterizado por Weber:

Todo o território pareceu ser um só e único oikos (domicílio) real, junto ao qual, como entidades aproximadamente equivalentes, existiam unicamente os oikos (domicílios) dos sacerdotes do templo. E assim foi tratado, do ponto de vista jurídico, pelos romanos. [3]

Além dos trabalhos hidráulicos, feitos na China mediante um sistema de serviço compulsório dos habitantes livres, Weber salienta a presença de um fator que reforçou o Estado Patrimonial: a religião oficial. Esse papel foi desempenhado pelo confucionismo, que dava base à virtude cardeal da piedade filial, não só no meio doméstico, mas também no âmbito das relações de subordinação dos funcionários em relação ao soberano, dos funcionários inferiores em relação aos superiores e, principalmente, dos súditos perante o estamento burocrático e o monarca. Em relação ao outro caso-tipo de dominação patrimonial, o Estado russo, Weber salienta a supremacia do Czar, mediante a atomização da nobreza, graças ao sistema de sinecuras criadas pelo soberano ao redor dos cargos tschin, que estavam à testa do estamento burocrático e do exército.

Weber enfatiza o caráter centrípeto do Patrimonialismo, que conduz a pôr em prática medidas tendentes à concentração e à perpetuação do poder unipessoal do monarca. Isso leva à valorização, no contexto patrimonialista, das funções administrativas apropriadas ou controladas pelo soberano, como instrumentos que garantem o seu poder. Por isso, sob esse ângulo, o Patrimonialismo colide frontalmente com o Feudalismo, que promove a redução das funções burocráticas. A fim de controlar qualquer surto de dignidade (de autoridade baseada nos sentimentos de independência e honra das camadas nobres), a dominação patrimonial manipula as massas desprotegidas mediante o paternalismo de Estado, ensejando assim o ideal do “pai do povo”, tão comum em contextos patrimoniais, como o russo. Essa idéia associou-se à permanência do Patrimonialismo na época moderna, pelo menos no Ocidente.

Outras práticas patrimonialistas dirigidas ao fortalecimento do poder central do monarca são as cargas tributárias, a concessão de sinecuras aos servidores fiéis, o desmembramento da propriedade fundiária a fim de impedir o fortalecimento da nobreza, a divisão de competências entre os funcionários locais para que não acumulem poder excessivo, o emprego de funcionários totalmente dependentes, a organização de exércitos armados e mantidos pelo soberano (exércitos patrimoniais), a utilização, por parte do senhor patrimonial, dos serviços de intermediação por delegação aos senhores territoriais locais (no caso em que tivesse sido impossível a eliminação total da autoridade deles), etc.

O caráter de intermediação por delegação conferida pelo soberano patrimonial aos senhores territoriais locais, bem como a feição dinâmica do seu relacionamento com eles, são explicados por Weber nestes termos:

A camada dos senhores territoriais locais exige, sempre (...), que o príncipe patrimonial não atente contra o seu próprio poder patrimonial sobre os súditos, ou o garanta diretamente. Por conseguinte, exige, sobretudo, a supressão de qualquer intervenção dos funcionários administrativos do príncipe na esfera de seu domínio, quer dizer, exige imunidade. Pela sua natureza, o senhor territorial pretende ser a autoridade por meio da qual o soberano deva entrar em relação com os súditos. À sua autoridade deve subordinar-se a responsabilidade criminal e tributária dos mesmos. A ela deve ser confiado o recrutamento militar, a arrecadação e a aplicação dos impostos. E como o senhor territorial deseja aproveitar para si mesmo a capacidade de prestação (de serviços) dos súditos (...), reduz, no possível, ou determina a parte que deve corresponder ao soberano patrimonial.[4]

Exemplo desse relacionamento – magnificamente ilustrado, aliás, por Oliveira Vianna[5] em Populações meridionais do Brasil e em Instituições políticas brasileiras – foi a administração colonial do Brasil.

