Amigos, divulgo aqui um texto que escrevi em 1999 mas que, infelizmente, tem plena atualidade no nosso Continente, em decorrência do aumento assustador da taxa de violência política, na década e meia que transcorreu desde então.
A problemática da violência aparece, hoje, no
contexto latino-americano, como o mais agudo problema social enfrentado pelo
nosso continente. Os dados estatísticos acerca da escalada da violência nas
últimas décadas não mentem. Se esse é o problema que mais nos agonia, cumpre
estudá-lo em profundidade, tentando identificar o seu tamanho e caraterísticas
marcantes, bem como as suas causas e possíveis soluções.
A violência como objeto de estudo é, no
entanto, algo muito geral. Diríamos que ela, enquanto objeto material, precisa
ser delimitada pelo ponto de vista a partir do qual é estudada, ou seja, pelo
objeto formal. Obedecendo a esta exigência da lógica, pretendo analisar, neste
trabalho, a violência na América Latina do ponto de vista de sua variável
política.
Três itens serão desenvolvidos: 1) O conceito
de violência política segundo Thomas
Hobbes (1588-1679); 2) o fenômeno da violência política na América Latina; 3)
as causas da violência política, no seio da tradição patrimonialista
latino-americana. Concluirei assinalando alguns remédios que podem ser tentados
na atual conjuntura.
1) O conceito de violência política segundo Thomas
Hobbes.- Foi certamente o filósofo inglês quem realizou, na modernidade, a
primeira sistematização filosófica acerca da violência como caraterística do
homem em sociedade. Hobbes considerava que a discórdia provinha da natureza do
homem, sendo que as três causas principais da mesma seriam a competição, a
desconfiança e a glória. "A primeira
-- frisa o filósofo [Hobbes, 1974: 79] -- leva os homens a atacar os outros tendo em
vista o lucro; a segunda, a segurança; e a terceira, a reputação. Os primeiros
usam a violência para se tornarem senhores das pessoas, mulheres, filhos e
rebanhos dos outros homens; os segundos, para defendê-los; e os terceiros por
ninharias, como uma palavra, um sorriso, uma diferença de opinião, e qualquer
outro sinal de desprezo, quer seja diretamente dirigido às suas pessoas, quer
indiretamente aos seus parentes, seus amigos, sua profissão e seu nome".
A violência política ocorre, segundo o
filósofo inglês, em dois momentos: antes do surgimento do Estado e quando este
se corrompe. Hobbes denomina de guerra de
todos contra todos à situação de violência social anterior à criação do
Estado. Nela, a vida humana não vale nada e todos somos reféns do temor da
morte violenta. Hobbes retratava assim essa situação, com sombrias cores que
traduziriam perfeitamente o clima de violência, impunidade e insegurança que
vivemos hoje nas nossas sociedades latino-americanas: "(...) tudo aquilo
que é válido para um tempo de guerra, em que todo homem é inimigo de todo
homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual os homens vivem sem
outra segurança senão a que lhes pode ser oferecida por sua própria força e sua
própria invenção. Numa tal situação não há lugar para a indústria, pois seu
fruto é incerto; consequentemente não há cultivo da terra, nem navegação, nem
uso das mercadorias que podem ser importadas pelo mar; não há construções
confortáveis, nem instrumentos para mover e remover as coisas que precisam de
grande força, não há conhecimento da face da terra, nem cômputo do tempo, nem
artes, nem letras; não há sociedade; e o que é pior do que tudo, (prevalece) um
constante temor e perigo de morte violenta. E a vida do homem é solitária, pobre, sórdida,
embrutecida e curta" [Hobbes, 1974: 80].