A utilização da força armada por parte do soberano patrimonial, é colocada por Weber em estreita relação com os serviços extraordinários que podem ser exigidos aos súditos, sendo, de outro lado, como já frisamos, um meio eficaz para garantir a dominação. O “exército patrimonial” pode ser de muito diversa procedência; essa tropa poderá compor-se de escravos dominados patrimonialmente, arrendatários, colonos, jovens recrutados dos povos submetidos, súditos recrutados por conscrição entre as massas camponesas, etc.  Oliveira Vianna faz uma detalhada análise da forma em que o patronato rural brasileiro organizou verdadeiros exércitos patrimoniais de mulatos, índios e mamelucos, para proteger o latifúndio e ampliar os seus domínios.

Frisávamos que a dominação tradicional, para Weber, abrange dois tipos fundamentais: o Patrimonialismo e o Feudalismo. A distinção entre ambos, no entanto, não é estática, mas dinâmica. Quer dizer: o trânsito das formas patrimoniais de dominação às feudais realiza-se, através da presença de elementos que se contrapõem ao poder unipessoal do príncipe, de forma que, historicamente, organizações sociais como a inglesa que, em determinados períodos, estiveram submetidas a uma dominação com fortes tendências patrimoniais podem, graças ao desenvolvimento de forças sociais novas, evoluir até formas de caráter feudal. É de capital importância salientar a importância da descoberta ensejada pelos estudos de Weber: o moderno constitucionalismo europeu veio do Feudalismo que, em alguns casos, conseguiu superar o Patrimonialismo. Assim explicaríamos as democracias sociais do continente europeu e, logicamente, a primeira materialização da democracia representativa na Inglaterra, após a Revolução Gloriosa de 1688 e o advento da Monarquia Constitucional.  Em outros países, no entanto, como na Península Ibérica e no leste europeu, a história do Patrimonialismo seria mais longa, projetando-se até os nossos dias.
Segundo o próprio Weber[6] salientou, a adoção do sistema representativo deve ser valorizada, como modalidade de fixação dos limites em que se pode exercer a violência. Em outros termos, o sociólogo alemão remete ao conceito de legitimação-dominação no contexto do governo representativo, o único que permite passar de um Obrigkeitsstaat (Estado das autoridades) de inspiração patrimonial, a um Volksstaat (Estado do povo), que revive a tradição feudal de controle moral ao poder. Mas, para isso, reconhece a necessidade de ser fortalecido o Parlamento, incumbindo-o de funções de governo e de controle sobre o aparelho burocrático do Estado, e colocando-o a salvo de vícios que poderiam esvazia-lo como, por exemplo, a adoção de uma modalidade exclusivamente corporativa de representação.

O Patrimonialismo é, portanto, passível de superação, se chegando até formas de governo que adotem a democracia representativa. Podem surgir, no entanto, elementos modernizadores que visem, apenas, aprimorar “de forma planejada a capacidade tributária” do Estado, bem como criar monopólios que funcionem racionalmente. Nesses casos, a atuação racionalizadora do Estado Patrimonial torna-se semelhante à administração burocrática, sem chegar, contudo, à superação do Patrimonialismo. O único motivo (que leva o soberano patrimonial a aceitar esse tipo de atuação racional) é o perigo representado pela concorrência de vários poderes patrimoniais inferiores. Nesse contexto, o poder patrimonial busca se apoiar nos estamentos profissionais, a fim de conjurar o risco de desestabilização do seu poder unipessoal.[7] Essa parte da doutrina weberiana ensejou, no seio da sociologia brasileira, a significativa contribuição representada pelo conceito de patrimonialismo modernizador.

Patrimonialismo e Despotismo Oriental, segundo Karl Wittfogel.

Este autor ensejou, no seio do marxismo, uma ampla discussão ao redor do conceito de despotismo oriental com a publicação, em 1957, de sua obra que leva o mesmo título[8] e que foi considerada, no mundo comunista, como assaz provocadora.[9] Marxista alemão, no primeiro pós-guerra escreveu obras teatrais, bem como estudos de sociologia geral e realizou pesquisas de história econômica e social da China (campo no qual é considerado um dos pioneiros). Durante vários anos Wittfogel foi disciplinado membro do Partido Comunista, tendo recebido de Trotsky, em 1923, a incumbência de estudar as características despóticas da Rússia czarista. No entanto, Wittfogel preferiu pesquisar, diretamente na China, o modelo asiático assinalado por Karl Marx e que foi denominado, posteriormente, de “despotismo oriental”.