Nesse estado de violência generalizada não há
lei, nem moral, nem propriedade. O homem, considerava Hobbes, é levado a
superar essa deplorável situação pelas suas paixões (medo da morte, desejo de
conforto e esperança de conseguir este último mediante o trabalho) e pela sua
razão (que "sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens
podem chegar a acordo") [Hobbes, 1974: 81]. A partir dessa dupla tendência
(racional e irracional) surge o Estado, que é definido por Hobbes [1974: 110]
da seguinte forma: "Uma pessoa de cujos atos uma grande multidão, mediante
pactos recíprocos (de) uns com os outros, foi instituída por cada um como
autora, de modo a ela poder usar a força e os recursos de todos, da maneira que
considerar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comum".
Para o pensador inglês, há duas maneiras de
criação e organização do Estado: ou por instituição,
ou por aquisição. O Estado por instituição ocorre "quando os homens
concordam entre si em submeterem-se a um homem, ou a uma assembléia de homens,
voluntariamente, com a esperança de serem protegidos por ele contra todos os
outros". Já o Estado por aquisição
ocorre pela via da força natural,
"como quando um homem obriga seus filhos a submeterem-se, e a submeterem
seus próprios filhos, à sua autoridade, na medida em que é capaz de destruí-los
em caso de recusa. Ou como quando um homem sujeita através da guerra seus
inimigos à sua vontade, concedendo-lhes a vida com essa condição" [Hobbes,
1974: 110].
O filósofo inglês mostrava-se mais favorável
ao Estado por instituição, sem dúvida
mais afinado com a tradicional prática da representação na Inglaterra. Não é
difícil, aliás, encontrar um paralelismo na dupla tipologia hobbesiana do
Estado e a proposta por Max Weber [cf. 1944: IV, 85-203], a saber: Estado contratualista e Estado patrimonial.
Mas voltemos à caracterização da violência
por Hobbes. Esta ocorre em ausência do pacto social que funda o Estado, como já
vimos, ou quando este se corrompe, (ou, em outros termos, quando perde a força
e fica doente). A sedição, o menosprezo face à lei, a guerra civil, a
desobediência ou anarquia cidadã, a cupidez do poder espiritual, o domínio das
corporações ou grupos sobre o governo, a desordem orçamentaria, eis algumas das
causas endógenas que, além da invasão estrangeira, levam à doença e à
dissolução do Estado [cf. Hobbes, 1974: 196-203]. Anarquizado o Estado,
instala-se a violência na sociedade, bem como a plêiade de desgraças que
acarreta a guerra de todos contra todos. Embrutecidos, os cidadãos passam a
viver coagidos pelo temor constante da morte violenta.
2) O fenômeno da violência política na América
Latina.- O fenômeno da violência na América Latina teve dois momentos semelhantes
aos observados na tipologia hobbesiana: em primeiro lugar, insegurança
generalizada, prévia à consolidação do Estado e, em segundo lugar, violência
decorrente da degeneração ou má formação deste.
Quanto à primeira manifestação, a violência,
na América Latina caracterizou-se por ser efeito, já desde os tempos coloniais,
da denominada por Oliveira Vianna [1973: 142] de anarquia branca. Para o sociólogo fluminense, o motivo imediato que
impelia a população rural brasileira a se organizar em clãs, era a necessidade
de defesa contra essa anarquia. Naqueles remotos tempos, entre nós, não havia
Estado organizado. A corrupta magistratura portuguesa não funcionava, como
tampouco os tribunais superiores, que ficavam muito distantes; isso levava a
população a se refugiar em clãs, para ser protegida contra os excessos dos
magistrados e poderosos. "Nessa situação de permanente desamparo
legal, -- frisa Oliveira Vianna -- em que vivem, sob esse regime histórico de
mandonismo, de favoritismo, de caudilhismo judiciário, todos os desprotegidos,
todos os fracos, todos os pobres e inermes tendem a abrigar-se, por um impulso
natural de defesa, à sombra dos poderosos, para que os protejam e defendam dos
juizes corruptos, das devassas
monstruosas, das residências
infamantes, das vinditas implacáveis. Faz-se, assim, a magistratura colonial,
pela parcialidade e corrupção dos seus juizes locais, um dos agentes mais
poderosos da formação dos clãs rurais, uma das forças mais eficazes da
intensificação da tendência gregária das nossas classes inferiores".
Essa situação de anarquia primordial era
testemunhada pelos visitantes estrangeiros. Eis o relato de um comerciante
francês, publicado em Rouen em 1723, com o longo título de Journal d'un voyage sur les costes d'Afrique e aux Indes d'Espagne;
avec une description particulière de la Rivière de la Plata, de Buenos Aires e
autres lieux; commencé en 1702 et fini en 1706 [apud Pernoud, 1990:
63-105]. No seu diário, o viajante descreve assim a arraia miúda e a elite
cariocas da época : "Falando em termos gerais, os portugueses são muito
atenciosos, muito amáveis e de fino trato. Não me refiro ao povo baixo, cuja
insolência e descaro estão por cima de tudo quanto se possa dizer. Não creio
que possa haver indivíduos mais mal-intencionados e mais intratáveis; são
mentirosos, indolentes, briguentos, insubordinados, sediciosos e cheios de
injúrias, e das mais grosseiras; são, numa palavra, a mais indigna e mais
maldita canalha de que se tenha ouvido falar. Critica-se às gentes honradas, e
possivelmente não sem razão, pelo fato de serem vaidosos, orgulhosos e de terem
uma cortesia e uma polidez que podem ser consideradas exageradas. Conta-se, a
propósito do anterior, que um capitão de navio bateu tão forte num marinheiro,
que este morreu -- segundo disse o
agressor --, pelo fato de ter sido pouco atencioso com ele. Na sua maior parte
são extraordinariamente inimigos do
trabalho, preguiçosos e muito inclinados à voluptuosidade" [apud
Pernoud, 1990: 99]. Em síntese, para o narrador francês a violência era a marca
registrada da população carioca, com alguns matizes segundo a faixa social:
rude e explícita no povão, jeitosa nas elites.
Mas se a anarquia
branca dos cariocas era evidente no século XVIII, não menos visível era a
mesma caraterística entre os paulistas, segundo o relato de Régine Pernoud
[1990: 137-138], que se alicerça, entre outras fontes da época, nas Lettres édifiantes et curieuses,
escritas pelos missionários jesuítas das Reduções paraguaias entre 1717 e 1776.
A respeito da anarquia dos paulistas, escreve a historiadora francesa:
"Mas os maiores perigos provinham dos paulistas
ou mamelucos; chamava-se assim a
população de São Paulo que era, nessa época, um verdadeiro refúgio de
bandoleiros, formada principalmente por mestiços e portugueses; tinha acolhido
aventureiros de todas as regiões, cujo principal recurso era o comércio de
escravos. Por isso viram com satisfação o estabelecimento dos primeiros
povoados, que constituíam para eles excelentes reservas de índios, destinadas a
se converterem em presa fácil. De fato, desde 1629 caíram sobre as Reduções da
província de Guairá, levando como escravos mais de quinze mil índios dos
povoados de Santo Antônio, São Miguel e Jesus Maria, depois de terem
assassinado os que se opunham (...). Os mamelucos
(eram) temíveis ao ponto de que não arredavam pé diante de nenhum estratagema;
em várias ocasiões apresentaram-se diante dos povoados de índios, vestindo
sotainas, com a cruz na mão, entoando cantos religiosos, etc., e enquanto os
índios, sem desconfiança, reuniam-se para escutar a sua pregação, as suas
tropas, colocadas em emboscada, atacavam. Isso provocou inúmeras dificuldades
aos missionários e levantou uma desconfiança que custou a vida a muitos
deles".
Testemunho dessa anarquia branca dos paulistas já tinha sido dado, aliás, em fins do
século XVIII, pelo viajante francês Froger, para quem a cidade de São Paulo
tinha a sua origem numa "(...)
assamblage de brigans de toutes les Nations, qui peu à peu y ont formé une
grande Ville et une espèce de Republique, où ils se font une loy de ne point
reconnaître le Gouverneur" [apud Vianna, 1973: 183].