Durante alguns anos, Wittfogel foi um dos especialistas do Komintern para assuntos do Extremo-Oriente, tendo colaborado em importantes revistas. Como o próprio autor confessa, desde 1920 as suas pesquisas sobre o despotismo oriental eram mal vistas por Josef Stalin, que temia ver desmascarada, pelos próprios intelectuais do Partido Comunista, a feição despótico-oriental que empolgara a Revolução Bolchevique e o regime instaurado em 1917. Em 1931, após a publicação da obra intitulada Economia e sociedade na China, Wittfogel foi censurado pelo PC, no debate realizado em Leningrado sobre o modo de produção asiático. Em 1933, o sociólogo alemão foi internado pelos nazistas num campo de concentração. Libertado, empreendeu nova viagem de estudos na China (1935-1937). Em 1938, quando Stalin condenou oficialmente a chamada “tese geográfica”, que visava censurar a teoria asiática de Marx, Wittfogel teve de se refugiar nos Estados Unidos, onde ensinou história chinesa na Universidade de Washington (em Seattle), a partir de 1945 até sua morte, ocorrida em 1988.

Wittfogel, como marxista, interessou-se pela análise acerca do modelo de produção asiática, que sempre constituiu motivo de grande perplexidade para os partidários daquela doutrina, porquanto sugere que o modelo desses modos de produção (em que se baseavam para afirmar a substituição do capitalismo pelo socialismo), somente poderia ser aplicado à Europa. Se a doutrina da seqüência histórica dos modos de produção (escravagismo, feudalismo, capitalismo, socialismo) não se revestisse de universalidade, então as famosas previsões marxistas quanto à marcha inexorável da humanidade para o socialismo ver-se-iam minadas pela base. Além disto, sendo o Estado uma criação da sociedade, como poderia dar-se o fato – expresso precisamente no modelo asiático – de que se tenha criado um Estado mais forte do que a sociedade? Radicalizando dessa forma a questão, Wittfogel iria identificar a origem do Estado mais forte do que a sociedade, nos grupos sociais que se formaram em torno das áreas irrigadas.

No detalhado estudo que o sociólogo alemão dedicou à questão, o essencial consiste no fato de que a agricultura irrigada estabelece um tipo de propriedade que não se pode transmitir por herança ou, em outros termos, que não se pode fracionar. Esse tipo de propriedade exigiu um sistema defensivo contra as populações circunvizinhas sujeitas às intempéries naturais, bem como trabalhos regulares de conservação e toda uma administração centralizada. Esses fatores ensejaram instituições políticas extremamente estatizadas e submetidas a um poder central de tipo patrimonial e absolutista. Ao fazer essa identificação, Wittfogel automaticamente ultrapassava a camisa de força em que o marxismo pretendera enquadrar a realidade, retomando a melhor tradição da sociologia alemã, iniciada por Weber.

As mais representativas manifestações das sociedades hidráulicas apareceram, segundo Wittfogel, na Índia, na China, no Meio Oriente e, no continente americano pré-colombiano, na América Central, no México e no Peru. Além disto, tais formas de organização social foram transplantadas a outras civilizações. Exemplo ilustrativo dessa incorporação de estilos governamentais despóticos (áreas geográficas que Wittfogel denomina de zonas marginais ou submarginais, em relação aos centros de economia hidráulica) são os traços encontradiços na Rússia pré-mongol e o processo ulterior de introdução do despotismo oriental naquela região do mundo, independentemente do desenvolvimento da agricultura irrigada. Tal foi o caso, também, de Bizâncio, dos califados árabes (incluída a Península Ibérica durante os oito séculos de dominação muçulmana), da Turquia otomana, etc.