Mas o fenômeno da violência não se restringiu
apenas, no nosso Continente, à situação de guerra
de todos contra todos anterior à consolidação do Estado. Revela-se também
hoje na corrupção do mesmo, ao ter sido ele privatizado por grupos,
corporações, estamentos, facções e partidos, no seio da tradição patrimonialista. Não há dúvida de que o exemplo mais
caraterístico é, nos dias que correm, a Colômbia. A respeito, assim
caracterizou a situação de violência clânica nesse país Almudena Mazarrasa,
delegada da ONU na Colômbia: "Este parece ir se tornando um país feudal
onde cada um cria o seu próprio exército (...). Cheguei num momento em que o
incremento da violência é aterrorizante. Estou muito consternada pelo fato de
ser testemunha dessas atrocidades" [Mazarrasa, 1997: 1].
As atrocidades que deixaram perplexa a
delegada da ONU na Colômbia decorrem do fato de o país ter sido loteado entre
os bandos criminosos, num acelerado processo de desintegração e de guerra
total, que tem sido denominado de "escobarização" (lembrando a onda
terrorista desencadeada há alguns anos por Pablo Escobar) [Bustos, 1997] e que
enseja, para os colombianos, uma situação de "emergência
internacional", em decorrência das tensões geradas por esse país a escala
global [Tokatlian, 1997b].
Estudo recente da Fundação Milênio, com sede em Santafé de Bogotá, revela,
efetivamente, que a guerrilha de esquerda e os paramilitares de direita iniciaram
nos últimos anos uma estratégia para dominar as regiões mais ricas da Colômbia,
buscando um melhor financiamento para a guerra a morte que se declararam. As
duas maiores organizações guerrilheiras, as Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia (FARC) e o Exército de Libertação Nacional (ELN) adquiriram grande
vantagem nesse ponto, já que administram sólidas finanças. Cada um dos
guerrilheiros dessas organizações criminosas tem um ingresso de 70 mil dólares
anuais, o que eqüivale a 40 vezes o que ganha um colombiano médio [cf. AFP,
03/08/97].
A respeito, o mencionado estudo frisa:
"Houve uma expansão intencional (da guerrilha) em direção àquelas áreas
economicamente mais prósperas. O crescimento adicional da guerrilha nos últimos
quatro ou cinco anos concentrou-se nas áreas prósperas e não em zonas de
colonização, onde teve a sua presença tradicional (...). Em 1985 a subversão
estava presente em 15% dos municípios de campesinato médio não cafeicultor e em
2% dos municípios de campesinato cafeicultor. Em 1995 estava em 58% do primeiro
tipo de municípios e em 53% dos municípios do segundo tipo. No mesmo período, a
guerrilha aumentou a sua presença de 13% dos povoados de agricultura comercial
para 71%, e a sua presença em cidades intermédias passou de 3 para 85%"
[AFP, 03/08/97].
A guerrilha, segundo o mencionado estudo,
adquiriu tal força que superou a capacidade de controle por parte do Estado.
Recente pesquisa de opinião revelava que os colombianos consideram ter a
guerrilha derrotado definitivamente as Forças Armadas. Em 1994, o então
Presidente César Gaviria reconhecia que 600 dos 1000 municípios colombianos
sofriam alguma forma de presença guerrilheira. Os paramilitares, por sua vez,
entenderam aos poucos que deveriam penetrar nas áreas mais desenvolvidas economicamente,
em especial aquelas que possuem nexos com o narcotráfico. Um total de 26% dos
134 municípios onde se cultiva a papoula (base da heroína), contam já com a
presença de grupos armados paramilitares, que disputam com a guerrilha o
domínio sobre os narcotraficantes. Conseqüentemente, há uma acelerada escalada
da violência, decorrente do conflito entre guerrilheiros e paramilitares,
conflito que termina vitimando a população civil, manipulada por guerrilheiros,
paramilitares, Forças Armadas, políticos corruptos e narcos. A perspectiva é
sombria. À violência praticada nos anos anteriores pelos cartéis da cocaína,
soma-se agora o conflito entre os dois agrupamentos subversivos que pretendem
encampar o narcotráfico, aproveitando o vácuo deixado com as prisões dos
tradicionais chefões. O estudo da Fundação
Milênio conclui a respeito: "Há uma escalada em andamento do conflito
entre guerrilha e paramilitares, embora é difícil de predizer se vai acontecer
de forma generalizada em todo o país, ou se vai se apresentar sob a modalidade
de guerras locais" [AFP, 03/08/97].