Essas influências, no entanto, bem como a que, no decorrer do século XVI, proveio da Turquia otomana, não foram as responsáveis pela perda de identidade feudal da Rússia de Kiev. A influência decisiva, que destruiu a fidelidade kieviana e deitou os alicerces do Estado despótico de Moscóvia e da Rússia pós-moscovita, foi ensejada pela dominação tártara, no decorrer do século XIII até 1480, quando Ivã III tornou o Principado de Moscou independente da dominação da Horda Dourada. Embora vencidos pelos russos no século XV, os tártaros imprimiram à sociedade da Rússia fortes tendências centralizadoras e estatizantes, num contexto despótico, como os recenseamentos para fins tributários, a tendência a diminuir o poder dos nobres tornando-os funcionários públicos, a diminuição da propriedade fundiária em poder daqueles e o aumento das propriedades territoriais do Estado. Para Wittfogel, é claro que o desenvolvimento cada vez mais estatizante seguido pelo Estado russo ao longo dos séculos XIV, XV e XVI, foi conseqüência da longa dominação oriental que tinha sofrido e que o tornava “pelas suas instituições organizativas e aquisitivas, comprometido com o caminho do estatismo despótico, baseado no serviço ao Estado”.[10] Tudo isso aconteceu na Rússia de uma forma submarginal, sem que fosse necessário o desenvolvimento de uma economia hidráulica e conservando, durante vários séculos, muitas aparências feudais.

No decorrer do século XX, as mais completas materializações do despotismo asiático foram, sem sombra de dúvida, a Rússia e a China, as duas maiores expressões do Estado Patrimonial. A temida “restauração asiática” foi, para Wittfogel, o traço marcante que encarnou o totalitarismo russo, e que esvaziou de qualquer conteúdo democrático o regime instaurado a partir da Revolução de 1917. A respeito, o sociólogo alemão escreve:

Eis o terrível segredo da revolução que Lenine concebeu e realizou. Para inúmeros intelectuais e operários em muitos países, essa revolução era um chamado à pregação do Socialismo na Rússia: um chamado a lutar por esse Socialismo e, se fosse necessário, a morrer por ele. O que acontece quando essa revolução perde a sua bandeira, o seu poder unificador? O que acontece se se comprova, segundo as próprias palavras de Lenine, que essa revolução conduz, não ao Socialismo, mas a uma nova forma de despotismo oriental? Quem, com exceção dos privilegiados, aceitaria morrer pela restauração asiática?[11]

Referindo-se ao quadro natural da sociedade hidráulica, Wittfogel salienta que as relações entre homem e natureza nunca foram estáticas. Muito pelo contrário, o homem sempre transformou a natureza que o rodeava. Ele, frisa Wittfogel,
Não deixa jamais de agir sobre o meio natural. Ele o transforma constantemente. E utiliza forças novas todas as vezes que os seus esforços o fazem ter acesso a empresas de nível superior. (...) Em condições institucionais iguais, a diferença do meio sugere e permite – ou exclui – o desenvolvimento de formas novas de tecnologia, de subsistência, de poder social.[12]

O potencial hidráulico das regiões da terra pobres ou carentes de água atualiza-se em condições históricas bem específicas. Tais condições dão-se no momento em que o homem aprende a utilizar os processos de reprodução do mundo vegetal, materializando a possibilidade da agricultura, em regiões dotadas de recursos hídricos independentes das chuvas. É assim como surge a hidro-agricultura, ou uma agricultura de irrigação de grande escala. Semelhante atividade iria exigir administração centralizada, mais precisamente, a direção estatal. É então quando aparecem, no sentir de Wittfogel, “reunidas as condições favoráveis a formas despóticas de governo e sociedade”. Os registros históricos, por ele compulsados, evidenciam que o homem tende a um modo de vida especificamente hidráulico como reação a um meio pobre em água, num contexto em que se ache suficientemente desenvolvida a propriedade privada, longe da influência dos centros poderosos de agricultura pluvial.

Para Wittfogel é claro o seguinte princípio: em condições históricas iguais, diferenças naturais fundamentais causam, eventualmente, fortes diferenças institucionais. Esse princípio aplica-se aos casos em que o trabalho humano se desenvolve num meio de agricultura pré-industrial, com recursos hídricos diferentes das chuvas. Levando em consideração que, para a produção agrícola, são necessários elementos como plantas úteis, terra arável, umidade conveniente, temperatura apropriada e uma configuração adequada do terreno, a ação humana deve remediar a ausência de um desses fatores essenciais. Quando falta o fator umidade, a única solução é o trabalho coletivo, a fim de fazer frente à falta de água.
Apesar da importância atribuída aos fatores naturais, a aparição da economia hidráulica não é algo que acontece de maneira determinística. Pois a história, frisa Wittfogel, ofereceu sempre “uma escolha autêntica e o homem nunca foi o instrumento passivo de uma forma irresistível e unilinear, mas um ser que pensa, que participa ativamente da criação do seu futuro”.[13] Pressuposta essa liberdade humana fundamental, o autor salienta que os modelos de agricultura hidráulica consolidam-se quando uma comunidade de pioneiros descobre importantes reservas de água numa região fértil, mas carente de irrigação. Em decorrência das exigências técnicas para o controle da água, esses grupos humanos ensejam um processo institucional que conduz muito além do ponto de partida. Os seus sucessores organizam colossais estruturas políticas e sociais. E fazem isso com o sacrifício de inúmeras liberdades. Essa é a remota origem do Estado hidráulico.

Wittfogel considera que, nas sociedades regidas por um Estado hidráulico, encontram-se estas características: uma divisão específica do trabalho, intensificação da agricultura e desenvolvimento da cooperação em larga escala. A divisão do trabalho abrange vários tipos de atividade, como trabalhos preparatórios e de proteção para garantir a irrigação, bem como trabalhos pesados e indústria pesada que visam garantir a distribuição de água, mediante a construção de reservatórios e canais em grande escala. A divisão do trabalho, nas sociedades hidráulicas, abarca também outras atividades como o estabelecimento do calendário e o desenvolvimento da astronomia, ligada ao controle das águas. Encontra-se, também, uma série de trabalhos não hidráulicos (enormes estruturas defensivas, caminhos, palácios, capitais, túmulos e templos), cujas características essenciais são o estilo monumental (Grande Muralha chinesa, Pirâmides Astecas ou do Antigo Egito, etc.) e a significação estratégica para a defesa do Estado.

Referindo-se ao caráter estatal da economia hidráulica, frisa Wittfogel: “O poder do Estado hidráulico sobre os trabalhadores é maior do que o poder das empresas capitalistas”.[14] Isso porque o funcionamento das obras exigidas pela economia hidráulica necessitava de um fundo de organização que (abarcasse) o conjunto, ou, pelo menos, os nódulos dinâmicos da população do país. Em conseqüência, os administradores desse modo de organização preparam-se de uma forma excepcional para a administração do poder supremo.[15]

Assim, o Estado hidráulico desempenha numerosas funções organizativas e produtivas, sendo o único motor dos grandes empreendimentos de preparação e de proteção e dirigindo grandes empresas industriais não hidráulicas. No entanto, Wittfogel salienta que o Estado hidráulico difere dos Estados totalitários modernos, pelo fato de que ele se baseia na agricultura e só dirige uma parte da economia do país. Difere, outrossim, dos Estados liberais baseados na propriedade privada industrial pelo fato de que, sob a forma original, cumpre funções econômicas no contexto do trabalho servil. Trata-se de um Estado mais forte do que a sociedade. Tal fato afeta a esta de forma profunda, pois ao controlar não só as construções hidráulicas, mas também as relações de trabalho, esse Estado desenvolve um controle social que termina por impedir a iniciativa e o poder da sociedade, impedindo às forças não governamentais de contrabalançarem o poder hidráulico centralizado. A respeito, o sociólogo alemão frisa:

A essas forças rivais faltam os direitos à propriedade e a força organizacional que, na Antiguidade grega e romana, bem como na Europa medieval, estiveram na base do poder das forças não governamentais. Nas civilizações hidráulicas, os detentores do poder impediram o fortalecimento organizacional de todos os grupos não governamentais. O Estado chegou a ser mais forte do que a sociedade.[16]

Bibliografia

PAIM, Antônio. A querela do estatismo. 1ª edição. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1978.