Essa escalada da violência tornou a Colômbia
um dos países mais inseguros do planeta. Os cientistas políticos Uprimmy Yepes
e Vargas Castaño [1990: 105] quantificaram, da seguinte forma, essa violenta
realidade: "Na Colômbia, a morte violenta tornou-se uma realidade
cotidiana. Segundo dados oficiais da Polícia Nacional, em 1988 cometeram-se no
país aproximadamente 21.000 homicídios, um a cada média hora em promédio. A
taxa de homicídios nesse ano foi de 70 por cem mil habitantes, fazendo da
Colômbia o terceiro país mais violento do mundo. (...). Se excluirmos as
crianças e os velhos, a metade das mortes dos homens cuja idade está
compreendida entre 15 e 44 anos, deve-se a assassinato".
3) As causas da violência política, no seio da
tradição patrimonialista latino-americana.- Séculos de cultura patrimonialista levaram os
países ibero-americanos a encararem a política como luta entre os clãs pela
posse do poder do Estado e, uma vez consolidado este, a administrá-lo como
botim orçamentário a ser distribuído entre amigos e paniaguados, com exclusão
de todos os outros. Essa é a raíz peculiar da violência na América Latina. Não
fomos dotados, como outros povos, da tendência à solidariedade. O nosso, como
destaca Oliveira Vianna, é um individualismo clânico e insolidário, amadurecido
em três séculos de poder latifundiário. O patotismo, nos nossos países, sufocou
o patriotismo [cf. Vianna, 1973: 220].
O sociólogo fluminense, aliás, traçou, em Instituições políticas brasileiras
[Vianna, 1974: I, 297], um quadro magistral desse insolidarismo
patrimonialista, na dinâmica da nossa sociedade: "Em toda essa psicologia
da vacuidade ou ausência de motivações coletivas da nossa vida pública, há um
traço geral que só por si bastaria para explicar todos os outros aspectos
(...). Este: a tenuidade ou fraqueza da
nossa consciência do bem coletivo, do nosso sentimento da solidariedade social
e do interesse público. Esta tenuidade ou esta pouca densidade do nosso sentimento do interesse coletivo é que nos dá a
razão científica do fato de que o interesse pessoal ou de família tenha, em
nosso povo -- no comportamento político
dos nossos homens públicos -- mais peso,
mais força, mais importância determinante, do que as considerações do interesse
coletivo ou nacional. Este estado de espírito tem uma causa geral (...): e esta razão científica é a ausência da
compreensão do poder do Estado como órgão do interesse público. Os órgãos
do Estado são para estes chefes de clãs, locais ou provinciais, apenas uma
força posta à sua disposição para servir aos amigos e aos seus interesses, ou
para oprimir os adversários e os interesses destes".
O cientista político Juan Gabriel Tokatlian
[1997a: 61] exprime, nos seguintes termos, a presença desse insolidarismo
patrimonialista na sociedade colombiana: "Na Colômbia, no Estado e no
terreno não-governamental, os agentes mais poderosos extremaram um
comportamento orientado à maximização de benefícios particulares e à garantia
da própria sobrevivência, com prejuízo dos interesses nacionais no seu
conjunto". O folclore político já tinha identificado esse vício
patrimonialista do trinômio insolidarismo / clientelismo / autoritarismo nos
seguintes versos, que eram recitados pelo povo após as guerras da independência
da Nova Granada, na terceira década do século passado: "Bolívar venció a los godos / Mas, desde ese infausto día / Por un
tirano que había / Se hicieron tiranos todos!".