SOFRI, Gianni.O modo de produção asiático. História de uma controvérsia marxista. (Tradução de Nice Rissone). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 109.

VÉLEZ-RODRÍGUEZ, Ricardo. Patrimonialismo e a realidade latino-americana. Rio de Janeiro: Documenta História, 2006.

VIANNA, Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil e Instituições políticas brasileiras. 1a. Edição num único volume. (Antônio Paim, organizador). Brasília: Câmara dos Deputados, 1982.

WEBER, Max. “A política como vocação”. In: Ensaios de Sociologia. (Tradução de Waltensir Dutra).  4a. Edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 98 e seguintes.

WEBER, Max. Economía y sociedad. (Tradução ao espanhol a cargo de José Medina Echavarría, et alii). 1a. Edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1944,  4 volumes.

WEBER, Max. “Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída. Uma contribuição à crítica política do funcionalismo e da política partidária”. In: Weber, Max, Textos selecionados. (Tradução de Maurício Tragtenberg).  2a. Edição. São Paulo: Abril Cultural, 1980, pg. 1-85. Coleção Os Pensadores.

WITTFOGEL, Karl. Oriental despotism. A comparative study of total power. Chicago University Press, 1957, 2a. Edição, 1959. Foi consultada a edição francesa intitulada: Le despotisme oriental. Étude comparative du pouvoir total.  (Versão de Micheline Pouteau). Paris: Minuit, 1977.





[1] Weber, Max. “A política como vocação”. In: Ensaios de Sociologia. (Tradução de Waltensir Dutra).  4a. Edição, Rio de Janeiro: Zahar, 1979, p. 98.
[2] Weber, Max. Economía y sociedad. (Tradução ao espanhol a cargo de José Medina Echavarría, et alii). 1a. Edição em espanhol. México: Fondo de Cultura Económica, 1944,  vol. IV, p. 131.
[3] Weber, Max. Economía y sociedad. Ob. cit., vol. IV, p. 175-178. É interessante observar como Weber já assinalava um aspecto que posteriormente foi desenvolvido por Karl Wittfogel: o dos condicionamentos geográfico-hidráulicos da dominação patrimonial. Contudo, Weber não chegou a analisar em profundidade essas variáveis, salientando, unicamente, a sua concorrência junto aos outros elementos que integram a tipologia ideal da dominação estatal-patrimonial.
[4] Weber, Max. Economía y sociedad. Ob. cit., vol. IV,  p. 188-189.
[5] Cf. Vianna, Francisco José de Oliveira. Populações meridionais do Brasil e Instituições políticas brasileiras. 1a. Edição num único volume. (Antônio Paim, organizador). Brasília: Câmara dos Deputados, 1982.
[6] Weber, Max. “Parlamentarismo e governo numa Alemanha reconstruída. Uma contribuição à crítica política do funcionalismo e da política partidária”. In: Weber, Max, Textos selecionados. (Tradução de Maurício Tragtenberg).  2a. Edição. São Paulo: Abril Cultural, 1980, pg. 1-85. Coleção Os Pensadores.
[7] Cf. Weber, Max. Economía y sociedad, ob. cit., vol. I, p. 249-252.
[8] Wittfogel, Karl. Oriental despotism. A comparative study of total power. Chicago University Press, 1957, 2a. Edição, 1959. Foi consultada a edição francesa intitulada: Le despotisme oriental. Étude comparative du pouvoir total.  (Versão de Micheline Pouteau). Paris: Minuit, 1977.
[9] Cf. Sofri, Gianni.O modo de produção asiático. História de uma controvérsia marxista. (Tradução de Nice Rissone). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977, p. 109.
[10] Wittfogel, ob. cit., p. 269.
[11] Wittfogel, ob. cit., Introdução. P. IV.
[12] Wittfogel, ob. cit., p. 24.
[13] Wittfogel, ob. cit., p. 31.
[14] Wittfogel, ob. cit., p. 66.
[15] Wittfogel, ob. cit., p. 42.
[16] Wittfogel, ob. cit., p. 69.

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