Já para o sociólogo colombiano Camilo Torres,
o fenômeno da violência, inerente à privatização do poder por estamentos e
clãs, decorre da agressividade social que acompanha à frustração de aspirações
daqueles segmentos que se sentiram excluídos. A respeito, escreve [Torres,
1985: 106-107]: "A agressividade pode ser individual ou social. A
agressividade individual é o resultado de um desejo de destruição originado em
uma frustração. A destruição é buscada como uma compensação e como um meio de
reconstrução do que não se conseguiu. A agressividade social possui as mesmas
características, mas alargadas ao grupo social. A agressividade pode ser
manifesta ou latente, segundo o desejo de destruição possa se realizar ou não.
A agressividade social, em geral, encontra-se naqueles países nos quais há
frustração de aspirações. Se essa frustração de aspirações forma parte da
consciência social e encontramos, no interior das instituições sociais,
instrumentos violentos e eficazes de realização, a agressividade tornar-se-á
manifesta".
Foi o que de fato aconteceu na Colômbia:
frustrado a partir dos acenos de modernização e de liberdade que foram
inicialmente encenados e logo freados pelas oligarquias nas décadas de 30 e 40,
o campesinato, "por uma espécie de ação diabólica -- frisa o sociólogo Orlando Fals-Borda --
foi induzido a identificar os seus inimigos entre os seus próprios vizinhos e
parentes" [Fals-Borda, 1985: 42]. Essa foi a etapa da violência que
ensejou a luta a morte entre liberais e conservadores até 1958. A hodierna fase
da violência -- chamada de etapa dos
filhos da violência -- começou a se gestar durante o chamado Frente Nacional (1958-1974), e eclodiu
com força quando os partidos tradicionais recusaram-se a permitir o surgimento
de partidos de representatividade popular e foram boicotadas as principais
reformas econômicas e políticas reclamadas pela população. Os filhos da violência, camponeses famintos
e operários desempregados, juntaram-se a jovens universitários desiludidos de
tudo, e passaram a engrossar as fileiras dos movimentos guerrilheiros. A
cooptação de uma parcela dessas massas pelos narcotraficantes foi questão de
tempo e se viu facilitada pelo estranho raciocínio de alguns líderes
guerrilheiros que, estimulados por Cuba, passaram a achar que o incremento do
narcotráfico ajudaria a derrotar o gigante imperialista e, de outro lado, daria
lugar a preciosas divisas para compra de armamento. Desse contexto emergiu,
nestas últimas décadas, o esquisito fenômeno da narco-guerrilha [cf.Castillo,
1987; Landazábal, 1985; Castro, 1985; Pérez, 1990].
Os numerosos grupos de jovens desiludidos que
habitam na periferia das grandes cidades colombianas, são o que poderíamos
chamar de exército marginal de reserva
da guerrilha, do narcotráfico e dos organismos para-militares. Calcula-se que
de cada 100 pessoas assassinadas em Medellín, 70 estão na faixa dos 14 aos 19
anos. Esses jovens desenraizados e sem esperança vendem os seus serviços de sicariato a qualquer um. Só em Medellin
havia, em 1989, mais de 150 grupos de extermínio integrados por adolescentes.
Esses fatos levaram à jornalista Laura Restrepo a escrever que "uma nova
geração de colombianos não sabe que é possível morrer de velhice"
[Restrepo L., 1990: 27].
Testemunho claro da exclusão social e da
violência causadas pela privatização patrimonialista do Estado, foi dado por um
jovem chefe de um grupo de extermínio com atuação em Medellín. O testemunho
desse jovem muito bem poderia ser o de qualquer líder de polícia mineira numa favela carioca: "Destruímos as bocas de
fumo e atacamos o consumo de droga, porque daí provém grande parte da
decomposição da gente. Num dia justiçamos cinco moleques, porque eram casos
perdidos de drogadição. Já haviam sido advertidos, mas nunca houve forma de
recuperá-los, porisso os matamos. Criamos uma rede de informações para todos os
setores, com a mesma gente da comunidade. As senhoras, as crianças, os velhos,
todos eles nos avisam acerca da presença de assassinos e de estranhos. Só
estamos respondendo aos problemas que o governo não resolve. Aqui a polícia
nunca sobe e quando o faz torna-se cúmplice dos ladrões. Entendemos que é pelo
desemprego que muita gente opta por essa vida de delinqüência: se estes bairros
tornaram-se um inferno, não é por culpa da gente, mas do governo. Mas as coisas
já foram longe demais. Não há mais remédio que optar pela violência para
defender a tua vida e a da comunidade" [in: Restrepo, L., 1990: 31].
A violência colombiana, poderíamos afirmar
com o historiador Eric Hobsbawn [1985: 23], "procede de uma revolução
social frustrada. Isso é o que pode acontecer quando as tensões revolucionárias
sociais não são dissipadas pelo pacífico desenvolvimento econômico, nem freadas
para criar estruturas sociais novas e revolucionárias. Os exércitos da morte,
os desenraizados, os mutilados físicos e mentais, são o preço que a Colômbia
paga por esse fracasso".
Para o cientista político, Eduardo Pizarro
[in: Restrepo D., 1990: 210] uma das caraterísticas marcantes da violência
colombiana é o fato de ela provir da privatização do poder pelos partidos, que
são "(...) aparelhos tipicamente clientelistas, onde o poder do
congressista não provém do partido mas do controle sobre uma parte do
eleitorado, através da apropriação das corporações públicas, da capacidade de
decisão sobre o gasto, dos contratos e oferta de emprego público (...)".
Conclusão: alguns remédios a serem adotados na atual
conjuntura latino-americana.- O fenômeno da violência na América Latina possui
raízes profundas, de natureza culturológica, não sendo apenas um fenômeno
conjuntural. Daí por que os remédios devem apontar à mudança dessa complexa
realidade. Precisamos, nos nossos países, como dizia Tocqueville em relação aos
franceses, construir o homem político
[cf. Mélonio, 1993: 91 seg.], civilizado, solidário, livre das amarras do
patotismo, solidamente ancorado na defesa da liberdade, cônscio dos seus
direitos e dos seus deveres como cidadão. Precisamos reverter a tremenda
infra-valorização em que se encontra o cidadão, esse João Ninguém envergonhado
de si mesmo, tão bem descrito por Roberto da Matta [1991: 6].
Apenas para concluir, lembrarei aqui três
tarefas inadiáveis, sem as quais não será possível reverter, no nosso
Continente, a problemática da violência, umbilicalmente ligada à privatização
do Estado no seio da tradição patrimonialista. Essas três tarefas, interligadas
entre si, são as seguintes: em primeiro lugar, a conquista da liberdade econômica, mediante a
desregulamentação, o estímulo à livre iniciativa, o alívio da carga tributária
para o capital que gera empregos, o controle do gasto público e os processos de
privatização; em segundo lugar, o aperfeiçoamento da representação e do
controle da sociedade sobre o aparelho estatal, mediante a reforma política
e administrativa do Estado; em terceiro lugar, a efetivação da educação para a
cidadania, a ser realizada nas quatro primeiras séries do primeiro grau.
É evidente que constitui passo importante a
formulação de políticas públicas adequadas no terreno da segurança cidadã. Mas
só conseguiremos reforçar o statu quo,
se essas providências não se inserirem no quadro mais largo da reforma e
modernização do Estado, do estímulo à livre iniciativa e à produtividade e da
superação definitiva das crenças e práticas que constituem o chão axiológico em
que se alicerça o patrimonialismo, que outra coisa não é senão o nosso conhecido
patotismo, aplicado à administração do governo.
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